Resumos
Analisa-se o processo de transformação do padrão epidemiológico de uma população amazônica constituída para trabalhar no desenvolvimento da Mineração Rio do Norte S.A. (MRN), no município de Oriximiná (PA), na localidade de Porto Trombetas. A determinação do processo saúde-doença se desenvolveu segundo as condições particulares de reprodução social do empreendimento, bastante distintas em relação às das populações vinculadas ao desenvolvimento socioeconômico tradicional da região. As categorias particulares mais diretamente envolvidas foram a organização social do espaço e a política social: da MRN, para a população de Porto Trombetas e do país, para as demais categorias da população.
Padrão epidemiológico; Ambiente; Desenvolvimento
This article analyzes the transformation of the epidemiological profile in an Amazonian population group consisting of workers recruited by the mining company Mineração Rio do Norte S.A. (MRN) in Porto Trombetas in the municipality of Oriximiná, Pará State, Brazil. Determination of the health/disease process developed according to particular conditions of social reproduction in the mining project, quite different from those of the population groups associated with the region’s traditional socioeconomic development. The categories most directly involved were the social organization of space and social policy vis-à-vis MRN, the Porto Trombetas population and the country, and the other population categories.
Epidemiological patterns; Environment; Development
TEMAS LIVRES FREE THEMES
Saúde, ambiente e desenvolvimento econômico na Amazônia
Health, environment, and economic development in the Amazon
Genésio Vicentin; Carlos Gomes Minayo
Centro de Estudos da Saúde do Trabalhador e Ecologia Humana, Cesteh/Ensp/Fiocruz. Av. Leopoldo Bulhões 1480, Manguinhos, 21041-210, Rio de Janeiro RJ. vicentin@ensp.fiocruz.br
RESUMO
Analisa-se o processo de transformação do padrão epidemiológico de uma população amazônica constituída para trabalhar no desenvolvimento da Mineração Rio do Norte S.A. (MRN), no município de Oriximiná (PA), na localidade de Porto Trombetas. A determinação do processo saúde-doença se desenvolveu segundo as condições particulares de reprodução social do empreendimento, bastante distintas em relação às das populações vinculadas ao desenvolvimento socioeconômico tradicional da região. As categorias particulares mais diretamente envolvidas foram a organização social do espaço e a política social: da MRN, para a população de Porto Trombetas e do país, para as demais categorias da população.
Palavras-chave: Padrão epidemiológico, Ambiente, Desenvolvimento
ABSTRACT
This article analyzes the transformation of the epidemiological profile in an Amazonian population group consisting of workers recruited by the mining company Mineração Rio do Norte S.A. (MRN) in Porto Trombetas in the municipality of Oriximiná, Pará State, Brazil. Determination of the health/disease process developed according to particular conditions of social reproduction in the mining project, quite different from those of the population groups associated with the regions traditional socioeconomic development. The categories most directly involved were the social organization of space and social policy vis-à-vis MRN, the Porto Trombetas population and the country, and the other population categories.
Key words: Epidemiological patterns, Environment, Development
Introdução
As décadas de 1970 e 1980 formam um período em que foi especialmente expressiva a movimentação e a expansão da população da Amazônia. Uma das formas de sustentação dessa mobilização social foi a implantação de grandes projetos de desenvolvimento; em contraste com a década seguinte, quando esta forma de ação econômica se tornou praticamente nula naquela região.
A outra forma de mobilidade social também foi determinada por ação econômica, todavia com características muito distintas e sem se interromper ao longo da década de 1990. Constituiu-se de movimentos de populações vindas principalmente das regiões Sul e Leste que, deslocadas do sistema produtivo agrário pela sua mecanização e modernização, buscavam novas terras para se instalar resultando na expansão da fronteira agrícola. Outro expressivo contingente era composto por massas de populações sem recursos que acorriam aos garimpos em busca de metais e minerais preciosos. Em outras palavras, pode-se dizer que a ocupação da Amazônia naquelas duas décadas desenvolveu-se em duas vertentes distintas, ambas voltadas para a exploração de suas potencialidades econômicas. Mas, ainda que ambas tenham em sua origem a mesma força propulsora o modelo socioeconômico produzido pelo movimento de expansão da economia capitalista internacional (em estreita ligação com segmentos internos do país) , seus efeitos sociais foram diferenciados.
A primeira daquelas vertentes da mobilidade social dizia respeito, naquela conjuntura, a populações humanas relacionadas aos processos de exploração econômica da Amazônia promovidos pelos segmentos de ponta da economia capitalista internacional. Tal foi o caso de mineradoras de bauxita, ferro, cassiterita etc.; da construção de hidrelétricas como as de Tucuruí e Samuel, estreitamente vinculadas ao fornecimento de energia para os processos mineradores e industriais do alumínio e ferro; e a instalação das próprias indústrias de transformação como a Albrás, Alunorte, o Projeto Jari (produtor de celulose) etc. (Brasil, 1964, 1968 e 1974; Sodré, 1980; Ibase, 1983; Marques, 1983; Lastres, 1988).
A segunda vertente, por seu turno, correspondia à mobilização de populações vinculadas a desdobramentos internos da economia, parecendo desenvolver-se em processos sociais e epidemiológicos paralelos, independentes quanto à outra vertente (Marques, 1985 e 1986; Possas, 1989). Esta aparente dicotomia do desenvolvimento socioeconômico na Amazônia também pode ser identificada em outras regiões do Brasil, sendo motivo de debates em que se fala freqüentemente na existência de múltiplos "Brasis" (Minayo, 1995). Sua expressão no terreno da saúde revela-se como multiplicidade do perfil epidemiológico (Possas, 1989).
Tais diferenças, e o fato de no final da década de 1980 ter se esgotado a vertente dos grandes projetos de desenvolvimento (Sodré, 1980; Ibase, 1983; Cardoso de Mello, 1984; Souza, 1995), fazem das décadas de 1970 e 1980 um período particularmente favorável aos estudos sobre as características assumidas pelo processo epidemiológico face ao desenvolvimento daqueles distintos modelos de formações sociais.
O estudo que propiciou esta publicação foi realizado sobre o desenvolvimento epidemiológico da população de uma cidade instalada no interior da Amazônia por um projeto de desenvolvimento denominado Mineração Rio do Norte S/A, localizado no município de Oriximiná (PA), à margem direita do rio Trombetas, afluente da calha Norte do rio Amazonas. Nesse município, na localidade de Porto Trombetas (situada a 80km da sede municipal, 210 quilômetros à jusante de Santarém, principal e maior cidade daquela região), foi construída uma cidade moderna e dotada de infra-estrutura como serviços de saúde, incluindo um moderno e bem equipado hospital; rede de água e esgotos; escola; serviços destinados ao lazer: ginásio de esportes, clube social e clube de campo, cinema etc.; supermercado abastecido em moldes dos de grandes centros urbanos; aeroporto equipado para receber jatos de grande porte etc. Seu sistema de saúde, além dos serviços locais, se valia de serviços conveniados em Belém; Rio de Janeiro, e São Paulo, complementando as necessidades de atenção de maior complexidade.
Essa localidade, concluídas as obras de implantação do empreendimento, constituiu uma população de 5.700 habitantes, incluindo-se os funcionários e dependentes da Mineração Rio do Norte (MRN), das empresas prestadoras de serviços (contratadas) e os moradores do entorno (ME). Essa população se expandiu cerca de 30%, chegando aos 7.325 habitantes em 1988, ano que encerra o período estudado. Mas a população do entorno cresceu mais, quase dobrando até em 1988 (Tabela 1), apesar dos esforços da MRN em conter sua expansão.
