RESUMO
Discute-se a relação entre homossexualidade, religião e família, a partir da Psicologia Sócio-histórica. Busca-se investigar, por meio de uma análise fílmica, os sentidos e significados apresentados pela família, em relação à homossexualidade. Para tanto, utiliza-se a produção filmográfica Orações para Bobby, como um documento cultural, datado historicamente, que permite evidenciar as formas de vivências psicossociais. Nesta proposição, metodologicamente são adotados procedimentos de identificação, recorte, descrição e interpretação de cenas emblemáticas. Desse modo, realizaram-se a identificação, o recorte e a localização temporal, a descrição detalhada de textos das cenas com seus aspectos visuais e auditivos e construíram-se três categorias de análise das 16 cenas emblemáticas selecionadas: significados de religião, homossexualidade e família; significado de homossexualidade e suicídio; e impactos intergeracionais do signo da homossexualidade. Os resultados indicam que a relação entre a homossexualidade assumida, dogmas religiosos e família tradicional podem desencadear atos suicidas com motivação volitiva e consciente; as acepções de signo, sentidos, significado, mediação e internalização contribuíram para compreender o impacto que os conceitos da homossexualidade, socialmente construídos, incidem na vivência da sexualidade de jovens homossexuais e seus relacionamentos afetivos no âmbito social e familiar. O significado da homossexualidade apresenta-se de forma pejorativa, com força de materialidade histórica e de manutenção hegemônica de ideias, por meio de grupos conservadores, que encontram na família um lugar afetuoso e subjetivo, de reprodução fértil, ao passo que coletivos identitários, como a comunidade LGBTQIA+, buscam espaços para o debate político com avanços e rupturas dessas noções, historicamente construídas, no processo de significação da sexualidade.
Palavras-chave: Homossexualidade; família; religião
RESUMEN.
Se discute la relación entre la homosexualidad, religión y familia, establecido em la psicologia sociohistórica. Busca indagar, a través de un análisis fílmico, los sentidos y significados presentados por la familia, en relación a la homosexualidad. Para esto, se usa la producción cinematográfica, Oraciones por Bobby como documento histórico y cultural que permite ressaltar las formas de las experiencias psicosociales. En esta proposición se adoptan metodologicamente procedimientos de identificación, recorte, descripción e interpretación de escenas emblemáticas. De este modo, se cosntruyeron tres categorías de análisis de las 16 escenas emblemáticas seleccionadas: significados de religión, homosexualidad y familia; significado de homosexualidad y suicido y los impactos intereracionales de los signos de la homosexualidad. Los resultados indican que larelación entre la homosexualidad asumida, los dogmas religiosos y la familia tradicional puede desencadenar actos suicidas com motivación volitiva y consciente; los significados del signo, los sentidos, el significado, la mediación y la internalización contribuyeron a la comprensióndel impacto que los conceptos de homosexualidad, construidos socialmente, tienen en la experiencia de la sexualidad de los jóvenes homosexuales y sus relaciones afectivas en la esfera social y familiar. Finalmente, se considera que la producción cinematográfica anima las discusiones sobre temas y fenómenos complejos, conorígenes históricas y representaciones persistentes, en el cualmoviliza nuevas formas de pensar y construir lo social; el significado de la homosexualidad se presenta de manera peyorativa , com lafuerza de la materialidade histórica y el mantenimiento hegemónico de las ideas, a través de grupos conservadores, que encuentran en la família un lugar, cariñoso y subjetivo, de reproducción fértil, mientras que los colectivos de identidad, la comunidad LGBTQIA+ busca espacios para el debate político y los avances y rupturas de estas nociones, historicamente construidas, en el processo de significar la sexualidad. Se insertan nuevos componentes, a través de las historias de personas que intercambian visiones y palabras impregnadas de sentido, que se reformulan constantemente.
Palabras clave: Homesexualidad; família; religión
ABSTRACT
The relationship among homosexuality, religion and family is discussed, based on Socio-historical Psychology. For this purpose, the movie Prayers for Bobby is used as a cultural document, historically dated, which allows highlighting the forms of psychosocial experiences. Three categories of analysis of the 16 selected emblematic scenes were constructed: meanings of religion, homosexuality and family; the meaning of homosexuality and suicide; and intergenerational impacts of the homosexuality sign. The results indicate that the relationship among assumed homosexuality, religious dogma and the traditional family can trigger suicidal acts with volitional and conscious motivation; the sign, senses, meaning, mediation and internalization approaches have contributed to understanding the impact that socially constructed concepts of homosexuality have on the experience of young homosexuals sexuality and their affective relationships in the social and family spheres. Finally, it is considered that cinematographic production encourages discussions of complex issues and phenomena with persistent origins and historical representations, which mobilize new ways of thinking and constructing society. Homosexual meaning is set out pejoratively, with the strength of historical materiality and hegemonic maintenance of ideas, through conservative groups, who find an affectionate and subjective, fertile reproduction place in the family. In contrast, identity collectives, the LGBTQIA+ community, seek spaces for political debate and advances and ruptures of historically constructed notions in the process of signifying sexuality. The individuals' stories exchanging visions and words are inserted with new components constantly reformulated with meaning.
