Open-access A repressão do tráfico atlântico de escravos e a disputa partidária nas províncias: os ataques aos desembarques em Pernambuco durante o governo praieiro, 1845-1848

Repression to the Atlantic slave traffic and the partisan dispute in the provinces: the attacks to disembarkations in Pernambuco during the praieiro government, 1845-1848

La répression à la traite atlantique d'esclaves et la dispute partisane dans les provinces: les attaques aux débarquements à Pernambuco pendant le gouvernement "praieiro", 1845 -1848

Resumos

Depois de 1831, o tráfico atlântico de escravos acontecia nos portos naturais da costa brasileira, cujos proprietários participavam da política local e provincial. Durante o quinquênio liberal (1844-48), o partido no poder em Pernambuco, o partido praieiro, enviou a polícia para apreender a carga dos navios negreiros consignados aos seus adversários na política local. A repressão ao tráfico serviu como instrumento político e econômico na luta contra o partido conservador, que se armou contra a polícia praieira, composta por proprietários rurais que ficavam com os cativos apreendidos.

Tráfico de Escravos; Rebelião Praieira; Política Partidária


After 1831, the Atlantic slave trade had to be carried out on the natural harbors of the Brazilian coast, whose owners participated in local and provincial politics. During the "quinquênio liberal"(1844-48) - the party in power in Pernambuco - sent the Police to apprehend the cargo of slave ships consigned to their local political opponents. The repression against the slave trade was a political and economic instrument in the struggle against the Conservative party, who armed itself against the praieira Police, made up of planters who kept the captives for themselves.

Slave Trade; Praieira Rebellion; Partisan Politics


Après 1831, la traite atlantique d'esclaves se faisait dans les ports naturels de la côte brésilienne, dont les propriétaires participaient à la politique locale et provinciale. Durant le quinquennat libéral (1844-48), le parti au pouvoir à Pernambuco, le parti "Praeiro", a envoyé la police pour appréhender les chargements des navires négriers consignés à leurs adversaires de la politique locale. La répression à la traite a servi d'instrument politique et économique dans la lutte contre le parti conservateur, qui s'est armé contre la police "praieira"composée de propriétaires ruraux qui gardaient pour eux les captifs appréhendés.

Traite d'esclaves; Rébellion «Praieira»; Politique Partisane


POLÍTICA E GOVERNABILIDADE: DIÁLOGOS COM A OBRA DE MARIA DE FÁTIMA SILVA GOUVÊA

A repressão do tráfico atlântico de escravos e a disputa partidária nas províncias: os ataques aos desembarques em Pernambuco durante o governo praieiro, 1845-1848

Repression to the Atlantic slave traffic and the partisan dispute in the provinces: the attacks to disembarkations in Pernambuco during the praieiro government, 1845-1848

La répression à la traite atlantique d'esclaves et la dispute partisane dans les provinces: les attaques aux débarquements à Pernambuco pendant le gouvernement "praieiro", 1845 -1848

Marcus J. M. de Carvalho

Professor titular de História do Brasil da UFPE. E-mail: marcuscarvalho@superig.com.br

RESUMO

Depois de 1831, o tráfico atlântico de escravos acontecia nos portos naturais da costa brasileira, cujos proprietários participavam da política local e provincial. Durante o quinquênio liberal (1844-48), o partido no poder em Pernambuco, o partido praieiro, enviou a polícia para apreender a carga dos navios negreiros consignados aos seus adversários na política local. A repressão ao tráfico serviu como instrumento político e econômico na luta contra o partido conservador, que se armou contra a polícia praieira, composta por proprietários rurais que ficavam com os cativos apreendidos.

Palavras-chave: Tráfico de Escravos – Rebelião Praieira – Política Partidária

ABSTRACT

After 1831, the Atlantic slave trade had to be carried out on the natural harbors of the Brazilian coast, whose owners participated in local and provincial politics. During the "quinquênio liberal"(1844-48) - the party in power in Pernambuco - sent the Police to apprehend the cargo of slave ships consigned to their local political opponents. The repression against the slave trade was a political and economic instrument in the struggle against the Conservative party, who armed itself against the praieira Police, made up of planters who kept the captives for themselves.

Keywords: Slave Trade – Praieira Rebellion – Partisan Politics

RÉSUMÉ

Après 1831, la traite atlantique d'esclaves se faisait dans les ports naturels de la côte brésilienne, dont les propriétaires participaient à la politique locale et provinciale. Durant le quinquennat libéral (1844-48), le parti au pouvoir à Pernambuco, le parti "Praeiro", a envoyé la police pour appréhender les chargements des navires négriers consignés à leurs adversaires de la politique locale. La répression à la traite a servi d'instrument politique et économique dans la lutte contre le parti conservateur, qui s'est armé contre la police "praieira"composée de propriétaires ruraux qui gardaient pour eux les captifs appréhendés.

Mots-clés: Traite d'esclaves – Rébellion «Praieira»– Politique Partisane

Este texto aborda uma questão quase sempre presente nos trabalhos de Fátima Gouvêa, que é a complexa relação entre o poder central e as localidades, envolvendo tanto o trajeto dos impulsos que emanavam do núcleo central para seus arredores, como o caminho inverso dessa rede, levando os anseios locais para o palco central do teatro do poder, mesmo que de forma parcial e intermediada. Um feixe desses capilares era a lei. Mas entre a norma e a sua aplicação havia uma distância a percorrer. O caminho das pressões advindas do núcleo central abria-se em leque, repercutindo por múltiplos trajetos, alguns dos quais voltavam à própria Corte. Havia assim uma pluripolaridade do poder, cujo exercício era multidirecional, mesmo que a preeminência do centro fosse uma realidade palpável. Do atrito entre as intenções e pressões advindas do núcleo ou das localidades, podia resultar até o inesperado, mesmo porque, tanto na Corte como nas localidades, o poder não era unívoco mas um processo dinâmico que enfeixava tendências e contradições, com atritos, alianças e contra-alianças a se constituírem ao sabor das circunstâncias da história política do país.

