RESENHAS BOOK REVIEWS
Aciole GG. A saúde no Brasil: cartografias do público e do privado. São Paulo: Hucitec; Campinas: Sindicato dos Médicos de Campinas e Região; 2006. 357 p.
Consuelo Sampaio Meneses
Departamento de Medicina Preventiva, Universidade Federal de São Paulo
Ao considerar os negócios humanos não se deve [...] considerar o homem como ele é nem considerar o que é mortal nas coisas mortais, mas pensar neles (somente) na medida em que têm a possibilidade de se tornarem imortais.
Aristóteles
Poucas vezes um tema despertou tanto interesse e se tornou objeto de debate de forma tão viva e compartilhada como as extensas interfaces entre o público e o privado na saúde, enquanto dimensões constitutivas da construção e do movimento da sua história, em todas as formas de apresentação que esse duo parece comportar. Não bastasse a reconhecida intimidade existente entre tais esferas na conformação do próprio campo, surpreende a contínua remodelagem dessa relação aos olhos da sociedade, que mal consegue absorver sua caleidoscópica composição no sistema de saúde brasileiro, em um contexto em que novas modalidades de gestão são apresentadas em nome da defesa do público. Para os estudiosos, militantes e trabalhadores da saúde, o embaraço não parece estar sendo muito menor.
Nesse terreno movediço, o livro A saúde no Brasil: cartografias do público e do privado, de Giovanni Gurgel Aciole, representa uma importante contribuição intelectual e uma valiosa ferramenta para se compreender com clareza a essência e a dinâmica dessas relações na realidade brasileira atual. Em um texto elegante, resgata as origens e as transformações dessas dimensões da existência humana, cartografando e dissecando suas íntimas relações ao longo da história. Seu estudo empreende um cuidadoso inventário da gênese desses conceitos na Antiguidade Clássica, seu reordenamento na sociedade capitalista burguesa e seus desdobramentos no campo dos saberes e das práticas de saúde no Brasil até a regulamentação dos planos privados de saúde, em 1998, e a criação da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), em 2000.
Para o esquadrinhamento teórico-conceitual desta temática na primeira parte do seu trabalho, Aciole realiza um diálogo permanente com autores basilares. Se em Marx enfatiza a centralidade da apropriação privada do trabalho coletivo para a compreensão dessa dinâmica, de Habermas recebe uma releitura da universalidade do público, recuperando-a não mais no Estado, mas centralizando-a na opinião pública como elemento de mediação entre o Estado e a sociedade. Em Arendt, é distintiva a emersão do social, que, ao se dispor como espaço de interpenetração entre o público e o privado, produz uma decomposição e uma dissolução da esfera pública, e onde, sob o signo da igualdade, a ênfase passa a ser dada à outorga dos direitos de cidadania. Estes representam a forma como a sociedade alcança a esfera pública, evocando a necessidade de mediação do Estado como resposta aos segmentos desfavorecidos pela destituição dos meios de produção. A clivagem entre o público e o privado, que se materializa na constitucionalização de direitos, vem denotar, portanto, a coexistência entre liberalismo e democracia.
O autor segue tecendo os fios que ligam o público à noção de coletivo e de pertencimento comum, bem como à da privacidade do usufruto do bem público, ou de que o público carreia o conceito de privado, o qual passa a se associar à produção e circulação de mercadorias e serviços e, portanto, à idéia de mercado enquanto espaço de produtores e consumidores. A consolidação do processo de desenvolvimento da burguesia e do capitalismo passa a depender da presença do Estado como mediador e regulador das novas relações, de modo que Estado e sociedade civil constituem a esfera pública e a esfera privada, cuja relação encontra tradução nas figuras do Estado interventor e do mercado autônomo.
O mosaico público-privado expressa o fato de que parte da esfera privada vem se tornando pública, enquanto o público ancora-se nos interesses privados, dado que, historicamente, o intervencionismo estatal tem se organizado em função destes últimos, que passam a modular a sua ação. Ou seja, analisar as interfaces entre o público e o privado implica em matizar o antagonismo existente entre essas dimensões (bem como entre Estado e mercado), compreendendo sua polaridade dialética e suas relações de interdependência e de interpenetração, em que ambas se interpelam mutuamente.
No caso da saúde, esta intermediação apresenta-se nos planos conceitual e operacional, daí a opção metodológica do autor em elegê-la como um analisador desta antinomia, a qual coexiste com os outros pares de opostos que constituem a vasta complexidade do campo (individual versus coletivo, ações preventivas versus ações curativas, etc.). Definem-se, assim, saberes tecnológicos, práticas, modos de operação, de oferta e de acesso, que, remetidos a distintos modelos assistenciais, com suas respectivas cargas valorativas, inapelavelmente organizam-se, novamente, em torno dos macro-atores Estado e mercado.
Um primeiro grande eixo analítico que atravessa esse estudo, de caráter longitudinal, tem, então, como pressuposto, a relação entre a democracia e a constitucionalização de direitos, derivados do conceito de social, que se bifurca no direito público do cidadão à saúde, enquanto elemento civil do Estado, e nos direitos do consumidor, enquanto elemento fundamental do mercado. Tal plano de clivagem encontra confirmação na aprovação bem posterior da Lei Orgânica do SUS (Lei nº 8.080) e do Código de Defesa do Consumidor no mesmo ano (1990), na verdade apenas atestando a realidade que atravessa os marcos legais e a própria história.