Keywords: Homosexuality; family; religion
Introdução
Estamos diante de dois embates sócio-históricos: 1) a relação entre homossexualidade e religião, que pode destacar concepções e ideias de ordem heteronormativas6, as quais estão amparadas em valores cristãos que, por vezes, se apresentam de modo resistente às minorias sexuais. Discursos religiosos sobre a homossexualidade pontuam-na como patológica e curável, pois: “1) trata-se de um comportamento aprendido; 2) um problema espiritual; 3) é uma antinatureza” (Natividade, 2006, p. 118).
Esse postulado - doença do corpo e espiritual -, desde 2006 incorpora a proposição de cura da homossexualidade por meios profissionais ou espirituais, evidenciados em estudos recentes sobre a permanência e fixidez de estruturas antagônicas à vivência plural da sexualidade. Estudos recentes apresentam-se nessa consonância (Gonçalves, 2019; Machado, 2017; Natividade, 2017; Reis & Santos, 2011; Ribeiro & Scorsolini-Comin, 2017).
Ainda, observam-se ideias de rejeição à homossexualidade relacionada à possibilidade de reorientação sexual, em que jovens evangélicos pentecostais, em conformidade com as leis colocadas por autoridades religiosas, viam a homossexualidade como ‘pecado’, pois Deus ‘não aprova’ relações homossexuais, em contraposição à defesa da possibilidade, unicamente, de relações afetivas e sexuais entre homens e mulheres. Os jovens afirmavam que a igreja concedia ajuda para que pessoas homossexuais fossem ‘libertas’ da homossexualidade (Silva, Santos, Licciardi, & Paiva, 2008).
Discursos de pastores, parlamentares evangélicos e católicos, a partir da ciência, equivocadamente enfatizam a ideia de que a homossexualidade não é inata, possui uma causa externa que favorece sua origem. Sendo assim, apreendida socialmente, logo, pode ser desconstruída por meio de terapias cristãs, que auxiliem o indivíduo a desenvolver uma sexualidade condizente com os preceitos religiosos (Machado, 2017).
Discussões essas que perpassam as esferas políticas, religiosas e da saúde, em torno da ‘cura gay’ defendida como uma saída da homossexualidade, por via de tratamentos específicos. Amparados em premissas religiosas, parlamentares e profissionais, que se autointitulam ‘profissionais cristãos’, advogam o tratamento da sexualidade, por psicólogos, ou por meio da religião (Gonçalves, 2019). No entanto, vão de encontro às premissas éticas profissionais, especialmente da Resolução nº 001 (1999, p. 2) do Conselho Federal de Psicologia que estabelece normas de atuação para os psicólogos em relação à questão da orientação sexual, ou seja, os profissionais “[...] não colaborarão com eventos e serviços que proponham tratamento e cura das homossexualidades”.
Os referidos discursos baseiam-se, supostamente, em teorias provenientes do saber psicológico e das ciências sociais, as quais apresentam articulações aos princípios religiosos: a crença de que a heterossexualidade seria uma condição natural, pois Deus criou homens e mulheres com o princípio de complementaridade, desvio da natureza, em virtude de relações sociais e abusos sexuais na infância (Machado, 2017).
Um segundo embate se dá no âmbito familiar. Estudos revelam o aumento do número de famílias que apoiam a orientação sexual dos filhos, pois muitas vezes a mídia colabora para esta mudança, já que vem contribuindo para a aceitação da diversidade sexual (Reis & Santos, 2011). Em consonância, como visto em pesquisa com 11 jovens homoafetivos que praticam alguma religião cristã (católica, evangélica e espírita), afirmaram, em sua maioria, que suas famílias, mesmo inseridas numa determinada religião, aceitam, de forma gradativa, a orientação sexual deles. Assim, os jovens “[...] ocasionaram a mudança da percepção que os pais possuíam sobre a homossexualidade” (Ribeiro & Scorsolini-Comin, 2017, p. 8). Contudo, a instituição família, na maioria das vezes, possui aversão e repulsa diante da homossexualidade, visto que mantém um posicionamento rígido e heteronormativo com seus filhos, o que sustenta uma fixidez de pensamento característico de uma sociedade tradicional (Reis & Santos, 2011; Taquette & Rodrigues, 2015).
Em virtude dos embates e impasses, acima destacados, entre homossexualidade, religião e família, e das implicações que estes podem ocasionar na dinâmica familiar e no desenvolvimento emocional de seus membros, este artigo busca investigar, por meio da análise fílmica do longa-metragem internacional Orações para Bobby, lançado em 2009, os sentidos e significados apresentados pela família em relação à homossexualidade.
Desse modo, pretende-se debater as seguintes questões: Quais são os significados e sentidos retratados no filme sobre a homossexualidade? Como essas concepções ganham sentido na dinâmica familiar e, especificamente, na relação mãe-filho? Quais sentidos evidenciam uma força de permanência no processo de significação na cultura? Como o cinema possibilita ressignificação de ideias e afetos cristalizados?
Teoria e contexto histórico-cultural
Compreender as dimensões históricas e sociais de uma problemática é resgatar os debates e disputas de sentidos que ideias ocupam na vida em sociedade. Vygotsky (1991) é um defensor de como essas dimensões estão direta e indiretamente relacionadas ao processo de formação de subjetividades. Sendo assim, faz-se necessária uma revisão sobre o período histórico retratado no filme aqui analisado e suas repercussões na atualidade.
