Open-access A humanização e a formação do profissional em fisioterapia

The humanization and the formation of the professional in physiotherapy

Resumos

Humanizar a atenção e a gestão em saúde no SUS se apresenta como meio para a qualificação das práticas de saúde e desafio para todos os trabalhadores da área. A pesquisa visou verificar a concepção dos concluintes do curso de fisioterapia acerca da humanização na sua formação. O estudo foi conduzido numa abordagem qualitativa, exploratória, descritiva, comparativa e analítica, cuja amostragem foi composta por 24 participantes. Os dados colhidos através de entrevistas semi-estruturadas foram submetidos à análise de conteúdo, do tipo temática, proposta por Bardin. Verificou-se que a concepção dos participantes acerca da humanização é muito restrita, superficial e desprovida de respaldo científico; não apontam consensos ou bases relativos aos contornos teóricos e mesmo operacionais acerca da humanização no âmbito da fisioterapia e sua abrangência e aplicabilidade também não estão inteiramente demarcadas; a visão é focada apenas na melhoria da relação trabalhador/usuário. Referem apresentar dificuldades no trabalho em equipe e compreender sua inserção na rede de atenção à saúde. As várias instâncias do SUS devem cumprir um papel indutor de mudanças nas práticas de saúde e, para isso, uma das exigências está no campo da formação profissional.

Humanização; Formação; Fisioterapia


Humanizing attention and management in the health area at SUS is presented as a way of qualification on health practices and a challenge to all the people that work in the area. The research intended to verify the conception of the physiotherapy graduating students about the humanization in their formation. The study was conducted in a qualitative, exploratory, descriptive, comparative and analytic approach, and its sample was composed by 24 individuals. The data collected through semi-structured interviews were submitted to content analysis, of the thematic kind, proposed by Bardin. We verified that the conception of the participants when it comes to the conception about the humanization is: restricted, superficial and with a lack of scientific knowledge; don't show a consensus or basis related to the theoretical and even operational aspects about the humanization in physiotherapy; and it's coverage and applicability aren't entirely demarcated, the view is only focused on the relation worker/user. They refer to find difficulties in working as a group and understand its insertion in the attention in health area. The various bodies of SUS might perform a challenge maker role in health practices, and for that, one of the necessities is on the professional formation.

Humanization; Formation; Physiotherapy


ARTIGO

EDUCAÇÃO E CONTRIBUIÇÕES DOS VÁRIOS PROFISSIONAIS DE SAÚDE

A humanização e a formação do profissional em fisioterapia

The humanization and the formation of the professional in physiotherapy

Isabella Dantas da SilvaI; Maria de Fátima de Araújo SilveiraII

IFaculdade de Ciências Médicas de Campina Grande. Av. Argemiro de Figueiredo 1.901, Itararé. 58104-591 Campina Grande PB. isabella_d_s@hotmail.com

IIUniversidade Estadual da Paraíba

RESUMO

Humanizar a atenção e a gestão em saúde no SUS se apresenta como meio para a qualificação das práticas de saúde e desafio para todos os trabalhadores da área. A pesquisa visou verificar a concepção dos concluintes do curso de fisioterapia acerca da humanização na sua formação. O estudo foi conduzido numa abordagem qualitativa, exploratória, descritiva, comparativa e analítica, cuja amostragem foi composta por 24 participantes. Os dados colhidos através de entrevistas semi-estruturadas foram submetidos à análise de conteúdo, do tipo temática, proposta por Bardin. Verificou-se que a concepção dos participantes acerca da humanização é muito restrita, superficial e desprovida de respaldo científico; não apontam consensos ou bases relativos aos contornos teóricos e mesmo operacionais acerca da humanização no âmbito da fisioterapia e sua abrangência e aplicabilidade também não estão inteiramente demarcadas; a visão é focada apenas na melhoria da relação trabalhador/usuário. Referem apresentar dificuldades no trabalho em equipe e compreender sua inserção na rede de atenção à saúde. As várias instâncias do SUS devem cumprir um papel indutor de mudanças nas práticas de saúde e, para isso, uma das exigências está no campo da formação profissional.

Palavras-chave: Humanização, Formação, Fisioterapia

ABSTRACT

Humanizing attention and management in the health area at SUS is presented as a way of qualification on health practices and a challenge to all the people that work in the area. The research intended to verify the conception of the physiotherapy graduating students about the humanization in their formation. The study was conducted in a qualitative, exploratory, descriptive, comparative and analytic approach, and its sample was composed by 24 individuals. The data collected through semi-structured interviews were submitted to content analysis, of the thematic kind, proposed by Bardin. We verified that the conception of the participants when it comes to the conception about the humanization is: restricted, superficial and with a lack of scientific knowledge; don't show a consensus or basis related to the theoretical and even operational aspects about the humanization in physiotherapy; and it's coverage and applicability aren't entirely demarcated, the view is only focused on the relation worker/user. They refer to find difficulties in working as a group and understand its insertion in the attention in health area. The various bodies of SUS might perform a challenge maker role in health practices, and for that, one of the necessities is on the professional formation.

Key words: Humanization, Formation, Physiotherapy

Introdução

O Sistema Único de Saúde (SUS) é o resultado de lutas pela redemocratização da sociedade brasileira que aconteceram em meio aos movimentos de resistência à ditadura militar. No campo da saúde, essa resistência se exprimiu com o surgimento do movimento da Reforma Sanitária, em reação ao modelo tecnicista do complexo médico-industrial, preconizando saúde para todos, através da prevenção, promoção e reabilitação, sendo a atenção primária o foco dessas ações.

Embora a saúde seja um direito constitucionalmente garantido, suas práticas revelam a contradição existente entre as conquistas estabelecidas no plano legal e a realidade de crise vivenciada pelos usuários e trabalhadores relacionados com o processo saúde-doença. No cotidiano do atual sistema de saúde, ainda se enfoca a doença e fatores como o valor da experiência subjetiva do usuário; a sua experiência de vida, a permanente interdependência entre os condicionantes biológicos, psicossociais, culturais e ambientais relacionados ao processo saúde-doença são desconsiderados, o que implica uma série de consequências negativas para o relacionamento profissional/usuário e garantia da linha de produção do cuidado, no âmbito dos princípios doutrinários e das diretrizes organizativas dos SUS.