O caso aqui estudado ajuda-nos a entender os labirintos percorridos pela lei até sua efetivação nas localidades. Existem muitos estudos sobre o tráfico atlântico de escravos, mas pouco se fala da politização da repressão nas localidades, um processo inescapável, depois de 1831, uma vez que os negreiros passaram a utilizar os portos naturais do litoral, situados em praias particulares, cujos proprietários atuavam na política local, ocupando a justiça de paz, os cargos na polícia civil, guarda nacional, câmaras e assim por diante. A disputa partidária se aqueceu a partir do quinquênio liberal (1844-48), quando o tráfico para o Sudeste atingiu seu apogeu. O governo praieiro em Pernambuco (1845-48) promoveu a repressão ao tráfico; uma repressão tímida e localizada, mas antes de tudo partidarizada, pois o alvo eram os desembarques em benefício dos adversários. O estudo deste caso lança luz sobre a possível partidarização da repressão ao tráfico em outras províncias e localidades, antes e depois de 1850. Afinal de contas, no país inteiro, os portos naturais também tinham donos. O fato de que o tráfico acabou para todos esconde a politização da repressão nas localidades. Alguns dos maiores traficantes do Rio de Janeiro, por exemplo, eram vinculados ao partido liberal e se beneficiaram da lassitude do governo quanto ao tráfico durante o quinquênio liberal. Seguindo o percurso da obra de Fátima Gouvêa, este artigo serve assim para mostrar que as respostas locais à legislação advinda da Corte nem sempre se realizavam pelos motivos esperados pelos legisladores, mas por outras motivações alicerçadas nos interesses diretos dos protagonistas que viviam nas localidades.

As leis aqui abordadas em suas práticas são a lei antitráfico, de 1831, e as chamadas "leis reacionárias", de 1842, que centralizaram o poder de polícia nas mãos do ministro da justiça, esvaziando algumas das atribuições dos juízes de paz e de outras autoridades locais, em benefício dos delegados de polícia. A chave do sistema eram os chefes de polícia das províncias, aos quais estavam subordinados os delegados e subdelegados, que dependiam dos recursos próprios ou do que lhes era repassado discricionariamente pelos governos provinciais. Os proprietários rurais eram a polícia, os delegados e subdelegados no interior. Assim, como sugeriu Raymundo Faoro, os capangas dos latifundiários tornaram-se capangas do Império. O fato de o sistema depender, em última análise, da pesada mão do gabinete ministerial foi interpretado pela oposição parlamentar como um golpe contra as conquistas liberais da Regência. Mas, uma vez vencidos os protestos no Parlamento e enquadrados os que se rebelaram abertamente em Minas e São Paulo, o sistema foi implementado. Dele fizeram uso e abuso sucessivos governos provinciais. Durante o quinquênio liberal, não seria diferente. Uma vez no poder, os antigos opositores do projeto montaram e cavalgaram no sistema que os ajudaria a vencer as eleições em suas respectivas províncias e assim formar uma Câmara que espelhasse a configuração do gabinete ministerial. Em Pernambuco não foi diferente. Ao assumir o governo provincial, em 1845, o chamado "partido praieiro"faria pleno uso de todas essas prerrogativas legais.

Uma das atribuições das autoridades em terra era colaborar com a repressão ao tráfico. Sabemos que, como política de Estado, essa repressão era quase nula até 1851, quando a lei Eusébio Queiroz começou a ser aplicada. Mesmo assim, nos vinte anos entre as leis antitráfico de novembro de 1831 e de setembro de 1850, eventualmente, navios negreiros terminaram sendo apreendidos por autoridades brasileiras, mesmo sem o auxílio inglês; a maioria por ter naufragado no litoral ou simplesmente por ter ido parar em alguma praia errada, afora algumas embarcações que acintosamente desembarcaram cativos em plena capital imperial, afrontando os gabinetes ministeriais e até o imperador. Africanos boçais também foram apreendidos, mesmo que os navios que os trouxeram tivessem escapado. Os dados de Mamigonian indicam que algo como 4.878 africanos foram emancipados pelas autoridades brasileiras entre 1830 e 1856.1 Em 1852, os africanos livres de Pernambuco totalizavam apenas 283 pessoas, referentes a apreensões feitas entre 1832 e 1851.2

A repressão ao tráfico em Pernambuco, portanto, foi extremamente ineficaz. Todavia ela começou antes de 1851. Não quero dizer que a "lei para inglês ver"de 1831 foi um sucesso, que o tráfico acabou-se antes do que nas demais províncias, tradicionalmente grandes importadoras de cativos africanos. Isso não aconteceu. Pernambuco continuou recebendo escravos até a implementação da lei Eusébio Queiroz. Melhor dizendo, o tráfico até durou mais, pois como os portos do Sudeste eram mais vigiados, os negreiros passaram a desembarcar cativos no Nordeste, de onde depois eram reexportados para o Sudeste. O problema aqui discutido, portanto, é de outra natureza. O que aconteceu foi que a facção política que circunstancialmente dominou o governo provincial de junho de 1845 a abril de 1848, o partido praieiro, aproveitou a legislação e a forma aberta como os desembarques eram feitos para simplesmente apreender os africanos pertencentes a seus adversários em algumas localidades próximas do litoral. Apreender, todavia, não é o melhor termo para descrever o que acontecia, pois uma apreensão pressupõe um procedimento legal. Talvez seja melhor dizer que os praieiros simplesmente se apropriavam dos africanos boçais dos seus adversários, sob o pretexto de estarem buscando reprimir o tráfico. A ilegalidade do tráfico deu assim aos praieiros um novo instrumento na disputa pelo poder local.

A rigor, havia gente de todos os partidos envolvida no tráfico. Mas a polícia praieira escolhia onde e quando deveria agir. Seu alvo não era todos os desembarques, nem a apreensão de "africanos livres"aleatoriamente, ou sequer recuperar quaisquer escravos furtados e devolvê-los a seus donos, como costumavam alardear na imprensa marrom do partido. O objetivo dos praieiros era simplesmente enfraquecer os adversários nas localidades, tomando-lhes o que tinham de mais caro. O alvo, portanto, eram as posses dos adversários cujo poderio impedia a expansão das bases do partido praieiro na zona da mata, onde imperava a "feudalidade"dos Cavalcanti de Albuquerque, na expressão da imprensa panfletária da época. Assim, por um curto espaço de tempo, os Cavalcanti e seus aliados viram-se ameaçados pela lei, num claro contraste com a política do Estado imperial naquele momento, uma vez que os sucessivos gabinetes liberais foram incapazes de implementar quaisquer medidas concretas contra o tráfico no Sudeste, que atingiu o seu apogeu histórico justamente no quinquênio liberal. Essa expansão desmoralizou os gabinetes liberais, uma vez que contrariava o discurso da oposição parlamentar nos anos anteriores, que costumava acusar os conservadores de serem coniventes com o tráfico.

Nesse contexto, a existência de uma legislação antitráfico permitiu ao partido no poder perseguir os desembarques clandestinos feitos pelos adversários em determinadas localidades litorâneas. Reprimir o tráfico e apreender a carga não significava ser necessariamente contra o tráfico. O mesmo delegado envolvido em uma diligência dessa natureza poderia ser o beneficiário de algum outro desembarque feito em suas terras ou na de seus aliados. Podia ainda apreender a carga e simplesmente redistribuí-la entre suas propriedades, ou dos familiares e aliados. Os senhores de engenho investidos nos cargos da polícia ganhavam duplamente, pois, além de se apropriarem de "cativos novos", como se dizia na época, sem nenhum custo, ainda causavam graves prejuízos aos adversários diretos na política local. O prejuízo dos consignatários da carga estendia-se aos proprietários dos navios negreiros e traficantes atingidos por essas práticas da polícia, contribuindo, mesmo que de forma marginal, para o declínio do tráfico durante o governo praieiro.

