Entrevista concedida por Rolf Sundet, Ph.D., professor na Faculdade de Saúde e Ciências Sociais da University of South-Eastern Norway, em Drammen, Noruega. É graduado em Psicologia e formou-se como terapeuta familiar no The Dulwich Centre, em Adelaide, Austrália, e no Institute of Active Psychotherapy, em Oslo, Noruega. Há 32 anos atua clinicamente com casais e famílias, embora sua experiência em contextos de cuidado e atenção em saúde mental tenha iniciado dez anos antes, como enfermeiro assistente em enfermarias de instituições de saúde mental. Desde 2016, o Prof. Sundet dedica-se exclusivamente à docência na University of South-Eastern Norway. Contudo, mantém atividades de consultoria e supervisão em diferentes contextos clínicos e institucionais noruegueses, devido à sua inserção no serviço de saúde mental. A maior parte de sua trajetória na prática clínica foi realizada em instituições de saúde mental na Noruega e Reino Unido. Cabe-nos ressaltar que, na Noruega, a prática clínica em terapia familiar é parte dos serviços básicos de atendimento em saúde mental e, em geral, os profissionais clínicos atuam a partir da inserção em serviços de saúde.
Em 2017, tivemos a honra de receber o Prof. Sundet no Brasil devido à sua participação no Congresso Internacional de Saúde Mental Escola Franco e Franca Basaglia, a convite da Profa. Dra. Clarissa Mendonça Corradi-Webster. Nesta ocasião, realizamos encontros científicos no Programa de Pós-Graduação em Psicologia, com a participação de alunos de graduação e pós-graduação, nos quais pudemos explorar mais profundamente aspectos da prática e dos desenvolvimentos teóricos do Prof. Sundet, bem como apresentar-lhe os projetos em desenvolvimento no Laboratório de Pesquisa e Estudo em Práticas Grupais (LAPEPG-USP). Nesse encontro, iniciamos uma colaboração com o Prof. Sundet para viabilizar visitas e ações de cooperação acadêmica. Assim, em 2018, a primeira autora realizou uma visita técnica à University of South-Eastern Norway, financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP - Processo no. 15/21316-1), em que o professor contribuiu para o desenvolvimento da questão central da pesquisa das autoras sobre a integração de teorias e técnicas na prática clínica em terapia familiar (Paula-Ravagnani, 2019; Paula-Ravagnani, Guanaes-Lorenzi & Sundet, 2022). Este é o contexto que originou a presente entrevista.
O tema dessa entrevista é a prática clínica em terapia familiar (TF). Mais especificamente, o uso, por parte do terapeuta, de diferentes teorias em sua prática clínica. Nessa conversa, múltiplos temas foram abordados livremente, de modo que os assuntos iam e vinham em uma espiral que trazia, a cada (re)visita, um olhar mais amplo, complexo e corporificado sobre seus mais de quarenta anos de experiência clínica. Dada a natureza fluida dessa conversa, o relato a seguir é uma edição que destaca os momentos em que abordamos, mais diretamente, a questão do uso de diferentes teorias na prática clínica.
Entrevistadora: Como você se tornou um terapeuta de família?