Apesar dos avanços acumulados no que se refere aos princípios norteadores e à descentralização da atenção e da gestão, o SUS ainda enfrenta fragmentação do processo de trabalho e das relações entre os diferentes trabalhadores e da rede assistencial, dificultando a complementaridade entre a rede básica e o sistema de referência; precária interação nas equipes e despreparo para lidar com a dimensão subjetiva nas práticas de atenção; sistema público de saúde burocratizado e verticalizado; baixo investimento na qualificação dos trabalhadores, especialmente no que se refere à gestão participativa e ao trabalho em equipe; poucos dispositivos de fomento à cogestão e à valorização e inclusão dos gestores, trabalhadores e usuários no processo de produção de saúde; desrespeito aos direitos dos usuários; controle social frágil dos processos de atenção e gestão do SUS; modelo de atenção centrado na relação queixa-conduta e formação dos trabalhadores de saúde distante do debate e da formulação da política pública de saúde1.

A dimensão desumanizante no campo da saúde vem ocorrendo na medida em que, baseado no modelo biomédico, os usuários do sistema são reduzidos a objetos da própria técnica, des personalizados em uma investigação que, para se aceitar científica, se propõe fria e objetiva. O saber técnico define qual é o bem de seu usuário, independentemente de sua opinião. O lucro é o horizonte final do processo.

Casate e Corrêa2 ressaltam que se faz necessário humanizar as práticas em saúde diante do acelerado processo de desenvolvimento tecnológico nesta área, em que a singularidade do usuário emoções, crenças e valores ficou em segundo plano, sua doença passou a ser objeto do saber reconhecido cientificamente e a assistência se desumanizou, principalmente no atendimento e nas condições de trabalho, dificultando as relações humanas, tornando-as frias, objetivas, individualistas e calculistas.

Diversos fatores demonstram a promoção da desumanização na atenção em saúde e podem ser agrupados em três categorias: (1) em relação às falhas na organização do atendimento (longas esperas e adiamentos de consultas e exames, ausência de regulamentos, normas e rotinas, deficiência de instalações e equipamentos, bem como falhas na estrutura física); (2) ligados especificamente à relação com o doente (o anonimato, a despersonalização, a falta de privacidade, a aglomeração, a falta de preparo psicológico e de informação, bem como a falta de ética por parte de alguns trabalhadores); e (3) no que diz respeito às condições de trabalho (baixos salários, dificuldade na conciliação da vida familiar e profissional, jornada dupla ou tripla, ocasionando sobrecarga de atividades e cansaço, o contato constante com pessoas sob tensão, gerando ambiente de trabalho desfavorável).

A discussão sobre a humanização no campo da saúde, dessa forma, teve início em um cenário no qual a humanização era secundarizada e/ou banalizada por grande parte dos gestores e trabalhadores e reivindicada tanto pelos usuários quanto por trabalhadores, buscando uma atenção com acolhimento, de modo resolutivo e lutando por melhores condições de trabalho. Mas o conceito se expressava em ações fragmentadas, era frágil e impreciso, ligado ao voluntarismo, assistencialismo, paternalismo ou mesmo ao tecnicismo de um gerenciamento sustentado na racionalidade administrativa e na qualidade total. Para que ocorresse um processo de mudança forte, respondendo aos anseios dos usuários e trabalhadores da saúde, foi necessário enfrentar desafios conceituais e metodológicos3.

No campo da atenção em saúde, o termo humanização tem sido utilizado com diferentes significados e entendimentos. A humanização, que antes estava relacionada a movimentos religiosos, filantrópicos e paternalistas, tem o seu conceito modificado no decorrer dos últimos anos. Atualmente, é entendida como a capacidade de ofertar atendimento de qualidade, articulando os avanços tecno­lógicos, com acolhimento, com melhoria dos ambientes de cuidado e das condições de trabalho dos trabalhadores.

Humanizar refere-se à possibilidade de uma transformação cultural da gestão e das práticas desenvolvidas nas instituições de saúde, assumindo-se uma postura ética de respeito ao outro, de acolhimento do desconhecido, de respeito ao usuário, o mesmo passando a ser entendido como um cidadão e não apenas como um consumidor de serviços de saúde4.

Diante dessas constatações, houve a necessidade de redefinição do conceito e dos modos de construção de uma política pública e transversal de humanização na saúde. Nesse cenário, o Ministério da Saúde lançou, em 1994, a Política Nacional de Humanização (PNH), Humaniza SUS, como proposta para enfrentar o desafio de assegurar os princípios do SUS, no que eles impõem de mudança dos modelos de atenção e gestão das práticas de saúde. Essa nova política leva em consideração o conceito de clínica ampliada como trabalho clínico, que visa ao sujeito e à doença, à família e ao contexto, tendo como objetivo produzir saúde e aumentar a autonomia do sujeito, da família e da comunidade. Utiliza como meios de trabalho a integração da equipe multiprofissional; a adstrição de clientela e construção de vínculo; a elaboração de projeto terapêutico, conforme a vulnerabilidade de cada caso; e a ampliação dos recursos de interação sobre o processo saúde-doença1.

Na área da saúde, um grande desafio para a implementação de medidas humanizadoras no âmbito assistencial é a sensibilização e preparação dos trabalhadores, que têm uma formação acadêmica, fundamentalmente tecnicista.

Para atender às novas políticas de saúde, fazem-se necessárias mudanças na formação dos recursos humanos, adaptando-os à nova realidade do "tratar em saúde", representando, portanto, um processo de transformação complexo, que deve iniciar-se durante a graduação e manter-se como um processo de educação continuada após a inserção deste profissional no mercado de trabalho5.

