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A produção científica brasileira sobre a Estratégia Saúde da Família e a mudança no modelo de atenção

Brazilian scientific production on the Family Health Strategy and the change in the model of care

Resumos

A variedade de estudos existentes abordando a Estratégia Saúde da Família e seu papel na reorientação do modelo de atenção no país motivou a sistematização dos avanços e limites descritos nesses estudos. Assim, este estudo, a partir de uma revisão da produção científica sobre o tema, analisou se a ESF tem sido capaz de modificar o modelo de atenção. Foram encontrados quarenta e um artigos da base de dados Scielo publicados entre 2002 e 2010 que preencheram os critérios de inclusão. Estes foram analisados na íntegra nas dimensões político-institucional, organizacional ou técnico-assistencial. Os resultados mostram que apesar da melhoria do processo de trabalho na atenção primária, seu caráter substitutivo não foi evidenciado na maioria dos estudos. Foi predominante a expansão da universalização do acesso aos serviços de saúde, a extensão de cobertura e focalização. As mudanças são verificadas quando analisadas sob o foco da demanda, como maior acolhimento e vínculo. Os limites mais evidentes se situam no pouco foco nas necessidades de saúde, como na territorialização, participação comunitária e enfrentamento dos determinantes sociais de forma intersetorial. Foram verificados diferentes graus de implantação da estratégia, mas que ainda não resultou na reorganização do sistema no nível local.

Programa Saúde da Família; Atenção à saúde; Avaliação em saúde


The variety of existing studies addressing the Family Health Strategy (ESF) and its role in the reorientation of the model of care in the country has motivated the systematization of the advances and limitations described in these studies. Thus, this study, from a review of the scientific production on this theme, analyzed if the ESF has been able to modify the model of care. Forty-one articles from the Scielo database published between 2002 and 2010 that fulfilled the inclusion criteria were analyzed. They were fully analyzed in terms of political-institutional, organizational or technical-care dimensions. The results show that despite the improvement in the work process in primary care, its replacement aspect was not seen in the majority of the studies. Universal expansion of access to the health services, extension of coverage and focus were predominant. The changes are observed when analyzed in light of the demand, with better attendance and connectivity. The most evident limits are in the lack of focus on health needs, as in the territorial issue, community participation and the social determinants addressed in an intersectoral way. Different degrees of the implementation of strategy were identified, though they have not yet resulted in system reorganization at local level.

Family Health Program; Health care; Health evaluation


ARTIGO ARTICLE

A produção científica brasileira sobre a Estratégia Saúde da Família e a mudança no modelo de atenção

Brazilian scientific production on the Family Health Strategy and the change in the model of care

Livia Angeli SilvaI; Cezar Augusto CasottiI; Sônia Cristina Lima ChavesII

IUniversidade Estadual do Sudoeste da Bahia. Av. David Fadini SN, Rosa Neto. 45820-000 Eunapolis BA. schaves@ufba.br

IIDepartamento de Odontologia Social, Faculdade de Odontologia, Universidade Federal da Bahia

RESUMO

A variedade de estudos existentes abordando a Estratégia Saúde da Família e seu papel na reorientação do modelo de atenção no país motivou a sistematização dos avanços e limites descritos nesses estudos. Assim, este estudo, a partir de uma revisão da produção científica sobre o tema, analisou se a ESF tem sido capaz de modificar o modelo de atenção. Foram encontrados quarenta e um artigos da base de dados Scielo publicados entre 2002 e 2010 que preencheram os critérios de inclusão. Estes foram analisados na íntegra nas dimensões político-institucional, organizacional ou técnico-assistencial. Os resultados mostram que apesar da melhoria do processo de trabalho na atenção primária, seu caráter substitutivo não foi evidenciado na maioria dos estudos. Foi predominante a expansão da universalização do acesso aos serviços de saúde, a extensão de cobertura e focalização. As mudanças são verificadas quando analisadas sob o foco da demanda, como maior acolhimento e vínculo. Os limites mais evidentes se situam no pouco foco nas necessidades de saúde, como na territorialização, participação comunitária e enfrentamento dos determinantes sociais de forma intersetorial. Foram verificados diferentes graus de implantação da estratégia, mas que ainda não resultou na reorganização do sistema no nível local.