Quando a oposição parlamentar foi chamada por Pedro II para constituir o gabinete ministerial, em 1844, os praieiros ainda se ressentiam da influência do Senador Holanda Cavalcanti (depois Visconde de Albuquerque) sobre o gabinete e mesmo sobre o jovem imperador. Seu irmão (depois Visconde de Suassuna), Araújo Lima (Visconde, depois Marquês de Olinda) e o primo, Francisco de Paula Almeida e Albuquerque, eram todos Senadores pelo "partido da ordem"desde o período regencial. Todavia, quando se tratava dos negócios da província, esse grupo formava uma bancada única com imenso prestígio diante de Pedro II, devido à lealdade à Coroa desde o Primeiro Reinado. Araújo Lima, os irmãos Cavalcanti (Viscondes e Senadores do Império, o terceiro em 1869) e o Barão (depois Conde) da Boa Vista (Senador em 1850) aliaram-se à "causa do Rio de Janeiro"durante a Independência e ajudaram a derrotar a Confederação do Equador, em 1824. Pedro II não se esqueceria dessa lealdade a seu pai. Assim, desde o "regresso"de 1837, qualquer que fosse a conjuntura, Araújo Lima e/ou os Cavalcanti, estavam diretamente representados nos ministérios. Foi em oposição à hegemonia desse grupo que surgiu o Partido Nacional de Pernambuco, mais conhecido como partido praieiro, que não demorou muito a congregar as facções das elites locais insatisfeitas com a distribuição dos cargos, comissões e verbas públicas. Não faltavam grandes proprietários rurais em suas hostes.

A mudança começou quando Manoel de Souza Teixeira (depois Barão de Capibaribe), então aliado dos praieiros, assumiu a presidência de Pernambuco em 1844, trocando cerca de 650 delegados, subdelegados e comandantes da guarda nacional. Foi a maior reviravolta política na província desde a Confederação do Equador. Mas foi a partir do governo de Chichorro da Gama que a polícia praieira começou a agir com desenvoltura, "varejando"os engenhos dos adversários, sob o pretexto legal de apreender armas do Estado e criminosos. A ação da polícia teria um caráter partidário, como notou Joaquim Nabuco, seguido pela historiografia posterior.3 Nessas diligências, onde não raro havia mortes e saques, a polícia terminava também apreendendo escravos dos adversários, alegando que eram "roubados". Os praieiros apresentavam os resultados dos "varejamentos"na imprensa, falando da prisão de capangas, da devolução de escravos roubados e da repressão ao tráfico. Os adversários dos praieiros, os "guabirus", por sua vez, acusavam a polícia de simplesmente saquear os engenhos, apossando-se de cativos alheios. Ora, nessa época, era difícil comprovar a posse legal de um cativo africano jovem, pois qualquer um que entrasse depois de 1831 seria um africano livre e não um escravo. Logo os praieiros começariam a visar os desembarques de africanos dos adversários.

É relevante ressaltar que não havia então rotas internas específicas para a distribuição dos africanos recém-chegados. Os comboios seguiam pelas trilhas e estradas como quaisquer outras caravanas mercantis. Em 1837, dizia o cônsul lusitano em Pernambuco que os cativos eram desembarcados à luz do dia e levados para dentro das povoações, sem o "mínimo embaraço". O governo consentia e a população estava envolvida no negócio.4 A vigilância dos comboios, todavia, tinha que ser redobrada, não apenas para evitar fugas mas também para impedir que os escravos fossem roubados por bandos armados especializados nessa prática. Em 1837, o Diário de Pernambuco publicou uma carta defendendo o tráfico. Nela, o missivista narrava a casualidade com que viu passar em frente à sua casa uma caravana com mais de 200 "colonos africanos", acompanhada por uns 40 homens armados, comandados por um sujeito que, nas suas palavras, era manso como um cordeiro. O texto, de fina ironia, descrevia um modo de vida no qual era absolutamente normal a passagem de um comboio de africanos boçais pelas estradas, como quaisquer outras mercadorias.5 O famoso relatório Alcoforado sobre o tráfico atlântico descrevia uma complexa rede que ia dos juízes de paz às autoridades portuárias e judiciais mais graduadas. Cada um recebia uma comissão de acordo com sua importância.6

O mesmo dizia o cônsul inglês em Pernambuco, que através dos anos elencou exemplos variados da corrupção oficial e da falta de timidez dos traficantes, ao ponto que, em 1843, os 201 cativos trazidos pelo Mariquinhas foram depositados em um sítio ao lado de sua residência. O cônsul procurou o presidente da província, que lhe disse que tinha "ouvido falar"do caso e mandou a polícia lá. De nada adiantou. Ironizando, contou que durante um bom tempo teve que "ocasionalmente" (occasionally) aturar gente invadindo sua propriedade (trespassers), incapaz de falar uma única palavra de português.7 Não havia, portanto, um controle policial estrito sobre o comércio interno de cativos, fossem eles africanos ou crioulos. Isso era praticamente impossível devido à extensão da rede de participantes e à própria falta de recursos para tanto. Tomar cativos de um comboio desses também era complicado, pois, além de armados, tinham muitas opções em termos de trilhas e estradas, podendo traçar o percurso por entre engenhos de parentes, sócios e aliados. Eram muitos os caminhos possíveis.

Tal como a venda de africanos, a chegada de um navio negreiro também era um acontecimento público. A noticia dos desembarques espalhava-se rapidamente, atraindo até compradores de Alagoas, Paraíba e Rio Grande do Norte.8 Escrevendo em 1852, explicava Eusébio de Queiroz que, mesmo que o navio chegasse discretamente, havia muita gente envolvida para desembarcar, acolher, vender e comprar a carga. Era impossível não haver divulgação.9 Os engenhos próximos à costa se beneficiavam do fato de Pernambuco, nas palavras de Aires de Casal, ser a província mais dotada de portos naturais da colônia.10 Os engenhos perto do litoral serviam como mercados de escravos, como testemunhou Mohamed Gardo Baquaqua que, já adulto, desembarcou de um navio negreiro para ser escravo em Pernambuco. Isso em pleno governo praieiro. Do navio, os malungos foram diretamente para a casa de um plantador, que servia como uma espécie de mercado de escravos, que dali eram repassados para os compradores.11

Sendo a chegada de um navio negreiro um negócio relativamente público, é evidente que, se algum delegado de polícia rico e poderoso desejasse, poderia espreitar um desembarque para apreender os africanos. Isso principalmente se o navio negreiro viesse parar na praia de algum adversário menos poderoso, ou mesmo na praia errada, algo perfeitamente possível de acontecer diante da dependência dos ventos, marés, correntes e da sinalização vinda da praia. Apoiados materialmente pelo governo provincial, os proprietários rurais empossados das delegacias de polícia poderiam ainda "varejar", como se dizia na época, os engenhos dos adversários, sob o pretexto de tomar armas defesas em lei e prender criminosos. Foi justamente isso que fez a polícia praieira, comandada por um grande proprietário rural, Antonio Affonso Ferreira. Os comboios de escravos que circulavam pelo interior podiam tomar diferentes caminhos, iludindo assim a polícia praieira. Os desembarques de africanos não, pois não eram todas as praias que serviam para desembarque de navios negreiros. Os portos naturais eram locais muito específicos. Era perfeitamente possível vigiar esses pontos da costa e espreitar os desembarques. Aliás foi exatamente isso que possibilitou a contenção do tráfico depois de 1850.