As profissões da saúde fazem parte do conjunto que resulta na assistência a seres humanos, que são totalidades complexas. Cada profissão possui especificidade de conhecimentos e práti cas. Essa especialização do conhecimento, ao invés de possibilitar avanço, pode gerar fragmentação e alienação, pois, quando não há integração entre os trabalhadores, o atendimento ao usuário ocorre de forma segmentada e tecnicista, sem levar em consideração o aspecto humano e a integralidade do mesmo.

No caso da formação do fisioterapeuta, esta deve ir além de uma preparação para atuação técnica, enfocando diretamente o ser humano. O fisioterapeuta deverá estar voltado à atenção integral ao usuário, não só do ponto de vista físico, como também social, ético e humano.

Embora tenha recursos físicos disponíveis, o fisioterapeuta tem como principal instrumento as mãos, que, através do toque, cuidam, reabilitam, confortam e curam. As mãos dos fisioterapeutas que operam modernos equipamentos também são aquelas que tocam e massageiam os usuários. O resgate do uso das mãos no contato direto entre profissional-doente está contribuindo para a humanização do atendimento e a valorização do toque, que vai de encontro à supervalorização das máquinas em detrimento de uma assistência humanizada.

Embora a origem da fisioterapia esteja vinculada ao modelo biomédico, cartesiano, com uma visão reducionista, em que o corpo é comparado a uma máquina, e o profissional, centrado em atenuar e reabilitar os organismos lesados fisicamente, em decorrência das grandes guerras mundiais e do processo de industrialização, não se pode pensar em fisioterapia sem envolvimento, sem diálogos, sem trocas de conhecimento, sem formação de vínculo, uma vez que o fisioterapeuta é um dos trabalhadores que tem como principal instrumento as mãos e utiliza o toque no corpo do outro da forma mais incisiva possível. Portanto, não pode permitir que as suas intervenções terapêuticas sejam desumanizadas6.

É a partir do conhecimento global, holístico do ser humano, que se pode alcançar o objetivo maior para o qual a fisioterapia apresenta-se, que é preservar, manter, desenvolver e restaurar a integridade de órgãos, sistema e/ou função. É necessária uma visão mais sistêmica e não apenas reducionista, para que se possa ir além da ausência da doença. Uma fisioterapia que centre o seu conhecimento na doença não produz saúde e, se a mesma fica reduzida ao campo físico, ela perde sua essência.

Como qualquer outro trabalhador da saúde, o fisioterapeuta precisa estar ciente e sensibilizado quanto à questão da humanização, saber reconhecer o ser humano na sua integridade e singularidade e ter consciência do seu papel frente àqueles que o procuram acometidos por alguma enfermidade, aceitando suas reações psíquicas e a própria atitude frente à doença.

O atendimento humanizado traz melhores condições de recuperação para os usuários, devendo a fisioterapia tornar-se atuante desta prática, pois proporcionará inúmeros benefícios ao seu usuário e ao próprio trabalho.

O ressignificar da humanização faz-se necessário no sentido de qualificar o atendimento terapêutico, promover a satisfação do profissional e do usuário, além de conscientizar o profissional da saúde, em especial o fisioterapeuta, para que reconheça o usuário como um sujeito e não como um simples objeto de sua atenção, deixando de considerar a doença e dedicando-se a cuidar de uma pessoa que circunstancialmente está doente. Cada pessoa deve ser vista de maneira holística, levando-se em consideração vários aspectos de sua vida: contexto social, econômico, cultural, familiar, espiritual, através do compromisso político, técnico, ético para com a comunidade e as pessoas.

Uma redefinição do conceito de humanização, resistindo a seu sentido instituído, passa a entender a humanização como estratégia de interferência nas práticas de saúde, levando em conta que os sujeitos sociais, atores concretos e engajados em práticas locais, quando mobilizados, são capazes de, coletivamente, transformar realidades, transformando-se a si próprios neste mesmo processo.

O desafio metodológico é alterar as práticas concretas dos serviços de saúde, aumentar a qualidade de vida dos usuários e melhorar as condições de trabalho das equipes de saúde, através da sintonia entre "o que fazer" e "como fazer", o conceito com a prática, o conhecimento com a transformação da realidade, valorizando os processos de mudança dos sujeitos na produção de saúde, reconhecendo a inseparabilidade entre as práticas do cuidado e a gestão do cuidado, uma vez que não há como transformar os modos de atender à população num serviço de saúde sem que se alterem, também, a organização dos processos de trabalho, os mecanismos de planejamento, decisão, avaliação e de participação, a dinâmica de interação da equipe, com mudança na forma de relacionamento nas práticas de saúde, aumentando o grau de comunicação, conectividade e intercessão intra e intergrupos nos serviços e em outras esferas do sistema3.

Humanizar a atenção e a gestão em saúde no SUS se apresenta como meio para a qualificação das práticas de saúde: acesso com acolhimento, atenção integral e equânime com responsabilização e vínculo, valorização dos trabalhadores e usuários com avanço na democratização da gestão e no controle social participativo e isso diz respeito a todos os envolvidos na produção do cuidado7.

A fisioterapia, por ser uma profissão relativamente nova e encontrar-se em fase de expansão, apresenta escassez de literatura disponível, principalmente relacionada ao tema humanização na fisioterapia, o que remete à necessidade de desenvolvimento de pesquisas na área.

Diante do exposto, esse estudo teve por objetivo verificar a concepção dos acadêmicos de fisioterapia, matriculados no último ano do curso de fisioterapia de uma instituição de ensino superior, pública, no estado da Paraíba, acerca da abordagem sobre a humanização no processo ensino-aprendizagem, teórico-prático e com vistas a sua inserção no Sistema Único de Saúde.

Metodologia

Sendo a temática humanização eminentemente subjetiva, na qual se estudam os significados da experiência humana, trata-se de uma pesquisa realizada segundo uma abordagem qualitativa, uma vez que objetivou identificar a concepção dos acadêmicos de fisioterapia acerca da humanização nas suas práticas.