Rolf Sundet: Eu demorei muitos anos para realmente dizer que sou um terapeuta de família. Quando eu tinha dezessete anos, uma vizinha veio à minha casa e disse: “Rolf, você tem que se candidatar a ‘um trabalho de verão’ no hospital psiquiátrico, é um trabalho muito interessante”. Assim, naquele verão eu comecei a trabalhar no hospital psiquiátrico local e percebi que eu era realmente bom, senti que dominava aquele tipo de trabalho. Assim, voltei a trabalhar lá nos verões seguintes e também em épocas como Páscoa, Natal e outros feriados. Naquele tempo, eu também tinha vontade de viajar. Então fui morar na Inglaterra e comecei a trabalhar como enfermeiro em um hospital psiquiátrico. Ao voltar para a Noruega, continuei trabalhando em instituições de saúde mental dois ou três anos após o ensino médio. Naquele tempo, eu tinha um amigo que estava fazendo as provas para entrar na universidade e eu pensei: “eu também posso fazer isso”. Então entrei na universidade e comecei a cursar Psicologia. Eu trabalhei em hospitais psiquiátricos em equipes de enfermeiros, psicólogos e médicos que eram muito bons no trabalho com o que chamávamos de comunidades terapêuticas (Campling & Haigh, 1999), que incluíam no tratamento diversos aspectos da vida cotidiana - por exemplo, tínhamos um grupo de culinária e cozinhávamos junto com os pacientes. Essas instituições eram teoricamente orientadas pela psicodinâmica, e naquele tempo comecei a me interessar por Freud e Ronald Laing. Depois, conheci a obra de Wilhem Reich. Na universidade, estudamos bastante Skinner e o behaviorismo. E, de alguma forma, eu sentia que as teorias me limitavam. Assim, sempre foi difícil para mim manter-me leal a uma única teoria. Eu tive um professor de quem eu gostava muito por ser bom em trazer novas teorias, e foi ele quem me introduziu às teorias sistêmicas, Gregory Bateson e Humberto Maturana. Eu comecei a ler o livro Steps to an ecology of mind, de Bateson (1972), e foi a primeira vez em que não me senti limitado pela teoria - foi uma abertura para a diversidade. Assim, escrevi minha dissertação acerca das teorias sistêmicas e cibernética (Sundet, 2009a). Meu interesse eram as teorias acerca dos sistemas, o desenvolvimento da teoria sistêmica e da cibernética, a epistemologia cibernética de Bateson, a cibernética de primeira e segunda ordem, e as propostas de Maturana (Maturana & Varela, 1980). Todavia, em termos de atuação clínica, eu ainda era enfermeiro no hospital. Ao finalizar o curso de Psicologia, pensei: “vou trabalhar com adultos”, pois era nessa área que eu tinha experiência. Não havia nenhum método específico no qual eu havia sido treinado para trabalhar como psicólogo, então eu provavelmente trabalhei a partir das minhas experiências como enfermeiro. Hoje em dia, eu diria que era bom trabalhando com fatores comuns.
Entrevistadora: Nesse caso, fatores comuns é um termo que você utiliza atualmente quando olha para você mesmo naquela época?
Rolf Sundet: Bem, atualmente, no campo da pesquisa há pelo menos duas maneiras de olharmos para a psicoterapia. Em uma delas, a psicoterapia é uma atividade orientada por uma teoria específica e isso tem levado à ideia do que é melhor - terapia cognitiva, psicodinâmica, sistêmica, etc. Têm sido feitos diversos Estudos Clínicos Randomizados (ECR) que tentam provar qual é a melhor terapia. E hoje em dia sabemos que todas elas são boas, ou seja, nenhuma parece ser melhor do que outra. Há poucas diferenças, que provavelmente estão relacionadas a elementos do contexto. Assim, a outra hipótese é que a psicoterapia ajuda as pessoas devido a algo que é comum a todos os modelos teóricos, e esses fatores geralmente estão relacionados com expectativas, esperança, relação terapêutica e, especialmente, a aliança terapêutica. Desse modo, existem teorias e técnicas específicas que parecem ajudar, e há o que chamamos de fatores extraterapêuticos - questões relacionadas ao cliente e seu contexto. Ao que parece, o fator relacional e os fatores extraterapêuticos são os elementos mais importantes para o sucesso da terapia. Assim, naquele tempo, eu acredito que era bom... não sei se bom, mas pelo menos sobrevivi como terapeuta ajudando ao menos algumas pessoas por ser bom em criar relações, construir uma aliança terapêutica e auxiliá-las de uma maneira atenta ao que existe em suas vidas que lhes ajuda a sobreviver, por exemplo. Foi isso que aprendi como enfermeiro: que eu era bom em criar relações com pessoas. E, resumindo, em 2001, eu comecei a atuar com uma equipe que trabalha com famílias e foi quando realmente comecei a pensar em mim mesmo como um terapeuta familiar. Assim, levei quase vinte anos para ter confiança de chamar a mim mesmo de ‘terapeuta familiar’. É assim que me tornei um terapeuta familiar.