Em contraste com as condições existentes na localidade de Porto Trombetas, na sede municipal com cerca de 30 mil habitantes, a maioria da população não era atendida por redes de água e esgoto, seus serviços de saúde eram: uma Unidade Mista, pertencente à FSESP (antecessora da Funasa), dotada de 30 leitos e de laboratório para as rotinas de sangue e urina, mas sem contar com aparelho de Raios X, e outro serviço, tipo Centro de Saúde, com funcionamento assistemático como unidade avançada da Universidade Federal Fluminense, para treinamento de seus alunos. O estudo das transformações no padrão epidemiológico da população de Porto Trombetas representa a vertente do modelo de desenvolvimento socioeconômico ligada aos interesses de ponta do modelo socioeconômico que continua em vigência no país e, também, ainda predominante no nível internacional. Mas, ao referenciá-la ao desenvolvimento epidemiológico da população da sede municipal e outros padrões nacionais, expõe a outra vertente de uma realidade social e epidemiológica díspar. Cada uma delas, que se supõe representar duas vertentes complementares do processo de desenvolvimento implementado pelo modelo socioeconômico vigente no país, tem suas principais características socioeconômicas operando como os determinantes de seus respectivos padrões epidemiológicos.
Assim, aponta-se para a possibilidade de este estudo contribuir para o debate sanitário, especialmente quanto aos determinantes gerais e particulares socioeconômicos e ambientais, da saúde coletiva e saúde pública no país. Pois, como se afirmou, os determinantes das transformações havidas no processo saúde doença continuam se submetendo à mesma lógica do capital internacional.
História sucinta do desenvolvimento do empreendimento e do município de Oriximiná
Os primeiros mapeamentos de bauxita (minério do alumínio) na Amazônia se deram a partir da descoberta das reservas de Trombetas, localizadas no Pará pela empresa canadense Alcan, no ano de 1967. Mas, foi mediante os estudos da empresa estatal brasileira Rio Doce Geologia e Mineração S/A (Docegeo), que as reservas do país passaram para 4,4 bilhões de toneladas, em 1983 (Santos, 1986). Identificadas, foram incorporadas como patrimônio por: empresas estatais nacionais 1,8 bilhões, empresas privadas nacionais 0,8 bilhões e, empresas privadas estrangeiras 1,8 bilhões (Machado, 1985).
A tendência ao esgotamento desse minério nos países capitalistas centrais e as descobertas das reservas em países periféricos, principalmente Brasil e Austrália, transferiram o foco do interesse de exploração da bauxita para estes países. Esse movimento foi assimilado pelos monopólios da exploração mineral como a transferência de algumas etapas da produção para os países onde se localizaram as reservas (Marques, 1983; Ibase, 1983).
Ao Brasil, onde já se dominavam todas as etapas de produção do alumínio desde a década de 1950, interessava a captação de capital para a implementação de todas as etapas (da produção e da transformação) já que a capacidade instalada era inferior à necessária para a auto-suficiência na demanda por este metal (Machado, 1985). Desta forma, a partir da política governamental expressa nos sucessivos planos de desenvolvimento (Brasil, 1964, 1968 e 1974), a auto-suficiência é proposta e busca-se obtê-la mediante a composição de capitais nacionais (principalmente da estatal Cia. Vale do Rio Doce CVRD) e estrangeiros.
No caso da MRN, a principal parceria se desenvolveu com a Alcan, que detinha a maior parte das reservas de Porto Trombetas, após a CVRD. O governo brasileiro, que já participava com 20% do capital no desenvolvimento do projeto original, capitaneado pela Alcan, diante de sua paralisação em 1972 por aquela empresa, ampliou sua participação e acelerou sua implementação. Tornou-se detentor de 49% do capital, compondo uma joint venture à qual se agregaram varias empresas multinacionais e nacionais. Sua implantação foi concluída, entrando em operação em 1979, mediante a realização do investimento de 390 milhões de dólares (Machado, 1985).
Marco teórico
Para o modelo de análise proposto, é relevante discutir a questão da definição das categorias gerais que presidem a formação de distintas configurações do perfil epidemiológico de populações participantes de processos de produção, também de características distintas. No caso estudado, tal processo se desenvolveu sob a lógica da divisão internacional do trabalho, do modo de produção capitalista, internacionalizado e hegemonizado a partir dos países capitalistas centrais.
Assim, a categoria analítica processo de produção é assumida neste trabalho no sentido que Marx (1975) denominou de "processo de produção de mercadorias", tomando-o, portanto, dentro de um modo de produção concreto (...) quando unidade de processo de trabalho e do processo de produzir mais-valia, (...) forma capitalista da produção de mercadorias... (Marx, 1975); sendo a categoria que expressa o nível máximo de determinação.
Sua concretização se dá através de relações técnicas de trabalho ou processo de trabalho técnico, mas como definiram Laurell & Noriega (1989) trilhando caminho inverso (...) em que pese o caráter técnico do processo de trabalho, a chave para entender como se constitui não reside na lógica tecnológica abstrata, mas na lógica concreta do processo de valorização, ou seja, na estratégia empregada pelo capital, num momento histórico específico, para extrair mais-valia.
Portanto, numa sociedade determinada que constitui um processo de produção concreto, o resultado da relação entre os componentes da atividade produtiva e da reprodução da força de trabalho (materialização da relação produção versus consumo) compõe um perfil de reprodução social no qual se desenvolve um processo saúde-doença, expresso por determinada morbidade particular, que se materializa historicamente na imersão do biopsiquismo humano na esfera social (Laurell & Noriega, 1989): resultado objetivo, portanto, da relação do social com o biológico. A unidade do desenvolvimento desses, quando referenciada ao desenvolvimento do processo saúde-doença, configura um padrão expresso num perfil epidemiológico, ou perfil de saúde, como a expressão fenomenológica daquele processo. Dessa forma, a história do padrão epidemiológico de uma dada população é a própria história de sua reprodução social e de seus componentes essenciais de produção: o trabalho concreto e a reprodução da força de trabalho.
Assim sendo, o estudo do padrão epidemiológico de uma população é, em um determinado nível de abstração, a própria abordagem histórica da lógica e do modo pelo qual tal sociedade, ou parte dela, constitui e organiza aqueles dois componentes essenciais de sua reprodução social. Tal lógica e o modo como organizam os elementos concretos da reprodução social, e através desta realizam a mediação entre o nível geral (político-econômico) e o nível particular, constituem efetivamente os componentes imediatos que determinam o processo saúde-doença, no caso particular estudado: a política social e a organização social do espaço (Silva, 1985).
Processo Saúde-Doença X Perfil Epidemiológico Reconhecido o caráter histórico do processo saúde-doença, no nível de sua essência, analisa-se a seguir a sua correspondência no plano externo, fenomenológico: o perfil epidemiológico, que por conseqüência de sua essência também é histórico. No movimento de um processo de produção concreto, através da relação produção versus consumo que se estabelece, realiza-se o que Breilh & Granda (1985) denominam "reprodução social" em que se incluem os componentes de trabalho concreto (atividade produtiva) e de reprodução da força de trabalho.
Sendo o processo saúde-doença intrinsecamente associado ao modo como se desenvolve a relação produção versus consumo, fazendo parte da mesma, assumirá diferentes configurações (perfil epidemiológico) em processos particulares distintos. Quanto ao modo de organização do espaço, Silva (1985), relacionando-o ao processo saúde-doença afirma: o homem em sua atividade econômica organiza o espaço a sua volta de maneira a melhor desempenhar essas atividades econômicas. Desse processo de organização resulta um sistema de relações que caracteriza o espaço. Este sistema de relações pode ou não ser adequado à ocorrência de determinadas doenças; em sendo, existem graus de adequação.