O presente estudo caracteriza-se como transversal, uma vez que foi escolhido um intervalo de tempo limitado para a realização das entrevistas, e exploratório, na busca de ampliar os estudos relacionados ao tema humanização na fisioterapia. Foi realizado em uma universidade pública, na cidade de Campina Grande (PB), cuja população foi compreendida por alunos do curso de fisioterapia. Para delimitação da amostra, optou-se pela amostragem por exaustão8, em que são incluídos todos os indivíduos disponíveis. Diante do exposto, a amostra foi composta, por acessibilidade, de todos os alunos concluintes no semestre letivo 2007.1, que aceitaram participar voluntariamente deste estudo, perfazendo um total de 24 participantes.

A pesquisa obedeceu às diretrizes éticas da Declaração de Helsinqui (1964), versão atualizada de 2000, e as recomendações da Resolução nº 196/96, do Conselho Nacional de Saúde, tendo sido apreciado e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Estadual da Paraíba. A elaboração e assinatura do termo de consentimento livre e esclarecido possibilitou aos participantes o recebimento de informações sobre o estudo, garantia de anonimato e confidencialidade de dados sigilosos. Para identificação nos discursos, foi utilizada a letra E, para entrevistado, seguida da ordem de realização da entrevista, de E1 a E24, e gênero do participante, sendo SF (sexo feminino) e SM (sexo masculino).

Para a coleta de dados, foram realizadas, no primeiro semestre do ano de 2007, entrevistas semi-estruturadas, abordando o tema humanização em fisioterapia. Os alunos foram entrevistados individualmente, não sendo delimitado o tempo de duração da entrevista para cada entrevistado, uma vez que as respostas foram subjetivas. Durante a realização desta pesquisa, foram consideradas todas as questões éticas e os discursos e depoimentos dos entrevistados foram submetidos à análise de conteúdo do tipo do conteúdo temático proposta por Bardin9, cujo produto será apresentado em categorias, ilustradas com discursos dos acadêmicos.

Foram identificadas as seguintes categorias analíticas: a humanização e seus significados, a formação acadêmica em fisioterapia com vistas a práticas humanizadas e os cenários de aprendizagem para a humanização.

Resultados e discussão

A humanização e seus significados

A utilização do termo humanização no campo da saúde não é recente, embora ainda não exista uma grande quantidade de pesquisas sobre o tema, particularmente na área da fisioterapia, podendo ser objeto de distintas interpretações, as quais orientaram as questões a serem pesquisadas.

Dentre os formandos, foi possível notar o pouco conhecimento, acerca da humanização, principalmente relativos ao conceito: "é tratar o paciente como pessoa" (E8, SF); "é você tratar o paciente independente de qualquer coisa" (E15, SF); "é ter o contato com o paciente". (E24, SF).

Compilando alguns trabalhos publicados nas revistas científicas da área da saúde, diversos autores constatam algumas direções fundamentais da preocupação com a humanização e satisfação do usuário: ora aparece com uma noção de amenização da lógica do sistema social, centrado, sobretudo, numa crítica à tecnologia e como tentativa de criar um "capitalismo humanizado", ora como a busca de uma essência humana perdida, ou seja, como um movimento de restauração moral, ora como uma negativa existencialista da realidade concreta, imaginando uma autonomia das emoções e afetividades individuais da práxis humana, ora como processo de organização institucional que valoriza a escuta no ato assistencial, ora como valorização de direitos sociais10.

No entanto, o termo humanização tem sido empregado constantemente no âmbito da saúde, sendo a base de um amplo conjunto de iniciativas; embora não possua uma definição mais clara, geralmente designa a forma de assistência que valoriza a qualidade do cuidado do ponto de vista técnico, associada ao reconhecimento dos direitos do usuário, de sua subjetividade e cultura, além do reconhecimento do profissional11.

A humanização é entendida como valor, na medida em que resgata o respeito à vida humana, abrangendo circunstâncias sociais, éticas, educacionais e psíquicas, presentes em todo relacionamento humano. Este valor é definido em função de seu caráter complementar aos aspectos técnico-científicos, que privilegiam a objetividade, a generalidade, a causalidade e a especialização do saber12.

No que concerne à abrangência e a aplicabilidade nas práticas em saúde, os discursos enfocam: "é um processo de conscientização que é feito na tentativa de melhorar a forma de relação de uma pessoa com a outra". (E1, SF)

"É tratar o paciente com respeito, explicar as coisas que você vai fazer, quais são os procedimentos, saber ouvir". (E5, SF)

"Humanização é o contato que a gente tem, dentro da nossa profissão, com as pessoas, com o nosso paciente, com o meio em que a gente convive". (E17, SM)

Os mesmos apresentam uma visão muito restrita, focada apenas e/ou quase sempre em melhorar o contato, o diálogo ou a comunicação formal. Neste sentido, Ayres13 enfoca que o conceito de humanização tem ocupado lugar de destaque nas atuais propostas de reconstrução das práticas de saúde no Brasil, no sentido de sua maior integralidade, efetividade e acesso.

Neste sentido, a relação entre o trabalhador e o usuário deve ser, além de técnica, humana. O relacionamento humanizado pressupõe atenção, respeito, educação, cortesia, consideração, solidariedade e vontade de servir. Sem tais predicados, torna-se difícil e existência de uma assistência humanizada. Além da forma como se mantém o contato direto com os usuários, também é direito do cliente ser plenamente informado de todos os procedimentos, diagnóstico, tratamento e encaminhamento médicos que lhe digam respeito12.

Outras questões importantes para se consolidar uma assistência humanizada e de qualidade é a implementação de marcas específicas propostas pela Política Nacional de Humanização (PNH), que demonstram quão ampla é a visão que esta política traz, através do desenvolvimento e/ou ampliação do acesso e atendimento acolhedor e resolutivo, considerando o usuário como um cidadão que conhece os trabalhadores que cuidam da sua saúde, tendo direito à acompanhante e à gestão participativa, sendo esta, tanto para os trabalhadores quanto para os usuários, garantida pelas unidades de saúde.

Como política, a humanização deve, portanto, traduzir princípios e modos de operar no conjunto das relações entre trabalhadores e usuários, entre os diferentes trabalhadores, entre diversas unidades e serviços de saúde e entre instâncias que constituem o SUS1.