Destaca-se, inicialmente, o contexto histórico norte-americano do filme, a partir de história real de Bobby, um adolescente homossexual que percebe e experimenta sua sexualidade, no final dos anos 70 e início de 80, nos EUA, em meio a uma família tradicional e cristã. Esse período histórico é importante para a comunidade LGBTQIA+, especialmente o ano de 1969 com a conhecida Revolução de Stonewall, em Nova York (EUA), na qual gays, lésbicas, travestis e transsexuais, entre outras minorias, revoltaram-se contra a opressão e as incursões policiais que as prendiam e as atacavam. Tal revolução é reconhecida como referencial para liberdade e a democratização da cidadania dessas populações (Santos, 2008). Os anos 70 permitiram disputas políticas em virtude das fortes transformações vivenciadas pelo país após a Guerra Fria, e movimentos liberais ocorridos nos anos de 1960, a exemplo do movimento supracitado. O movimento da direita cristã conservadora, que contraria os ideais de liberdade sexual, aborto, feminismo e demais minorias, se mobilizaria e ganharia apoio de neoconservadores e fundamentalistas cristãos, na busca e conquista de poder político para realização de seus programas sociais, culturais e econômicos, como tentativa de redução dos avanços conseguidos nos anos de 1960 (Rezende, 2018).
Concomitantemente e de modo contraditório, esse período faz surgir indícios de resistência, especialmente evidenciados com a criação do termo ‘homofobia’ em 1972, a retirada da homossexualidade dos manuais diagnósticos da psiquiatria em 1973 e a descriminalização da homossexualidade pela comunidade europeia em 1982 (Poeschl, Venancio, & Costa, 2012). Ao lado disso, o aparecimento da AIDS (Síndrome da Imunodeficiência) nos anos 70 e 80 recrudescem o conceito de homossexualidade como pecado. Todo o desconhecimento científico sobre essa nova doença foi divulgado e disseminado através da mídia mundial com termos como ‘câncer gay’, ‘leprosos dos anos 80’ e ‘castigo de Deus’ (Brito & Rosa, 2018).
Essas ocorrências acabaram por nutrir ideias com poder de permanência e de resistências às mudanças, como se observa, infelizmente, na contemporaneidade. A persistência de aspectos conservadores e tradicionais são barreiras para a garantia de direitos à população LGBTQIA+. Assevera-se que, ainda hoje, as diferentes religiões, com base cristã, demonstram força no meio político e social, não apenas no país onde está ambientado o longa-metragem, mas também no Brasil, principalmente com o crescimento da bancada evangélica no Congresso. Essas configurações ideacionais ganham espaços de poder nas decisões públicas e reforçam expressões e opiniões com bases tradicionalistas e preconceituosas (Machado, 2017). Também há o crescimento de governos de vertente política do espectro de direita no poder, em todos os âmbitos da Federação, que se pautam em políticas sociais mais conservadoras, os quais reforçam o moralismo no campo da política e, consequentemente, no meio social.
Percebe-se essa presença, de grande força tradicionalista em diferentes instituições sociais. Ainda em 2020, a OMS (Organização Mundial da Saúde) proíbe a doação de sangue por homens que tiveram relações sexuais com outros homens, nos últimos 12 meses, anteriores à doação, o que exclui a possibilidade de doação de sangue por homossexuais. Tal decisão é pautada em parâmetros de saúde, que se justificam na premissa de que há uma ocorrência de HIV entre o grupo homossexual. Parece-nos, no entanto, que tal proposição se encontra associada à história dos homossexuais com o vírus. Na contramão, atitude do Supremo Tribunal Federal brasileiro, em razão da nova pandemia do coronavírus que repercute no baixo estoque nos bancos de sangue, alega que tal proibição se baseia em ideias discriminatórias com relação à orientação sexual, o que impede aos homossexuais realizarem o gesto solidário de doação de sangue, ainda que esses tenham tomado todos os devidos cuidados com uso de preservativos na prática sexual.
Como resultado disso, em 08 de maio de 2020, o STF em uma decisão histórica, coloca um fim na restrição supracitada: sete de 11 ministros votaram a favor do fim da proibição. No entanto, essa decisão não foi bem aceita e órgãos como Anvisa e o Ministério da Saúde ainda orientam os laboratórios de doação de sangue a não cumprirem a decisão do STF até que haja a finalização total do caso (Frades, 2020; Ker, 2020).
Nota-se, a partir do supracitado, como os significados compartilhados e historicamente delineados configuram a homossexualidade de modo pejorativo. A esse modo, significados religiosos são adicionados e compartilhados social e culturalmente, com a mesma ênfase negativa, os quais, por sua vez, terão relação direta com a constituição de subjetividades por meio da internalização dos signos que são produzidos sócio-historicamente.
Considera-se, assim, a religião como uma produção cultural que implica efeitos de subjetivação, por meio dos signos atrelados a ela, que modificam a visão de mundo e os comportamentos daqueles que dela se apropriam (Vygotsky, 1991).
Método
A partir das premissas conceituais vigotskianas, de sentidos e significados, as categorias de homossexualidade, família e religião serão discutidas, fundamentando-se na defesa do sujeito em dimensões históricas e sociais. Essa interpretação soma-se como uma nova perspectiva às demais reflexões, em contexto brasileiro, que abordam o filme Orações para Bobby como um documento-chave para o debate acadêmico da homossexualidade (Conde, 2016; Rezende, 2018; Silva, 2015; Silva, 2019; Barreto & Ribeiro, 2014).