Entrevistadora: Ao trabalhar como terapeuta familiar atualmente, quais são as principais teorias e métodos que orientam sua atuação clínica?
Rolf Sundet: Existem algumas teorias e formas de trabalhar que gosto mais do que outras. Eu sempre gostei das diferentes propostas sistêmicas, pós-modernas, narrativas e dialógicas; as formas de pensar que foram criadas no campo da terapia familiar no início dos anos 80, especialmente Tom Andersen, Harlene Anderson, Harold Goolishian, as ideias sobre pós-estruturalismo e pós-modernismo. Eu tenho me interessado por John Shotter e seus conceitos de ação conjunta, withness thinking, e coisas do tipo. Também gosto de utilizar, no campo da psicologia do desenvolvimento, as ideias de Daniel Stern. E também acredito que seja importante ler pesquisas. Assim, relação e relacionamentos são dois conceitos gerais que realmente me ajudam.
Entrevistadora: Não sei se isso acontece com você, mas é muito comum em nosso contexto: quando digo que sou psicóloga, a próxima questão sempre é “com qual abordagem você trabalha?”.
Rolf Sundet: Ao longo de toda minha carreira as pessoas me perguntaram: “que tipo de psicólogo você é?”, e o que eles queriam dizer era: “você é psicodinâmico, sistêmico, etc.?”. O que eu digo para as pessoas é que eu sou um psicólogo clínico, é isso. Ou, como não sou muito fã do termo ‘clínico’, também costumo dizer que sou um psicólogo que trabalha com psicoterapia. Mas eu não conecto nenhuma teoria ao meu nome.
Entrevistadora: Agora há pouco você mencionou Gregory Bateson e sua influência na sua relação com as teorias. O que você viu nas ideias de Bateson que mudaram a forma como você se sente em relação às teorias, que ampliaram sua maneira de ver as coisas?
Rolf Sundet: O trabalho de Bateson é sobre as diferenças e as diferenças que fazem diferença. É sobre conexões. Para qualquer sistema que eu distingo estou realizando um ato metodológico. Por exemplo, eu posso ver as pessoas como sistemas, mas também posso vê-las como parte de um sistema mais amplo a que chamamos ‘família’ e, ainda, posso ver a família como parte de um sistema ainda mais amplo a que chamo de rede. Este aspecto da teoria expandiu as possibilidades de enfoque em aspectos sociais. Devido à minha experiência como assistente na enfermaria, eu acreditava que as pessoas mudavam devido a questões que não eram faladas na terapia. E eu também tive experiências com pacientes que falavam: “por que eu não posso conversar com a psicóloga que trabalha na cozinha?”, que, na verdade, não era uma psicóloga, mas sim a cozinheira. E sobre o que se falava no instituto de psicologia na minha época? Contingências, reforços, psicodinâmica, teoria do conflito social. Eu acredito que Bateson, de alguma maneira, ampliou isso juntamente com Maturana e seus conceitos de determinismo estrutural, acoplamento estrutural e a noção de que a causalidade não opera de uma maneira instrutiva. Estas ideias abriram o foco para a diversidade, pontuação, a diferença que faz diferença, e tornaram possível, para mim, incluir em minha prática muitas coisas que eu havia aprendido como assistente na enfermaria. E, como eu disse, eu tinha a sensação de que as teorias me limitavam e exigiam que meu foco se direcionasse para algo específico - se eu fosse um psicanalista tradicional, deveria olhar para os conflitos internos e entender as expressões emocionais do paciente como transferência, etc. E este tipo de coisas não se encaixava em minha experiência. Às vezes se encaixam, mas em outros momentos não, e eu sentia que não tinha palavras para descrever essas outras experiencias. Assim, ao longo de minha carreira eu tenho tentado criar palavras que me ajudam a dar conta da riqueza das experiências.
Entrevistadora: E como você utiliza, em sua prática cotidiana, as diferentes teorias que estudou ao longo de sua trajetória? Por exemplo, alguns autores definem as abordagens integrativas como sendo aquelas em que a fusão de modelos gera um novo enquadre que, em um meta-nível, é capaz de explicar como as diferentes ideias foram conectadas entre si. Assim, a combinação de conceitos e técnicas originam uma nova teoria ou abordagem.