Embora os participantes da pesquisa mencionem termos isolados que podem ser associados à integralidade, dignidade e respeito à vida humana, enfatizando-se a dimensão ética na relação entre usuários e trabalhadores da saúde, termos que representam o núcleo do conceito de humanização, esta abordagem é colocada de forma superficial. Os mesmos citam termos e expressões, mas não possuem um embasamento teórico consistente que lhes permita definir, discutir e/ou apresentar argumentos que fundamentem suas respostas: "entender que o ser humano é um ser biopsicossocial, é você ver ele como um todo". (E3, SF).

"Ver o paciente como um cidadão". (E14, SM)

"A boa vontade e o carinho que você trata cada paciente, falando diretamente com cada um, chamando pelo nome". (E8, SF)

Vaitsman e Andrade14 afirmam que o conceito de humanização está ligado ao paradigma dos direitos e a cada dia surgem novas reivindicações, que remetem às singularidades dos sujeitos; este paradigma vem se tornando complexo e expandindo-se, alcançando novas esferas sociais e discursivas. Neste sentido, o respeito é imprescindível na relação terapeuta-usuário e se fundamenta no fato que o cliente é um ser individualizado e com dignidade.

A humanização, então, requer um processo reflexivo acerca dos valores e princípios que norteiam a prática profissional, pressupondo, além de um tratamento e cuidado dignos, solidários e acolhedores por parte dos trabalhadores da saúde ao seu principal objeto de trabalho o doente/ser fragilizado , uma nova postura ética que permeie todas as atividades dos trabalhadores e processos de trabalho institucionais.

Com a realização desta pesquisa, foi possível identificar, nos discursos dos participantes, respostas curtas, com raciocínio pouco desenvolvido a respeito do tema humanização: "é ver o paciente como gente, como um todo e não como uma doença". (E1, SF)

"Entender o outro de uma forma mais abrangente, entender aquilo ali de uma forma mais holística". (E15, SF)

Embora a maioria dos entrevistados cite que é necessário ver como um todo, de uma forma holística, ainda se refere ao usuário como "aquilo", de uma forma impessoal, despersonalizada, como se fosse apenas um objeto.

No entanto, a humanização na saúde é ir além da competência técnico-científica dos trabalhadores, se estende à competência nas relações interpessoais, sendo estas pautadas no respeito ao ser humano, à vida, na solidariedade e sensibilidade para perceber as necessidades singulares dos sujeitos envolvidos. Portanto, humanizar não é só tratar bem o paciente, vendo como um todo, mas é também prestar assistência qualificada.

A formação acadêmica em fisioterapia com vista às práticas humanizadas

A fisioterapia passou por muitas conquistas ao longo da evolução histórica da profissão. Entretanto, atualmente, ainda se observa a formação de profissionais centrada no modelo biomédico e tecnicista, sem considerar ou considerando muito pouco as políticas públicas vigentes, como a PNH, por exemplo: "a formação acadêmica não contribui para a prática humanizada". (E4, SF)

"A formação acadêmica prepara um profissional frio, que só vai pela parte clínica da coisa". (E1, SF)

Este tipo de formação que ainda predomina nos dias atuais é consequência da origem da fisioterapia no Brasil, que nasceu de um ramo da medicina e teve o curso criado para habilitar profissionais que pudessem auxiliar o médico na prática da medicina física e reabilitação, executando suas prescrições, e tornou-se uma área independente somente em meados do século passado15.

É possível observar que, em vez de uma matriz curricular flexível, na qual os componentes se inter-relacionam conforme o conteúdo exposto, como proposto pelo currículo integrado, o que se encontra é uma grade curricular, rígida e previamente estabelecida.

Neste sentido, os autores Cordeiro e Minayo16 afirmam que a visão tecnicista continua influenciando a formação dos profissionais de saúde, com o cliente sendo visto como objeto e não como um sujeito da ação dos profissionais de saúde; as ações são centradas no seu corpo, órgão afetado. Os autores apontam, ainda, que, na área de saúde, é necessário integrar, na formação de seus profissionais, uma formação humanística.

Embora a formação humanista seja de grande importância para os profissionais da saúde, os participantes da pesquisa afirmam que, durante a formação acadêmica, não existe uma disciplina que aborde o tema humanização nas práticas, sendo aquela centrada nas especialidades médicas, expondo a anatomia, fisiologia, patologia e tratamento dos diversos órgãos e sistemas, com o currículo rigidamente predeterminado. Porém, mais importante que ter uma disciplina específica para a humanização, é que essa temática atravesse todas as abordagens teóricas e práticas do processo ensino-aprendizagem.

Dos 24 entrevistados, dezessete relataram que não tiveram uma disciplina específica que abordasse o tema em questão; alguns referiram apenas que o mesmo foi mencionado de uma forma vaga e superficial: "um ou outro professor que falava, assim, do jeito da gente se comportar, para não tratar o paciente pelo nome da doença, num sei o quê, essas coisas. Mas disciplina, não. Era uma coisa isolada, um professor falava uma coisa perdida, uma coisa solta". (E1, SF)

"Raramente se falava, assim, de uma forma isolada. Se soltavam algumas coisas, procurar chamar o paciente sempre pelo nome, esse tipo de coisa assim, procurar saber como ele está, só isso". (E5, SF)

Além do pouco conhecimento acerca do tema, é importante destacar que os participantes, quando se referem à humanização, utilizam termos como "num sei o quê, essas coisas", "esse tipo de coisa assim", que mostram o desconhecimento, o pouco interesse e até descaso mesmo, como se o tema fosse insignificante para eles e em nada contribuísse para uma melhor prática.

Corroborando esta compreensão, um dos participantes, em sua fala, expõe um fato mais preocupante ainda: "já foi falado, mas a humanização é tipo assim: você sabe que existe, mas não conhece, é como o SUS". (E15, SF)

O que mostra que eles não só desconhecem a Política Nacional de Humanização, como também o Sistema Único de Saúde, e, como o próprio nome já diz, é o único sistema de saúde vigente no país, seja na assistência pública, privada ou filantrópica. Esse fato contribui diretamente para o despreparo durante a atuação, no sentido de atender às necessidades do SUS e da população.

