Resumo:
O historiador Pedro Cardim trata de sua virada historiográfica ao dedicar-se à história indígena, aproveitando a experiência com a história do direito e a cultura política do Antigo Regime para compreender a agência indígena na sociedade colonial do Brasil. Também fala sobre o interesse político e historiográfico acerca do tema no Brasil e Portugal.
Palavras-chave: História indígena; Historiografia; Pedro Cardim (1967-)
Abstract:
The historian Pedro Cardim approaches his historiographical turn by dedicating himself to indigenous history, taking advantage the experience with the history of law and the political culture of the Ancien Régime to understand indigenous agency in Brazil’s colonial society. He also talks about the political and historiographical interest on the topic in Brazil and Portugal.
Keywords: Indigenous history; Historiography; Pedro Cardim (1967-)
Formado na Universidade Nova de Lisboa (UNL) da graduação ao doutorado, o historiador Pedro Cardim (1967-) é professor nessa mesma universidade desde 2000. Desde o fim do século XX ele mantém contato com o Brasil e a historiografia brasileira, passando a lecionar história do Brasil (até 1822) na “Nova” em 2015. Autor de vários livros, muitos artigos em revistas e capítulos de textos diversos sobre a cultura política no Antigo Regime ibérico, há anos o historiador dedica-se, no Centro de Humanidades (Cham) da UNL e em sua expressiva trajetória internacional, à historiografia indígena, produzindo eventos, projetos, textos acadêmicos e na mídia. A entrevista foi realizada em 5 de outubro de 2023 na residência de Pedro Cardim, em Lisboa, quando lá estive para lançar o livro resultante de minha tese para professor titular. Foi um prazer conversar com o amigo nas novas circunstâncias de nossos percursos.
Rodrigo Bentes Monteiro: Você é um historiador que trilhou boa parte de sua trajetória acadêmica em torno da cultura político-jurídica, da história intelectual e da sociedade estamental. Como explica essa mudança temática desde há vários anos, e como a experiência de pesquisa anterior pode irrigar o campo da história indígena?
Pedro Cardim: Foi uma mudança ocorrida há algum tempo, construída pela interlocução cada vez mais forte com a historiografia brasileira. Há quase duas décadas trabalho com colegas de diferentes partes do Brasil e escolas historiográficas, e isso deixou uma marca de novos temas, abordagens e perspectivas, com reflexo na maneira de estudar a sociedade colonial do Brasil. Minhas primeiras pesquisas nessa área eram centradas nas instituições e formas de governo que os portugueses levaram para a América. Com o tempo fui abrindo para outras dimensões, com a percepção de que focar apenas nos atores portugueses, suas instituições e cultura política, era algo parcial e insuficiente para entender o fundamental passado ali: uma dominação colonial que impunha uma forma de poder e governo sobre populações indígenas, africanas e de afrodescendentes, em muitos aspectos distinta das formas existentes na Europa no mesmo período. Sem romper com a minha trajetória historiográfica, tento encontrar pontos de interseção e perceber em que medida essa área de trabalho sobre cultura política e formas de governo pode ser posta a serviço de uma compreensão mais profunda do tipo de dominação que os portugueses exerceram sobre os povos ameríndios e depois sobre populações de origem africana, fundamentais para o desenvolvimento do Brasil colonial. Esse é o ângulo mais historiográfico.
Sobre a política e cidadania, os últimos 15 anos foram fundamentais para a afirmação dos movimentos indígenas, da luta pelos direitos humanos, com ações afirmativas de proteção dos direitos das minorias. Eu e muitos outros aqui na Europa, como em toda parte, ficamos ainda mais sensíveis a essas questões, percebendo que nossas pesquisas têm um papel a desempenhar no debate atual em duas áreas. Primeiro, fazer justiça aos setores da sociedade colonial que sentiram a dureza e violência da dominação. Quando falamos hoje de movimentos indígenas, questão indígena ou direitos das minorias negras nas Américas, estamos a falar de legados da dominação portuguesa, espanhola, inglesa, francesa ou neerlandesa. É preciso enfrentar essa questão de forma aberta, justa e equitativa. Depois, perceber que no lugar onde me situo na historiografia portuguesa há muito pouca pesquisa a respeito desses atores da história do Brasil e do domínio exercido pelos portugueses sobre os indígenas. Esse movimento visou responder a um vazio historiográfico. Em Portugal minha atenção se concentra no âmbito da minha universidade e em pessoas com quem dialogo. Procuro criar um espaço de debate sobre as questões e trazer novos atores e ângulos de análise. Ao lado das pesquisas sobre instituições da dominação, busco mostrar como havia outras pessoas e grupos a atuar. A conjugação dessas razões historiográficas e a tomada de consciência política, de cidadania democrática, me impulsionou a alargar o leque de atores. Essa virada não impede que eu continue a estudar elites cortesãs e a dinâmica política em Portugal na Época Moderna. Mas senti que era preciso abrir espaço para olhar outros atores e explorar suas perspectivas. Nessa virada, não inventei nada de novo, segui linhas de pesquisa já desenvolvidas, sobretudo das Américas coloniais e do Brasil em particular.