Para não exagerar o impacto da polícia praieira, convém lembrar que já fazia tempo que o tráfico para Pernambuco estava em declínio. Depois da crise provocada pela Cabanada (1932-35), houve um pico entre 1836 e 1839, quando 21 mil cativos entraram na província. Em 1840, ainda desembarcaram 3.500 cativos, mas, entre 1841 e 1844, apenas 5.250. Esse declínio foi notado pelo cônsul lusitano. Todavia, dizia ele, talvez o tráfico estivesse começando a se recuperar em 1844, com a chegada de pelo menos 6 pequenos barcos que haviam saído com despachos para São Tomé e Príncipe mas, na realidade, seguiram para Benim, Onim e Ajudá. Na volta, desembarcaram cativos "a salvo nos pequenos portos desta província".12 Já fazia algum tempo que embarcações pequenas eram utilizadas no tráfico para Pernambuco. Algumas delas foram palco de grandes crueldades e ousadias.13 Em maio de 1845, explicava o cônsul inglês, era comum o uso de iates de 45 a 60 toneladas, ao invés de navios de 150 a 300 toneladas, a regra depois de 1831. Era esse o caso do Maria, de dois barcos com o mesmo nome (Diligência), do San Domingos, do Mariquinhas e do Deliberação, que saíam do Recife com papéis para na vegação de cabotagem, mas seguiam em direção à África, entrando nos rios onde a vegetação os escondia. As mercadorias para trocar por cativos eram acondicionadas em pequenos pacotes, que podiam ser carregados por um único homem, apressando o desembarque. Voltavam com 100, 150, por vezes 300 pessoas nos porões, sem espaço sequer para deitar.14 A barra do rio Una e a praia de Catuama eram os pontos "favoritos"de desembarque. Em Una, era o vigário quem administrava o desembarque. Havia ainda um oficial de alta patente que recebia propina para garantir o envio dos cativos até Recife para serem vendidos.15

Esses desembarques aconteciam em portos naturais, situados em praias particulares, que margeavam engenhos, os quais tinham donos que naturalmente estavam vinculados à política local. No Porto do Engenho Salgado atracavam negreiros de até 150 toneladas, segundo Tollenare, que lá esteve em 1817. O senhor do Salgado, o Sr. Ramos, estava tão envolvido na política provincial que foi preso pelos rebeldes de 1817, por ser contrário à Insurreição Pernambucana. Durante a Independência, José de Oliveira Ramos assinou uma petição pela permanência das tropas lusitanas na província, no que foi seguido por outro grande negreiro, Elias Coelho Cintra, "chefe"dos absolutistas no Recife, segundo Frei Caneca. Elias teve mais sorte do que o Sr. Ramos, em 1817, pois conseguiu fugir da província. O filho do Sr. Ramos viria a ser Vereador e depois presidente fundador da Associação Comercial de Pernambuco. Ramos era o dono da praia de Porto de Galinhas e politicamente vinculado ao Barão da Boa Vista, aos Cavalcanti, aos "guabirus".16

A filiação partidária de José Francisco de Azevedo Lisboa também pode ser traçada. De acordo com fontes inglesas, em 1842, ele era o representante da principal "sociedade"de traficantes de escravos de Pernambuco. Conhecido como Azevedinho, José Francisco foi preso em 1831, por ser contrário à nova situação política após a queda de Pedro I, que guindou ao poder em Pernambuco alguns dos remanescentes da Confederação do Equador. Da "sociedade", representada por Azevedinho, faziam parte Ângelo Francisco Carneiro (depois Visconde de Loures) e Gabriel Antonio, que, segundo o cônsul português, era o principal traficante de Pernambuco durante o pico do final da década de 1830.17 Existem, assim, alguns traficantes cujas simpatias partidárias podem ser traçadas até o partido conservador, os "guabirus", como diziam os praieiros. Esses homens usavam as praias nos limites dos seus engenhos ou dos aliados como ponto de desembarque de navios negreiros.

Apesar dessas informações sobre alguns grandes negociantes, rigorosamente falando, é muito difícil perscrutar exatamente as afiliações políticas de todos os traficantes atuantes em Pernambuco. Primeiro, porque eles procuravam deixar as marcas dos seus passos o mais leve possível, para não serem pegos nem pela lei, nem pelos ingleses. Segundo, porque negócios são negócios e as preferências partidárias eram uma questão secundária desde que o comprador e o vendedor se entendessem quanto ao preço e a qualidade da mercadoria. Não obstante a sobreposição de razões contábeis sobre quaisquer simpatias políticas, havia um importante detalhe, que poderia partidarizar os negócios do tráfico: a praia onde deveria ser feito o desembarque. Os portos naturais tinham donos. Esses donos participavam da política local, como eleitores, juízes de paz, oficiais da guarda nacional, delegados e subdelegados de polícia. Antes de 1831, os negreiros podiam atuar sem se importar com quem eram os donos dos portos naturais do país, já que podiam atracar nas grandes cidades costeiras. A partir de 1832, era preciso ter acesso a esses portos. No Brasil inteiro deve ter havido uma valorização geral das praias capazes de receber navios negreiros sem problemas.

Os cargos no aparato repressivo tinham uma função prática na economia política local, que era o controle da população livre pobre. Os praieiros expandiram essas prerrogativas, atacando desembarques de africanos dos adversários e se apropriando de seus cativos nas diligências policiais. O presidente praieiro, Chichorro da Gama, orgulhava-se de ter apreendido muitos escravos "roubados"pelos guabirus durante os governos anteriores.18 Nabuco de Araújo, que começou sua carreira em Pernambuco, defendeu os guabirus, afirmando que não eram só nos engenhos deles que havia cativos roubados ou desembarques de africanos. Segundo ele, também havia desembarques nas terras dos praieiros, inclusive nas da rica família do chefe de polícia praieiro, Antonio Affonso Ferreira.19 Esses desembarques, se é que houveram como acusava Nabuco de Araújo, não sofreram nenhuma perseguição da polícia praieira e por isso não foram documentados.