Diante do desconhecimento dos princípios e diretrizes propostos pela PNH, eles apenas mencionam termos que podem ser relacionados aos princípios do SUS, sem uma reflexão mais aprofundada: "ver o paciente dentro da realidade dele como um todo, não só a parte física, ele também tem emoções, ele está inserido em um contexto social". (E12, SF)

"Não distinguir as diferenças, tanto social, como racial de cada paciente, tratá-lo realmente como ele merece, como ser humano, levar em consideração todo o ambiente em que ele vive". (E8, SF)

Considerando-se a evolução dos modelos de atendimento à saúde no Brasil, observa-se que, no plano legal, a criação do SUS, em 1988, representou um avanço principalmente pelos seus princípios gerais de organização. Este sistema tem como uma de suas características fundamentais o de ser orientado pelos mesmos princípios e diretrizes em todos os serviços de saúde. A universalidade garante o acesso de todos aos serviços e ações de saúde, promovidos pelo sistema, não obstante a localização geográfica da população, suas opções políticas e condições econômica e social, o que representa o grande diferencial e, ao mesmo tempo, o grande desafio do sistema, dadas as dimensões continentais do país, o tamanho da população e as desigualdades existentes17.

O princípio da equidade busca assegurar a prestação de serviços e desenvolvimento de ações de saúde para todos, observando as desigualdades existentes na categoria dos usuários do sistema; é uma condição inerente à cidadania e à justiça social. Outro princípio não menos desafiador é o da integralidade, que possibilita ao indivíduo que adentra no sistema de saúde ser visto como um "todo" e não como um conjunto de partes ordenadas, fragmentadas e estanques.

Os participantes enfocam ainda como um ponto importante para a humanização a questão da relação entre os sujeitos envolvidos no processo de cuidar: "humanização é a relação que você tem com o paciente, não apenas profissional mas aquela relação também de passar afetividade, de passar segurança, de não apenas atender". (E21, SF)

Em toda relação está sempre o "outro" e só se desenvolvem relações éticas quando se vê o outro como interlocutor válido e como agente social das próprias mudanças por meio da reflexão consciente e compartilhada do problema18. O envolvimento e a participação dos usuários só são possíveis mediante um processo de diálogo entre saberes, no qual cada um contribui com seu conhecimento peculiar da situação, acreditando-se que o desenvolvimento efetivo dessa participação parte de práticas vivenciadas no cotidiano.

O autor supracitado enfoca ainda que, quanto mais os trabalhadores da saúde enfatizarem o órgão doente e não a pessoa, menos chance terão de entender os seus sintomas, uma vez que as práticas relacionadas com o processo saúde-doença, longe de se reduzirem a uma evidência orgânica e objetiva, estão intimamente relacionadas com as características de cada contexto sociocultural e também com a forma como cada pessoa experimenta subjetivamente esses estados.

Os cenários de aprendizagem para a humanização

No que concerne à PNH, várias são as dimensões envolvidas no planejamento e implantação da assistência humanizada à saúde que, por sua vez, não demarca um conceito, habitualmente afirma-se apenas um "entendimento" no seu coletivo de formuladores.

Neste sentido, a humanização tem sido associada a distintas e complexas categorias relacionadas à produção e gestão de cuidados em saúde, tais como integralidade, satisfação do usuário, necessidades de saúde, qualidade da assistência, gestão participativa, protagonismo dos sujeitos e a intersubjetividade envolvida no processo de atenção. Portanto, a humanização necessita do aporte indiscutível da ciência e da tecnologia, pressupõe investimentos financeiros, mas, acima de tudo, precisa contar com uma persistente proposta de sensibilização das pessoas19.

No que concerne ao que deveria acontecer nas práticas cotidianas, os participantes enfocam: "a conversa, a atenção que você dá a seu paciente, é a maneira de você tratá-lo bem, com respeito, saber acolher, principalmente conversando e não somente aplicando uma técnica". (E3, SF)

"Fazer um atendimento de uma forma humana, tratar as pessoas não como parte, ver a pessoa de uma forma geral, tanto o lado físico como o mental". (E7, SF)

Em contrapartida, com relação ao que realmente acontece nas práticas em saúde, os mesmos apresentam incoerências, conflitos e contradições: "o que acontece é chegar: bom dia! Vê o paciente na ficha, vê o que ele tem, às vezes, não se pergunta nem o que ele está sentido no dia e vai pela receita de bolo e pronto. É um problema de joelho, faz isso, isso e isso, só enfoca a doença". (E1, SF)

"Se chega, faz o procedimento, não se explica e raramente você chega e conversa antes com o paciente para saber como ele está, geralmente você vai logo atendendo, colocando os aparelhos e preocupado com o próximo paciente que tem". (E5, SF)

"Tudo é muito tecnicista, se vê tudo por partes. O ser humano é uma dor de cabeça, é uma artrose, coisa desse tipo, não ver o ser humano como um todo". (E15, SF)

A falta de conhecimento acerca da relevância de se investigar quais são as idéias, valores e crenças desenvolvidos pelos usuários e da valorização da dimensão subjetiva dos mesmos não representa apenas uma questão ética, como também uma questão de relação entre os sujeitos, implicando uma série de consequências negativas para o relacionamento profissional/cliente e para a consolidação da profissão.

Acolhimento, vínculo, valorização da escuta e organização dos serviços centrados nos usuários são alguns dos valores defendidos tanto pela humanização quanto pela integralidade. Em muitos pontos, esses conceitos se confundem, mas uma observação importante é que integralidade é um princípio do SUS e a humanização é uma política e ambos estão inter-relacionados.