RBM: Chamou-me a atenção o capítulo de livro que você escreveu recentemente, no qual mobiliza essa expertise sobre cultura política e o aparato jurídico para analisar uma consulta de dom João IV acerca da legitimidade do cativeiro indígena ( Cardim, 2024 ). Percebo aí o historiador valendo-se da sua formação anterior para dialogar com novos temas. Poderia comentar a influência de dois renomados historiadores do direito, António Manuel Hespanha, seu ex-orientador, e Bartolomé Clavero, que se destacou pelo contato com povos indígenas na América hispânica, no seu trabalho? Como isso se relaciona a sua percepção dos povos indígenas no Brasil, nesta fase da sua trajetória?
PC: António Hespanha e Bartolomé Clavero têm uma influência estruturante em várias áreas em que atuo. Nesta, vali-me de seus trabalhos e perspectivas para entender melhor o aparato conceitual e de categorias transportado pelos portugueses para a América, criando ali uma sociedade profundamente violenta, exploratória e desigual. Clavero, Hespanha e outros historiadores do direito foram fundamentais para compreender essas categorias, mas era preciso adicionar uma dimensão de história social. Apesar de essas formas de classificar e hierarquizar terem sido influentes, elas eram utilizadas e manipuladas pelos atores no terreno, não só os descendentes dos portugueses, mas também por indígenas, africanos e afrodescendentes. Ou seja, me interessava ver como essas categorias e modelos de organização ocorriam no cotidiano da governação colonial, sendo transformados e, por vezes, subvertidos, inclusive pelos principais alvos da dominação portuguesa na América, os povos indígenas e depois também os africanos e afrodescendentes. Vários sujeitos dessa história encontraram nesse conjunto de modelos de organização social recursos para denunciar abusos, confundir o colonizador ou resistir à dominação. O contributo de Hespanha, Clavero e outros historiadores europeus ajudou a perceber a dominação dos portugueses na América, para a qual levaram uma cultura jurisdicional que já era muito forte na Península Ibérica. Porém, essa experiência americana fez essa cultura ser transformada. No fundo eu procuro perceber essas categorias de forma mais dinâmica e como recursos para vários atores resistirem ou, até, para consolidarem sua inserção na sociedade colonial. Porque também aconteceu isso, ou seja, ao lado da resistência, denúncia, exploração e violência, houve mulheres e homens indígenas, homens e mulheres africanas e afrodescendentes que se valeram desses modelos e categorias para se inserirem na sociedade colonial ou denunciar abusos. Portanto, também houve uma preocupação de entender esses indígenas, mestiços, africanos e afrodescendentes em toda a sua complexidade. Há momentos em que se apropriaram do vocabulário dessa cultura política, transformando-a. Falamos de pessoas oriundas de sociedades e culturas ameríndias e africanas, riquíssimas e extremamente diversas, que, apesar da devastação provocada pela dominação portuguesa, conseguiram sobreviver e atuar. Portanto, se a dominação colonial foi devastadora em muitos aspectos para esses grupos, eles demonstraram uma resiliência e capacidade para perdurar impressionantes, sobretudo se tivermos em conta que tal ocorreu num contexto violento e duro. A historiografia brasileira tem trabalhos magníficos que mostram como essas sociedades e culturas indígenas, mesmo incorporadas no mundo colonial, se reinventaram, continuaram vivas, transformaram-se, apesar da exploração trazida pelos portugueses.