Palavras-chave: Programa Saúde da Família, Atenção à saúde, Avaliação em saúde

ABSTRACT

The variety of existing studies addressing the Family Health Strategy (ESF) and its role in the reorientation of the model of care in the country has motivated the systematization of the advances and limitations described in these studies. Thus, this study, from a review of the scientific production on this theme, analyzed if the ESF has been able to modify the model of care. Forty-one articles from the Scielo database published between 2002 and 2010 that fulfilled the inclusion criteria were analyzed. They were fully analyzed in terms of political-institutional, organizational or technical-care dimensions. The results show that despite the improvement in the work process in primary care, its replacement aspect was not seen in the majority of the studies. Universal expansion of access to the health services, extension of coverage and focus were predominant. The changes are observed when analyzed in light of the demand, with better attendance and connectivity. The most evident limits are in the lack of focus on health needs, as in the territorial issue, community participation and the social determinants addressed in an intersectoral way. Different degrees of the implementation of strategy were identified, though they have not yet resulted in system reorganization at local level.

Key words: Family Health Program, Health care, Health evaluation

Introdução

A implementação do Sistema Único de Saúde (SUS) no Brasil, impulsionado pelo Movimento da Reforma Sanitária, trouxe como um dos pontos centrais de suas proposições a necessidade da mudança no modelo de atenção. Inicialmente, na primeira década da implantação, a Atenção Primária à Saúde, designada nacionalmente de Atenção Básica, foi considerada como caminho para alcançar a universalidade das ações no território nacional1. No entanto, naquela conjuntura, prevaleceu a concepção de atenção primária seletiva, com um conjunto de ações limitadas2, muitas vezes focadas no controle de doenças mais prevalentes e, durante algum tempo, os debates sobre as práticas de saúde, na pauta das políticas, deram lugar àqueles voltados à gestão e ao financiamento3.

Considerando Modelo de Atenção na perspectiva de Paim4, como "conteúdo" dos sistemas de saúde, o foco da mudança seria exatamente as práticas, uma vez que, em seu conceito, o modelo é a forma de se combinar as tecnologias para a resolução de problemas e atendimento às necessidades de saúde tanto individuais quanto coletivas.

Nesse sentido, para o desenvolvimento dessas práticas, as dimensões política, organizacional e técnico-assistencial devem ser consideradas3. A política diz respeito aos mecanismos de condução do processo de reorganização dos serviços, a organizacional se refere à relação entre as unidades de prestação de serviços e a técnico-assistencial perpassa pelas relações estabelecidas entre sujeitos e objetos de trabalho.

No sentido da reestruturação dos serviços de saúde a partir do SUS, foi criado, em 1994, o Programa Saúde da Família (PSF), numa perspectiva focalizadora, a partir do qual, buscava-se superar desigualdades no acesso aos serviços de saúde e visava-se o alcance da equidade dentro do sistema2.

Por apresentar características distintas dos demais programas e por ter sido considerado um espaço de reorganização do processo de trabalho em saúde no nível da atenção básica, o PSF foi considerado, em 1997, uma estratégia possível para reorientação da Atenção Básica e, consequentemente, do modelo de atenção à saúde no país5.

Neste sentido, o processo de trabalho da Estratégia Saúde da Família (ESF) deve se caracterizar, segundo o documento oficial que a instituiu e mais recentemente pela atual Política da Atenção Básica, pelo desenvolvimento de ações multidisciplinares, planejadas a partir das necessidades locais, por meio do diagnóstico de saúde do território e estabelecimento de vínculos entre profissionais e população, com fins de garantir a efetividade da Atenção Primária5,6.

Entretanto, para que a ESF se constitua em proposta alternativa de modelo de atenção, ela precisa ter uma combinação de tecnologias e uma correlação de forças favoráveis às mudanças, caso contrário, continuará sendo o PSF em sua conformação inicial, como mais um programa verticalizado4. Além disso, suas ações deveriam se caracterizar pela intersetorialidade, educação permanente, monitoramento, avaliação e estímulo à participação popular, visando a uma melhoria gradativa nas condições de vida da população5.

Em diferentes momentos, desde a implantação da ESF, alguns estudos têm apontado para o distanciamento entre as práticas recomendadas daquelas que vêm sendo implementadas em diversos cenários2,3,7. Alguns autores têm sinalizado sua incompletude no que diz respeito à alteração do modelo hegemônico, uma vez que tem sido insuficiente a mudança na forma de pensar e fazer no cotidiano das ações nos diversos níveis7,8.

As análises de implantação evidenciam que pela própria característica do programa inicialmente focalizado e somado às intensas diferenças regionais do país, a implementação da ESF, a partir de 1998, aconteceu em contextos diversificados e com intensidades e características também muito diferenciadas. Inicialmente sua implantação acorreu de forma mais intensa em municípios de grande porte, mas sem atingir boa cobertura. Posteriormente, inicia-se a implantação em municípios menores e, neste caso, esta implantação veio acompanhada de expansão da proporção de cobertura potencial9.