Rolf Sundet: Eu nunca acreditei nessa forma de integração, em que você mistura diferentes teorias e cria uma nova teoria. Eu tampouco me definiria como integrativo. Eu combino mais com fragmentos e desconexões. E uma história engraçada é que, há alguns anos, eu comecei a escrever um artigo na língua norueguesa, em que eu afirmo que tenho uma relação livre com as teorias. E depois é que eu fui ler o artigo de Sheila McNamee sobre a promiscuidade na relação com as teorias (McNamee, 2004). Eu acredito que desenvolvi algumas ideias parecidas com as dela naquele artigo. Eu tenho uma relação promíscua com as teorias, eu as uso conforme as vejo encaixando-se no contexto terapêutico. Mas esta é uma descrição post factum. Tom Andersen costumava dizer que a prática sempre vem antes. Nas minhas experiências trabalhando em hospitais psiquiátricos eu sempre tentei encontrar uma maneira útil de estar com as pessoas. Por exemplo, quando alguém dizia que era errado usar medidas de contenção física nos pacientes, eu concordava. Contudo, de repente eu me vi diante de uma mulher que disse: “Eu exijo ser amarrada à minha cama. Eu prefiro ser amarrada do que ser medicada, porque essa medicação acaba comigo”. Nesse momento, eu me dei conta de que temos todas essas diferenças conceituais, e quando escolhemos dizer: “é assim que o mundo é”, o mundo nos oferece uma perspectiva diferente. Tenho um outro exemplo - em dado momento, eu achava que a terapia cognitiva não era boa. Todavia, eu comecei a conversar com clientes que diziam: “se não fosse pela terapia cognitiva, eu nunca teria me livrado de meu problema”, e então me vejo desafiado em minha própria crença. Bateson foi o primeiro que me ofereceu uma linguagem para descrever este tipo de experiências, especialmente com seu conceito de epistemologia como um ciclo entre ontologia e epistemologia. Bem, não foi Bateson que me fez enxergar essas experiências porque elas já estavam lá antes que eu o conhecesse. Mas suas ideias me ofereceram uma diferença que fez diferença. Eu li no material de sua tese [Paula-Ravagnani, 2019] que você se refere às ideias de Sheila McNamee (2004) e Victoria Dickerson (2010).
Entrevistadora: Sim. Dickerson (2010 ) escreveu um artigo no qual ela afirma, do modo como eu compreendi, que um terapeuta familiar poderia integrar teorias e métodos que possuem o mesmo background epistemológico. Ela distingue três bases epistemológicas: sistêmica, estruturalista e pós-estruturalista, sendo que cada uma delas possui uma definição particular de pessoa, problema e mudança. Desse modo, uma integração que utiliza recursos dessas diferentes bases epistemológicas não pode ser considerada rigorosa, e pode criar confusão e má compreensão no terapeuta, que não poderia distinguir as noções de pessoa, problema e mudança sobre as quais seu trabalho estaria alicerçado.
Rolf Sundet: Eu acho que ela está limitando. Por exemplo, atualmente eu tenho trabalhado com a noção de causalidade e há duas ontologias que poderiam descrever esse termo. Existem alguns autores que afirmam algo parecido com as ideias de Dickerson (2010), de que se você escolher uma ontologia, esta escolha é incomensurável com a outra. E eu penso: “sim, em um sentido acadêmico provavelmente é dessa forma”. Assim, pode ser que alguns tipos de explicações sejam incomensuráveis se você deseja descrever seu trabalho, não combinam entre si. Todavia, na prática, eu posso transitar entre o estruturalismo, pensamento sistêmico, pós-estruturalismo. E eu diria que quando Dickerson (2010) faz essa afirmação ela está sendo muito estruturalista. Ela não está sendo pós-estruturalista e tampouco sistêmica, porque ambas permitem a coexistência de opostos. Me parece que ela está criando dicotomias ao dizer que quando eu assumo uma postura, não posso assumir a outra. Se eu a entendi bem, eu diria que sim, em um sentido teórico isso pode ser verdadeiro. Mas quando colocamos esse tipo de limitações em um terapeuta, reduzimos suas possibilidades de ação no mundo. Então, isso quer dizer que para mim a prática é sempre mais importante do que a teoria. Há também outra questão - quando agimos como se uma teoria fosse verdadeira, então ela não é mais uma teoria. Se agimos como se existissem sistemas no mundo, como elementos concretos em si mesmos, então essa deixa de ser uma teoria e torna-se um fato, uma descrição de como o mundo é. Eu sempre digo que para uma teoria existir precisamos ter ao menos duas teorias. Caso contrário, tendemos a acreditar que ela é a verdade.