Buscar-se-á estabelecer uma crítica articulada com o panorama social atual, o que reafirma o compromisso da psicologia no combate à discriminação e na garantia de direitos das minorias sociais.
O contexto empírico propõe realizar uma análise sócio-histórica do filme norte-americano Orações para Bobby (Prayers for Bobby), um drama biográfico lançado em 24 de janeiro de 2009, pela Lifetime Productions. Com a direção de Russel Mulcahy, em língua inglesa, o filme aborda a vida familiar, religiosa e sexual de Bobby Griffith, entre os anos de 1978 e 1981, no estado de Michigan (USA), onde a homossexualidade era discriminada pela religião cristã, da qual sua família faz parte7.
No longa, Mary Griffith, mãe de Bobby, é uma religiosa que segue as interpretações bíblicas de sua comunidade de forma cabal. Após descobrir que seu filho, Bobby, é homossexual, ela busca desenfreadamente a ‘cura’ dele com terapias e cultos religiosos.
A revelação sobre a sexualidade de Bobby impacta profundamente o relacionamento familiar que seus membros vivenciavam, o que gera experiências consecutivas de intolerância, por cultos que o rotulam como pecador, familiares que o percebem como um fator vergonhoso e até a psiquiatra que o trata como doente mental. A situação torna-se insuportável para Bobby, que desiste da escola (ensino médio) e de morar com sua família. Mesmo distante, Bobby ainda sofre pela relação de culpa que vivencia com sua homossexualidade, o que permite a escrita de sua trajetória num diário, até o momento que decide pelo suicídio (Lopes, 2018). Esse fato leva sua mãe a vivenciar uma profunda angústia, em razão de sua incapacidade de solucionar sozinha a divergência existente entre sua leitura bíblica sobre homossexualidade, pecado e suicídio; e a visão que Mary carregava de Bobby, como um garoto bondoso e que nunca fez nenhum mal aos outros. Tal conflito soluciona-se com a leitura do diário do falecido filho e pela aproximação de uma igreja inclusiva, mudando sua perspectiva da homossexualidade e do amor de Deus (Lopes, 2018).
A análise sócio-histórica aqui empreendida considera o filme como um documento que retrata uma época, apresenta seus personagens, contextualiza situações e dramas. Desse modo, constitui uma metodologia de identificação de informações factuais para responder questões ou hipóteses de interesse de uma pesquisa (Sá-Silva, Almeida, & Guindani, 2009). Uma vez que o documento escolhido é o longa-metragem citado acima, as estratégias adotam procedimentos de identificação, recorte, descrição e interpretação de cenas emblemáticas (Oliveira et al, 2019), isto é, são cenas representativas da relação entre homossexualidade, família e religião, temas que são o foco da análise aqui empreendida.
Desse modo, realizou-se a identificação, recorte e localização temporal, descrição detalhada de textos das cenas com seus aspectos visuais e auditivos. As cenas descritas, a seguir, são categorizadas e se interpenetram. Eis o que se apresentou à reflexão.
Resultados
Significados de religião, família e homossexualidade:
1) Música religiosa de fundo enquanto passam cenas de quadros com imagens de Jesus Cristo (00:00:01); 2) Mulher protagonista, cujo nome é Mary, trabalhando com uma máquina de costura (00:00:23); 3) Bobby, filho de Mary e também protagonista, caminhando em uma ponte (00:00:39); 4) Quadros com imagens de Mary e Bobby juntos (00:00:54); 5) Pai de Bobby filmando um momento da família em que todos parecem felizes e unidos (00:01:40); 6) Família de Bobby e Mary reunida comemorando o aniversário da avó de Bobby e recitando versículos bíblicos. Ed, irmão de Bobby, desfila pela sala com uma bolsa feminina pendurada no ombro, imitando comportamentos femininos, Mary ordena que ele pare, Ed responde: “Porquê? Qual o problema, mãe?”, Mary responde: “É nojento”, avó de Bobby concorda e diz: “Sim. Por mim os veados deviam ser todos enfileirados e mortos” (00:02:52).
Como vimos na descrição acima, observa-se que a música, as imagens religiosas, a reunião de família retratam a harmonia e felicidade vivenciadas na relação entre mãe e filho, sob a proteção de princípios religiosos tradicionais. Nessa direção, destacamos ainda o quadro com a imagem sorrindo de Mary e Bobby.
A ênfase que a religião possui nas imagens fílmicas se destaca na recitação de versículos bíblicos e indica contexto familiar norteado por bases e significados religiosos. Nesse contexto imagético, é apresentada para nós a visão compartilhada e os sentidos pejorativos dessa família sobre a homossexualidade. Assim se apresentam: quando a avó e a mãe, Mary, repreendem o filho mais velho após uma brincadeira em que ele reproduz estereótipos sobre homossexuais. Ambas se referem ao comportamento dele com expressões como “é nojento” e “[...] os veados deviam ser todos enfileirados e mortos”.
Tais expressões demonstram a imagem hostil que a família tem sobre a homossexualidade e revelam sua sustentação em dogmas religiosos que permeiam sentidos compartilhados a respeito da homossexualidade. A religião é utilizada, desse modo, como um instrumento mediador para as construções dos sentidos sobre a sexualidade em questão pela família de Bobby.