RBM: Talvez esses dois historiadores, por caminhos diferentes, tenham mostrado a outros estudiosos a importância de se considerarem os direitos não escritos e outras formas de direito e, portanto, seus trabalhos são altamente procedentes em se tratando desses povos.
PC: Sim, são historiadores que chamaram a atenção para muitas das especificidades da cultura político-jurídica daquele tempo. Por exemplo, o fato de a ordem ser imposta não apenas pela lei do rei ou por leis, mas por um conjunto diverso de normativas, como atualmente se diz para evitar o caráter demasiado estreito da palavra lei ou do termo jurídico. Naquele tempo, a ordem decorria de múltiplas fontes de regulação das relações entre as pessoas: costumes, estatutos locais, o direito romano, a lei do rei, a normativa produzida pelas corporações e, ainda, os usos locais, muitas vezes orais e não escritos. No Brasil colonial proliferaram essas formas de organização das relações entre colonos, indígenas e africanos, as quais eram tão fortes e influentes no terreno quanto uma lei do rei. O capítulo que mencionou dá conta disso. Há ali uma preocupação por captar as formas de regulação desenvolvidas no terreno para se governar os povos indígenas. Mas há, também, muitas hesitações a respeito da maneira de aplicar essas categorias. Como é óbvio, estudei essas questões para entender melhor como o poder era exercido e não para negar o papel das autoridades de Lisboa na dominação colonial. Também procurei trazer para esse capítulo o tema da escravidão e outras formas servis impostas aos indígenas, por duas principais razões. Primeiro, porque é um tema em Portugal pouco conhecido, no campo historiográfico e na sociedade portuguesa atual. Os portugueses, no período em que dominaram vastas áreas da América do Sul, praticaram a escravidão e escravizaram indígenas numa escala impressionante. Hoje se sabe melhor a dimensão desse fenômeno no Brasil, graças a pesquisas feitas nos últimos vinte anos. Sem a escravização de indígenas, o Brasil, sobretudo nos primeiros tempos da colonização, não teria prosperado. Esse é um tema que em Portugal praticamente não se conhece. Muitas pessoas continuam a achar que a América do Sul estava mais ou menos despovoada quando os portugueses lá chegaram e alguns historiadores defendem que a ocupação portuguesa foi um processo relativamente pacífico, benigno e sem grandes sobressaltos. Por isso, trazer esse tema para a historiografia portuguesa tem um sentido cívico, pois visa mostrar aos leitores portugueses um tema sobre o qual é preciso debater: o peso da escravidão de indígenas, africanos e afrodescendentes no império português. E, mais em geral, o caráter violento e exploratório da colonização portuguesa.
Por outro lado, ainda em relação a Clavero e Hespanha, sempre me pareceu que ambos foram algo insensíveis em relação a esse tema. Conversando com eles em muitas ocasiões, vi alguma dificuldade, não política, mas de formação intelectual, em reconhecer o peso da escravidão e da organização do trabalho na conformação da sociedade colonial no Brasil e na América espanhola. Minha intenção nesse texto foi contribuir para um certo deslocamento de perspectiva. Os debates nessa junta realizada em 1653, analisados nesse capítulo, evidenciam isso. Há uma citação que me impressionou, quando o próprio rei de Portugal, dom João IV, afirma que não está em causa acabar com a escravidão, mas sim perceber como escravizar indígenas de forma justa e legítima. Ele chega mesmo a declarar que, sem escravizar indígenas, não havia como sustentar o Brasil. Isso vem de um rei importante no imaginário português. O rei que protagonizou a Restauração de 1640, que liderou a primeira fase da guerra contra a monarquia hispânica, era o mesmo a afirmar taxativamente que sem a escravização de indígenas o Brasil não se conservava.
RBM: Você toca nessa última resposta em posicionamentos historiográficos sobre o passado dos povos indígenas na chamada sociedade colonial, o que se relaciona à percepção das sociedades contemporâneas acerca dessas questões, pois livros de história também dialogam com construções do senso comum e percepções gerais. Como os portugueses lidam hoje com a questão indígena? Se puder comentar a mostra de cinema da qual participou em 2019, e também o artigo que escreveu em jornal sobre o episódio da estátua de Antônio Vieira em Lisboa...