Dessas inter-relações, através das quais capital e trabalho buscam a realização de seus interesses, resultam a organização do espaço social e a política social atendendo-os de formas determinadas, podendo daí resultar distintas caracterizações da relação produção versus consumo, para qualquer de seus componentes. Embora isto possa ser determinado tanto nas relações intercapitalistas, como entre as das forças do capital e do trabalho, é principalmente das condições desta última que se molda a reprodução social.
Assim, compreendidas as formulações abstratas das categorias determinantes do processo saúde-doença, pode-se desenvolver os conceitos de política social e de organização social do espaço avançadas, que aqui são relacionados a um processo de produção determinado, particular, como o da cidade da MRN (Porto Trombetas). Tal definição diz respeito ao atendimento de condições de vida (na relação produção versus consumo), nos planos da organização do espaço e do acesso a bens compatíveis com o desenvolvimento do processo saúde-doença em bases diferenciadas e mais favoráveis, se comparadas aos parâmetros de outras populações da região Amazônica, sob o modo de produção capitalista no período em foco. Isto ocorre, não obstante se desenvolverem como componentes complementares e interdependentes dentro do mesmo modelo socioeconômico vigente, portanto, em obediência ao mesmo processo de determinação, em termos gerais e históricos. Nos casos particulares, como no de Porto Trombetas, constituía a estratégia de produção e de realização de lucros maximizados de uma empresa de ponta do modelo socioeconômico; no das demais populações, obedecendo ao processo tradicional de desenvolvimento da região.
As categorias epidemiológicas particulares para o estudo da MRN são apresentadas adiante: a política social é representada principalmente pela formação da população, por nível salarial e estabilidade no emprego; a organização do espaço social e do entorno, pelas condições de moradia e saneamento; condições de abastecimento, lazer e acesso à educação e cultura; integração social; a organização do trabalho técnico, que é representada pelo desenvolvimento da qualificação do trabalho e representada pelas categorias: qualificação da mão-de-obra e prevenção de acidentes;a organização dos serviços e política de saúde:representados pela integridade da assistência ofertada, cobertura e acesso aos serviços (índice de utilização) e, o padrão de morbidade, representado pelocontrole da malária (Índice Parasitário Anual) e outras doenças infecciosas e parasitárias, acidentes de trabalho, controle de doenças crônico-degenerativas, processos mórbidos relacionados ao estresse e à baixa integração social etc.
Caracterização dos determinantes no desenvolvimento do processo particular de saúde-doença na população de Porto Trombetas
A formação da população de Porto Trombetas antecede à MRN. Seu estudo histórico foi realizado por pesquisadores do Museu Paraense Emílio Goeldi, que identificaram na região a presença de remanescentes de quilombos e populações indígenas de vida nômade (Costa et al., 1986). A população indígena parece não ter influenciado a formação da população local. Os primeiros, entretanto, praticando uma economia extrativista centrada na coleta de castanha, pesca e agricultura, mas identificando-se também uma pouco desenvolvida pecuária; levando também uma vida seminômade, tenderam a fixar-se nas proximidades da vila da MRN, ampliando as pequenas comunidades já existentes. Com o desenvolvimento das obras e a operação do empreendimento, parte dessas populações veio a se ligar diretamente ao processo de trabalho da MRN; vindo a constituir a nova classe operária que se formou em Porto Trombetas, juntamente com migrantes provenientes da sede municipal e de outros municípios da região.
Política social
Um período que se estende de 1971 até 1979, com interrupção entre 1972 e 1977, foi caracterizado pelas obras de implantação do empreendimento, e a população se desenvolveu com as características que assume nas grandes obras realizadas em lugares remotos: composta totalmente de trabalhadores migrados de outras regiões, quase que exclusivamente do sexo masculino e de faixas etárias economicamente ativas; variando sua quantidade segundo a fase e a amplitude das obras realizadas. Apurou-se que no primeiro período seu número oscilou entre 400 e 1.000 trabalhadores, quando foi construído um acampamento e aberto o trajeto de implantação da ferrovia, que ligaria o porto fluvial ao platô de Saracá, onde se encontram as reservas de bauxita.
Entre 1977 e 1979, foram concluídos a ferrovia, o porto, a infra-estrutura da mina, a área industrial, o aeroporto, a vila residencial e os serviços urbanos básicos. Segundo Machado (1985), a população chegou a compor-se de 5.400 habitantes, no pico das obras, e era constituída majoritariamente por trabalhadores ligados às empresas de construção civil, responsáveis pelas obras, as quais devem ter recrutado parte de sua classe operária na região.
A população ligada diretamente à MRN ainda era pequena. Mas, a partir de 1979, com a implantação da infra-estrutura em Porto Trombetas e a necessidade emergencial de iniciar a produção para o atendimento de exigências contratuais de fornecimento de bauxita, principalmente internacionais, constituiu-se uma população inicial ligada à MRN, composta em grande parte pelos próprios trabalhadores das empresas de construção civil que haviam construído o empreendimento, sendo este um mecanismo indireto de absorção da população originária da região. Entretanto, o início da operação ainda sem que estivesse totalmente implantada a vila residencial formou uma população distorcida quanto à sua composição etária e por sexo. Impossibilitados de levar seus familiares para o local, muitos permaneciam residindo em alojamentos de solteiros, o que levava a uma elevada rotatividade da mão-de-obra.
Portanto, a política da empresa para formar sua população trabalhadora e sua classe operária ainda era emergencial. Nos quatro primeiros anos de operação, a MRN atuou em regime de produção intensiva, buscando sua recomposição econômica e consolidação no mercado internacional. Mas, mesmo não aplicando uma política social ampla, algumas condições de vida em Porto Trombetas são bastante favoráveis, sendo o nível dos salários o atrativo inicial principal se comparado com os padrões vigentes no país (Tabela 2).
Durante o curto período de 1979-1983, além do nível dos salários, a MRN ampliou os gastos e o número de trabalhadores treinados, tendo investido 3,9 e 2,5 vezes mais em 1982 e 1983 do que em 1980. Assim, para recuperar seus investimentos e ampliar seus lucros precisava reduzir a rotatividade da mão-de-obra e estabilizar a população. À medida que construía e ofertava mais moradias também subsidiava custos como o da alimentação e da hospedagem, cujo valor em conjunto era inferior a três dólares mensais, no caso dos alojamentos. Como resultado, a rotatividade reduz-se progressivamente, de 49,9% em 1980 para 14,6% em 1983, tendo contribuído também para esse resultado a crescente concentração de mão-de-obra da região, representando mais de 80% em 1983. O conjunto da população torna-se mais estável e bem distribuído por idade e sexo. Naquele ano, as proporções por sexo já eram de 48,8% de mulheres e 51,2% de homens e, por faixa etária, apresentava a seguinte distribuição: 0-5 anos=22,5%; 6-15 anos=22,4%; 16-50 anos=52,8% e 50 anos e + = 2,3%. Portanto, com característica de população mais estável e bem distribuída por idade e sexo.
