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Chuquisaca, 1880 a 1930: elites em declínio, resistências rurais e mudanças econômicas no sul da Bolívia

Chuquisaca, 1880 to 1930: declining elites, rural resistances and economic changes in Southern Bolivia

Resenha de LANGER, Erick D. . “Se pavonean en los pueblos”: resistencia rural y modernidad en Chuquisaca (1880-1930) . Tradução de Marisabel Villagómez Álvarez Plata. La Paz: Plural, 2023.

Resumo:

O livro “Se pavonean en los pueblos”: resistencia rural y modernidad en Chuquisaca (1880-1930), do historiador norte-americano Erick Langer, examina as mudanças econômicas e as resistências rurais vivenciadas no sul da Bolívia, notadamente no departamento de Chuquisaca, entre 1880 e 1930, quando do declínio da mineração da prata e da ascensão da mineração do estanho. O autor historiciza o empobrecimento das elites locais e regionais e suas estratégias para manter suas fortunas, comprando terras comunais indígenas, modernizando propriedades nos distritos de Yamparaez, Cinti, Tomina e Azero e no enfrentamento de resistências de trabalhadores do campo. A complexidade das respostas a esses estímulos econômicos adentra um dos momentos mais importantes da história boliviana: o declínio da mineração da prata no final do século XIX.

Palavras-chave:
Chuquisaca; Resistência rural; Sul da Bolívia

Abstract:

The book “Se pavonean en los pueblos”: resistencia rural y modernidad en Chuquisaca (1880-1930), by the American historian Erick Langer, examines the economic changes and rural resist­ances experienced in Southern Bolivia, notably in the Chuquisaca department, between the years 1880 and 1930, at the time of the decline of silver mining and the rise of tin mining. It historicized the impoverishment of local and regional elites and their strategies to maintain their fortunes, by buying indigenous communal lands, modernizing properties in the districts of Yamparaez, Cinti, Tomina and Azero and confronting resist­ance from rural workers. The complexity of the responses to these economic stimuli enters one of the most important moments in Bolivian history: the decline of silver mining at the end of the 19th century.

Keywords:
Chuquisaca; Rural resistance; Southern Bolivia

O território que hoje corresponde à Bolívia, localizado no meio do centro-oeste da América do Sul, desde muito cedo foi habitado por culturas indígenas, como a Tiwanaku, que, ao que tudo indica, passou a ocupar aquele local por volta de 110 EC (50-170), como uma pequena aldeia agrícola na bacia do Lago Titicaca.1 1 O debate sobre a ocupação humana no território da atual Bolívia é complexo e apresenta dados disformes, muito em virtude de não se ter informações comparativas, notadamente pela falta de estilos de cerâmica, de grupos que anteriormente ocuparam a região. Dados analíticos recentes, baseados em escavações cujo modelo é o bayesiano, indicam que a ocupação do local pelos Tiwanaku tenha se dado por volta de 110 EC (50-110), e que a partir de então expandiu-se rapidamente, tanto no aspecto espacial quanto populacional (Marsh, 2012, p. 213, 214). Depois, tornou-se parte do Império Inca, a maior civilização pré-colombiana de seu tempo. Conquistada pelo espanhol Diego de Almagro, em 1535, a região teve seus minérios explorados de maneira intensa e, em virtude dos ricos depósitos de prata ali existentes, foi incorporada ao Vice-Reinado do Peru.

Mas, a grande distância da sede administrativa do Vice-Reinado do Peru, instalado na cidade de Lima, na parte central do atual litoral peruano, da zona onde se explorava a prata, localizada em Potosí, no alto da rica e imponente montanha chamada Cerro Rico, nas cordilheiras bolivianas, conhecidas atualmente como Alto Peru ou Charcas, fez com que as autoridades criassem na cidade de Chuquisaca, atual Sucre, em 1561, uma audiência, ou assembleia, para melhor administrar a região, por ser um importante centro fornecedor e administrativo agrícola para Potosí.2 2 A cidade de Chuquisaca, situada no sul da atual Bolívia, a oriente da cordilheira dos Andes, foi fundada em 1538. Apesar de a origem etimológica da palavra Chuquisaca significar “terra do ouro”, o local transformou-se em um dos mais prósperos centros de abastecimento comercial de Potosí, a terra onde se explorava prata (Chacon, 2010, p. 4).