Esta, também foi diferenciada, tanto em relação ao ritmo quanto à proporção, entre as regiões brasileiras e entre os grupos de municípios com maior ou menor renda per capita10. Além disso, a avaliação normativa, realizada pelo Ministério da Saúde, referente ao período de 1998 a 2002, revela diferenças também na estrutura e no processo de trabalho entre os municípios e entre as regiões do país11. Tais diferenças dizem respeito à disponibilização de equipamentos, formas de contratação, remuneração, utilização de mapas da área, realização de reuniões com a comunidade, atendimento de enfermagem, ações de vigilância epidemiológica, capacitação da equipe, apoio diagnóstico e referência.

Nesse contexto, foi implementado o Projeto de Expansão e Consolidação Saúde da Família (PROESF), frente à realidade da baixa expansão de cobertura potencial da ESF nos municípios de grande porte2. Esse projeto proporcionou um incremento no financiamento da ESF nos municípios com população acima de 100 mil habitantes. Por se tratar de um projeto amplo que envolveu órgãos internacionais, ele impulsionou os estudos avaliativos, inclusive meta-avaliação seguindo padrões internacionais12.

Entre os anos de 2000 e 2006, o Ministério da Saúde financiou estudos de avaliação da ESF, nos quais muitos compuseram os Estudos de Linhas de Base do PROESF. Houve também um aumento no número de teses, dissertações e outros projetos desenvolvidos por Universidades13.

Contudo, muitos destes estudos não empregaram a mesma metodologia, o que apontou formas distintas de apresentação dos resultados14. Destaca-se ainda a concentração de pesquisas em alguns estados e a ausência total em outros, bem como o grande número de municípios caracterizados como insatisfatórios em relação aos processos de trabalho, contrastando com resultados satisfatórios no que tange à melhoria de indicadores e satisfação de usuários.

Assim, nesses doze anos de implantação da ESF, ocorreram mudanças significativas nas práticas em saúde no âmbito da Atenção Básica, em muitas localidades, evidenciadas pelo incremento de ações de vigilância à saúde, estabelecimento de vínculos, o que pode ser observado pela avaliação que os próprios profissionais e usuários fazem do trabalho.

No entanto, nos municípios de grande porte, houve uma estagnação na expansão da ESF, sendo cada vez mais evidentes os problemas relacionados à reestruturação da rede de serviços como: acesso aos serviços especializados, referência e contrareferência, apoio diagnóstico e o não enfrentamento dos Determinantes Sociais em Saúde.

De acordo com o exposto e considerando as dimensões política, técnico-assistencial e organizacional que envolvem as práticas de saúde das quais dependem a mudança no modelo de atenção, percebe-se a presença de elementos importantes na maioria dos estudos que avaliam/analisam a ESF. Todavia, a própria concepção de modelo não é uniforme nem o método utilizado nas avaliações. Além disso, os componentes do processo de trabalho aparecem de forma diversificada nos diferentes desenhos de estudo. Nesse caso, não se evidenciam quais desses componentes têm se modificado no sentido de alterar o modelo.

Considerando essa realidade multifacetada, bem como a variedade de modalidades de estudos realizados, este artigo visou identificar, a partir de uma revisão da produção científica, se a ESF tem sido capaz de modificar o modelo de atenção, no sentido das práticas de saúde, e quais são as mudanças observadas no seu "núcleo duro" ou conteúdo do sistema.

Metodologia

Foi realizada revisão da produção científica de periódicos indexados à base de dados Scielo, referente à Saúde da Família no Brasil, desde sua implantação em 1998 até 2010. Em virtude da restrição nas buscas quando utilizados descritores mais específicos como "modelo de atenção" ou "modelo assistencial", optou-se pelos descritores "Programa Saúde da Família" e "Estratégia Saúde da Família". Retornaram da busca 771 e 420 publicações, respectivamente, e, partindo desses descritores, a seleção foi feita por meio da leitura dos resumos dos trabalhos.

Foram incluídos os artigos nos quais os resumos falavam da mudança do modelo ou que se referiam ao processo de trabalho ou às práticas de saúde, no sentido como fomulado por Paim4. Foram excluídos os de reflexão teórica, notas técnicas, resultados de pesquisas de concepções ou percepções de profissionais e gestores e aqueles que tratavam de programas ou práticas de categorias profissionais específicas. Logo, para fins deste estudo, foram considerados apenas os estudos empíricos que analisassem o processo de trabalho/práticas em saúde da ESF como um todo. Do total, 41 trabalhos foram selecionados, lidos e analisados na íntegra.