Neste âmbito, Vygotsky (1991) afirma que o uso de instrumentos e signos medeiam a interação do homem com o mundo e suas relações interpessoais. Os signos agem sobre a conduta humana como um guia psicológico, atuando neste plano, tanto de forma individual como de forma coletiva. Nesse sentido, consideramos que os significados de princípios religiosos ganham um sentido no processo de significação, e se constituem como um signo mediador e sustentáculo de ações familiares sobre a homossexualidade (Vygotsky, 1991).
Podemos asseverar que é por meio da família que se inicia o processo de significação do mundo (Sarti, 2004). A família atua na sociedade como instituição responsável pelo ordenamento simbólico de seus integrantes, isto é, apresenta, constrói e reproduz as regras e noções da sociedade onde está inserida. Desse modo, a compreensão da dinâmica familiar está subsumida em determinado entorno social, com suas determinações.
Sentidos de homossexualidade e suicídio: manutenção e rupturas
Outro grupo de cenas emblemáticas que reitera nossa análise está descrito a seguir:
7) Ao chegar em casa, Ed, irmão mais velho de Bobby, encontra-o deitado na cama após tentar suicídio por meio da ingestão de comprimidos e, assustado, questiona o irmão por que tentou fazer aquilo. Bobby responde que não conseguiu tomar as pílulas e afirma: “Eu não queria ir para o Inferno, mas [...] estou nele”. Ed, imperativamente, pede que o irmão se explique melhor. Bobby afirma que todos da família irão odiar ao saber, mas acaba por revelar: “Eu não sonho com garotas como você. Sonho com rapazes”. Eles discutem sobre revelar a sexualidade de Bobby aos pais, mas terminam decidindo por não revelar. Ed promete que não contará. (00:10:48);
8) “Eu não queria contar, mas ele estava tão estranho. Estou mesmo preocupado com ele. Ele acha que pode ser homossexual”. Ed acaba por revelar a Mary, contrariando o prometido ao irmão, a discussão que teve com Bobby. Mary logo contradiz, afirmando que Bobby não pode ser gay e agradece pelo filho ter contado o que aconteceu, dizendo que:
Não tenho dúvidas que Deus pode resolver isto. Ele vai nos ajudar. Ele vai curar o Bobby. E assim todos nós poderemos estar juntos no Reino dos Céus. Não podemos falhar. Não podemos pecar assim. E este é um pecado terrível. A Bíblia chama de abominação. Em Levítico, se um homem deitar com outro homem, devem ser ambos mortos.
Logo após, Bobby chega em casa e percebe que o irmão quebrou sua confiança, a mãe oferece ajuda e lhe diz que ele não é gay e com a ajuda de Deus ele poderia se curar. (00:12:53).
9) Bobby acorda no sofá da sala, no dia seguinte ao que seu irmão mais velho conta aos seus pais sobre sua sexualidade, ao som de um rádio, transmitindo um programa religioso cristão (00:15:20); 10), Mary está ouvindo o rádio enquanto escreve bilhetes com trechos bíblicos (00:15:27); 11) Ao perceber que Bobby despertou, Mary vai até a sala espalhando os bilhetes pelos móveis aconselhando-o: “[...] a viver a sua nova vida de acordo com o Espírito Santo, e então não vai fazer o que sua natureza pecadora deseja. Quando o Espírito Santo controla a sua vida, Ele providencia amor, alegria, ternura, bondade e autocontrole”. Bobby questiona se todos da família precisavam saber e Mary rebate que a família o ama. Bobby se retira da sala (00:15:35).
As cenas acima descritas permitem compreender que, ao começar a entender sua sexualidade, o que antecede sua primeira tentativa de suicídio, o sentimento de culpa inunda a existência de Bobby e para não viver sendo odiado por toda sua família, tenta tirar sua própria vida. Porém, recorre à religião, presença norteadora de suas ações, sentimentos e pensamentos, quando Bobby afirma ao seu irmão que não conseguiu se matar, pois não queria ir para o inferno (de acordo com sua religião, tirar a vida é um pecado condenável). Mesmo Bobby não conseguindo cometer o ato suicida, nota-se a angústia presente nele quando diz que já se sente no inferno, em virtude de acreditar que é um pecador e que todos de sua família o odeiam.
Percebe-se que a descoberta da sexualidade de Bobby torna-se um fato desestabilizador, com base afetivo-volitiva, que impulsiona novas dinâmicas na família. Essas, alteram sentidos e significados que, até então, eram condizentes com sua fossilização e presença hegemônica na cultura: vão de indiferenças e novas atitudes entres os membros da família. Por exemplo: ao saber da orientação sexual do filho, Mary recorre aos princípios tradicionais e fossilizados que a constituem e encontra saída na possibilidade da cura para o que, em sua concepção, seria uma doença. Com isso, reiteramos fortemente a influência da religião no ambiente familiar. Para imprimir e fortalecer essa ideia, Mary reproduz bilhetes com mensagens bíblicas e espalha pela casa, o que reitera desejo na possibilidade de ‘se converter’ em relação a sua sexualidade. Essa conversão depende da ação que o Espírito Santo conduza a sua vida, por meio da ampliação da vivência religiosa na rotina do jovem. A forma preponderante de manutenção impera em contraposição à possibilidade de ruptura e de transformação.