Dentre as respostas, foi possível observar um questionamento acerca da desumanização das práticas, na tentativa de identificar o(s) fator(es) determinante(s) para tais, uma vez que a humanização deveria ser uma característica inerente ao ser humano: "se você começar a pensar na palavra humanização, pelo menos na minha parte, eu já vejo uma incoerência, porque a palavra humanização quer dizer humanizar um ato que é humano, então se a gente pensar dessa maneira a gente já começa a ter uma reflexão diferencial, 'porque eu vou humanizar algo que já deveria fazer parte do ser humano, do profissional humano?'; contudo a gente percebe que, no próprio atendimento profissional, algumas qualidades que deveriam existir no profissional da área de saúde não são encontradas. O que se observa é tratar o paciente como um objeto, instrumento de lucro, ainda se vê muito se referir ao paciente como qual é o número, qual é o protocolo, qual é o leito. E eu reflito muito sobre essa temática e que estratégia seria essencial para isso e em momentos chego a acreditar que tenho solução e em outros não". (E14, SM)

Campos20 afirma que a desumanização existente nos serviços de saúde é um produto humano, ainda quando resulte de uma combinação de problemas estruturais com posturas alienadas e burocratizadas dos operadores. Partindo deste pressuposto, não há como haver projeto de humanização sem que se leve em conta o tema da democratização das relações interpessoais e, em decorrência, da democracia em instituições.

Observa-se que, quando questionados como vêem as práticas da fisioterapia com relação à humanização, em um sentido geral, os participantes apontam, predominantemente, à falta de humanização nas práticas cotidianas.

Como argumentos para justificar tal posição, referem-se principalmente à questão da visão tecnicista, centrada no modelo biomédico, com relações frias e objetivas, e o predomínio da despersonalização do usuário: "tratam o paciente como objeto de estudo. A gente tem muito a visão que é vinda do médico, aquele sistema puramente automático, que não olha nem para o rosto do paciente". (E16, SM)

O tempo disponibilizado para o atendimento também é considerado restrito para a realização de uma assistência humanizada e o desenvolvimento das atividades necessárias para uma prática qualificada, diante de uma grande demanda de pacientes, o que favorece o atendimento de forma mecanicista e automática, se restringindo apenas à execução de técnicas e aplicação de aparelhos: "mas também tem a questão do tempo, temos que atender rápido porque são muitos pacientes e muitas vezes nem dá tempo saber como ele está direito". (E20, SF)

Além da questão tecnicista, tem a mercadológica; no cenário político e econômico atual, o lucro e a capacidade de produção são prioridades. A questão financeira e a necessidade de uma produtividade cada vez maior comprometem a qualidade da assistência, promovendo a disseminação da desumanização: "como a gente vive num mundo capitalista e aqui no Brasil principalmente se trabalha muito e recebe pouco, eu acho que o fator remuneração, principalmente na classe da gente da fisioterapia, contribui muito para a desumanização, porque para um fisioterapeuta prestar um atendimento qualificado, precisa de cerca de quarenta a cinquenta minutos, isso tirando por baixo, por que dependendo do caso, às vezes precisa até de mais tempo, e quando você vai trabalhar em uma clínica se paga por produtividade, se paga pouco, então você vai na carreira, faz o atendimento super rápido". (E9, SM)

"O paciente é um objeto principalmente de lucro. A demanda é muito alta e o valor é muito baixo que se recebe". (E13, SF)

"O atendimento é como se fosse uma escala de produção". (E21, SF)

Outro argumento utilizado para justificar a desumanização das práticas na fisioterapia foi a formação acadêmica centrada no modelo tradicional, mecanicista, que não dá conta de apresentar alternativas de saber e fazer capazes de enfrentar a realidade, com uma visão crítica, reflexiva e voltada para a necessidade de humanização na saúde: "em virtude da própria formação acadêmica, a gente sabe que as próprias estruturas curriculares não têm esse objetivo central, se tem uma abordagem superficial, eles citam a palavra humanização". (E14, SM)

Por conseguinte, para que a atenção fisioterapêutica humanizada seja alcançada, o profissional deverá ver a integralidade nos diversos focos e ser capaz de identificar os diversos determinantes que envolvem o processo saúde-doença, não vendo apenas a condição biológica do indivíduo, mas as condições sociais, culturais e religiosas.

Considerando estas perspectivas, para a consolidação da humanização, é necessária uma mudança das estruturas, da forma de trabalhar e também das pessoas. A humanização da clínica e da saúde pública depende de uma reforma da tradição médica e epidemiológica, representando uma operação de resgate das relações, uma reforma que consiga combinar a objetivação científica do processo saúde/doença/intervenção com novos modos de operar decorrentes da incorporação do sujeito e de sua história, desde o momento do diagnóstico até o da intervenção.

O trabalho em saúde se humaniza quando busca combinar a defesa de uma vida mais longa com a construção de novos padrões de qualidade da vida para sujeitos concretos, dependendo ainda de mudanças das pessoas, da ênfase em valores ligados à defesa da vida, na possibilidade de ampliação do grau de desalienação e de transformar o trabalho em processo criativo e prazeroso20.

Quanto às atitudes que os participantes classificam como humanizadas na prática da fisioterapia, são enfocadas: "é explicar o atendimento a ele". (E5, SF)

"A própria prática da fisioterapia já é humanista. É ver o paciente como um todo, não só tratando o foco da dor ou da patologia dele e sim ele como um todo". (E16, SM)

"Tratar o paciente com carinho, não apenas como uma doença, como uma patologia, é você observar a inclusão social dele, é observar ele como um todo, psicologicamente, fisicamente e socialmente". (E19, SF)

Mas faz-se necessário o esclarecimento de que, para humanizar a relação serviço versus profissional de saúde versus usuário, não basta considerar a questão da responsabilidade, da cordialidade, do respeito, pressupostos para a realização da assistência. É necessário ultrapassar essa visão "afetuosa" da atenção e discutir o modo como os trabalhadores se relacionam com seu principal objeto de trabalho a vida e o sofrimento de indivíduos e da coletividade21.