PC: Esse foi também um ponto que me motivou a fazer essa virada gradual para incluir em minha pesquisa os atores indígenas e em menor medida os africanos e afrodescendentes. Sentia que o debate em Portugal, em comparação a contextos da Europa e das Américas, era incipiente, lento, muito atrás do que estava a ser discutido noutros lugares. Uma conversa mais serena, racional, justa e plural sobre a atuação de Portugal como potência colonial continua a enfrentar resistências. Também por isso, abri minhas pesquisas - e as minhas aulas - para responder a esse silêncio e ausência de conversa. Senti, além disso, que também poderia intervir com algum conhecimento nos debates que começavam a acontecer. A meu ver esses debates tinham dois principais problemas. Primeiro, eram marcados por posições emocionais de ambas as partes. Ainda hoje os defensores do colonialismo português e do seu caráter benigno parecem ofendidos sempre que ouvem as pessoas que pensam criticamente o passado colonial e imperial. Levantam-se em defesa da identidade portuguesa e, por vezes, acusam de falta de patriotismo os que assim pensam. No outro extremo estão ativistas que veiculam imagens e temas importantes, mas de forma por vezes menos informada sobre os avanços recentes da historiografia. Então, junto com colegas portugueses que trabalham outros contextos, por exemplo Ângela Barreto Xavier - uma das melhores especialistas no estudo da dominação imperial portuguesa no mundo asiático (Xavier, 2008) - ou de outras áreas como os antropólogos Ricardo Roque, Susana de Matos Viegas e outros, começamos a conversar entre nós e com grupos de ativistas. Por vezes, nessas conversas os ativistas demonstravam desconfiança, e com bastante razão, pois estavam habituados a ver os historiadores quase sempre do lado do poder. No Portugal do Estado Novo muitos foram os historiadores que legitimaram o império colonial português, em vez de promoverem uma reflexão crítica. Além disso, havia censura e repressão política no tempo de Salazar. A maioria dos que pensavam diferente teve de se exilar. Porém, com o fim da ditadura, o regime democrático em Portugal, em vez de promover uma reflexão sobre o passado, prolongou o registro comemorativo e de celebração do império colonial.
Assim chegamos ao ponto atual, uma altura em que vários setores da sociedade portuguesa cada vez mais debatem criticamente esses temas. Não se sentem representados na narrativa gloriosa do passado imperial português e nas visões benignas da dominação colonial. Por vezes enfrentam uma forte resistência de vários campos políticos. Da extrema direita, mas também de setores da esquerda que não mostram abertura a uma conversa franca sobre essas questões. Foi aí que quis intervir, não como historiador que traz a verdade, mas convicto de que as discussões ganhariam com mais informação vinda das pesquisas mais recentes.
Ao mesmo tempo, tive a sorte de ser envolvido em iniciativas como a mostra “Ameríndia”, de cinema indígena, na Fundação Calouste Gulbenkian, em 2019.1 A curadoria foi espetacular, conduzida por Ailton Krenak, Rita Natálio e Rodrigo Lacerda Fernandes. Fiz parte da equipe que apoiou a curadoria e nossa intenção foi incluir o Ailton e, por intermédio dele, vários homens e mulheres do mundo indígena no Brasil, para contribuírem na concepção da mostra, que não procurava ser um festival de culturas indígenas definido por brancos aqui na Europa. Desde o início a Rita e o Rodrigo, junto ao Ailton, puseram as coisas noutro plano: uma mostra feita sobre cinema e culturas indígenas em que os povos indígenas teriam uma palavra central a dizer. Coube a eles decidir o que queriam mostrar aqui em Lisboa. Realizar o evento em Lisboa, antiga capital do império, foi uma experiência inesquecível, um aprendizado incrível. Mais de dez cineastas e intelectuais indígenas falaram para o público português, obrigando a audiência a descentrar-se e a se colocar no lugar dos indígenas, ao debater aquelas questões ligadas ao passado colonial. Foi enriquecedor, a nível científico e humano, ver Ailton Krenak e cineastas indígenas no centro da antiga capital do império, obrigando os portugueses a saírem da sua zona de conforto. O Ailton teve parte fundamental nisso, ao lançar o debate. Foi um grande sucesso de público, com entusiasmo, empatia e emoção. Houve um momento em que perguntaram ao Ailton como ele se posicionava ante o movimento decolonial e ele disse mais ou menos assim: - “Eu concordo e estou pronto para ajudar”. Mas então voltou-se para o público português e disse: - “Vocês já são crescidos. Está na hora de fazerem esse movimento por vocês. Não precisam que venha um indígena do Brasil a dizer, pensem sobre esses temas doutra maneira. Está na hora de vocês fazerem”. Foi muito marcante essa experiência, com ramificações.