As imagens de Bobby mostram incômodo e tristeza gerados com a atitude do irmão e da mãe pelo desrespeito à sua vontade em preservar segredo sobre sua sexualidade. A exposição rompe com a ideia de um possível segredo compartilhado, bem como a aquisição de aliança. No entanto, as ações da mãe, de espalhar bilhetes e deixar todos da família cientes da sexualidade de Bobby, são entendidas, por ela, como demonstrações de amor e união, em razão do amor de todos, apesar de sua ‘natureza pecadora’.
Diante disso, percebe-se que a homossexualidade em sua condição material, ou seja, que foi materializada historicamente, possui significados compartilhados socialmente e possui força de manutenção, calcada nas estruturas históricas e sociais. Possui ainda, no processo de significação, a dimensão dos sentidos, que atribuem, no particular, vivências localizadas em contextos históricos e sociais diversos. O filme retrata a apropriação mediada por concepções religiosas, que, para a mãe, tinham o sentido de algo pecaminoso, pois o que é considerado legítimo para sua religião são os relacionamentos heterossexuais.
As relações interpessoais ocorrem de forma mediada por signos (Vygotsky, 1991), como a relação entre Mary e Bobby se apresentava mediada e sustentada por signos religiosos. Mary não poderia aceitá-lo como gay, pois os significados compartilhados, no seu contexto cultural, determinavam os sentidos vivenciados, que a impediram, de certo modo, de conceber a sexualidade do filho como legítima, o que implicou uma mudança significativa na relação entre eles.
Impactos intergeracionais da apropriação do signo da homossexualidade
Outro grupo de cenas que ampliam o olhar de análise para além da relação familiar pode ser verificado a seguir:
12) campainha da casa de Bobby toca, Mary abre a porta e encontra amigos de Bobby fantasiados com roupas femininas (vestidos, perucas e maquiagem escura). Os amigos perguntam se Bobby está em casa (00:32:54); 13) a mãe vai até o quarto dele perguntando: “Bobby, não bastasse você ir Deus sabe onde à noite, e agora traz esses desviados à minha casa?”. Os amigos, sentados no sofá da casa, ouvem toda a discussão constrangidos. Bobby responde à mãe: “Também é a minha casa, e eles são meus amigos”. Ela questiona se é isso mesmo que o rapaz é. Seguem em discussão pelas amizades de Bobby estarem influenciando em sua conduta e sobre como toda a crítica que Mary faz ao filho o deixa infeliz. Mary rebate e afirma que suas críticas são baseadas na Bíblia.
Bobby não aceita tal argumento e afirma que mesmo tentando, sua sexualidade não pode ser mudada. Ele discorda de que escolheu isso, a homossexualidade, mas complementa que seus familiares escolheram o condenar por isso (00:33:00).
Acima, percebe-se que meses passaram desde a descoberta da sexualidade de Bobby perante a família. As crenças e convicções de Mary permaneceram inalteradas, porém Bobby parece desacreditar cada vez mais na possibilidade de cura da sua homossexualidade. Nesse sentido, ocorre um processo de ruptura da visão da homossexualidade tomada como pecado, pela mediação religiosa. Para Bobby, caso seja um pecado sua orientação sexual, então é um pecado ‘capital’, de condenação imediata para o inferno, pois uma vez que os outros (familiares, sociedade) estejam cientes de sua sexualidade, a vida terrena já se torna insuportável.
Nessa mesma direção, as cenas retratam, após uma tentativa de vivenciar outras experiências, o retorno de Bobby à família, como veremos a seguir:
14) família de Bobby reunida na sala de estar, jantando, conversam e sorriem. Bobby comenta que quer se mudar para Portland e que conheceu um cara. Os membros da família expressam constrangimento, Mary, no mesmo momento, levanta e pede para as meninas ajudarem-na a tirar a louça, ignorando o que Bobby falou. A irmã mais nova de Bobby pergunta: “Vamos fingir que não ouvimos isso?” e outra irmã responde: “Sim” com expressão de descontentamento (00:39:07); 15) Bobby levanta e vai até a cozinha onde está Mary, que ignora o assunto, mesmo quando Bobby fala sobre seu relacionamento, felicidade e vergonha por estar vivendo essa situação. Mary alega que a vergonha vem por ele saber que é errado e que é a Bíblia quem diz. Mas Bobby diz que é Mary quem acredita nisso e que se ela não aceita quem ele é, é melhor esquecê-lo. Com isso, Mary diz “[...] não vou ter um filho gay!” e Bobby responde: “Então, mãe, você não tem um filho” e se despedem. (00:39:49).
16) Bobby escreve em seu diário “Às vezes sofro tanto [...] Estou assustado e sozinho. Estou condenado. Gostaria de poder rastejar para baixo de uma pedra e dormir para sempre [...]”, expressando a solidão por estar longe da família, em Portland, e por ainda sentir culpa ao namorar um homem. As cenas apresentam flashs de Bobby perdido numa floresta e preso em arame farpado com olhos fechados. Segue com Bobby tentando ligar para o namorado e indo procurá-lo, encontrando-o num clube noturno paquerando outro homem. Bobby é tomado pelo desespero e encaminha-se para uma ponte, onde comete suicídio. Flashs de Mary rezando e dizendo que não teria um filho gay, representam as lembranças de Bobby (00:45:53).