Percebe-se, também, que alguns dos entrevistados classificam como um bom acolhimento e uma prática humanizada apenas o fato de falar com o usuário: "é você chegar e perguntar como o paciente está". (E5, SF)

"Sempre quando ele chega, eu pergunto se melhorou ou não melhorou". (E6, SF)

"Saber falar com ele, entender ele, saber as condições financeiras que ele tem, a religião dele". (E12, SF)

Os discursos mostram pouca sensibilização quanto à temática abordada e, muitas vezes, acredita-se que humanizar o atendimento é acalentar o paciente; no entanto, a melhoria do contato humano entre profissional da saúde e usuário é necessária e fará com que o sistema de saúde adquira uma nova face, que beneficiará ambas as partes, ajudando no processo de cura e reabilitação, além de atender às exigências da própria natureza dos mesmos. Os doentes deixarão de ser tratados como objeto ou uma máquina que chega para conserto, para serem encarados como seres humanos em processo de tratamento.

Por conseguinte, considerando a PNH, o acolhimento não pode ser considerado como um espaço ou local, mas uma postura ética; é uma ação tecnoassistencial que pressupõe a mudança da relação profissional/usuário através de parâmetros técnicos, éticos, humanitários e de solidariedade; é um modo de operar os processos de trabalho em saúde de forma a atender a todos que procuram os serviços de saúde, ouvindo seus pedidos e assumindo no serviço uma postura capaz de acolher, escutar e dar respostas mais adequadas aos usuários; implica prestar um atendimento com resolutividade e responsabilização. Neste entendimento, o acolhimento com classificação de risco configura-se como uma das intervenções potencialmente decisivas na reorganização e implementação da promoção da saúde em rede22.

Portanto, a humanização do atendimento deve abranger fundamentalmente as iniciativas que apontam para a democratização das relações que envolvem o atendimento, o maior contato e melhoria da comunicação entre profissional de saúde e paciente e o reconhecimento dos direitos do paciente, de sua subjetividade e referências culturais, ou ainda o reconhecimento das expectativas de trabalhadores e pacientes como sujeitos do processo terapêutico. Em suma, o desafio da humanização diz respeito à possibilidade de se constituir uma nova ordem relacional, pautada no reconhecimento da alteridade e no diálogo11.

Tais mudanças vêm se alinhando ao desenho de um novo perfil de trabalhadores, que se en contrem mais sensíveis para perceber as reais necessidades da população, produzindo uma atenção capaz de gerar satisfação social e excelência técnica, de forma resolutiva, a custo suportável para as pessoas e a sociedade.

A temática humanização envolve questões amplas que vão desde a operacionalização de um projeto político de saúde calcado em valores como a cidadania, o compromisso social e a saúde como qualidade de vida, passando pela revisão das práticas de gestão tradicionais até os microespaços de atuação profissional nos quais saberes, poderes e relações interpessoais se fazem presentes. Assim, é necessário compreender a humanização como temática complexa que permeia o fazer de distintos sujeitos.

Considerações finais

À luz dos resultados encontrados e dos autores pesquisados, foi possível observar que a humanização surge como um desafio no novo século para os trabalhadores de saúde, pois há a preocupação com a complexidade tecnológica, fragmentação do cuidado em visões isoladas, especialização dos saberes, considerando também que nos serviços de saúde há situações "desumanizantes", como a racionalização, a mecanização e a burocratização excessiva do trabalho, além do impedimento de que o trabalhador desenvolva sua capacidade crítico-criativa.

O que se vê atualmente é uma profissão com pouco mais de trinta anos de reconhecimento, que saltou de uma condição pouco significante, de técnicos, para trabalhadores liberais, com uma posição social de respeito e credibilidade, tanto nos meios acadêmicos, quanto nos meios clínicos e também junto à população, em que ainda predomina a concepção assistencial/individual/uniprofissional para o enfrentamento das questões relativas ao processo saúde-enfermidade, sendo necessária a busca de um paradigma mais abrangente e explicativo que promova uma série de mudanças no campo político, econômico, social e ético.

Neste sentido, ao se especializar demasiadamente o currículo, dando-lhe uma perspectiva mecanicista, entra-se na contramão do crescimento profissional que tem, por si só, características de processo, transformadoras e construtivistas. Uma maneira de estruturar o ensino consiste em enfocar não as disciplinas, mas os processos ou fenômenos importantes, estudando-os na forma complexa como eles se apresentam na realidade e aportando seu estudo às contribuições das diversas disciplinas, de forma integrada.

Existem, portanto, deficiências estruturais da formação do profissional e do sistema de saúde como um todo, faltam filosofias de trabalho e de ensino voltadas à humanização de maneira efetiva, uma vez que humanizar tanto no aspecto político, quanto no aspecto individualizado, requer do trabalhador a percepção das implicações éticas do cuidado.

O profissional da saúde recebe uma formação que não se compatibiliza com o que ele encontra no mercado de trabalho. Este continua tendo uma formação tradicional em saúde, dentro de um modelo vertical, fragmentado e compartimentado, baseada na organização disciplinar e nas especialidades, conduzindo ao estudo fragmentado dos problemas de saúde das pessoas e das sociedades, levando à formação de especialistas que não conseguem mais lidar com as totalidades ou com realidades complexas.

Embora haja um forte consenso sobre as inadequações dos modelos hegemônicos de formação e de organização dos serviços de saúde e um forte crescimento do investimento em capacitação dos trabalhadores de saúde, as iniciativas e incentivos no sentido de trabalhar de modo transversal e interdisciplinar, reintegrando conhecimentos, e levando à transformação das práticas ainda são limitadas e enfrentam grandes desafios.

Diante desta realidade, é necessário enfatizar que, na vida profissional, não existem disciplinas em seu formato acadêmico e a maior parte dos problemas enfrentados apresentam perfis mistos em relação a sua natureza e à possibilidade de resolvê-los. Qualquer tentativa de continuar autonomamente a formação deverá ser acompanhada da capacidade e do hábito de refletir sobre os problemas e sobre o próprio conhecimento de maneira global e humanizada.

Colaboradores

ID Silva e MFA Silveira participaram igualmente de todas as etapas da elaboração do artigo. Silva ID, Silveira MFA

Artigo apresentado em 17/03/2008

Aprovado em 20/06/2008

Versão final apresentada em 06/08/2009

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Abr 2011
  • Data do Fascículo
    2011

Histórico

  • Recebido
    17 Mar 2008
  • Aceito
    20 Jun 2008
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