Para fundamentação da análise, o conceito de modelo de atenção utilizado no presente estudo foi aquele desenvolvido por Paim4, e foi considerada a divisão proposta quanto ao foco que os modelos podem adotar, quais sejam, podem estar voltados para a demanda, centrados no atendimento ao que surge espontaneamente ou o que são induzidos pela oferta. Mas numa outra perspectiva, podem estar centrados na identificação de necessidades, sendo estas de saúde ou sociais que não necessariamente se expressam em demanda.

Na análise do material encontrado, inicialmente foi feita uma caracterização dos estudos. Nesse sentido foram trabalhadas as variáveis/categorias: ano de publicação, ano de desenvolvimento da pesquisa, relação com o PROESF, cenários de estudo, porte dos municípios estudados, fontes de dados e sujeitos da pesquisa. Um mesmo artigo poderia ser classificado em mais de uma categoria de análise.

No segundo momento, buscou-se identificar de que maneira a mudança do modelo de atenção foi descrita nos diversos estudos. Assim, foram analisadas as questões de pesquisa de cada estudo e o referencial teórico utilizado, observando-se se trazia um conceito de Modelo de Atenção, qual concepção predominante e qual a concepção do Programa Saúde da Família.

A partir das questões de pesquisa, foi realizado um agrupamento dos estudos que permitiu uma maior aproximação com os objetos trabalhados em cada um deles e seus respectivos resultados. Os estudos analisados foram categorizados em 4 grupos: 1) Análise de implantação da ESF; 2) Avaliação/análise do processo de trabalho; 3) Estudos comparativos e 4) Análise da rede de atenção.

Na última etapa foram identificados os componentes das práticas avaliadas e feito um agrupamento de acordo com as dimensões político-institucional, organizacional ou técnico-assistencial, conforme concepção sistêmica de Teixeira3. Nesse momento, foi identificado em que medida esses componentes se constituíam em mudanças positivas ou como limites para a mudança e também a quais cenários se referiam.

Para fins desta sistematização e cálculo das frequências simples, esses dados foram analisados utilizando o programa Epi info versão 3.3. Análises estatísticas não foram realizadas.

Resultados

Os quarenta e um estudos revisados15-55 apontam mudanças positivas no processo de trabalho na ESF, mas também revelam limitações que comprometem a implementação da estratégia tal como foi preconizada. As mudanças têm ocorrido em práticas isoladas15,16 ou até mesmo em conjunto com uma das três dimensões17,18, mas não são capazes de alterar o modelo de atenção. A maior parte dos estudos apresenta mudanças parciais no modelo vigente, alguns ainda apresentam a implantação de um "programa paralelo"19, sendo poucos os municípios nos quais a ESF realmente tenha desencadeado a reorganização do sistema de saúde (Tabelas 1, 2 e 3).

O caráter substitutivo da ESF não foi evidenciado na maioria dos estudos. Foi predominante o caráter da universalização do acesso aos serviços de saúde20, a extensão de cobertura21 e a focalização19.

Tomando como referência o modelo focado nas necessidades, os indícios de mudanças são ainda menores. Os avanços descritos apontam mais no sentido da prática assistencial relacionada ao acolhimento16, ao vínculo17,18, às orientações fornecidas ao usuário22, ou seja, ao componente demanda. Ainda são pouco exploradas as ações essenciais que elevam a ESF à condição de reorientadora do modelo como a exploração do território, a educação em saúde, a participação popular, o planejamento e a avaliação, ou seja, aquelas focadas nas necessidades.

Na dimensão organizacional, vale destacar a desarticulação da rede de atenção19 e na dimensão político-institucional, a ausência de políticas públicas que enfrentem os determinantes sociais numa perspectiva intersetorial23. Esses fatores interferem diretamente na garantia da integralidade tanto no que diz respeito ao acesso a todos os níveis de atenção como também à integração de práticas de promoção, prevenção e recuperação.

Caracterização dos estudos encontrados

A publicação de estudos dessa natureza iniciou-se na base de dados analisada a partir de 2002, mas essa produção só aumenta a partir de 2006. Observa-se que muitos desses estudos estavam relacionados ao PROESF, os quais se constituíram em mais de 50% dos estudos publicados em 2006 e 2008 (Figura 1).


Quanto ao período em que os dados desses estudos foram coletados, os primeiros ocorreram já em 2000, ou seja, no início da implantação do PSF. O período entre 2004 e 2007 foi o que mais teve estudos realizados, tendo como destaque o ano de 2005, no qual observou-se maior número de investigações e as quais guardam uma relação com a implementação do PROESF.

