DEBATEDORES DISCUSSANTS
Descentralização e modelo sistêmico: o caso da vigilância sanitária
Descentralization and the systemic model: the health surveillance case
Geraldo Lucchese
Consultor legislativo do Congresso Nacional. geraldo.lucchesi@camara.gov.br
Com o intuito de incentivar o debate sobre as dificuldades da construção do SNVS, as autoras compararam o desenvolvimento dos sistemas nacionais de vigilância sanitária (VS) e de vigilância epidemiológica (VE), este inserido no âmbito do campo recentemente instituído e chamado de "vigilância em saúde". O texto mostrou que na história dos dois sistemas há, sim, elementos para melhor compreensão dos constrangimentos à coordenação federativa e, em consequência, à estruturação, não apenas do sistema de vigilância sanitária, mas de todo o campo da promoção/prevenção do Sistema Único de Saúde (SUS). As singularidades do nosso modelo federativo, que reconhece o município como ente federado, e da conformação da área de vigilância sanitária brasileira, que não tem similar em outro país, são apontadas como o pano de fundo de um esforço de coordenação federativa que visa à construção do SUS e, no seu âmbito, dos sistemas de vigilância em saúde e da vigilância sanitária.
Pretende-se aqui analisar três pontos relacionados com a estruturação do SNVS e com o esforço de coordenação federativa da vigilância sanitária.
A trajetória histórica da VS e da VE
VS e VE são duas áreas de grande importância para o SUS, que se pretende um sistema integrador de ações de promoção, prevenção e de assistência, tradicionalmente tratadas em separado nas antigas políticas públicas de saúde brasileiras. São áreas do campo da prevenção/promoção, concorrem para a descentralização do sistema de saúde e têm a necessidade comum de se organizar de forma sistêmica no território nacional. Mas têm trajetórias e os resultados bastante diferentes, como mostrou o texto principal. Essas diferenças certamente foram influenciadas pela diversidade de objetos, de método e de instrumentos de intervenção.
Conforme o texto, a vigilância epidemiológica teve seu desenvolvimento a partir do objetivo de implantar, em todas as unidades federadas, uma Unidade de Vigilância Epidemiológica (UVE), como estratégia básica para a concretização da Campanha de Erradicação da Varíola (CEV), em meados das décadas de 1960 e 1970. O instrumento principal de intervenção dessa campanha era a vacinação; uma ação de campo, junto à população, de inconteste necessidade de responsabilização das autoridades sanitárias locais. Os objetos de suas ações eram as doenças imunopreveníveis. Seu método de trabalho baseava-se fundamentalmente em construir informação sobre a população e sobre as doenças - necessidade que resultou no cuidado com a construção de bases e sistemas de informação.
A vigilância sanitária, por seu turno, nasceu cuidando dos portos, por um lado, e dos produtos manufaturados de grande impacto na saúde, por outro. Estes eram seus principais objetos. Havia um intenso processo de industrialização entre as décadas de 1940 e 1970, fruto de um modelo de desenvolvimento baseado na substituição de importações, de estímulos e incentivos para as indústrias se estabelecerem em território nacional. A tarefa de regulamentar essa industrialização, na parte do risco sanitário, era de competência principalmente federal, pois não se poderia ter regulamentos diferentes em cada unidade federada. Sua intervenção era eminentemente normativa - precisava regulamentar a implantação das indústrias e aprovar a produção e a comercialização dos seus produtos. Era também fiscalizatória, mas este componente nunca foi estruturado com eficiência. Seu método de trabalho deveria se fundamentar no conhecimento técnico sobre os processos produtivos e nas propriedades dos seus produtos. Entretanto, acabou sendo intensamente cartorial, baseado apenas em documentos, sem a necessária comprovação empírica.
A intervenção nos portos, por seu lado, envolvia relações de Estado, portanto tinha também natureza federal. O objeto de sua ação, à semelhança da VE, eram, principalmente, as doenças transmissíveis, e quando possível sua intervenção era dirigida ao controle de vetores. Seu método dependia de conhecimento sobre os mecanismos de transmissão das doenças, dos ciclos evolutivos dos seus vetores. Sua ação também era normativa e no campo, diretamente nos espaços que necessitavam de sanitização.
Outros determinantes das diferenças de estratégias entre a VE e a VS foram apontados no texto. A existência de uma referência teórica internacional (OMS e CDC/USA), no caso da VE, contribuiu significativamente para a legitimidade do seu projeto, assim como para o recurso a fontes externas de financiamento e formação de pessoal.
Ao contrário da VE, não há, por exemplo, registro de financiamento externo para a estruturação da VS. Uma tentativa foi feita no início da década de 1990, junto com uma proposta de reorganização da VS nacional em forma de sistema, porém não concretizada. Nessa época, já era de pleno conhecimento dos que trabalhavam na área a precariedade da Secretaria de Vigilância Sanitária, o órgão federal da VS. Apesar disso, o Ministério da Saúde não se empenhava em qualquer projeto para a reestruturação da VS na época, e o financiamento não foi efetivado.
Embora compromissadas com a proteção da saúde e a prevenção das doenças no desenho do SUS, as duas vigilâncias tiveram missões díspares e diferentes estratégias políticas adotadas para seu desenvolvimento.
A descentralização: a falta de debates e estratégias no campo da promoção/prevenção
A descentralização tem sido a diretriz mais importante na definição da política de estruturação do SUS e sua proposta integradora. No contexto da Constituinte e do início dos anos 1990, em pleno processo de transição democrática, a descentralização tinha uma concepção absolutamente política. Era o contraponto à centralização autoritária dos governos militares; significava a perspectiva de aproximação do poder público ao cidadão e uma mudança radical no balanço de poder entre os entes federados.