Entrevistadora: Quando você diz isso, me parece estar próximo da ideia de promiscuidade, como você disse, uma relação livre em que as teorias serão vistas como opções discursivas, uma forma de falar sobre o mundo e relacionar-se com ele.
Rolf Sundet: Sim. Eu fui treinado como psicólogo ouvindo meus professores dizerem que precisamos seguir as teorias. Eu tinha um professor em particular que afirmava que quando não sabemos o que fazer, precisamos olhar para a teoria e fazer o que ela prescreve. Eu nunca me senti confortável com isso. Para mim, uma teoria nunca pode decidir completamente, uma teoria não é um imperativo que me diz que o fazer; ela sempre sugere ações. E eu compreendo McNamee (2004) quando ela fala sobre opções discursivas que podemos fazer. Assim, há situações em que eu escolho trabalhar de uma maneira que poderia ser descrita como estruturalista.
Entrevistadora: E, como você disse, essa é uma descrição post factum.
Rolf Sundet: Sim. A posição filosófica que tem me interessado no último ano é o pluralismo - qualquer problema possui múltiplas soluções. Isso combina comigo. Eu acho que ao invés de criar modelos teóricos para a prática terapêutica, deveríamos criar descrições de formas de fazer terapia, as quais deveriam ser formuladas a partir de algum tipo de linguagem. A teoria nos oferece a linguagem, mas precisamos nos lembrar que a teoria não é um fato, é apenas uma maneira de pontuar. Assim, eu acredito no desenvolvimento de um vocabulário teórico porque ele nos ajuda a enxergar novos aspectos. Mas, após criarmos um vocabulário teórico que nos ajuda a distinguir coisas que antes não víamos, precisamos transformar a teoria em linguagem cotidiana novamente. Assim, para mim, a teoria é algo que vai e vem. De outro modo, ficaremos criando modelos específicos e sempre haverá alguém que diga: “e se juntarmos esse modelo com esse, e criarmos um terceiro modelo?”. Então estaremos nesse tipo de integração que continua nos restringindo. Se Tom Andersen está correto quando afirma que a prática vem primeiro, o perigo é, como ele mesmo diz: “qualquer descrição, e também as minhas descrições, traz o perigo de nos limitar”. Michael White também se refere a esta ideia ao afirmar que o mundo é sempre mais rico do que as histórias que contamos - é por isso que podemos contar novas histórias, descobrir eventos extraordinários, exceções que integramos em novas histórias. Eu tenho medo de que as teorias me limitem e é por isso que sou promíscuo e desleal em minha relação com elas. Contudo, eu acho que os terapeutas precisam ser limitados por alguma coisa, que consiste na resposta do cliente.
Entrevistadora: Em que sentido a resposta do cliente deve limitar o terapeuta?
Rolf Sundet: Vejamos. Por exemplo, eu trabalho com as práticas narrativas e o cliente também está engajado em trabalhar narrativamente por meio de conversas de externalização. Eu acredito nesse enquadre e o cliente sente que está indo bem. Todavia, não ocorrem mudanças. É por isso que acredito na importância de utilizar, sistematicamente, ferramentas de feedback no que se refere ao processo terapêutico, para podermos investigar se o que estamos fazendo está realmente ajudando. Eu considero a resposta do cliente e, se ele/ela não está melhorando, isso deve limitar minhas ações e pode ser que eu cesse as conversas de externalização e procure outras formas de trabalhar. É isso o que eu quero dizer sobre sermos limitados pelas respostas do cliente - qualquer que seja a forma como estou trabalhando, eu preciso checar se está sendo útil e, caso não seja, eu deveria mudar meus caminhos com esse cliente. Eu considero a forma de trabalhar orientada pelas ideias de McNamee (2004) bastante interessante. Eu aprecio a fragmentação tanto quanto a integração. E o que quero dizer por fragmentação é que se apenas parte de uma teoria se encaixa com o cliente, eu irei fragmentar essa teoria e utilizar unicamente essa parte.