No que se refere aos cenários estudados, foram encontrados oito estudos de caso em USF, catorze estudos de caso em um ou dois municípios e dezenove estudos em estratos de três ou mais municípios. Desses últimos, sete foram desenvolvidos a partir do PROESF. Quanto ao porte do município estudado, vinte e três foram em grandes municípios, quatro em municípios de porte médio e dois em pequenos municípios. Nos doze restantes, três não especificavam o porte do município e nove tinham, num mesmo estudo, municípios de diferentes portes.

Para obtenção dos dados, 39 estudos utilizaram a entrevista ou grupo focal, sendo 14 com usuários, 27 com profissionais e 20 com gestores. Vale salientar que, do total, 17 utilizaram-se de múltiplos sujeitos, 06 lançaram mão da análise documental e base de dados articulados às entrevistas e 06 usaram a observação como segunda técnica. Em 02 estudos, foi utilizado exclusivamente o banco de dados dos Sistemas de Informação.

A mudança do modelo de atenção nos diversos caminhos metodológicos

Entre os trabalhos analisados, 19 trazem a mudança do modelo como objeto de estudo. Desses, 12 apoiam-se no referencial da Vigilância à Saúde com foco nas necessidades, 05 trabalham com foco na demanda e 02 não especificam referencial. Dentre os que trabalham com foco na demanda, 02 consideram a mudança do modelo passível de ser mensurada quantitativamente pelas atividades dos profissionais, 02 abordam a ESF como modelo de atenção primária e 01 foca o acolhimento.

As outras 22 produções analisam componentes do processo de trabalho, sendo que 12 contextualizam o modelo de atenção, estando 07 voltados às necessidades e 05 com foco na demanda. Os demais não fazem referência ao modelo de atenção em seu aporte teórico.

Na grande maioria dos estudos, a concepção da Saúde da Família é apresentada como estratégia. Somente em um estudo essa concepção não ficou explícita, porém não foi referida também como simples programa. Nessa perspectiva, foram encontrados entre os estudos de análise de implementação, 02 em que a implantação do PSF se deu enquanto programa verticalizado. Nos demais, da mesma natureza, foram evidenciados graus de implantação diversificados, mas já na perspectiva de estratégia de mudança do modelo.

A categorização dos estudos a partir dos objetos/tipos de estudo está descrita na Tabela 1. Foram predominantes os estudos do grupo 01 que corresponde às análises de implantação (n = 18) e distribuem-se entre os estudos de avaliação do grau de implantação, estudos de Linhas de Base e outros estudos qualitativos descritivos. Desses, as avaliações do grau de implantação foram mais frequentes, a maioria delas na modalidade de estudos de caso. Apenas 02 desses estudos que avaliavam o grau de implantação foram realizados com grandes extratos, os quais utilizaram apenas dados secundários. A maior parte dos artigos que traz resultados dessas avaliações não explicita o julgamento de valor do grau de implantação e aqueles que o fazem, mostraram graus de implantação entre incipiente e intermediário.

No grupo 02, que avalia o processo de trabalho ou práticas específicas, as práticas mais avaliadas foram aquelas voltadas ao trabalho em equipe (n = 5). Nesses ainda são evidenciadas fragilidades na inter-relação dos profissionais, principalmente no âmbito do planejamento local e avaliação das ações, ficando focados nas questões burocráticas e operacionais de atendimento à demanda. Nas demais práticas avaliadas, os limites apontados estão relacionados a concepções do modelo biomédico por parte dos sujeitos envolvidos. Os avanços encontrados ainda são no sentido da prática assistencial, os quais refletem uma melhoria do atendimento individual tendo sido descritas mudanças no acolhimento, vínculo e educação em saúde.

Mudanças nas dimensões político-institucional, organizacional e técnico-assistencial

As mudanças positivas e os limites para as mudanças têm acontecido nas três dimensões avaliadas, porém nem sempre estão descritas no mesmo estudo. Os estudos em grupos de municípios descrevem um número maior de categorias. (Tabelas 2 e 3).

Os estudos em geral apontam um maior número de limites do que de mudanças positivas. Nessas, nenhuma das categorias avaliadas esteve presente em pelo menos 25% dos estudos, quanto aos limites, os mesmos se aproximam mais desse percentual e em alguns casos até ultrapassam.

As mudanças positivas, quando analisadas por dimensão, apresentam proporções diferentes entre os achados relativos a algumas categorias. As categorias também são descritas em cenários diferentes. A dimensão político-institucional não é avaliada em estudos realizados em USF isolada e predomina nos estudos de grupos de municípios. Entre as categorias se destacam a capacidade instalada, a política de pessoal e o projeto de governo56 que priorizam a expansão da ESF. A dimensão organizacional também é pouco frequente nos estudos de caso e as categorias mais descritas são as de acesso à Atenção Básica e a articulação da rede de atenção. Já a dimensão técnico-assistencial encontra-se em maior número entre os estudos de caso de municípios e prevalecem as categorias de integralidade das práticas e vínculo. Tais mudanças, quando relacionadas ao porte dos municípios, estão mais evidenciadas nos municípios de grande porte (Tabela 2).