Já em 1845, contava o cônsul inglês que não era incomum a polícia tomar e redistribuir africanos boçais alheios, sob o pretexto de fazer uma apreensão legalmente sancionada. Um desses casos aconteceu a apenas uma milha do Recife, na casa de um "gentleman", onde haviam depositado um grupo de africanos recém-chegados ao Brasil. A polícia foi lá e apreendeu os boçais. Todavia, ao invés de proceder como deveria, manumitindo os "africanos livres", simplesmente os repassou para outros proprietários que, na opinião do cônsul inglês, talvez fossem senhores ainda mais severos do que aquele que os havia encomendado. Segundo ele, havia uma "conivência secreta"entre o governo provincial e as autoridades que tomavam os africanos dos adversários, do que resultou, na sua opinião, o declínio do tráfico para Pernambuco, que, entre 1845 e 1846, teria recebido apenas uns 600 africanos.20 Em 1847, nenhum desembarque foi bem sucedido na província, segundo as fontes lusitanas.21

Dizia o cônsul inglês, em abril de 1846, que nos últimos dezoito meses todos os negreiros que tentaram desembarcar entre o Cabo de São Roque e o Rio São Francisco foram atacados pelas autoridades locais. A carga foi tomada, em parte ou totalmente, e redistribuída entre os próprios apreensores e aliados. O caso do Mariquinhas, uma das embarcações menores de que falamos acima, exemplificava essa prática. O iate, que voltou em janeiro de 1846, pertencia a um "notório"traficante de escravos, segundo informou o cônsul inglês. Ao chegar em Porto de Galinhas, sua carga foi simplesmente tomada e distribuída entre diferentes senhores de engenho, muito provavelmente vinculados ao partido praieiro. O cônsul inglês contou que até o dono da carga foi severamente surrado, só escapando de morrer porque eram tantos os assaltantes que terminaram batendo um no outro.22

O mesmo teria acontecido com o Feliz, que, tal como o Mariquinhas, veio sobrecarregado com 200 cativos. Mas sua viagem não foi bem-sucedida, uma vez que morreram 70 pessoas na travessia. Dos cativos sobreviventes que desembarcaram em Una, pelo menos 80 foram tomados pelas autoridades locais. Cinquenta mulheres e crianças enfermas foram apreendidas e enviadas para o Recife, onde ficaram presos no forte do Brum. Todos eles faleceram nos dias subsequentes, devido às enfermidades decorrentes dos padecimentos por que passaram no navio negreiro.23

Em um outro episódio análogo, um navio negreiro fracassou na tentativa de aportar em Barra de Catuama, tendo ido parar numa das praias da ilha de Itamaracá, um termo onde a disputa partidária era bastante feroz nessa época. Para conseguir desembarcar, o capitão teve que vender 30 cativos, provavelmente para custear comida, segurança e... propinas. Com isso, conseguiu se comunicar com os consignatários da carga. A anuência das autoridades locais custou-lhe mais outra propina de 11 africanos. Mesmo assim, uma porção da carga restante terminou sendo roubada pela população local. O que restou foi apreendido pela polícia, junto com o dono, sendo todos remetidos para o Recife. Todavia, o proprietário, é claro, também era uma pessoa influente. À noite então, todos os africanos boçais aprisionados foram trocados por escravos crioulos, resolvendo o problema.24

A polícia, todavia, nem sempre era bem-sucedida em suas operações. Em Pitimbu, na divisa com a Paraíba, área onde os praieiros eram particularmente fortes, um inspetor percebeu um desembarque de africanos e conseguiu apreender a preciosa carga, ou parte dela. Dos cativos que devem ter desembarcado, 42 foram efetivamente arrestados e colocados em uma lancha para serem levados para a atual João Pessoa. Qual não foi a surpresa das autoridades quando foram interceptados por uma barcaça, vinda do lado de Pernambuco, cheia de homens armados. Após um tiroteio, os traficantes prenderam a tripulação da lancha, retomaram os cativos e seguiram em frente, orientados por seus contatos em terra, que sinalizavam com uma bandeira branca com uma cruz azul.25

O caso melhor documentado desses verdadeiros saques de navios negreiros aconteceu em Porto de Galinhas. A apreensão do Bom Jesus dos Navegantes repercutiu na imprensa, chegando à Câmara dos Deputados. Foi também assunto de um livreto de Nabuco de Araújo no qual atacava com veemência o governo praieiro, particularmente a sua polícia. José Thomaz Nabuco de Araújo iniciou sua bem-sucedida carreira sob a proteção dos guabirus, ao ponto de ter servido como juiz no julgamento dos rebeldes da Insurreição Praieira. Seu filho, Joaquim Nabuco, defendeu sua atuação naquele episódio, atacando os praieiros em Um Estadista do Império, mas não deixou de afirmar que as invasões aos engenhos foram um mal necessário, pois era a primeira vez que a justiça estatal invadia a imunidade daqueles quase-feudos da aristocracia açucareira. O problema, todavia, era que a polícia praieira somente varejava as propriedades dos adversários. Era justamente esse o argumento de Nabuco de Araújo no seu livreto, onde admitia que de fato havia roubos de escravos, tráfico e assassinatos, mas havia gente de ambos os partidos envolvida nesses crimes e não apenas os guabirus, como pretendia a imprensa panfletária praieira.

A principal prova dos seus argumentos foi a apreensão do iate ou palhabote Bom Jesus dos Navegantes, em 1846. Apreensão sem heroísmos, para não dizer mesmo fajuta, pois o pequeno e superlotado barco fez uma arribada forçada em Porto de Galinhas, com muita gente morta em seus porões e dezenas de africanos famélicos, doentes, desesperados. Segundo o cônsul português, antes dessa viagem o Bom Jesus já havia realizado pelo menos um desembarque bem-sucedido na província.26

Nessa época, os negreiros viajavam com passaportes e bandeiras de mais de uma nacionalidade. Era fácil atirar ao mar a documentação real e apresentar apenas aquela preparada antes da viagem, com as palavras exatas para iludir as autoridades portuárias ou mesmo os ingleses, caso o navio viesse a ser apreendido. Mas, entre os documentos apreendidos no Bom Jesus, um dizia que o barco levava 200 "fardos"para o Brasil. A descrição de 88 desses "fardos"indicava que a maioria já saíra da África marcada a ferro, como era costume nessas viagens. Desses "fardos"humanos, 47 eram "moleques"e "molecas"de "6, 5 e 4 e meio". Muitas dessas crianças não sobreviveriam à travessia atlântica, morrendo de sede, fome e várias enfermidades.27

O documento mais incriminador do Bom Jesus, todavia, foi o termo de arribada forçada, que não foi produzido para iludir as autoridades, pois, ao invés de livrar a tripulação, provava sua culpa. Assinado pelo comandante e todos os tripulantes, o termo visava demonstrar que o fracasso da viagem fora fruto do infortúnio e não de má fé, desculpando todos diante do patrão, que muito provavelmente não iria ficar nem um pouco satisfeito com o fracasso da viagem, que ceifou a vida de sua preciosa carga. Tal como hoje em dia, os bandidos também têm uma ética própria. O termo de arribada forçada conta a viagem na versão do comandante do Bom Jesus, a ser apresentada ou a Manoel Pinto da Fonseca, famoso traficante na Corte e suposto consignatário do navio, ou a Ignácio José Esteves, morador no Recife, suposto proprietário do navio.