A Audiência e Chancelaria Real da Prata dos Charcas, ou Audiência de Charcas, como era conhecida, foi o mais importante tribunal judicial - apesar de também exercer algumas funções executivas - da Coroa espanhola no Alto Peru, denominação geográfica que antecedeu à Bolívia.3 3 O termo Alto Peru, como referência ao espaço geográfico onde hoje se situa a Bolívia, é tardio, datado de meados do século XIX. Em 1851, José María Dalence (1851, p. 2), considerado um dos pais fundadores da Bolívia, informou, em seu Bosquejo estadístico de Bolivia, que o nome Alto Peru, “aplicado exclusivamente à Bolívia, é novo e muito inapropriado”, pois “nem nas leis espanholas, nem nos seus historiadores, o que hoje é a Bolívia recebe outro nome que não Charcas”.

Com a proclamação de sua República em 6 de agosto de 1825, após uma guerra que durou 16 anos desde a independência, em 1809, a base territorial da então nascente República da Bolívia foi a antiga jurisdição colonial da Audiência de Charcas e uma parte dos circuitos comerciais montados para atender as minas de prata de Potosí.

A partir da república então proclamada, as elites locais, compostas por funcionários do antigo sistema colonial, letrados e proprietários de terras, assumiram a tarefa de reorganizar o estado boliviano, porém preservando as estruturas sociais coloniais. Como antes, os setores populares continuaram à margem da estrutura política e econômica, como no caso dos povos indígenas que constituíam 90% da população e que foram excluídos nos processos de independência e de formação da república. As elites então surgidas, a partir de meados da primeira metade do século XIX, substituíram sua fidelidade à burocracia colonial pelos ideais liberais e de modernidade das também outras repúblicas surgidas a partir dos primeiros anos do Oitocentos na América Latina de tradição espanhola (García Linera, 2017GARCÍA LINERA, Álvaro. Bolívia. 5 jul. 2017. Portal Contemporâneo da América Latina e Caribe. Versão digital de SADER, Emir Simão (coord.). Latinoamericana: Enciclopédia Contemporânea da América Latina e do Caribe. São Paulo: Programa Interunidades de Pós-graduação Integração da América Latina da Universidade de São Paulo; Boitempo, 2007. Disponível em: Disponível em: https://sites.usp.br/portalatinoamericano/ . Acesso em: 20 dez. 2023.
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).

O livro “Se pavonean en los pueblos”: resistencia rural y modernidad en Chuquisaca (1800-1930) recupera a história de um desses grupos de mando - o das elites de Chuquisaca - para descobrir como elas se comportaram a partir das mudanças econômicas ocorridas após a retração da produção da prata no final do século XIX, depois de a sua mineração ter vivenciado um período de auge entre 1875 e 1895. Com o colapso minerador da prata, que sobreviveu desde os tempos coloniais de maneira diversa e modificada, e no adentrar do século XX, a partir de suas primeiras décadas, se observa a substituição do complexo econômico da prata pela mineração de estanho. E é justamente essa passagem entre situações econômicas diversas - a retração da prata e a então ascendente exploração do estanho, que se mostrará vertiginosa ao longo do século XX - que a obra de Erick Langer, professor de história da América Latina na Edmund A. Walsh School of Foreign Service da Georgetown University, nos Estados Unidos, se lança a investigar.4 4 Erick Langer é bacharel em história pela University of Washington, mestre e doutor em história pela Stanford University. Especialista em história da Bolívia, é autor, coautor e editor de oito livros e mais de cinquenta artigos em periódicos ou capítulos de livros. É membro titular dos EUA na Comissão de História do Instituto Pan-americano de Geografia e História (IPGH), órgão executivo da Organização dos Estados Americanos (OEA). O livro aqui resenhado é sua tese de doutoramento. Como as elites chuquisaquenhas vivenciaram a transição entre essas duas produções minerais, a partir da substituição da prata pelo estanho? Ou, ainda, como essa mudança afetou os setores populares e rurais de Chuquisaca?

Empreendendo análise das estratégias financeiras desenvolvidas pelas elites para compensar suas perdas econômicas, na passagem da prata para o estanho, assim como das múltiplas estratégias utilizadas pelos setores populares, como as dos camponeses ou de povos indígenas, para fazerem frente a essa mudança, Erick Langer empreende interessante e minuciosa análise, baseada em fontes primárias extraídas de arquivos notariais e judiciais, públicos e privados, localizados na cidade de Sucre e na província de Chuquisaca, para demonstrar que as elites daquele local procuraram manter sua fortuna realizando ações de compra de terras comunais indígenas e modernizando suas propriedades, notadamente as vinculadas ao universo agrícola, em continuidade com a exploração da população local. Entretanto, em vários locais de Chuquisaca ocorreram movimentos rebeldes que resistiram às tentativas das elites de ampliar seu poderio econômico à custa da exploração dos mais pobres.