Os limites aparecem com suas categorias descritas na maioria dos tipos de cenários, com destaque para aqueles realizados em grandes municípios. A política de pessoal e a capacidade de governo56 destacam-se na dimensão político-institucional, a integralidade referente ao acesso aos demais níveis de atenção é evidenciada na dimensão organizacional e a integralidade relativa às práticas e o trabalho em equipe na dimensão técnico-assistencial (Tabela 3).

Chama atenção a manutenção dos padrões dos achados em todo o período analisado. Na distribuição temporal das descrições das mudanças e dos limites, de acordo com o ano de estudo, não se verificou uma inversão proporcional. Eles aparecem na medida em que os estudos são desenvolvidos, encontrando uma maior frequência de achados no ano de 2005, que foi o ano que mais tiveram pesquisas realizadas.

Discussão

A ausência de mudanças no modelo de atenção revelada por esse estudo e o grau de implantação da ESF ainda incipiente a intermediário são reflexo de avanços em alguns aspectos da atenção à saúde, mas que não correspondem ainda à adoção da Saúde da Família como estratégia prioritária e central no nível local, permanecendo a dificuldade em incorporar o caráter substitutivo. Então, mesmo nos locais onde se observa a importância da ESF para garantia do princípio da universalidade, a focalização ainda aparece mascarada, muitas vezes, pelo fato de os extratos de excluídos representarem uma grande proporção populacional57,58.

Na análise da dimensão político-institucional, apontada como explicativa para muitos obstáculos na implementação da ESF23,27, observa-se que a categoria política de pessoal aparece destacada tanto nas mudanças positivas como nos limites, indicando sua importância nesse processo. Onde ela aparece como mudança, refere-se às estratégias de fixação de profissional28, que se constitui em caminho para enfrentar os limites apontados nos outros estudos nos quais a rotatividade de profissionais e as condições de trabalho precárias apresentaram-se como principais problemas17,18.

A formação e a educação permanente se destacam como subcomponentes importantes dessa categoria, onde ainda são presentes os entraves na formação acadêmica que é apontada por alguns estudos como desafio para a ESF18,59. Também são referidas as deficiências do aparelho formador dentro do próprio sistema de saúde, principalmente no nível local, na perspectiva da aprendizagem-trabalho60. A deficiência de profissionais com perfil para a ESF é descrita pelos estudos, mas em contrapartida é pouco referido o desenvolvimento de ações tanto dos meios instituídos pelas esferas de governo federal e estadual, como outras propostas que viessem a atender às necessidades dos municípios.

Os avanços descritos em relação à capacidade instalada, correspondem ao que os estudos trazem desde 2002 com relação à expansão da saúde da família9,11, até mesmo pelo fato de estar atrelada ao repasse de recursos da atenção básica. Entretanto, não deixa de aparecer ainda como limites, quando se analisa a ESF, além da concepção de medicina simplificada. Tal situação leva a fazer uma associação com as inconsistências dos projetos de governo, em que a aparente priorização da ESF é confrontada com a descontinuidade da gestão e a rotatividade nos cargos dentro do setor da saúde31,32. Somado a isso, a capacidade de governo foi descrita como limites para a ESF33,34, pois as mudanças político-institucionais importantes guardaram relações com capacitação da equipe gestora, a boa utilização dos instrumentos de gestão e das informações disponíveis17.

A ESF ainda tem refletido o caráter prescritivo de programa61, as diferenças nos contextos político, social, econômico e cultural têm resultado muito pouco em estratégia singulares para o enfrentamento dos problemas. Quando analisadas as formas de implementação, estas se caracterizam pelo caráter regional descrito por Viana e Dal Poz57, em que as ações seguem um padrão da esfera estadual, devida à baixa capacidade de formulação local17 por parte dos municípios. Exemplo disso é que são pouco descritas políticas intersetoriais desenvolvidas como iniciativas do nível municipal.

O impacto do caráter ainda incipiente das mudanças políticas leva a relações de trabalho nos moldes antigos. Essas relações reproduzem as antigas práticas na mesma lógica dos modelos hegemônicos, que não favorecem a mudança nas concepções dos sujeitos, ou seja, a formação que o serviço precisaria proporcionar. Dessa forma, a educação permanente é desenvolvida de maneira dicotômica no que diz respeito à teoria e prática. A teoria é abordada na lógica dos modelos de atenção alternativos, enquanto na prática os modelos de gestão mantêm a lógica tradicional e os serviços não se constituem espaços de aprendizagem.