O termo bem que serviria para roteiro de um filme de terror. Após 40 dias de viagem, 30 dos quais a meia ração, com os óbitos se multiplicando, o capitão decidiu procurar o porto mais próximo, ao invés de prosseguir até o Rio de Janeiro. Pernambuco era o porto mais perto e lá residia o proprietário do barco. Cento e vinte e oito pessoas morreram nos porões do Bom Jesus. O barco e os 72 cativos sobreviventes foram apreendidos em Porto de Galinhas pelo subdelegado do termo, um proprietário rural, primo do próprio chefe de polícia da província. Enquanto ele foi procurar ajuda, deixou seis homens vigiando a tripulação, que fugiu à noite em um escaler, aproveitando o enjoo da guarnição, formada por "matutos", que não aguentou o cheiro que exalava do navio. O subdelegado admitiu, todavia, que ouvira falar que, antes da apreensão, o navio desembarcara algumas pequenas porções de cativos, cujo paradeiro desconhecia.28

Os adversários dos praieiros, todavia, contaram uma história diferente: a tripulação ou comprou as autoridades ou simplesmente foi solta em troca do silêncio. Correu também o boato de que o mestre do barco teria sido morto pela autoridade encarregada da apreensão. Os cativos, alegadamente mortos depois do desembarque, ou mesmo antes, na realidade estavam mais do que vivos, distribuídos entre os próprios apreensores. No Parlamento, um deputado acusou os praieiros pelo desaparecimento de pelo menos 60 africanos, incorporados aos plantéis dos engenhos União e Água Fria.29 Esses desaparecimentos e a fuga do mestre do navio e da tripulação nunca foram esclarecidos, apesar dos ofícios espalhados pelo Brasil afora pelas autoridades provinciais; afinal de contas, um capitão de navio negreiro poderia realmente ir parar em qualquer lugar, até embaixo da terra. O subdelegado encarregado da diligência foi demitido por seu primo, o próprio chefe de polícia praieiro. Este episódio deu à imprensa panfletária guabiru a oportunidade de denunciar a parcialidade da polícia praieira, demonstrando que a intenção de reprimir o tráfico era partidarizada.

Perto do término do governo praieiro, em 1848, dizia o cônsul inglês que o tráfico para Pernambuco estava praticamente findo. Seguindo o trajeto de sua correspondência desde 1845, fica claro que, para ele, a principal razão para isso era o que ele chamou de "atitude desonesta"da polícia, que havia apreendido alguns desembarques, apropriando-se da carga humana que era redistribuída a baixo custo para os aliados, mas causando imenso prejuízo para os traficantes e para os consignatários originais do navio negreiro. Segundo o cônsul, os maiores negociantes de escravos de Pernambuco reconheciam que a razão para o declínio do tráfico era o partido então no poder, o partido praieiro.30

Essa opinião dos traficantes e do cônsul inglês é exagerada, pelo simples fato de que o tráfico para Pernambuco já estava em letargia desde o começo da década e continuaria assim depois da queda dos praieiros, exceto pelo surto de 1850-52, quando os navios negreiros simplesmente tiveram que procurar os portos das províncias do norte, diante do risco de serem apreendidos no litoral das províncias do sul. É razoável supor, todavia, que o bom momento vivido pelo açúcar, a partir de 1846, pudesse justificar o retorno do tráfico em larga escala, o que não aconteceu. Mas, mesmo levando em conta a expansão do açúcar durante o quinquênio liberal, não se deve imputar a letargia do tráfico apenas à ação da polícia praieira, pois a grande seca de 1844-47 e o completo colapso do algodão certamente liberaram braços para a produção açucareira. Além disso, sendo baixa a capitalização dos plantadores de Pernambuco e grande a população livre pobre da província, a segunda mais populosa do Império nessa época, os plantadores começaram antes de 1850 a substituir o braço escravo pelos "moradores de engenho", eles mesmos descendentes de escravos. No seu livreto atacando os praieiros, Nabuco de Araújo dizia que o tráfico diminuíra devido ao "cálculo dos traficantes", ou seja, porque a demanda por africanos havia refluído.31 A ação da polícia praieira, portanto, teve impacto, mas não foi a principal razão da relativa letargia do tráfico para Pernambuco naqueles anos.

O caso aqui apresentado mostra como uma facção das elites locais utilizou uma determinada legislação imperial para atacar os adversáriosnas localidades. Ao aplicaraleicontraosadversários,ospraieirosterminaramcontribuindo,mesmoque marginalmente, para o declínio do tráfico atlântico de escravos para a província, entre 1845 e 1848. A ação da polícia praieira não foi necessariamente motivada por um desejo sincero de acabar com o tráfico. Havia agentes da repressão envolvidos no comércio negreiro. O que eles fizeram foi tomar os cativos dos adversários na política local e provincial. A resposta local à legislação imperial correspondia às circunstânciaslocaisenãonecessariamenteàsintençõesdaCorteedoParlamento. O conflito entre praieiros e guabirus contribuiu para diminuir o influxo de africanos durante o governo praieiro e ainda incendiou a relação entre os proprietários rurais que entrariam em guerra em 1848. O estudo deste caso também chama a nossa atenção para um processo que pode ter ocorrido em outras localidades: a partidarização do combate ao tráfico atlântico de escravos.

O saque de alguns desembarques foi apenas uma parte da ação da polícia, que também invadiu várias propriedades dos adversários sob o pretexto de apreender armas do Estado, escravos furtados e assassinos, a mando de proprietários rurais. Nesses "varejamentos", a polícia prendeu e recrutou a clientela dos adversários, apropriou-se de cativos, chegando a saquear algumas propriedades. Foram imensos os prejuízos causados. A ação da polícia praieira provocou uma violenta reação da oposição guabiru, que resistiu de forma cada vez mais organizada e consistente. A polícia foi rechaçada em algumas oportunidades, principalmente no engenho Lages, já em 1848, quando, segundo os praieiros, estava começando uma verdadeira "revolução guabiru". A queda dos liberais na Corte, em abril de 1848, reverteria o quadro. Os proprietários que haviam sido prejudicados pela polícia praieira retomaram o poder. Algumas dezenas de delegados e subdelegados praieiros, seguidos pelo ex-chefe de polícia, recusaram-se a entregar seus cargos. Essa resistência, apoiada pela bancada praieira, transbordou em rebelião. Quando, finalmente, foram apaziguadas as reverberações da Insurreição Praieira, já era tarde demais, pois dali em diante seriam os próprios saquaremas que assumiriam o combate ao tráfico.32 A repressão feita pelos praieiros foi partidarizada, localizada e tímida, mas contribuiu para diminuir o tráfico e para incendiar a relação entre os partidos.