A obra, dividida em oito capítulos, aos quais se somam a introdução e a conclusão, confere ao leitor o avançar sobre as diferentes condicionantes geográficas e histórico-econômicas passadas por Chuquisaca, entre 1880 e 1930, no momento em que a América Latina, entre fins do século XIX e as primeiras décadas do século XX, transicionava suas economias locais em demandas globais por matéria-prima, como o estanho, fazendo com que regiões diversas se integrassem à florescente economia mundial. Por exemplo, entre 1900 e 1929, a produção boliviana de estanho saiu de um patamar de 9 mil para 47 mil toneladas métricas finas por ano (García Linera, 2017GARCÍA LINERA, Álvaro. Bolívia. 5 jul. 2017. Portal Contemporâneo da América Latina e Caribe. Versão digital de SADER, Emir Simão (coord.). Latinoamericana: Enciclopédia Contemporânea da América Latina e do Caribe. São Paulo: Programa Interunidades de Pós-graduação Integração da América Latina da Universidade de São Paulo; Boitempo, 2007. Disponível em: Disponível em: https://sites.usp.br/portalatinoamericano/ . Acesso em: 20 dez. 2023.
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). Na década de 1920, as exportações duplicaram, apesar de a maior parte da renda auferida com essas vendas permanecer nas mãos de poucos investidores privados (García Linera, 2017GARCÍA LINERA, Álvaro. Bolívia. 5 jul. 2017. Portal Contemporâneo da América Latina e Caribe. Versão digital de SADER, Emir Simão (coord.). Latinoamericana: Enciclopédia Contemporânea da América Latina e do Caribe. São Paulo: Programa Interunidades de Pós-graduação Integração da América Latina da Universidade de São Paulo; Boitempo, 2007. Disponível em: Disponível em: https://sites.usp.br/portalatinoamericano/ . Acesso em: 20 dez. 2023.
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). O estudo de Erick Langer adentra esse universo, para o lado da Bolívia, para demonstrar as maneiras como os residentes nas áreas rurais, especificamente as do sul, como as da província de Chuquisaca, foram afetados profundamente, com movimentos de resistência e de aceitação, por essas mudanças.

Figura 1
- Mapa de Chuquisaca, ca. 1900.

As quatro regiões de Chuquisaca até o ano de 1900, Yamparaez, Cinti, Azero e Tomina, que aparecem indicadas na Figura 1, representam, aliás, as divisões correspondentes aos capítulos 4 a 7 do livro e permitem compreender as complexas respostas aos estímulos sociais, políticos e econômicos vivenciados naqueles locais quando a prata perdeu seu papel hegemônico como lastro financeiro para o dinheiro fiduciário baseado no padrão ouro. Também outros processos políticos, como o advento do Partido Liberal, vinculado ao grupo minerário de estanho, em detrimento do Partido Constitucional, ligado aos mineradores da prata; assim como a guerra civil travada entre as cidades de Sucre, que até o ano de 1899 tinha instalada em sua jurisdição a sede do governo, e La Paz, pela transferência dos órgãos administrativos governamentais, na chamada Revolução Federal; tal como a Guerra do Chaco contra o Paraguai, pela posse da região do Chaco Boreal, rica em recursos naturais, como petróleo, de 1932 a 1935; e a Grande Depressão de 1929, impactaram as economias populares locais e regionais. E Erick Langer inova ao comparar as estratégias de resistência ao endurecimento das formas de exploração da mão de obra traçadas pelos camponeses indígenas de origem e fala quéchua dos departamentos de Yamparáez com os planos de camponeses mestiços residentes na região vitivinícola de Cinti, com os métodos traçados pelos indígenas chiriguanos de Azero e com a bandidagem encontrada em Tomina. Esses conflitos ilustram o empobrecimento das elites chuquisaquenhas, que sempre buscaram compensar suas perdas financeiras explorando de maneira intensa as comunidades agrárias indígenas.