Entretanto, neste curto período, pode-se dizer que apesar de já se haver constituído uma população própria, sobre a qual fazia valer sua autoridade e disciplina, esta ainda conservava muito das características da população anterior. Embora já apresentasse um padrão similar aos demais da região quanto às variáveis biológicas (distribuição por sexo, faixa etária etc.), ainda não se havia constituído socialmente como uma população essencialmente operária e industrial que, mesmo complementada por outros trabalhadores, seria formada e disciplinada segundo uma política própria da empresa. Por essa razão, este se caracteriza como um período específico, denominado de período de operação. Mas, tendo garantido sua consolidação nos mercados internacional e nacional, até o ano de 1983, doravante a MRN se propõe novas metas no plano econômico: "maximização dos lucros e aumento da eficiência operacional" (Nunes, 1984). A partir de então, como a direção da empresa definiu, a proposta de maximização dos seus lucros pede a implementação de uma estratégia baseada no aumento de sua eficiência operacional. Esta seria obtida pela modernização de seu processo técnico de trabalho, agora possível contando em seus quadros com mão-de-obra mais qualificada, tornando cada vez mais essencial sustentar baixa a sua rotatividade; para tal era necessário conquistar também sua adesão à estratégia da empresa com novos investimentos sociais e sem declinar daqueles já em vigência.
Tais condições foram obtidas com múltiplos investimentos, para a melhoria das condições de vida e a oferta de serviços que aumentavam os atrativos para a permanência em Porto Trombetas, tanto para os trabalhadores como para seus dependentes. Caracterizou-se então uma fase aqui denominada de modernização da produção, presumindo-se que sob as novas condições tenham ocorrido novas mudanças no padrão de morbidade da mesma forma que no curto período anterior.
O número de casas unifamiliares destinadas aos trabalhadores qualificados passou de 223 para 454, em 1984, e a vila foi inteiramente urbanizada com jardinamento, arborização, complementação da pavimentação asfáltica, reformulação da rede de esgotos e iluminação; o Colégio Pitágoras, de Belo Horizonte, foi contratado para assumir a escola local e ampliar o ensino até o segundo grau, inteiramente gratuito aos funcionários e dependentes da MRN; construiu-se um clube social moderno ofertando várias modalidades de esportes e opções de lazer, com custo familiar máximo de dois por cento do salário e orientação multiprofissional; um supermercado moderno, nos moldes dos localizados nos grandes centros urbanos, vende os alimentos básicos a preços subsidiados (cerca de 30% abaixo dos de Belém e São Paulo, segundo a empresa subsidiária do mesmo), recebendo verduras e legumes provenientes de São Paulo duas vezes por semana desde a conclusão da expansão do aeroporto e o início dos vôos regulares com grandes aeronaves.
No campo social, havia-se constituído uma população equilibrada, vista sob os ângulos das variáveis sociais e biológicas, e disposta em sua maioria a permanecer por tempo prolongado em Porto Trombetas, complementando as condições basais que caracterizam a nova fase, vista sob ângulo do desenvolvimento social. Apenas as condições relativas à política de saúde são desenvolvidas no seu campo específico.
Reafirmando o que foi visto no terreno social, a partir de 1984 a MRN modernizou todas as etapas fundamentais de seu sistema técnico de equipamentos de produção, da mina ao porto. Na área de lavra, os equipamentos foram sendo substituídos por outros mais modernos e eficientes, a ferrovia foi modernizada, o mesmo acontecendo com os sistemas de britagem, lavagem, secagem e armazenamento. O porto foi ampliado e modernizado permitindo o aumento do embarque do minério. E, em correspondência à modernização do processo técnico de trabalho, os investimentos em treinamentos foram ampliados. Segundo informação oficial da empresa (MRN, 1988), tomando-se os valores do investimento do ano de 1980 como referência, os valores investidos a partir de 1984 (corrigidos pela inflação acumulada) foram 6,7 vezes maiores em 1984; 14,8 vezes em 1985; 17,9 vezes em 1986; 21,2 vezes em 1987 e 4,1 vezes em 1988.
Estes investimentos, embora não sejam propriamente de política social, tiveram reflexos sobre a mesma. Em primeiro lugar, por propiciar maior estabilidade no emprego e a perspectiva de permanecer de forma prolongada trabalhando e residindo no local; além de em curto prazo proporcionar melhoria salarial. Conforme informação da empresa e pela observação da tabela 2, constata-se que a MRN elevou mais os salários mais baixos e os mais altos, em 1984. Tal orientação visava, provavelmente, estabilizar os quadros técnicos recém-formados pelo investimento direto da empresa, os quais presume-se que estivessem concentrados nas faixas salariais melhor atendidas nos reajustes.
Organização do espaço social
Durante a implantação do empreendimento, a organização do espaço de moradia e das áreas de produção, a organização de seu próprio espaço social era precária, obedecendo à lógica habitual dos acampamentos transitórios localizados em áreas remotas. Segundo informação de remanescentes desse período, as condições de vida eram desfavoráveis e responderam por uma revolta ocorrida no acampamento, controlada com o uso da força pela segurança local, mas sem mortes (segundo a mesma fonte de informação).
No período inicial denominado de operação, o processo de organização do espaço obedeceu a critérios estritos de operacionalização do trabalho e manutenção de níveis elevados de atividade da mão-de-obra. Exemplifica esta condição o tratamento dado à drenagem pluvial, feita a céu aberto para evitar aglomeração de água e evitar a criação de mosquitos vetores de doenças, principalmente a malária, que pudessem comprometer grandes contingentes de trabalhadores e reduzir substantivamente a produção. A vila residencial contava com esgotamento sanitário e abastecimento de água desde o início, mas a urbanização da vila somente foi concluída no período de modernização da produção, simultaneamente com a ampliação das moradias, a implantação de nova infra-estrutura de ensino, lazer e atenção à saúde. Algumas das melhorias nas etapas de produção, como as de britagem e lavagem, reduziu o nível de poluição na vila. Os ruídos produzidos pela britagem e a poeira da bauxita britada foram reduzidos, mas não eliminados. Na área de lavra, a elevada mecanização do trabalho pode ter reduzido os riscos de acidentes fatais.
Organização do trabalho técnico
Inicialmente, para a sua implantação, o empreendimento importou sua classe operária e demais segmentos de trabalhadores de outras regiões do país, para a realização de um processo de trabalho característico de uma grande obra de engenharia civil. Mas, as condições da conjuntura em que se constituiu o empreendimento determinaram a política de produção da empresa, exercida mediante processo de trabalho tecnicamente avançado e exigindo a formação de uma classe operária especialmente formada para as características geográficas e técnicas do empreendimento.
Desde o início da operação, mas particularmente após 1984, na mina (como em qualquer outra etapa da produção), os equipamentos em uso para a lavra e o transporte até a transferência para o trem são máquinas modernas, com tecnologia avançada que reduz os problemas ergonômicos e controles instalados em cabines que reduzem a exposição às poeiras e aos raios do sol.
A ferrovia é exclusiva para o transporte do minério e não se obteve informação sobre algum acidente com gravidade nessa etapa do processo de trabalho. A carga e a descarga do minério é inteiramente mecanizada, envolvendo mão-de-obra qualificada e pouco numerosa, ocorrendo o mesmo nas etapas de armazenamento e embarque nos navios.
Organização dos serviços e política de saúde
Durante o período de implantação, a oferta de serviços se constituía de um hospital provisório e um ambulatório, contendo salas de cirurgia e parto, berçário, tratamento intensivo, dois gabinetes dentários, laboratório de análises clínicas e aparelho de raios X. Operava com 24 leitos e nele atuavam nove médicos, três dentistas, quatro enfermeiras, 12 auxiliares e três técnicos de enfermagem, operador de raios X, três técnicos laboratoriais e um bioquímico (Revista Construção Pesada, 1979 e MRN, 1977). A Sucam atuava na prevenção da malária e da febre amarela e no tratamento de casos de malária e leishmaniose. Tratava-se de uma organização de serviços de saúde cuja lógica era a da manutenção e reposição da força de trabalho.