Assim, essa fragilidade da dimensão político-institucional reflete diretamente nos limites encontrados na dimensão técnico-assistencial, principalmente nos aspectos relacionados à gestão tradicional que não favorece os espaços democráticos, bem como as políticas sociais. Nos trabalhos analisados, não foram encontrados estudos sobre o desenvolvimento das tecnologias necessárias ao aperfeiçoamento das ações da Atenção Básica, ações intersetoriais e fortalecimento da participação popular.

A gestão tradicional fortalece a cultura da não participação dos profissionais, uma vez que os mesmos não se comportam como usuários do SUS e, nesse tipo de gestão, não se colocam como sujeitos do processo. Dessa forma, esse comportamento implica na deficiência de práticas na comunidade que estimulem a participação popular, o que fica evidenciado nos limites apontados em alguns dos estudos15,36,37.

No aspecto das políticas intersetoriais, a dimensão político-institucional também implica diretamente em limites técnico-assistenciais, pois na ausência dessas políticas, a intersetorialidade, que é fundamental para ações de promoção à saúde e para a melhoria da qualidade de vida, torna-se uma prática de caráter voluntarioso por parte das equipes58 e não conduz aos impactos esperados. Tal circunstância pode levar os profissionais ao descrédito em relação à ESF, sensação de impotência, tendo em vista a incapacidade do setor saúde, isoladamente, enfrentar os determinantes sociais do processo saúde-doença.

A dimensão organizacional foi aqui discutida por ter sido percebida, nesse estudo, como reflexo da dimensão político-institucional e uma via de mão dupla em relação à dimensão técnico-assistencial. A articulação entre os níveis de atenção foi componente importante para aqueles municípios nos quais foram identificadas mudanças nessa dimensão17,19. Contudo, para que essa articulação se consolide e a ESF se efetive como porta de entrada para o SUS, é necessário projeto político como projeto de governo, capacidade instalada e conhecimento técnico por parte dos gestores.

Da mesma forma, a melhoria descrita no acesso à Atenção Básica, muitas vezes não vem acompanhada da melhoria no acesso aos serviços especializados31, fato que pode estar relacionado aos limites de financiamento ou à fragilidade no projeto de governo; também sofre as consequências do uso inadequado dos níveis de maior complexidade devido às práticas clínicas empobrecidas e excessivamente dependentes de exames complementares32 e à deficiência de ações que integram promoção, prevenção e recuperação19,36.

Quanto aos espaços de controle social, pode ser feita análise bem semelhante. O tipo de gestão contribui para uma maior ou menor participação da sociedade no processo decisório. Por outro lado, o conhecimento precisa ser produzido nos espaços da comunidade, pois, se esta não conhece o sistema, ela não terá condições de contribuir para sua consolidação. Logo, é contraditória uma proposta que tem a participação popular como um de seus eixos estruturantes permanecer com práticas educativas nos moldes da pedagogia tradicional e que não tenha a temática sobre a própria estratégia abordada nas ações educativas, como foi demonstrado por alguns autores36.

Diante disso, a integralidade talvez seja o princípio do SUS mais comprometido nessas fragilidades e o que diretamente necessita de mudanças nas três dimensões para que seja efetivada. Afinal, para garantia desse princípio fazem-se necessárias uma clínica abrangente e uma integração de práticas individuais e coletivas no âmbito da promoção, prevenção e recuperação, que são aspectos técnico-assistenciais. Necessita igualmente de resolutividade com garantia de acesso e articulação dos níveis de atenção no âmbito organizacional. Para tanto, essa capacidade instalada da rede, bem como as ações intersetoriais requerem ações no âmbito da gestão nas três esferas de governo, permeadas pela participação popular62.

Um aspecto importante a ser destacado no estudo é que a proporção nas categorias descritas não é, necessariamente, a frequência em que os eventos acontecem. Ela repercute os objetos eleitos para estudo, principalmente aqueles em que estudavam práticas isoladas. O mesmo se estende para os cenários nos quais essas categorias foram evidenciadas. Embora o fato de os limites aparecerem em proporções maiores e melhor distribuídos nos diferentes locais de estudos, refletiriam possivelmente uma maior prevalência dos limites em relação às mudanças positivas no contexto geral.