E na conclusão, em vinte páginas, o autor compara e contrasta os diversos tipos de resistências e seus fundamentos sociais, econômicos, políticos e culturais, como demonstrou ao especificar as quatro regiões de Chuquisaca, de maneira detida, nos capítulos 4 a 7.

Em suma, percebe-se que a obra do professor Erick Langer, publicada originalmente em 1989 em inglês, sob o título de Economic change and rural resistance in Southern Bolivia, 1880-1930, pela Stanford University Press, e que após 35 anos surge em tradução em língua espanhola pela editora Plural, da Bolívia, continua - mesmo com o passar de todos esses anos - atual e com informações e dados que ainda não foram superados. O livro permanece sendo um dos poucos escritos sobre a história de Chuquisaca para a época republicana e nos permite pensar como ciclos de crescimento e crise afetam os destinos de muitos países que detêm sua matriz econômica afeita a atividades extrativistas.

Referências

  • CHACON, Vamireh. Bolívia Brasília: Thesaurus; Fundação Alexandre de Gusmão, 2010.
  • DALENCE, José María. Bosquejo estadístico de Bolivia Chuquisaca: Ymprenta de Sucre, 1851.
  • GARCÍA LINERA, Álvaro. Bolívia. 5 jul. 2017. Portal Contemporâneo da América Latina e Caribe Versão digital de SADER, Emir Simão (coord.). Latinoamericana: Enciclopédia Contemporânea da América Latina e do Caribe São Paulo: Programa Interunidades de Pós-graduação Integração da América Latina da Universidade de São Paulo; Boitempo, 2007. Disponível em: Disponível em: https://sites.usp.br/portalatinoamericano/ Acesso em: 20 dez. 2023.
    » https://sites.usp.br/portalatinoamericano/
  • LANGER, Erick D . “Se pavonean en los pueblos”: resistencia rural y modernidad en Chuquisaca (1880-1930) Tradução de Marisabel Villagómez Álvarez Plata. La Paz: Plural, 2023.
  • MARSH, Eric. A Bayesian re-assessment on the earliest radiocarbon dates from Tiwanaku, Bolivia. Radiocarbon, v. 54, n. 2, p. 203-218, 2012. DOI: 10.2458/azu_js_rc.v54i2.15826. Acesso em: 9 jun. 2024
    » https://doi.org/10.2458/azu_js_rc.v54i2.15826
  • 1
    O debate sobre a ocupação humana no território da atual Bolívia é complexo e apresenta dados disformes, muito em virtude de não se ter informações comparativas, notadamente pela falta de estilos de cerâmica, de grupos que anteriormente ocuparam a região. Dados analíticos recentes, baseados em escavações cujo modelo é o bayesiano, indicam que a ocupação do local pelos Tiwanaku tenha se dado por volta de 110 EC (50-110), e que a partir de então expandiu-se rapidamente, tanto no aspecto espacial quanto populacional (Marsh, 2012, p. 213, 214).
  • 2
    A cidade de Chuquisaca, situada no sul da atual Bolívia, a oriente da cordilheira dos Andes, foi fundada em 1538. Apesar de a origem etimológica da palavra Chuquisaca significar “terra do ouro”, o local transformou-se em um dos mais prósperos centros de abastecimento comercial de Potosí, a terra onde se explorava prata (Chacon, 2010, p. 4).
  • 3
    O termo Alto Peru, como referência ao espaço geográfico onde hoje se situa a Bolívia, é tardio, datado de meados do século XIX. Em 1851, José María Dalence (1851, p. 2), considerado um dos pais fundadores da Bolívia, informou, em seu Bosquejo estadístico de Bolivia, que o nome Alto Peru, “aplicado exclusivamente à Bolívia, é novo e muito inapropriado”, pois “nem nas leis espanholas, nem nos seus historiadores, o que hoje é a Bolívia recebe outro nome que não Charcas”.
  • 4
    Erick Langer é bacharel em história pela University of Washington, mestre e doutor em história pela Stanford University. Especialista em história da Bolívia, é autor, coautor e editor de oito livros e mais de cinquenta artigos em periódicos ou capítulos de livros. É membro titular dos EUA na Comissão de História do Instituto Pan-americano de Geografia e História (IPGH), órgão executivo da Organização dos Estados Americanos (OEA). O livro aqui resenhado é sua tese de doutoramento.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Ago 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    01 Jan 2024
  • Aceito
    20 Fev 2024
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