Durante a fase de operação, a MRN não alterou na essência a organização dos serviços e sua política de saúde. Esta, entretanto, incluindo a oferta de serviços resolutivos, na fase de modernização da produção, representava importante componente da política de produção e da política social da MRN. Operava como instrumento eficiente para manter a efetividade da mão-de-obra, ao mesmo tempo que representava um forte atrativo para a vinda e a permanência de trabalhadores e seus familiares em Porto Trombetas. Desta forma, em 1985 foi inaugurado um amplo e moderno hospital, peça principal e centro do sistema de saúde montado. Também foram criadas a vigilância sanitária e a vigilância epidemiológica e construído um ambulatório fora dos limites da vila residencial, próximo ao porto, tendo por finalidade ofertar serviços aos habitantes das comunidades do entorno e reduzir sua pressão sobre o ambulatório e os demais serviços contidos no hospital. Neste ambulatório se instalou a vigilância epidemiológica, que respondia pelo conjunto das medidas de saúde pública que tradicionalmente realiza. A vigilância sanitária assumiu as atividades anteriormente desenvolvidas pela Sucam e as demais ações de controle de vetores; incorporou as ações de vigilância relacionadas com os alimentos, a água, os esgotos e a fiscalização da manutenção da vila (muito importante para evitar a invasão de animais potencialmente perigosos, como feras e ofídios, e reduzir as populações de vetores de doenças, especialmente os da malária e leishmaniose). Em caráter complementar, contava-se com um sistema de tratamento externo, em Belém, São Paulo e Rio de Janeiro, para o encaminhamento de doentes cuja morbidade assim o exigisse para seu tratamento.
Padrão epidemiológico
Durante o período de implantação, o desenvolvimento do padrão epidemiológico deu-se pela lógica de um processo de trabalho transitório, determinado segundo relações precárias de organização do espaço, do trabalho técnico, de respeito às normas de segurança e de provisão de recursos para a atenção à saúde. Confirmando tal avaliação, as informações de trabalhadores remanescentes daquele período dão conta de um padrão caracterizado pela morbidade proveniente do processo de trabalho como a leishmaniose tegumentar, associada ao desmatamento, atingindo os trabalhadores dessa frente de trabalho e os acidentes de trabalho típicos das grandes obras (Ryan, 1986). O isolamento e a falta de integração social respondiam pelo elevado consumo de bebida alcoólica, resultando em freqüentes atos de violência, com mortes provocadas principalmente por ferimentos por arma branca. Complementando este padrão, eram freqüentes as doenças de transmissão sexual, veiculadas principalmente pela prática sexual com prostitutas. No bordel que se instalou nas imediações do acampamento, segundo informações de remanescentes, também eram freqüentes os atos de violência e morte. As doenças mais freqüentes ligadas à organização do espaço foram a malária e as doenças infecciosas gastrintestinais, estas relacionadas à má qualidade da água consumida, que somente veio a receber tratamento ao final deste período.
Este primeiro padrão epidemiológico desenvolvido na população de Porto Trombetas, que foi determinado de modo particular pela estratégia do empreendimento, teve em sua determinação conjuntural as mesmas condições do modelo socioeconômico que determinariam, nas novas conjunturas particulares do empreendimento, as transformações epidemiológicas das etapas seguintes do empreendimento.
A malária, pelas suas características epidemiológicas, proporcionou um instrumento adequado à apreciação do papel que alguns componentes da organização social do espaço e da política de saúde da MRN desempenharam no desenvolvimento do processo saúde-doença da população de Porto Trombetas. A empresa, movida pela perspectiva da consolidação e do lucro e competindo num mercado internacional saturado de bauxita, buscou atingir seus objetivos com a estratégia da otimização da produção. Para tal, a MRN dependia de mão-de-obra efetiva, eficiente e regularmente ativa. Não podia, portanto, correr riscos de descumprir suas metas econômicas, tendo sua mão-de-obra imobilizada em decorrência de doenças para cujo controle a ciência e a técnica propicia instrumentos eficientes. Sua atuação desenvolveu-se em duas frentes: a organização do espaço nas áreas de moradia, industrial, de lavra e as vias de transporte, o que dificultava o desenvolvimento de populações de mosquitos vetores inviabilizando a transmissão; o controle sobre a entrada dos novos moradores, realizando o diagnóstico e tratando previamente os indivíduos doentes de malária, antes de liberá-los para circulação. Estas duas linhas de medidas preventivas de caráter médico e epidemiológico transformaram a vila residencial de Porto Trombetas numa ilha protegida contra a transmissão da doença, principalmente após 1985, não se registrando mais casos autóctones na vila (Tabela 3).
A freqüência de casos anuais e o IPA (Índice Parasitário Anual) registrados nas populações da MRN e das empresas contratadas; em contraste com a verificada nos ribeirinhos (R), moradores das comunidades próximas, onde se registrou sempre número elevado de casos, no período de 1980-1988. O IPA registrado na população da MRN, comparado ano a ano com o dos ribeirinhos, situa-se sempre acima de oito vezes mais elevado para esta última.
Tal diferença traduz riscos distintos de exposição aos vetores e plasmódios causadores da malária, mas expressa também o tipo de relação que cada grupo da população mantém com a empresa. Os vinculados diretamente à MRN e os das contratadas recebem a proteção do ambiente organizado. A vila da MRN é situada em local elevado e conta com sistemas de drenagem natural e implantado, operando a céu aberto para favorecer sua limpeza e impedir acúmulo de água que pudesse proporcionar ambientes favoráveis à proliferação de anofelinos. Tais sistemas, junto com a busca ativa de amostras de sangue dos novos moradores na chegada ao local, complementam no interior da vila e áreas de trabalho as condições que dificultam a transmissão da malária (Vargas & Savelli, 1949). No interior da vila, chegou-se à ausência de transmissão, a partir de 1985, registrando-se apenas casos importados.
No caso da população ribeirinha, que vive em ambiente modificado inadequadamente pela ação humana, a transmissão da malária é também favorecida pela movimentação humana referindo-se, neste caso, à expansão descontrolada da população e à movimentação humana temporária, sistemática ou assistemática, caso dos catadores de castanha e garimpeiros, que saem e retornam à região, sem contar com ações efetivas de vigilância epidemiológica, como a busca ativa de casos realizada pela MRN (Sawyer & Silva, 1982). Uma epidemia da doença ocorrida em Porto Trombetas, em 1989, atingindo quase exclusivamente os ribeirinhos, reforça os aspectos considerados. O controle dos determinantes, feito pela MRN na vila e nos locais de trabalho, foi capaz de impedir a circulação dos parasitos, mesmo na vigência de epidemia, ocorrida entre março e outubro de 1989. No interior da vila apenas um caso foi registrado, atingindo um funcionário de empresa contratada, enquanto se registraram 50 casos autóctones na população de ribeirinhos, com o IPA atingindo 7%.
Para se explicar essa epidemia, tomando-se inicialmente as características ambientais, condicionaram a população ribeirinha a elevada vulnerabilidade. Seu inicio ocorreu durante período de grande enchente no rio Trombetas, quando houve intensa proliferação de anofelinos nas áreas de invasão das águas. Os ribeirinhos, residindo nas barrancas do rio e dos lagos, freqüentemente em locais assemelhados a enseadas que favorecem o aportamento de suas embarcações, situavam-se precisamente em locais favoráveis à constituição dos criadouros de vetores. Mas, não obstante a enchente, destaca-se o seu papel relativo e aponta-se a importância da migração, considerando-se a ocorrência de casos até o mês de outubro, já em pleno período de baixa do rio. A movimentação social, excluída a vinculada à própria MRN, sobre a qual a empresa exerce elevado grau de controle, cresceu ao longo da década de 1980 na região de Porto Trombetas e ao longo do rio homônimo. Tal migração é principalmente ligada aos garimpos e catadores de castanha, em regiões à montante de Porto Trombetas, provavelmente envolvendo elementos da própria população ribeirinha que retornaram durante o período das chuvas, e pode ter sido a responsável pela chegada de indivíduos infectados ou doentes, instalando-se a transmissão em níveis epidêmicos naquela população. Constata-se, portanto, que a movimentação social, como discute Marques (1985), também exerce importante papel na transmissão da malária.