Entrevistadora: Nesse sentido, como você vê a integração de ideias pertencentes a diferentes tradições epistemológicas? Por exemplo, sistêmicas e construcionistas sociais ou, como você mesmo disse, psicanalíticas e comportamentais?
Rolf Sundet: Sinto-me ambivalente. Ultimamente eu tenho compreendido a ambivalência como uma sensibilidade à complexidade. A ambivalência tem uma péssima reputação no campo da Psicologia, mas para mim é algo que dialoga muito com a situação existencial de sermos humanos. Sempre que sinto ter chegado a uma resposta, alguém me dá um chute na canela e diz que é diferente! Assim, é possível que eu me interesse em misturar sistêmica e psicodinâmica e, de fato, eu acho que há muito mais sobreposição do que de fato consideramos - muito do que as teorias psicodinâmicas abordam aparece nas ideias sistêmicas, contudo a partir de uma nova linguagem. Então, voltemos à pergunta: “como eu vejo a integração de ideias que pertencem à diferentes tradições epistemológicas?”. No momento, não estou interessado na epistemologia, estou muito mais interessado na ontologia - como eu penso que o mundo é? A ontologia, para mim, refere-se às nossas teorias sobre o mundo e, como são teorias, nunca serão verdades. E também é importante nos lembrarmos do conceito de epistemologia de Bateson, que é algo além das teorias sobre o conhecimento, referindo-se também à resposta à pergunta: como é o mundo? Refere-se a um ciclo entre epistemologia e ontologia. Desse modo, as ideias de Dickerson (2010) são importantes em um sentido acadêmico, uma vez que é importante criarmos teorias coerentes que podem gerar perguntas de pesquisa para serem testadas e investigadas a partir de diferentes métodos de pesquisa. Este é um aspecto útil. Ao mesmo tempo, o problema em relação à pesquisa é que nos limitamos a uma determinada maneira de pensar, e isso quer dizer que excluímos outras coisas. Isso pode ser defendido em um contexto de pesquisa, porque nosso objetivo é explorar isso e não aquilo. Mas quando transportamos essa lógica para o contexto terapêutico, não mais excluímos conceitos e teorias, mas sim pessoas. Assim, eu acho que, na prática clínica, ideias incomensuráveis caminham bem juntas. Eu penso que em um trabalho teórico, quando trabalhamos como acadêmicos, nos vemos diante desses paradoxos - por exemplo, as ideias sistêmicas entram em conflito com as ideias pós-modernas, são incomensuráveis. Mas esse é o objetivo da teoria, ao passo que na prática isso pode ser um dilema - e precisamos nos lembrar que os problemas nós resolvemos, enquanto os dilemas nós vivemos. Isso volta ao que Michael White dizia: a vida é sempre mais rica do que as teorias que temos. Eu já trabalhei com clientes que eram vistos como de difícil colaboração porque não “ousavam sair de sua zona de conforto”, e esse tipo de descrições. E minha experiência é que quando começamos a perguntar às pessoas: “como você gostaria de trabalhar com relação ao seu problema? Você tem alguma ideia do que deveríamos e não deveríamos fazer?”. As pessoas não sabem realmente o que responder, mas podemos começar a investigar e segui-las em suas sugestões. Questões como ‘resistência’ e ‘motivação’ desaparecem e, pela minha experiência, os sintomas também podem desaparecer.
Entrevistadora: É interessante porque parece que nesse movimento, nessa orientação em relação aos clientes, você também pode sair da zona de conforto dos limites das teorias, para ver o que aquela pessoa em particular gostaria para sua vida, para seu tratamento.
Rolf Sundet: Sim. Então, se eu utilizasse o termo ‘zona de conforto’ seria em relação aos profissionais que permanecem em uma única teoria.