Bobby havia passado algumas semanas em Portland, a cidade mais populosa do estado do Oregon (EUA). Nesse tempo, Bobby pôde conhecer outras pessoas homossexuais e se relacionar afetivamente com um homem, permitindo viver suas primeiras experiências com sua sexualidade.
Ao voltar para casa, Bobby já não via o ambiente familiar, especificamente sua mãe, como capaz de lidar com sua sexualidade e a forma positiva como a vivenciou. Mary não desejava ouvir seu filho falar sobre isso, nem estava disposta a discutir com Bobby novamente como suas crenças estavam em contradição com a sexualidade do jovem.
Ao confrontar sua mãe, Bobby revela como psicologicamente é difícil dissociar sua sexualidade com a culpa, o pecado e a repulsa, uma vez que sua família vincula esses sentidos à homossexualidade e estes mesmos sentidos foram ensinados e repetidos durante toda sua infância e adolescência. Afetivamente, Bobby é tomado por essa vergonha, porém racionalmente ele encara que não está fazendo nada errado ou que o torne indigno. Mary não concorda e rebate, reiterando a anormalidade da sexualidade de Bobby.
O conflito, possível ruptura com aspectos fossilizados na cultura, intensifica-se e finaliza com Bobby abrindo mão de sua ligação familiar pela sua sexualidade, e Mary abdicando de seu relacionamento com o filho por contradizer sua doutrina religiosa. Vemos nessa atitude de Bobby como a sexualidade é um fator de extrema importância para individualidade do sujeito, definida como ‘parte de si’, enquanto a religião para Mary ganha sentido como base para tomada de atitudes e defesa de convicções morais. Nessa direção, podemos recorrer à acepção vigotskiana de ser o drama peculiar da atividade humana, com intensa reflexão conflituosa a decidir os passos de nossas histórias (Dellari Junior, 2011). Assim, as cenas de inação de seu entorno auxiliam na efetivação da ação suicida.
Discussão
Os significados vinculados aos dogmas religiosos orientam e sustentam as relações intergeracionais, são compartilhados e adquirem sentidos pejorativos, vivenciados, especificamente, sobre a homossexualidade. Os afetos, em sua base afetivo-volitiva, nutrem-se de hostilidade e rejeição. Em outras palavras, o uso de instrumentos e signos dogmáticos em questão se configura de modo interacional, entre pessoas e o mundo que as cerca. Os signos, por sua vez, iluminam indefinições e inseguranças e surgem como alívios a essas, formando condutas individuais e coletivas.
Nesse sentido, no processo de significação aqui proposto, em conformidade com a perspectiva vigotskiana, os princípios religiosos, compartilhados e defendidos no ambiente social, na sociedade norte-americana, configuram-se como signo mediador e sustentáculo de sentidos, pensamentos e ações familiares reforçados historicamente sobre a homossexualidade.
Esses princípios são apresentados, ordenados, construídos e reproduzidos, desde o nascimento, por meio de instituições. A família é a primeira delas a desempenhar esse papel, que, por sua vez, está submetida às demais determinações estruturais das sociedades (Sarti, 2004). A efetividade desse processo imprime submissão, pois opera envolta em afetos primeiros e primários, em condições desiguais, o que impede possibilidades de recusas: amor, culpa, traição, ódio são signos marcados corporal e objetivamente.
As descobertas da possibilidade de outros caminhos a percorrer em dramas e histórias ocorrem em momentos posteriores e em novas vivências com outras pessoas, fora da instituição familiar. Assim, o corpo e, em especial, a sexualidade impulsionam novos dramas psicológicos desestabilizadores, com base afetivo-volitiva, que incentivam rearranjos dinâmicos na família. Ideias e signos que possuem elementos de fossilização na estrutura social e cultural das sociedades são colocados à prova, e relações intergeracionais conflitam e, por vezes, conseguem operar rupturas e superação (Vygotsky, 1991). A homossexualidade, infelizmente, ainda hoje, opera com a manutenção de dogmas, em contraposição à ruptura e transformação, defendidas pela ciência. A manutenção de dogmas se efetiva, inicialmente, na família, como já referido.
Não só por organização social, mas, principalmente, por afetos e vínculos presentes no ambiente, a família é o principal meio de mediação entre indivíduo e sociedade. Esta instituição é construída socialmente, carregada de valores e subjetividades dos membros que dela fazem parte. A família está imersa na sociedade e nos laços sociais que produzem e reproduzem relações e modos de ser, inclusive, da sexualidade, a partir da perspectiva histórica de seu tempo (Meira & Santana, 2014; Tamarozzi, 2020).
Nesse sentido, as visões de mundo das famílias sobre as sexualidades ainda são sustentadas pela hegemonia de ideias fossilizadas da heteronormatividade. O que não está previsto nesse ideário deve ser recusado, discriminado e impedido, mesmo que por atos violentos (Perucchi, Brandão, & Vieira, 2014). Esse ideário se sustenta, por meio de tabus, crenças e dogmas, conforme pontuam homens homossexuais em suas narrativas sobre as suas famílias em que se baseiam em significados preconceituosos e estereotipados, sempre reafirmados, em grande, parte por crenças religiosas, conceitos de saúde e doença e papéis de gênero, o que os leva a terem medo de expressar sua sexualidade no âmbito familiar e social (Silva, Frutuozo, Feijó, Valerio, & Chaves, 2015). A religião e seus dogmas contribuem, sobremaneira, na regulação familiar e têm se apresentado como um dos grandes pilares de sustentação de concepções que reforçam o preconceito e a discriminação daqueles que não se enquadram na norma hegemônica (Natividade, 2019).