Por sua vez, o debate sobre o monumento a Antônio Vieira (construído em Lisboa em 2017-2018) e, sobretudo, o modo como os indígenas foram representados nesse monumento, foi um bom momento para dialogar com o grande público fora da academia, com vários artigos publicados em jornais. Eu assinei dois deles (Cardim, 2020; 2021), um deles no semanário Expresso. Já fui ameaçado por causa desses textos que tenho publicado. Na universidade, alguns colegas sentem desconforto quando veem historiadores e antropólogos tomarem uma posição política pública em relação a esses temas. Ou seja, a resistência também ocorre no mundo acadêmico português. Mas as coisas evoluem e penso que na direção certa, apesar das inércias que subsistem.
RBM: Ótimo, Pedro. Podemos agora comentar sobre sua percepção de historiador de Portugal, mas com muita interação com historiadores e estudiosos dessas questões no Brasil. Como você percebe as relações entre memória e história dos povos indígenas no Brasil? Por trás de tudo há a questão também da lei escrita. Estamos ainda no momento recente de revisão do marco temporal estabelecido na Constituição de 1988, e nas universidades brasileiras se coloca a questão de cadeiras específicas para história indígena. Há muitas conquistas no campo da história da África, e também nas pautas afirmativas. Como você compreende a relação entre história e memória sobre os povos indígenas, e seus direitos políticos contemporâneos na sociedade brasileira?
PC: Eu sou um observador do que se passa no Brasil; vou acompanhando e fazendo a ligação com a realidade portuguesa e esses debates que acabei de referir. No Brasil é um movimento que me parece importantíssimo, que se desenvolve em várias áreas. Por exemplo, entre os chamados intelectuais indígenas no Brasil há um grupo cada vez maior de homens e mulheres a intervir publicamente. Há uma clara afirmação dessas vozes indígenas na política atual e de luta por seus direitos. Essas figuras produzem textos, fazem intervenções na política, participam no Congresso brasileiro. A maior presença de deputados indígenas é inédita e muito importante, e foi comovente ver a chegada desse grupo de deputados ao Congresso. Em minha interlocução com colegas e amigos brasileiros, tenho a impressão de que hoje há uma sensibilidade maior às questões indígenas. Aqui em Lisboa os indígenas são uma realidade distante. Porém, a importância das questões indígenas na sociedade brasileira atual começa a aproximar-se, felizmente, do peso que desde há anos as questões ligadas à população africana e afrodescendente têm no Brasil, como consequência das políticas de afirmação. Acho que se está também fazendo justiça aos povos indígenas, o outro grupo que foi o principal alvo da dominação colonial portuguesa.
Sobre a pesquisa feita nas universidades, têm surgido vários estudos sobre a atuação desses atores indígenas ao longo do período colonial, e também no Brasil independente. Refiro-me antes de mais às pesquisas que retratam as múltiplas formas de resistência desenvolvidas pelos povos indígenas ao longo do período colonial; porém, e para além disso, também conhecemos melhor trajetórias individuais e coletivas de indígenas que se inseriram na sociedade colonial e foram adaptando-se na medida do possível àquele ambiente de relações de poder profundamente assimétricas, por vezes fazendo até uso dos recursos do colonizador. Portanto, essa não é uma historiografia simplista ou maniqueísta que retrata o indígena meramente como uma vítima indefesa, porque se o fizesse, estaria a menorizar esses atores indígenas e a perpetuar um certo olhar colonial. É uma abordagem que trata as mulheres e homens indígenas, mestiços e mestiças, em sua complexidade, reconstituindo as suas escolhas, os seus interesses e as suas motivações. Os trabalhos de Maria Regina Celestino de Almeida (2003; 2010), entre outros, são lapidares a esse respeito, cristalinos sobre as linhas de agência dessas mulheres e homens indígenas, mestiças e mestiços que interagiam com o colonizador. Por último, há o movimento de trazer para a universidade intelectuais indígenas, professoras e professores de conhecimentos indígenas, para intervir no mundo académico de uma forma sistemática e não apenas superficial ou folclórica. No Brasil, como aconteceu noutros pontos da América Latina, há um esforço sério de encontrar uma forma de criar espaço nas universidades para os saberes indígenas. Uma educação intercultural, fulcral para trazer esses saberes para o nosso conhecimento.