Outro aspecto relevante foi o baixo grau de conhecimento produzido referente a algumas categorias. Muitas delas só apareceram em estudos de grandes extratos, assim, tem-se a vantagem da possibilidade de generalizações. Contudo, perde-se no aprofundamento que contribui para identificar as possibilidades de enfrentamento. Tem-se, por exemplo, a dimensão político-institucional pouco explorada em estudos de caso singulares. Por outro lado, as estratégias de territorialização, o trabalho em equipe e a participação popular foram pouco descritos nos estudos com cenários mais abrangentes.

Mas o maior limite verificado neste estudo, diz respeito à consistência do referencial de modelo de atenção identificado em muitos trabalhos, que dificulta a categorização entre abordagem por demanda ou necessidade. Pelo menos nos artigos, muitos não foram explícitos, podendo tê-lo feito nos trabalhos na íntegra. Além disso, mesmo que alguns deles tivessem fundamentado em seu referencial o foco nas necessidades, ao apresentar seus resultados, estes estavam voltados para a demanda.

Mesmo com os limites apontados, verificou-se também evidências de aspectos que se mostraram potencializadores de mudanças como a melhoria da capacidade de gestão, política de pessoal, as políticas intersetoriais e a articulação entre os níveis de atenção apontados em alguns estudos. São retratados igualmente aspectos que ainda desafiam a implementação da estratégia como a integralidade de práticas; trabalho em equipe; territorialização; educação em saúde; vínculo no sentido de responsabilização; participação popular e acesso aos serviços de média e alta complexidade.

Conclusão

A implementação da ESF no Brasil tem desencadeado mudanças no processo de trabalho em saúde, todavia tem se limitado ao âmbito da atenção básica na maioria das realidades estudadas. Os modelos hegemônicos continuam exercendo grande influência nas práticas da ESF e principalmente na organização da rede de atenção. Logo, a saúde da família tem sido estratégia de expansão de cobertura, universalização, muitas vezes de forma focalizada e têm sido ainda limitadas as experiências substitutivas.

Em virtude das grandes diferenças sociopolíticas e sua relação com o grau de organização dos serviços e as necessidades em saúde, percebe-se uma carência de estudos que reflitam a realidade em municípios de pequeno e médio porte, principalmente estudos de grandes extratos. As três dimensões aqui analisadas ainda são pouco exploradas de forma conjugada nos estudos avaliativos, tendo sido revelada apenas nos Estudos de Linha de Base do PROESF.

Observaram-se avanços na capacidade instalada, projetos de governo que priorizam a Saúde da Família, melhoria do acesso à atenção básica, estabelecimento de vínculo entre equipe e população e incremento de ações preventivas. Apesar disso, limites importantes se apresentam para que a implementação da ESF venha cumprir seu papel reorientador da mudança do modelo de atenção. Destaca-se aqui a política de pessoal, a capacidade de governo, políticas intersetoriais no nível local, integralidade da atenção e das práticas, territorialização e participação popular. Foi evidente que tanto as mudanças verificadas como os limites se distribuíram nas três dimensões analisadas.

Este estudo se limitou à análise das publicações nacionais em uma única base de dados o que compromete sua capacidade de generalização, ainda que as evidências dos trabalhos primários tenham sido descritas e analisadas. Sugerem-se avaliações da ESF que permitam identificar as diferenças regionais para orientar o enfrentamento de problemas condizentes com cada realidade. Entretanto, uma grande diversidade metodológica dos estudos e as diferentes concepções quanto ao modelo de atenção impossibilitam maiores generalizações dos resultados encontrados.

Portanto, faz-se necessário também avançar em pesquisas avaliativas que visem diminuir as diferenças metodológicas, mas sem perder de vista a possibilidade de se verificar as singularidades.

Colaboradores

LA Silva coletou os dados, analisou e escreveu o manuscrito. CA Casotti contribuiu com a discussão, redação e revisão final do artigo. SCL Chaves contribuiu com a discussão, redação e revisão final do artigo.

Agradecimentos

Os agradecimentos vão para os colegas da disciplina Oficina de artigos para a Área de Política, Planejamento e Gestão do Instituto de Saúde Coletiva da UFBA que contribuíram na concepção inicial deste trabalho. De maneira especial, agradecemos ainda à professora Ligia Maria Vieira da Silva que, na condição de docente dessa disciplina, deu preciosas e sábias contribuições. Por fim, agradecemos também à professora Vera Pacheco pela revisão ortográfica.

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Artigo apresentado em 03/06/2011

Aprovado em 20/05/2011

Versão final apresentada em 25/05/2011

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Abr 2013
  • Data do Fascículo
    Jan 2013

Histórico

  • Recebido
    03 Jun 2011
  • Aceito
    20 Maio 2011
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