Aos corpos são destinadas formas de controle. Sabem-se as posições defendidas por autores da psicologia cultural e da perspectiva sócio-histórica, as quais evidenciam a indissociabilidade entre mente-corpo. O corpo não é meramente instrumento da mente, ele é instrumentalizador e instrumento da relação social. A construção do corpo perpassa o desenvolvimento da pessoa (Vygotsky, 1991; Amorim & Rosseti-Ferreira, 2008). Nesse sentido, o corpo homossexual submete-se ao crivo dessas relações estruturais na sociedade, sendo concebido na mediação da cultura religiosa por significados, como ‘doente’ (passível de cura), pecador, não normativo, antinatural e repulsivo; portanto, a pessoa homossexual se materializa, objetifica/subjetiva em meio a esses termos (Natividade, 2006).
Nesse sentido, a mediação da cultura religiosa sobre a homossexualidade imprime no corpo sentidos pejorativos e negativos: dualidades que o conceito de pecado carrega com sua impureza, sua tendência à morte e à destruição, seu destino infernal e solitário. Assim, a vivência homossexual, se experienciada como pecadora, é capaz de construir no sujeito uma autodepreciação e vulnerabilidade psíquica que restringem sua possibilidade de viver plenamente sua sexualidade. Resta, então, o acobertamento completo do seu desejo (‘viver no armário’), a conversão religiosa (que não apresenta resultados clínicos que confirmem a mudança da orientação sexual) ou a impossibilidade de viver consigo mesmo, sendo esse último capturado no filme como o suicídio.
Aqui podemos observar o suicídio como um sintoma da luta social geral, em que relações sociais tóxicas alienadoras não permitem a existência do diferente, o que contamina a força vital das pessoas. Ainda, na perspectiva sócio-histórica, podemos compreendê-lo como um ato volitivo e consciente, em razão da inviabilidade de permanecer na vida desenhada por outro. Sentido do suicídio apresenta uma ação envolvida por motivos, emoções, afetos e pensamentos. Portanto, o ato suicida, como um constructo histórico, é também movido por motivações emocionadas e, assim, oriundo de base afetivo-volitiva das ações humanas (Berenchtein Netto, 2007).
Considerações finais
A produção cinematográfica abre possibilidade de representar e incentivar discussões que reflitam e problematizem a dinâmica social, o que demonstra fertilidade metodológica para o estudo histórico-social, ao abordar questões complexas e fenômenos com origens e representações históricas persistentes, em que os elementos representados no enredo focalizam o meio cultural do qual convidam o espectador a fazer parte, ao passo que também mobilizam novas formas de pensar e construir o social.
Desse modo, o filme é uma produção cultural que pode estimular reflexões e questionamentos no modo de pensar dos coletivos, especialmente pela transmissão de conteúdos atrelados aos significados sociais, compartilhados, e que representam, muitas vezes, o modo de viver e o modo de enxergar o mundo de determinadas sociedades humanas.
Considera-se que analisar a homossexualidade, como objeto de estudo, a partir da perspectiva vigotskiana, implica pensar a materialidade histórica e a gênese dos significados atrelados a ela. Empreender ainda esforços analítico-explicativos das relações de sentidos configurados no campo familiar, religioso e subjetivo. Assim, significados sócio-históricos sobre a homossexualidade estiveram sob o manto interpretativo de doutrinas cristãs como negativos e culpabilizadores da pessoa homossexual. Esses significados adquiriram hegemonia no meio social e, por conseguinte, na instituição familiar, lugar em que a construção subjetiva de seus membros ocorre e são reproduzidas.
O drama de Bobby permite evidenciar tanto um debate subjetivo sobre a condição afetiva e familiar do personagem, como uma discussão social sobre o período histórico retratado na obra, período marcado por uma série de conflitos e protestos da comunidade LGBTQIA+. Esses possibilitaram aumento das tensões no processo hegemônico de significação e sentidos sobre a homossexualidade, cidadania e direitos individuais, num espectro mais amplo. Tais tensões são observadas ainda hoje e permanecem como um intenso campo de disputas. Pequenas rupturas de sentido, no campo das ideias religiosas e estruturas heteronormativas, puderam ser observadas no processo de significação, graças a essas novas ideias que circulam em coletivos identitários.
Os sentidos fossilizados, apropriados pela família sobre a homossexualidade, surpreendem a dinâmica da família quando se apresenta no convívio familiar, a partir da revelação da sexualidade de Bobby. Essa compreensão impede a aceitação do diferente, o que ocasiona o sofrimento emocional intenso.
Considera-se, por fim, que o olhar que concebe a realidade e dela deriva sentidos para constituição subjetiva, é o produto de uma construção sócio-histórica, mediada e construída no contexto das relações. Constituem-se sentidos, que se intercruzam por meio das histórias de pessoas que trocam visões e palavras permeadas de sentido, constantemente ressignificados.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
22 Jan 2024 -
Data do Fascículo
2024
Histórico
-
Recebido
21 Out 2020 -
Aceito
28 Mar 2021