Portugal está ainda a dar os primeiros passos nessa área, mas o centro de pesquisa onde trabalho, o Cham, na UNL, acabou de lançar um projeto ambicioso financiado pela União Europeia e dirigido por Pablo Ibánez-Bonillo, que visa trazer para a Europa, durante os próximos anos, intelectuais indígenas de diferentes pontos da América Latina. O Brasil está bem representado nesse projeto. A finalidade é que esses intelectuais deem cursos sobre os saberes indígenas para nós, professores e alunos da Europa, num ambiente de respeito pelas diferenças culturais e epistêmicas entre esses mundos. No fundo, trata-se de aplicar em Portugal algo já praticado no Brasil, onde desde há vários anos já se fala em educação intercultural, com experiências de diálogo efetivo, sério e justo entre diferentes tradições de pensamento.
Por último, queria dizer algo sobre o modo como o passado colonial é utilizado nos atuais debates ligados à demarcação das terras indígenas. Tenho acompanhado esse debate e vejo que o passado é utilizado pelas várias partes em confronto, até pelos que mais atacam os direitos dos indígenas à terra. Muitas vezes os episódios do passado colonial são usados para fundamentar posições, o que só pode ser combatido pela denúncia do simplismo e manipulação de acontecimentos, mas também com uma intervenção pública de historiadores especializados nesses temas. Felizmente, temos cada vez mais historiadores indígenas com pesquisas sobre o assunto. Eles sinalizam que os opositores dos direitos indígenas se valem do passado colonial de um modo frequentemente simplista, maniqueísta e manipulatório. Então, as armas que temos - falando como professor universitário - são as de uma pesquisa que enfrente essas questões de uma forma séria, corajosa e justa. Quando falo “justiça” trato de uma pesquisa que faça jus à diversidade de atores e pontos de vista, não apenas na perspectiva do colonizador ou historiador. Os atores indígenas, africanos e afrodescendentes foram negligenciados durante demasiado tempo e agora felizmente conseguem encontrar espaço na pesquisa historiográfica, e são hoje muito mais visíveis, em sua complexidade e dignidade, como sujeitos do passado colonial.
RBM: Talvez seja até um pouco redundante, pois você se colocou o tempo inteiro como historiador nesta entrevista, mas a última questão relaciona-se também com a primeira: qual seria o seu perfil de historiador, ao lidar com questões pertinentes à história indígena? Como poderia se autodefinir, de maneira sintética, nesse mergulho na história indígena e na inserção desta no campo maior de relações historiográficas?
PC: Sim, eu tenho uma posição, todos temos. A minha é a de um homem branco que vem da Europa, de um país com um passado colonial pesado, com o qual tem dificuldade de lidar claramente. Tenho um passado familiar ligado à administração colonial do império português do século XX. Isso pesa na maneira como abordo esses temas. Procuro ter consciência disso não só quando lido com as fontes, mas também quando tenho possibilidade de conversar com figuras do atual universo indígena brasileiro. Sinto que minha condição repercute na maneira como estudo esses temas e como ainda hoje me posiciono. O mesmo acontece na interlocução com estudantes negros ou afrodescendentes, e colegas negros do Brasil com os quais tenho uma interlocução excelente e um aprendizado enorme. Portanto, sinto os efeitos da posição de alguém que vem de um lugar do antigo colonizador, um país com essa carga que é preciso ter em conta, sobretudo nos diálogos com colegas ligados aos dois grupos referidos, importantes na atual sociedade brasileira. Na interlocução com historiadores brasileiros também minha posição se faz sentir. Em Portugal as pesquisas optam - embora não exclusivamente - por se centrarem nos atores portugueses que construíram e mantiveram o império, enquanto na historiografia brasileira está muito mais presente a perspectiva de como o império português foi contestado e como se resistiu à dominação colonial. Não é à toa que existe esse contraste, ele é produto não só de diferenças historiográficas, mas também do modo diferente como indivíduos de origem europeia e outros de origem americana veem esses fenômenos. Aí reside a possibilidade de estabelecer um diálogo. O projeto “Resistance”, dirigido por Mafalda Soares da Cunha (Universidade de Évora) e do qual fiz parte, deu um contributo muito importante para reverter essa situação.2
Sobre a minha posição política, não intervenho com frequência na mídia, tampouco nas redes sociais. Por vezes escrevo para jornais sobre debates que estão a ocorrer, mas apenas quando sinto que posso ser útil e agregar alguma informação. Quando publico artigos em jornais, minha intenção é dizer que acho que falta alguma informação relevante às discussões que ocorrem. Claro que não me limito a fornecer informação, normalmente vinda de uma pesquisa recente, às vezes desconhecida do público não acadêmico. Também me posiciono de forma explícita, a favor de uma conversa mais crítica, plural e justa sobre o tema. É impressionante ver como o meio historiográfico português durante tanto tempo se eximiu de discutir essas questões e perspectivas. Como ficamos em silêncio durante tanto tempo sobre esses temas? É mesmo assim, pois quando falo sobre esses episódios com colegas brasileiros, eles dizem que no Brasil se discute isso há vinte, trinta anos. Acaba sendo interessante lidar com essa memória histórica, que tem um papel enorme em Portugal. Pensá-la criticamente é um desafio, estamos nele.