Entrevistadora: Nos limites de uma teoria.
Rolf Sundet: Mas, novamente, eu sei que isso também não é verdade porque, por exemplo, eu tenho um colega com quem fiz a formação em práticas narrativas, e ele dizia não fazer nada além de prática narrativa. Contudo, ele também afirmava claramente quando sentia não poder ajudar alguma pessoa quando isso tinha a ver com a forma dele praticar a terapia, que não necessariamente fazia sentido para o cliente.
Entrevistadora: Explorando um pouco mais essa posição em relação às teorias, em que sentido você pensa que a maneira de ser promíscuo ou desleal seria diferente de uma posição eclética?
Rolf Sundet: Originalmente, eu criei um conceito para mim mesmo - se eu desejasse descrever minha posição, eu a denominaria uma ‘posição eclética radical’. Eu entendo que ser eclético é quando você seleciona o que quer a partir de tudo o que conhece. Mas quando consideramos a etimologia do termo radical, vemos dois sentidos: como algo enraizado e também como um elemento que se irradia a partir de determinado ponto. Assim, radical tem estas duas acepções de estar enraizado em algo e, ao mesmo tempo, mover-se para fora, para os extremos. O termo ‘postura eclética radical’ indica que estou enraizado em algo e, a partir dessa posição, irei ramificar minhas ações para utilizar o que for necessário. E no que estou enraizado? Na experiência do cliente e em suas respostas. Essa é outra maneira de dizer que acredito que devemos estar enraizados e, por este motivo, limitados pelas respostas dos clientes. Assim, o que aprendi é que, não importa o que eu faça, preciso desenvolver algum tipo de estrutura com a família ou cliente. Isso implica que a cada encontro pode ser que façamos o que fizemos da última vez, mas se fizermos algo diferente é porque decidimos que o que fizemos não deveria ser feito novamente; ou, ainda, essa estrutura pode implicar em fazer a mesma coisa diversas vezes, repetição. Ou seja, é preciso haver uma colaboração na criação de uma co-estrutura.
Entrevistadora: Veja se entendi: essa estrutura está baseada na história da relação - o que vocês já fizeram juntos, o que não fizeram, o que deu certo, o que deu errado - mais do que nos diferentes recursos técnicos que você conheça, o que seria uma posição eclética. É isso?
Rolf Sundet: Sim. Mas vejamos um exemplo. Uma pessoa com ansiedade afirma: “eu sei que realmente preciso fazer um treinamento comportamental”. Então eu escolheria uma estrutura - um manual de terapia cognitiva, por exemplo - e sugeriria que seguíssemos tal estrutura. Assim, considero a técnica como um modo estruturado de agir a partir de um planejamento, com um começo e um meio...
Entrevistadora: Sim.
Rolf Sundet: A experiência é o que precisa ser significativo, e sempre precisamos checar se o que estamos fazendo está caminhando para algum lugar.
Entrevistadora: Ao ouvi-lo dizendo isso, vou compreendendo porquê o feedback é tão importante em sua prática ( Sundet, 2009b , 2012 ). Se a escolha da estrutura está ancorada na história da relação, precisamos ter constante feedback e metacomunicação para sabermos se a relação está sendo útil ou não.
Rolf Sundet: Sim.
Entrevistadora: Ainda em relação ao ecletismo, existe um entendimento da postura eclética como sendo menos rigorosa e cuidadosa. O que você pensa sobre isso?