Assim, fica patente que a MRN adotou as duas medidas epidemiológicas mais relevantes para o controle da doença, sendo inconteste o caráter científico de sua política de controle da doença. Além disso, é evidente que a redução da rotatividade da mão-de-obra, caracterizada por uma rotatividade de 20% para a população da MRN durante toda a fase de modernização da produção, foi importante para que resultassem eficazes as medidas de controle da malária postas em prática. Presume-se que as condições da organização do espaço e da política de saúde da MRN contribuíram também para reduzir os riscos de transmissão de outras doenças que envolvem vetores como culicíneos e flebotomíneos; por exemplo, arboviroses e leishmanioses (Sabroza, 1981; Ryan, 1986; Lainson et al., 1986). Das primeiras, não se tem registro de casos e, das segundas, ao lado de se mostrarem mais freqüentes na população ribeirinha, os anos em que ocorrem com mais freqüência indicam uma associação com a atividade profissional. Entre os segurados da MRN e das empresas contratadas agrava, com regularidade, um pequeno número de trabalhadores, tomando as características de doença profissional, em relação com as atividades de desmatamento das frentes de lavra e às próprias atividades a ela pertinentes, como os operadores de máquinas que atuam no desflorestamento, destoca, descapeamento do minério etc. Entre os trabalhadores das empresas contratadas, com os maiores números de casos nos anos 1985-1987, estes podem ser associados às atividades de desmatamento destinadas à ampliação do aeroporto e à transferência da planta de lavagem da bauxita para a mina; os casos novos declinam já em 1988, coincidindo com a conclusão desta obra.
Já os casos registrados na população ribeirinha provavelmente associam-se às suas atividades principais, que envolvem a entrada na floresta: a coleta de castanhas, a caça e o garimpo. Não se pode descartar, todavia, a transmissão no espaço peridomiciliar, onde praticam plantio sazonal, passando por roçada e queima de vegetação para seu preparo Além disso, as moradias podem estar semimergulhadas em floresta secundária, além de albergarem, em estreito convívio com a população humana, criações de galinhas e porcos, favorecendo a presença de flebotomíneos.
Mas, ao mesmo tempo em que define uma política sanitária adequada e científica para o controle da malária e algumas outras doenças transmitidas por vetores e, as doenças sexualmente transmissíveis, que tiveram número bastante reduzido de casos por conta de ação de um programa de controle executado pela empresa, ficam a descoberto outros grupos de doenças cujas medidas de controle foram falhas, apesar de sua fácil implementação. Tal foi o caso das doenças controladas por imunizantes e/ou tratamento, cuja incidência na população de Porto Trombetas, alternando períodos endêmicos e epidêmicos, como as epidemias de coqueluche de 1982 e 1987 e de sarampo, em 1983 e 1987. As de coqueluche registraram índices, segundo estimativas do autor, cujas proporções atingiram 37% da população de risco entre os ribeirinhos, em 1982, e 10% na população da MRN, repetindo-se em níveis equivalentes, no ano de 1987. O comportamento epidemiológico de ambas as doenças indica a insuficiente cobertura vacinal, com acúmulo progressivo de suscetíveis até o ponto de desencadeamento de surtos epidêmicos. Mas, a disponibilidade de vacinas com elevado poder antigênico, especialmente o sarampo com 95% de proteção (Brasil, MS/SNABS/ENSP-PAI, s/d), e a obtenção de elevada cobertura na população de risco podem impedir a circulação dos seus agentes etiológicos, especialmente em comunidades fechadas e não muito populosas como a da vila da MRN e as de seu entorno.
A tuberculose, segundo Ruffino Neto & Pereira (1981), tem seu desenvolvimento epidemiológico relacionado às condições sociais de vida, especialmente às de alimentação/nutrição e às do espaço interno de moradia (concentração intradomiciliar), (Vicentin, 2002). São muito distintas as condições daqueles determinantes em Porto Trombetas, entre os moradores da vila e os ribeirinhos, podendo explicar a grande disparidade das taxas médias de incidência: na população da MRN foram de 5,5 e 72,1 por 100 mil habitantes, respectivamente no primeiro e segundo períodos, quando na população ribeirinha atingiram 364,9 e 297,9 nos mesmos períodos. A distribuição dos casos de hanseníase segue padrão semelhante.
O comportamento dissociado da evolução do controle da morbidade por doenças infecciosas e parasitárias revela também o processo de priorização da MRN, sob o qual as ações sanitárias foram definidas. Vê-se a maior prioridade revelando-se justamente para o campo daquelas doenças que mais poderiam comprometer o processo produtivo e de realização dos interesses econômicos da empresa, caso especial da malária, que, em fase epidêmica, atingiria rapidamente grande número de indivíduos em idade produtiva, especialmente entre os trabalhadores.
A combinação do sucesso no controle da malária e outras doenças infecciosas como as transmitidas por vetores, de veiculação hídrica e de transmissão sexual, com o comportamento epidêmico de doenças como o sarampo e a coqueluche, caracterizando cobertura vacinal muito baixa mesmo na população vinculada diretamente à MRN, mostra a dicotomia do modelo implementado para a saúde pública em Porto Trombetas. Sua capacidade de atuar decisivamente sobre o processo saúde-doença aparece condicionada ainda pela estratégia da empresa, na forma como estava definida na etapa inicial da operação do empreendimento, quando apenas as questões sanitárias mais suscetíveis de produzir situações epidemiológicas impactantes sobre o processo produtivo eram objeto de atenção. Depois, com a perspectiva de modernização da produção, a política de saúde da empresa parece ter-se aberto para algumas novas alternativas.
A dicotomia que aparece no campo das doenças infecciosas e parasitárias vai se revelar ainda mais evidente quando se analisa o modelo com base em dados da morbidade crônico-degenerativa e daquela que deriva diretamente do processo de trabalho.
Quando se buscam os dados referentes ao desenvolvimento de patologias crônicas, cumulativas, face à exposição prolongada a riscos presentes na rotina do trabalho, verifica-se que foi muito baixa a freqüência de diagnóstico de doenças osteomusculares crônicas, pneumoconioses, doenças cutâneas, alteração da acuidade auditiva etc. Entretanto, os elementos que representam risco para seu desenvolvimento estão presentes: no trabalho mecânico, a poeira inorgânica, forte exposição aos raios solares e os ruídos contínuos, repetitivos e de forte intensidade emitidos na área industrial pelos equipamentos de geração de energia elétrica e britagem. Essa condição pode significar tanto a baixa freqüência como a falta de diagnóstico destes agravos, por não se contar com profissionais voltados para tal. Neste último caso, se caracterizaria mais uma distorção do modelo, contribuindo para a dicotomia do comportamento do padrão epidemiológico.
Ainda como contribuição para a caracterização desta dicotomia, toma-se como indicadores a freqüência de consultas com diagnóstico de doença cardiovascular, o número de consultas/habitante/ano e o consumo de medicamentos (fornecidos gratuitamente pela MRN), cuja tendência foi de grande crescimento ao longo de todo o período, para todas as categorias da população de Porto Trombetas. No caso do consumo de consultas e de medicamentos, chegando a níveis de distorção.