Artigo recebido e aprovado para publicação em junho de 2009.

Referências bibliográficas

  • 1 Beatriz Gallotti Mamigonian, To be a liberated african in Brazil: labour and citizenship in the nineteenth century, Tese de Doutorado, University of Waterloo (Canadá), 2002, table I, p. 280.
  • 2 APEJE (Arquivo Público Estadual de Pernambuco Jordão Emerenciano, Recife), Tesouraria da Fazenda, vol. 25, "Relação dos Africanos Livres Apreendidos entre 1832 e 1851", 14/05/1852.
  • 3 A historiografia sobre a Praieira é bastante rica. Veja-se, principalmente: Izabel Marson, O império do progresso: A revolução praieira, São Paulo, Brasiliense, 1987.
  • Jeffrey C. Mosher, Political struggle, ideology, and state building: Pernambuco and the construction of Brazil, 1817-1850, University of Nebraska Press, 2008.
  • 4 TT-MNE-PE (Torre do Tombo, Lisboa, Coleção do Ministério dos Negócios Estrangeiros, Pernambuco), caixa 1, 06/04/1837.
  • 5 LAPEH (Laboratório de Pesquisa e Ensino de História da UFPE), Diário de Pernambuco (Recife), 17/04/1837.
  • 6 ANRJ (Arquivo Nacional, Rio de Janeiro), Fundo Justiça, IJ6-525, Relatório Alcoforado- Africanos, 1837-1864.
  • 7 NA-FO (National Archives, Londres, Foreign Office, Slave Trade, Brazil), 84/470, 03/09/1844, p. 217-217 verso.
  • 8 NA-FO 84/470, 24/07/1843, fls. 289.
  • 9 Relatório Apresentado à Assembléia Geral, 1852, Center for Research Libraries, Brazilian Government Document Digitalization Project, disponível em: http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/660/000005.html .
  • 10 Manuel Aires de Casal, Corografia brasílica, Rio de Janeiro, 1817; reedição: Belo Horizonte, Itatiaia, 1976, p. 259.
  • Um levantamento datado de 1821 enumerava pelo menos cinco praias com portos naturais capazes de receber facilmente navios com mais de cem toneladas (Itamaracá, Cabo de Santo Agostinho, Porto de Galinhas, Rio Formoso e Tamandaré). APEJE, Fundo Porto do Recife, vol. 15, 03/12/1821.
  • 11 "(...) at a farmer's house, which was used as a kind of slave market". Biography of Mahommah G. Baquaqua etc. Academic Affairs Library, UNC-CH University of North Carolina at Chapel Hill, 2001, disponível em: http://docsouth.unc.edu/permission/copyright.html .
  • 12 TT-MNE-PE, caixa 3, 10/12/1844.
  • 13 Contou o cônsul inglês, em janeiro de 1842, que uma lancha com 3 tripulantes apenas trouxe 42 cativos da África, dos quais 36 sobreviveram à viagem, que ele considerava a mais arriscada já registrada ("most hazardous voyage on record"). NA-FO 84-411, 17/01/1842.
  • 14 NA-FO 84/584, 16/05/1845, fls. 217.
  • 15 NA-FO 84/584, 16/05/1845, fls. 218.
  • 16 L.F. Tollenare, Notas dominicais tomadas durante uma viagem em Portugal e no Brasil , em 1816, 1817 e 1818, Salvador, Progresso, 1956, p. 68-70.
  • Typhis Pernambucano (Recife), 01/04/1824, in: Antônio Joaquim de Mello (Org.), Obras políticas e literárias de Frei Joaquim do Amor Divino Caneca, Recife, 1875; reedição: Recife, Assembléia Legislativa, 1972, p. 515.
  • IAHGPE, Inventário de José Ramos de Oliveira.
  • 17 LAPEH, Ofício de 23/04/1832, in: Diário de Pernambuco (Recife), 05/05/1832.
  • João José Reis, Flávio dos Santos Gomes e Marcus J. M. de Carvalho, "África e Brasil entre margens: aventuras e desventuras do africano Rufino José Maria, 1822-1853", Estudos Afro-Asiáticos (Rio de Janeiro-UNICAM), 2004, n. 2, p. 277.
  • NA-FO 84/470, 04/08/1843, fls. 334 verso.
  • TT-MNEPE, caixa 1, 14/08/1835.
  • Marcus J. M. de Carvalho, Liberdade: rotinas e rupturas do escravismo, Recife 1822-1850, Recife, Editora da UFPE, 1998,
  • 18 APEJE, "Relatório do Presidente Chichorro da Gama à Assembléia Provincial na Sessão Ordinária de 1846", p. 7.
  • Os roubos de escravos eram frequentes nessa época. Gilberto, Freyre, Sobrados e mucambos: decadência do patriarcado rural e desenvolvimento do urbano, Rio de Janeiro, José Olympio, 1977, vol. 1, p. 49-51.
  • 19 José Tomás Nabuco de Araújo, Justa apreciação do predomínio praieiro ou história da dominação da praia, Recife, 1847; reedição, Recife, Secretaria de Educação e Cultura, 1977,
  • 20 NA-FO 84/632, 02/03/1846, 12/02/1847.
  • 21 TT-MNE-PE, caixa 3, 14/02/1848.
  • 22 NA-FO 84/632, 02/03/1846, fls. 159.
  • 23 NA-FO 84/632, 01/04/1846, fls. 159 verso.
  • 24 NA-FO 84/632, 02/03/1846, fls. 149 e 149 verso.
  • 25 Arquivo Público Estadual de Pernambuco, Polícia Civil 326, 15/08/1845, 21/08/1845, 19/08/1845.
  • 26 TT-MNE-PE, caixa 3, 11/04/1846.
  • 27 APEJE, Obras Raras, Caixa F2, fls. 11. "Ao Público – Defesa que faz Joaquim Affonso Ferreira do roubo que lhe é imputado de cem, ou cento e tantos africanos de hum Hyate em Porto de Galinhas em 9 de março de 1846".
  • 28 APEJE, Obras Raras, Caixa F2, fls. 11.
  • Polícia Civil vol. 327 – 09/03/1846, 17/03/1846, fls. 208-213.
  • 29Anais do Parlamento Brasileiro, Câmara dos Srs. Deputados, Coligidos por Antonio Pereira Pinto, Rio de Janeiro, A. P. Pinto, 1880, Sessão de 1846 tomo segundo, p. 294.
  • 30 NA-FO 84/632, 01/04/1846, fls. 159 verso.
  • 32 Sobre a condução política do processo pelos saquaremas, veja-se: Jeffrey Needel, "The party of order: the conservatives, the state and slavery in the brazilian monarchy, 1831-1871, Stanford, Stanford University Press, 2006, cap. 4 e passim.