Entretanto, para avançar politicamente, o projeto de descentralização precisa de alternativas técnicas e administrativas. As sucessivas estratégias de descentralização adotadas pelo SUS trouxeram resultados bons e maus, mas permitiram um acúmulo de experiências que precisa ser mais bem aproveitado no desafio de coordenação federativa que o SUS representa.
Na VS, a descentralização de ações do nível federal para os estados, na área de alimentos, e a "municipalização" da VS, que começou em 1993 em estados como Minas Gerais, São Paulo e Paraná, não acontecia apenas em cumprimento à diretriz constitucional; era vista como solução para o desafogo das arcaicas estruturas existentes, em nível tanto federal como estadual. Pode-se afirmar que a descentralização da VS era alavancada pela absoluta insuficiência da vigilância federal - e também das vigilâncias estaduais - para a realização das suas ações, ainda de caráter cartorial.
Imersa nesse contexto, a descentralização da VS aconteceu sem um debate próprio que gerasse um diagnóstico da sua situação no plano nacional e propostas inovadoras de (re)organização das suas ações em forma sistêmica. O debate precário conjugado à pobreza da formulação de propostas (policy making) sobre a descentralização na área da VS talvez tenha conexão com a construção inconclusa (do SNVS) diagnosticada no texto de referência.
No campo da VE, como vimos, já havia um processo mais planejado e sustentado de estruturação das ações no nível das unidades federadas por meio da implantação das UVEs.
Os debates sobre a implantação do SUS, o sistema único que substituiu o sistema dual existente - prevenção e promoção em um ministério e a assistência em outro -, não contemplou devidamente as vigilâncias.
O modelo autárquico, o sistêmico e a lógica do mercado
É sempre importante lembrar que o SUS é uma política pública, fundamentada no Estado de Bem-Estar Social, que considera o direito à educação, à saúde, à previdência e à assistência social como conquistas da cidadania; que tem como pressuposto a valorização da solidariedade e o reconhecimento da natureza social do ser humano; que legitima as lutas de todos por direitos individuais, coletivos e políticos, que modelem uma sociedade mais justa e fraterna. É também necessário, sempre, lembrar a ênfase que o sistema de saúde deve dar a uma forma estrutural que privilegie a promoção da saúde - em que devem se encaixar a VS e a VE. E lembrar também que a alternativa às políticas sociais típicas do welfare state são as soluções de mercado para a educação, a saúde e a previdência, e toda a área social.
Entretanto, a VS, pela natureza de seus objetos, funciona muito próxima da lógica do mercado - da indústria e do comércio de bens e de serviços. É pressionada pelo mercado; dele recebe uma demanda imensa, o que inclusive organiza seus serviços; e é mais cobrada por resultados ao setor regulado do que à sociedade. Essencialmente, não pode ser vista como um entrave ao desenvolvimento, ao planejamento empresarial, ao empreendedorismo; antes, deve ser um vetor de impulso à qualidade dos bens e serviços e à qualidade das relações sociais que envolvem toda a cadeia da produção ao consumo.
Talvez essa dupla identidade da VS - estar inserida em uma política pública welfariana, mas funcionando para atender o mercado - dificulte a tarefa da coordenação federativa de um trabalho entre os entes federados, que caminhe no sentido da construção sistêmica da sua organização.
O modelo sistêmico é também um modelo que precisa da cooperação, da colaboração, da consciência dos direitos sociais, dos valores da solidariedade, dos objetivos sociais de cidadania e da dependência entre suas partes. O diagnóstico que se faz é que a VS brasileira tem uma forma organizativa muito mais próxima do modelo autárquico - mais compatível com políticas públicas de mercado - do que do modelo sistêmico. E quase duas décadas de descentralização não mudaram essa forma de trabalhar.
Considerações finais
Em síntese, a VE e a VS têm missões, objetos, métodos e instrumentos de intervenção muito diferentes, que determinaram histórias e estruturações no SUS também diferentes. A VS, com atribuições acentuadas na esfera federal, apresenta, talvez, maior dificuldade ao exercício da coordenação federativa.
Parece superada a fase de propostas vindas da vigilância em saúde, baseadas em uma concepção de vigilância que ignorava a singularidade de cada área da promoção/prevenção do SUS, tentando unificar áreas com objetos, métodos e instrumentos completamente diversos. Contudo, a VS não tem propostas para uma ação mais articulada à VE e ao SUS, e que concorra para a organização sistêmica.
O debate, ainda precário, sobre a descentralização na VS não pode ser geral e abstrato, apenas focado na sua função política. Atualmente, todos os atores do SUS têm consciência da necessidade política da descentralização, mas não há consenso quanto às estratégias sobre sua execução. Há pouco debate específico sobre descentralização, que contemple a singularidade de cada área da promoção da saúde. Sem debater tecnicamente o controle sanitário necessário para cada objeto da VS, não haverá avanço, pois fundamentalmente as ações de VS serão as mesmas de sempre.
Quando se iniciou a chamada "municipalização da VS", perdemos uma grande oportunidade de refletir sobre a VS feita até os anos 1990 - cartorial e bacharelesca - e de propor novas formas de organização de suas ações dentro do SUS. O município entrou no papel de ator e passou a realizar a VS da mesma forma que os estados a realizavam. As tarefas foram apenas transferidas. E prevalece a forma autárquica.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
19 Nov 2010 -
Data do Fascículo
Nov 2010