Na busca da explicação para este processo, além dos determinantes habituais do comportamento daquela morbidade e do comportamento da população em relação aos serviços de saúde, atuam de forma muito relevante o isolamento geográfico e a baixa integração social da população, como fatores estressores (Leal, 1981).
O estresse, que aqui é compreendido como o definem Laurell & Noriega (1989), (...) a capacidade do corpo de responder com plasticidade diante de suas condições específicas de desenvolvimento (...), é um processo adaptativo cuja existência é normal e desejável como resposta a situações extremas. Mas, ao se tornar resposta permanente, interfere no nível orgânico, alterando a própria biologia e a percepção das necessidades; no primeiro caso, alterando os mecanismos de resposta cardiovasculares e, no segundo, a necessidade de consumo de serviços de saúde e de medicamentos, num mecanismo de iatrogenia que pode ser associado ao estresse.
A identificação de condições geradoras de stress em Porto Trombetas exigiu, mais que qualquer outro problema, a compreensão dos mecanismos sociais envolvidos com o processo de constituição de uma população mais permanente em Porto Trombetas e de sua relação com a empresa, fundamentalmente presente em todas as relações da vida humana, naquela localidade. As profundas transformações nas condições de vida, pelas quais passavam a grande maioria das pessoas que iam habitar a vila da MRN são a base do desenvolvimento do estresse. As mais relevantes são aquelas relativas às populações cuja obtenção dos meios de sobrevivência passaram das atividades extrativas, ligadas ao processo produtivo tradicional (pesca, agricultura, caça), para a dependência das atividades regulares, sistemáticas, normalizadas e supervisionadas do sistema produtivo da MRN, vinculando sua subsistência ao salário e aos demais direitos sociais. Em outras palavras, substituir os padrões comportamentais, morais, éticos e socioeconômicos da vida sob a economia extrativista tradicional, pela transformação abrupta e inapelável em classe operária industrial, regida sob a ótica e os padrões da empresa. A existência de normas rígidas comportamentais, definidas pela MRN e aplicadas até no espaço do lazer, pode ser apontada como um exemplo do processo gerador de estresse; tendo sido identificado pela empresa e modificado a partir de 1986, desvinculando as estruturas de lazer do controle direto da empresa, bem como as normas comportamentais definidas para esse espaço. Mas, apesar destes desdobramentos de liberação no terreno da vida extraprofissional, o estresse estava presente de forma permanente no processo transformador daqueles grupamentos humanos. Tratava-se de uma transformação de classe em curto prazo, que historicamente leva décadas para se desenvolver em sua plenitude, pois além de se dar no terreno socioeconômico, também se estende ao cultural e ao psíquico e emocional.
Para aqueles provenientes de outras regiões do país, o principal componente na determinação do estresse eram as condições de isolamento geográfico e de heterogeneidade cultural da população constituída, com baixa integração social que foi sendo superada, inicialmente no trabalho, sob o comando do processo técnico de produção.
No plano dos agravos agudos decorrentes do trabalho, predominavam as lesões traumáticas produzidas por contatos físicos entre o trabalhador e objetos físicos (CESTH/ENSP/ Fiocruz, s/d). Mas, no processo de trabalho da MRN estão presentes também outros riscos potenciais na geração de agravos físico-químicos: ergonômicos, elétricos, calor; vibrações, ruídos, radiações ionizantes; ou biológicos: acidentes ofídicos e a transmissão de doenças por vetores e, finalmente, os psicológicos. Quanto aos índices fornecidos pelo documento MRN (1988), para a ocorrência de acidentes de trabalho, foram francamente declinantes: 22,1; 20,3; 10,1; 6.5; 7.2; 0.93, respectivamente, entre 1983-1988. Mas, os dados da tabela 4 mostram grande variação nos valores dos registros de acidentes de trabalho em todas as categorias em que foram classificados, dificultando a caracterização de qualquer tendência; parecendo evidenciar-se apenas coeficientes bem mais elevados entre 1984 e 1988, período de muitas obras em Porto Trombetas. Neste caso, o incremento estaria associado à elevação do número de trabalhadores de empresas contratadas, explicação também dada pelo setor de segurança do trabalho da MRN.
Padrão dos serviços e programas
Ao mesmo tempo em que adotou programas avançados no controle de determinadas doenças infecciosas e parasitárias e investiu na modernização da produção, no treinamento e em política ostensiva de combate aos acidentes de trabalho, mediante medidas educativas e estimulo permanente ao uso dos equipamentos de proteção individual (EPI), nas demais áreas de desenvolvimento do processo saúde-doença sua política foi conservadora, centrando sua ação na atividade curativa. Compreendeu a modernização na área apenas como a melhoria e a ampliação dos recursos para diagnóstico e tratamento. Enquanto em seu hospital provisório operava com índices de dois leitos e 1,8 médicos por 1.000 habitantes, passa, com o novo, a ofertar 35 leitos, proporcionando taxa média de 5,2 leitos/1.000 habitantes, quase triplicando a oferta anterior.
Informações verbais afirmaram o investimento de dois milhões de dólares no novo hospital, indicando ser ali o centro dinâmico da sua política de saúde. A idéia de que a construção do novo hospital teria sido ditada pela operação em níveis críticos da estrutura provisória não parece corresponder inteiramente à realidade, embora seja certo que a ampla equipe médica e os recursos instalados em Porto Trombetas, que incluíam modernos centros cirúrgicos, aparelho de raios X e centro de tratamento intensivo eram importantes para gerar segurança nos profissionais e seus familiares e contribuir para sua permanência no local.
Assim, verifica-se que foi uma orientação da política de produção, traduzindo-se como de saúde. Mas, apesar do aspecto da segurança e da população mostrar-se satisfatoriamente atendida pelos equipamentos urbanos destinados à moradia, ao abastecimento, ao lazer, à comunicação, aos refeitórios e ao supermercado, quanto aos serviços de saúde e sua atuação, respondeu com insatisfação, especialmente com os de assistência médica, fato reconhecido que preocupava a empresa.
O uso dos serviços apresentou-se deformado e acarretou a elevação dos custos operacionais, com freqüência de internações muito elevada, alto consumo de exames e medicamentos nos primeiros anos. Estes indicadores passaram a francamente declinantes a partir de 1986, porém sob o efeito de mecanismos restritivos determinados pela empresa, gerando ociosidade de leitos e, certamente, fortalecendo a insatisfação.
Assim, a MRN não conseguiu extrair todos os resultados que esperava obter. Pressionada pela demanda, a MRN procurou atendê-la sem analisá-la adequadamente, não identificando as suas verdadeiras aspirações, gerando respostas inadequadas que mantiveram viva a insatisfação, traduzindo-se em novas demandas. Para sua orientação e verificação do resultado de suas medidas, a empresa realizou levantamento de opinião pública que, pela sua generalidade e má definição dos objetivos, só conseguiu confirmar a insatisfação verificada na parcela da população ouvida.
Fora do campo das doenças infecciosas e parasitárias, a odontologia foi o setor no qual se implantou a orientação mais adequada, procurando integrar-se toda ação de saúde numa perspectiva de interferir sobre algumas variáveis geradoras das más condições da saúde oral. Embora tenha sido onde se contou com menos recursos humanos especializados, manteve a cobertura para a população da MRN, propiciando ainda seu direcionamento no sentido de atuar sobre a população escolar, de modo profilático, num programa que favoreceu todos os segmentos da população, inclusive do entorno, obtendo excelentes resultados no desempenho do índice de CPOD.