O desenvolvimento dessa linha de análise nos recoloca frente a conhecidas questões constitutivas do campo, como o eclipsamento da saúde pública pela prática médica (e sua tradução em saberes, práticas e políticas, para o que lança mão de autores referenciais como Foucault, Canguilhen, Arouca, Donnangelo e Merhy), e os modos históricos como a tensão dialética entre o público e o privado estruturou o subsistema privado. Aqui, o autor enfatiza como o fortalecimento da política previdenciária estatal representou o estímulo ao empresariamento dos grupos médicos e como a universalização da assistência médica, naquele momento, significou uma ampliação de cobertura para o consumo de serviços, que suplantaria o direito de cidadania à saúde. Nesse sentido, a política previdenciária encampada pelo Estado expressou a reafirmação de um discurso racional organizador de um projeto de classe, no qual a classe média passou a se ver como consumidora de serviços de saúde, o que talvez seja o conteúdo ideológico de fundo mais importante do projeto político-econômico da Previdência Social de então.
Podemos ainda identificar como um segundo eixo de análise a atuação transversal dos médicos nas duas esferas, pela sua contribuição na formulação de uma agenda política e social para o setor e por estarem sempre mapeando as principais inflexões do mix público-privado no cenário brasileiro. Para isto, é de grande valor a experiência do autor como expressivo militante no exercício da representação desta categoria, atestando como a autonomia e a liberdade de escolha têm se mostrado inarredáveis prerrogativas da mesma, estabelecendo parâmetros das formas de interpenetração entre os dois campos e materializando a ligação visceral entre Estado e mercado.
Embora a deterioração dos serviços públicos e o crescimento do mercado de planos de saúde tenham tornado obrigatória a inclusão do tema da regulação do subsistema privado na agenda governamental, a partir dos anos 1990, Aciole argumenta que os princípios da regulação/regulamentação do mesmo encontram-se ainda ancorados nas matrizes normativas do direito do consumidor, não se contemplando a complexidade do objeto "saúde", que reclama o seu reconhecimento como bem público e como direito de cidadania. Daí a necessidade de se construir uma intervenção do espaço público sobre a esfera privada, que não pode mais ser vista como um território livre.
Os dados do seu rico material empírico, obtido a partir de uma minuciosa pesquisa em bancos de dados, revelam especialmente a dependência estrutural do SUS ao setor privado, sobretudo nos níveis de médio e alto custo, como também tornam nítidas as diferenças regionais na oferta e no acesso aos serviços de saúde e aos recursos financeiros, o que é coerente com a metáfora que utiliza para a sociedade brasileira - Belíndia - híbrido produzido a partir da fração subdesenvolvida e da fração moderna do país, na qual a ação do Estado volta-se para o lado "Índia", e as organizações vinculadas ao mercado têm seu tropismo convenientemente dirigido para o lado "Bélgica".
O texto constitucional de 1988, ao entreabrir de forma não só muito discreta, como quase muda, a participação do setor privado no sistema de saúde brasileiro, admitindo sua presença de forma complementar ao público, não contemplou a força e a complexidade dessa relação, como se a inscrição jurídica fosse condição necessária e suficiente para a contenção do setor privado em limites, que, ainda hoje, desconhecemos de fato quais são ou mesmo se existem.
A ascendência do neoliberalismo na economia brasileira tem imposto riscos à verdadeira reforma de Estado que o SUS representa, em um contexto em que está em jogo a defesa de um Estado que sirva de suporte para a competitividade internacional no mercado globalizado. Assim, em uma época em que o mosaico público-privado vem apresentando novas configurações, o que envolve novas propostas de gestão do próprio SUS, podemos dizer que a leitura deste livro nos fornece uma matriz analítica para a compreensão da realidade atual, além de suscitar uma miríade de novas considerações e indagações, o que é mais um mérito do mesmo.
Além do reconhecimento de que a antinomia público-privado não pode ser dissolvida nem resolvida em uma síntese, mas compreendida nas suas implicações e interdependência, como nos propõe o autor, resta-nos, contudo, a percepção de que essa instabilidade dinâmica representa na realidade uma retração do público. Daí ser o caso de renovadamente nos perguntarmos onde exatamente se situam o público e o privado, se existe algum limite inegociável na interface entre ambos ou, ainda, qual o verdadeiro sentido do público nos dias de hoje. Assim, ainda que sob o risco considerável de sua inclusão na vala comum do anacronismo, própria da modernidade em que vivemos, vale a pena revermos a atualidade das inspirações aristotélicas de Arendt: Se o mundo deve conter um espaço público, não pode ser construído apenas para uma geração e planejado somente para os que estão vivos: deve transcender a duração da vida dos homens mortais. [...] Talvez o mais claro indício do desaparecimento da vida pública na era moderna seja a quase completa perda de uma autêntica preocupação com a imortalidade. [...] Sem essa transcendência para uma potencial imortalidade terrena, nenhuma política, no sentido restrito do termo, nenhum mundo comum e nenhuma esfera pública são possíveis.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
21 Ago 2008 -
Data do Fascículo
Out 2008