  • 1
    Beatriz Gallotti Mamigonian,
    To be a liberated african in Brazil: labour and citizenship in the nineteenth century, Tese de Doutorado, University of Waterloo (Canadá), 2002, table I, p. 280.
  • 2
    APEJE (Arquivo Público Estadual de Pernambuco Jordão Emerenciano, Recife), Tesouraria da Fazenda, vol. 25, "Relação dos Africanos Livres Apreendidos entre 1832 e 1851", 14/05/1852.
  • 3
    A historiografia sobre a Praieira é bastante rica. Veja-se, principalmente: Izabel Marson,
    O império do progresso: A revolução praieira, São Paulo, Brasiliense, 1987. Jeffrey C. Mosher, Political struggle, ideology, and state building: Pernambuco and the construction of Brazil, 1817-1850, University of Nebraska Press, 2008.
  • 4
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  • 5
    LAPEH (Laboratório de Pesquisa e Ensino de História da UFPE),
    Diário de Pernambuco (Recife), 17/04/1837.
  • 6
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    Manuel Aires de Casal,
    Corografia brasílica, Rio de Janeiro, 1817; reedição: Belo Horizonte, Itatiaia, 1976, p. 259. Um levantamento datado de 1821 enumerava pelo menos cinco praias com portos naturais capazes de receber facilmente navios com mais de cem toneladas (Itamaracá, Cabo de Santo Agostinho, Porto de Galinhas, Rio Formoso e Tamandaré). APEJE, Fundo Porto do Recife, vol. 15, 03/12/1821.
  • 11
    "(...)
    at a farmer's house, which was used as a kind of slave market". Biography of Mahommah G. Baquaqua etc. Academic Affairs Library, UNC-CH University of North Carolina at Chapel Hill, 2001, disponível em:
  • 12
    TT-MNE-PE, caixa 3, 10/12/1844.
  • 13
    Contou o cônsul inglês, em janeiro de 1842, que uma lancha com 3 tripulantes apenas trouxe 42 cativos da África, dos quais 36 sobreviveram à viagem, que ele considerava a mais arriscada já registrada ("most hazardous voyage on record"). NA-FO 84-411, 17/01/1842.
  • 14
    NA-FO 84/584, 16/05/1845, fls. 217.
  • 15
    NA-FO 84/584, 16/05/1845, fls. 218.
  • 16
    L.F. Tollenare,
    Notas dominicais tomadas durante uma viagem em Portugal e no Brasil , em 1816, 1817 e 1818, Salvador, Progresso, 1956, p. 68-70.
    Typhis Pernambucano (Recife), 01/04/1824, in: Antônio Joaquim de Mello (Org.),
    Obras políticas e literárias de Frei Joaquim do Amor Divino Caneca, Recife, 1875; reedição: Recife, Assembléia Legislativa, 1972, p. 515. IAHGPE, Inventário de José Ramos de Oliveira.
  • 17
    LAPEH, Ofício de 23/04/1832, in:
    Diário de Pernambuco (Recife), 05/05/1832. João José Reis, Flávio dos Santos Gomes e Marcus J. M. de Carvalho, "África e Brasil entre margens: aventuras e desventuras do africano Rufino José Maria, 1822-1853",
    Estudos Afro-Asiáticos (Rio de Janeiro-UNICAM), 2004, n. 2, p. 277. NA-FO 84/470, 04/08/1843, fls. 334 verso. TT-MNEPE, caixa 1, 14/08/1835. Marcus J. M. de Carvalho,
    Liberdade: rotinas e rupturas do escravismo, Recife 1822-1850, Recife, Editora da UFPE, 1998, segunda parte, passim.
  • 18
    APEJE, "Relatório do Presidente Chichorro da Gama à Assembléia Provincial na Sessão Ordinária de 1846", p. 7. Os roubos de escravos eram frequentes nessa época. Gilberto, Freyre,
    Sobrados e mucambos: decadência do patriarcado rural e desenvolvimento do urbano, Rio de Janeiro, José Olympio, 1977, vol. 1, p. 49-51. Carvalho,
    Liberdade, cap. 13, passim.
  • 19
    José Tomás Nabuco de Araújo,
    Justa apreciação do predomínio praieiro ou história da dominação da praia, Recife, 1847; reedição, Recife, Secretaria de Educação e Cultura, 1977, passim.
  • 20
    NA-FO 84/632, 02/03/1846, 12/02/1847.
  • 21
    TT-MNE-PE, caixa 3, 14/02/1848.
  • 22
    NA-FO 84/632, 02/03/1846, fls. 159.
  • 23
    NA-FO 84/632, 01/04/1846, fls. 159 verso.
  • 24
    NA-FO 84/632, 02/03/1846, fls. 149 e 149 verso.
  • 25
    Arquivo Público Estadual de Pernambuco, Polícia Civil 326, 15/08/1845, 21/08/1845, 19/08/1845.
  • 26
    TT-MNE-PE, caixa 3, 11/04/1846.
  • 27
    APEJE, Obras Raras, Caixa F2, fls. 11. "Ao Público – Defesa que faz Joaquim Affonso Ferreira do roubo que lhe é imputado de cem, ou cento e tantos africanos de hum Hyate em Porto de Galinhas em 9 de março de 1846".
  • 28
    APEJE, Obras Raras, Caixa F2, fls. 11. Polícia Civil vol. 327 – 09/03/1846, 17/03/1846, fls. 208-213.
  • 29
    Anais do Parlamento Brasileiro, Câmara dos Srs. Deputados, Coligidos por Antonio Pereira Pinto, Rio de Janeiro, A. P. Pinto, 1880, Sessão de 1846 – tomo segundo, p. 294.
  • 30
    NA-FO 84/632, 01/04/1846, fls. 159 verso.
  • 31
    Nabuco de Araújo, p. 9. Sobre o tráfico para Pernambuco nessa época, veja-se também: Carvalho,
    Liberdade, segunda parte, passim.
  • 32
    Sobre a condução política do processo pelos saquaremas, veja-se: Jeffrey Needel, "
    The party of order: the conservatives, the state and slavery in the brazilian monarchy, 1831-1871, Stanford, Stanford University Press, 2006, cap. 4 e passim.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      26 Mar 2010
    • Data do Fascículo
      2009

    Histórico

    • Recebido
      Jun 2009
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