Portanto, embora a MRN tenha incorporado alguns componentes importantes de um sistema de saúde pública como a vigilância epidemiológica e a sanitária e tenha assimilado a orientação preventiva da odontologia sanitária, nos demais campos sua política sanitária era conservadora. Foram aqueles elementos avançados da política sanitária, juntamente com a organização social do espaço e a política social, que responderam como determinantes do desenvolvimento epidemiológico particular da população da vila residencial de Porto Trombetas, em especial a ligada diretamente à MRN, que desenvolveu padrão epidemiológico diferenciado em relação às populações humanas da Amazônia ligadas ao campo tradicional de sua economia.
Mas, ao não se definir por uma ação programática em sua orientação para o atendimento ao conjunto do processo saúde-doença, desconhecendo o seu comportamento epidemiológico, aceitou a sua gestão exclusiva pela pressão da demanda espontânea. Este contexto determinou a elevação dos custos e a distorção do uso dos serviços. A taxa de consultas tornou-se muito elevada, da ordem de nove/habitante/ano, e o número de internações correspondia à aproximadamente 23% da população/ano, em 1985, declinando nos anos seguintes devido às medidas restritivas da empresa. Tal condição, onerosa e pouco produtiva, gerava também processos iatrogênicos (consumo crescente de medicamentos) e insatisfação por parte da população.
Discussão
A MRN, na busca da realização de seu interesse último, incluiu em sua estratégia de produção o desenvolvimento de elevados níveis de eficiência e produtividade, alcançados mediante um processo técnico de trabalho avançado. Para tal, necessitava de mão-de-obra qualificada, eficiente, estável e adaptada, levando a empresa a definir algumas políticas avançadas no campo social e de organização do espaço. Tal política, envolvendo um processo concreto de produção e uma correspondente organização da vida social, próprias da empresa e de Porto Trombetas, determinou as condições particulares do processo saúde-doença da população a ela relacionada diretamente.
A determinação se deu por mediação, principalmente da política social e do modo como a empresa organizou o espaço social, da produção propriamente dita, e da reprodução da força de trabalho. Em outras palavras, tal política encontrou sua materialização em termos de condições de vida, nas concretas condições ambientais; de moradia; de saneamento; de alimentação; de nutrição; de emprego; dos benefícios e da integração social e de trabalho.
Para explicar tal desenvolvimento particular, em processo simultâneo com as características bastante diferenciadas do processo saúde-doença em populações ligadas à economia tradicional da região, retoma-se o conceito de divisão internacional do trabalho. Esta opera como categoria geral necessária à compreensão da determinação de padrões socioeconômicos distintos que, por sua vez, determinam os padrões epidemiológicos particulares de populações vinculadas a determinados processos de produção. Corroborando este raciocínio, Coutinho & Beluzzo (1984), referindo-se à constituição em economias periféricas de um departamento de bens de produção e seus principais setores (como é o caso da indústria do alumínio), consideram que seu desenvolvimento na periferia está estreitamente vinculado às formas avançadas de divisão técnica do trabalho, dentro do sistema de grandes empresas internacionais. É importante registrar, no caso do Brasil naquela conjuntura, que o Estado cumpriu papel estratégico na aglutinação de capitais internos (muitas vezes assumindo o papel de agente produtor) para associação com capitais externos em busca da implantação da produção de insumos básicos e bens de capital, em geral valendo-se de processo avançado de trabalho. Mas, a presença do Estado mediante a participação de empresas estatais, que naquela conjuntura pode garantir a preservação de interesses econômicos estratégicos do país, garantia a sustentação de interesses sociais em nível satisfatório apenas para as populações vinculadas diretamente ao processo produtivo, no caso a ligada diretamente à MRN. Não se registrava a ação do estado para estender os benefícios do desenvolvimento gerados por tais empreendimentos à população regional.
Nos casos particulares, a relação de determinação do processo saúde-doença se desenvolve com suas características próprias. A organização do espaço é um componente essencial que Silva (1985), relacionando-a ao processo saúde-doença, afirma: o homem em sua atividade econômica, organiza o espaço a sua volta de maneira a melhor desempenhar essas atividades econômicas. Desse processo de organização resulta um sistema de relações que caracteriza o espaço. Este sistema de relações pode ou não ser adequado à ocorrência de determinadas doenças; em sendo, existem graus de adequação. A observação a se acrescentar é a de que, em situações como a de Porto Trombetas, o modo de organização do espaço é fundamentalmente voltado para a realização da atividade e dos interesses econômicos. Complementando a determinação particular do padrão epidemiológico que se lhe decorre, atua a política social, incluindo a sua componente particular, a política de saúde.
Conclusões
A constituição e a implantação da MRN foi a etapa inicial da estratégia governamental para a exploração do alumínio em associação com o capital internacional, sendo também peça fundamental para o setor mineral, componente de ponta da política econômica vigente. A forma de composição desses interesses situou a empresa em paralelo com a economia tradicional da região onde foi implantada.
Seguindo a lógica de operar com processo de trabalho técnico avançado, a MRN implantou sua equivalente infra-estrutura econômica e social, apresentando um desenvolvimento socioeconômico distinto e pouco integrado à região. Tinha como elemento de integração, apenas sua política de incorporação da mão-de-obra regional para algumas funções técnicas, o que também atendia sua estratégia no sentido de fixar sua população. Assim, a base material dos processos sociais diferenciados, entre as populações vinculadas à MRN ou ao sistema produtivo tradicional, estava estabelecida.
A lógica e o modo como se concretizaram compôs universos particulares de condições de vida, de moradia e de ambiente de trabalho, de saneamento, de lazer, de integração social, de acesso a bens de consumo essenciais, de direitos sociais e de cobertura de serviços e programas de saúde. Todos esses compuseram as respectivas organização espacial e política social. Ambas constituíram um padrão de reprodução social, correspondendo ao de reprodução da força de trabalho pretendido pela MRN, o qual incluía a própria formação de uma classe operária em Porto Trombetas. No bojo desse processo social se desenvolveram transformações do processo saúde-doença.
A implantação do empreendimento determinou a lógica da distribuição dos serviços de saúde no município de Oriximiná, mas não foram os serviços de saúde os principais determinantes do padrão epidemiológico das populações envolvidas. O padrão epidemiológico nas populações de Porto Trombetas e Oriximiná se desenvolveu de forma dissociada, segundo o padrão de reprodução social da MRN e o tradicional da região.
A análise da morbidade confirmou os pressupostos que no processo saúde-doença da população de Porto Trombetas ocorreram transformações no desenvolvimento de componentes da morbidade habitual da região, sendo especialmente mais marcado na parcela vinculada diretamente à MRN. O caso da malária foi o exemplo mais marcante.
A política de saúde da MRN, entretanto, apesar da assimilação da vigilância epidemiológica e sanitária e de programas avançados como os de controle da malária, da saúde oral e da modernização dos seus serviços, não conseguiu superar certas limitações impostas pela sua perspectiva predominantemente assistencial.
A ausência de ações programáticas, com equipes multiprofissionais, para as áreas da saúde da mulher e da criança e para o controle de doenças crônicas dos adultos, exemplifica as principais limitações da política de saúde, sendo também responsável pela insatisfação da população nesse campo. O agente estressor essencial em Porto Trombetas provinha da condição de transformação de uma população, até então ligada ao processo econômico tradicional, em classe operária.
Os serviços de saúde na sede municipal de Oriximiná, bem como a sua atuação recente, e o padrão epidemiológico de sua população traduzem a política social pública do país, naquela conjuntura.
Documentos da MRN consultados
Artigo apresentado em 20/4/2003
Aprovado em 15/8/2003
Versão final apresentada em 10/10/2003
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
05 Jun 2007 -
Data do Fascículo
2003
Histórico
-
Aceito
10 Out 2003 -
Revisado
15 Ago 2003 -
Recebido
20 Abr 2003