RBM: Pedro, muito obrigado pela entrevista. Como conversamos, é significativo que nesta fase de nossas trajetórias estejamos nos reinventando. Isso significa ampliar interesses de pesquisa e capacidades de análise também. Como bons historiadores que tentamos ser, procuramos ultrapassar a perspectiva do julgamento fácil, mostrando os diferentes pontos de vista. Não resta dúvida que os povos originários do Brasil possuem os seus.
Referências
- ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Metamorfoses indígenas: identidade e cultura nas aldeias coloniais do Rio de Janeiro Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2003.
- ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Os índios na história do Brasil Rio de Janeiro: Editora FGV, 2010.
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CARDIM, Pedro. Para uma visão mais informada e plural do padre António Vieira. Expresso, Lisboa, 25 jun. 2020. Disponível em: Disponível em: https://expresso.pt/opiniao/2020-06-25-Para-uma-visao-mais-informada-e-plural-do-padre-Antonio-Vieira Acesso em: 26 ago. 2024.
» https://expresso.pt/opiniao/2020-06-25-Para-uma-visao-mais-informada-e-plural-do-padre-Antonio-Vieira -
CARDIM, Pedro. O monumento ao jesuíta António Vieira, em Lisboa, e o debate sobre a “conquista” e a colonização portuguesas das terras americanas. Língua-Lugar: Literatura, História, Estudos Culturais, Genève, v. 2, n. 3, p. 66-82, 2021. Disponível em: Disponível em: https://oap.unige.ch/journals/lingua-lugar/article/view/524. Acesso em:4 set. 2024.
» https://oap.unige.ch/journals/lingua-lugar/article/view/524. - CARDIM, Pedro. “La forma y los casos en que se debe cautivar a los indios en nuestras conquistas”: dominación colonial, cultura jurisdiccional y resistencia en la América Portuguesa, c. 1550-1655. In: José Manuel Santos Pérez (org.). Intercambios culturales y “castellanización” en Brasil durante la Unión de Coronas, 1580-1640 Salamanca: Ediciones de la Universidad de Salamanca, 2024. p. 21-80.
- DOMINGUES, Ângela. Quando os índios eram vassalos: colonização e relações de poder no Norte do Brasil na segunda metade do século XVIII Lisboa: CNCDP, 2000.
- XAVIER, Ângela Barreto. A invenção de Goa: poder imperial e conversões culturais nos séculos XVI e XVII Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2008.
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1
Mostra “Ameríndia”. Disponível em: https://www.youtube.com/playlist?list=PLegtL4W3lr3MwCS23hFWcrz-d8cx9ULw5 Acesso em: 26 ago. 2024.
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2
Projeto “Resistance: rebellion and resistance in the Iberian Empires, 16th-19th centuries”, dirigido por Mafalda Soares da Cunha (U. Europeia, n. 778076-H2020-MSCA-RISE-2017). Disponível em: https://www.resistance.uevora.pt/ Acesso em: 4 set. 2024.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
04 Nov 2024 -
Data do Fascículo
2024
Histórico
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Recebido
25 Out 2023 -
Aceito
30 Nov 2023