Rolf Sundet: Bem, eu acredito que é importante termos uma estrutura naquilo que fazemos. É importante que o terapeuta e a família tenham algum tipo de entendimento sobre porquê fazemos o que fazemos. Mas não considero que isso precise ser formulado de antemão em termos de uma linguagem teórica. Isso pode ser fruto de uma negociação entre terapeuta e clientes, como um elemento conversacional da terapia. Eu acredito que rigor e estrutura têm a ver com os clientes experienciarem a terapia como algo significativo, que faz sentido para eles e proporciona a sensação de que estamos fazendo algo que é bom para eles. Atualmente, na pesquisa em psicoterapia, fala-se que há uma descontinuidade (gap) entre pesquisa e prática clínica, e que tal descontinuidade precisa desaparecer. Eu acho que é importante haver uma descontinuidade entre a pesquisa e o trabalho clínico. É preciso haver uma ponte entre ambos, mas essa descontinuidade indica que há uma mudança quando nos movemos da pesquisa para a prática clínica. Precisamos nos relacionar com o contexto clínico de tal forma que aquilo que parece impossível no domínio teórico torna-se possível na clínica, e o que é impossível no domínio da clínica pode ser possível na teoria - é sobre isso que falam os romances e as ficções científicas! Se mantemos essa distinção e entendemos que aquilo que fazemos na prática nunca será uma completa realização da teoria, então seria possível fazer uma integração teórica em que você poderia criar novos tipos de teorias misturando as teorias pós-modernas, construcionistas sociais, psicodinâmicas e comportamentais. Isso porque não seria algo ‘real’, mas sim um experimento na tentativa de criar novas maneiras de conversar a partir das quais poderíamos descobrir coisas novas. O importante é não pensarmos que aquilo que criamos é melhor para a prática clínica do que outras teorias. Eu ainda acredito que não é possível criar uma teoria sobre tudo. O que eu estou levando dessa nossa conversa - que é algo que eu nunca tinha pensado antes - é que talvez a integração de teorias pode ser algo muito empolgante se, de fato, começarmos a ‘brincar’ com elementos de diferentes teorias, não em busca de explicar o que acontece no mundo, mas para vermos quais tipos de realidades podem ser construídas.
Entrevistadora: Então o desafio seria como construir essa ponte entre teoria e prática.
Rolf Sundet: O que eu acho que me ajudaria - uma vez que eu também estou lidando com esses desafios - é pensar no contexto acadêmico e na prática clínica como diferentes atores, sabendo que é importante que ambos tenham espaço para suas perspectivas. No tocante a essa questão, uma última coisa que tem sido importante para mim é pensar na diferença entre problema e dilema. Considero que o problema é algo que resolvemos - por mais difícil que seja, mais cedo ou mais tarde encontramos uma solução e não precisamos lidar com aquilo novamente. Diferentemente, dilemas não possuem uma solução final. Portanto, precisamos conviver com eles sem nunca sabermos se, um dia, nos veremos livres. Assim, quando vivo um dilema estou sempre imerso na incerteza. E, de alguma maneira, essa é a relação entre pesquisa e prática clínica - um dilema, mais do que um problema.
Referências
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- Campling, P., & Haigh, R. (Eds). (1999). Therapeutic communities. Past, present and future London, UK: Jessica Kingsley Publishers.
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- Maturana, H. R., & Varela, F. J. (1980). Autopoiesis and cognition. The realization of living Dodrecht, HO: D. Reidel Publishing Company.
- McNamee, S. (2004). Promiscuity in the practice of family therapy. Journal of Family Therapy, 26, 224-44.
- Paula-Ravagnani, G. (2019). A integração de teorias e técnicas na prática clinica em terapia familiar (Tese de Doutorado). Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto.
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Paula-Ravagnani, G., Guanaes-Lorenzi, C., & Sundet, R. (2022). Learning from within: Therapists´ actions in daily clinical practice. Family Process, 62, 94-107. https://doi.org/10.1111/famp.12840
» https://doi.org/10.1111/famp.12840 - Sundet, R. (2009a). Client directed, outcome informed therapy in an intensive family therapy unit - a study of the use of research generated knowledge in clinical practice Oslo, NO. Department of Psychology, University of Oslo.
- Sundet, R. (2009b). Therapeutic collaboration and formalized feedback: Using perspectives from Vygotsky and Bakhtin to shed light on practices in a family therapy unit. Clinical Child Psychology and Psychiatry, 15(1), 81-95. doi 10.1177/1359104509341449
- Sundet, R. (2012). Post-modern oriented practices and client-focused research: Possibilities and hazards. The Australian and New Zealand Journal of Family Therapy, 33(4), 299-308. doi: 10.1017/aft.2012.38
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
22 Jan 2024 -
Data do Fascículo
2024
Histórico
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Recebido
10 Ago 2020 -
Aceito
29 Set 2021