Open-access Velhice e Saúde na Região da África Subsaariana: uma agenda urgente para a cooperação internacional

Aging and health in Sub-Saharan Africa: an urgent agenda for international cooperation

Resumos

A região Subsaariana do continente africano é onde se concentra a maior carga de doença do mundo e é a única região do planeta onde se espera que o número de pessoas pobres irá aumentar nas próximas décadas. Os países desta região, em diferentes graus, experimentam processo lento de envelhecimento populacional, mas, ao mesmo tempo, é onde a população idosa mais cresce em números absolutos. A partir de revisão da bibliografia, buscou-se destacar a situação demográfica e social em que vivem as pessoas idosas na região subsaariana e os principais desafios que se impõem aos governos locais para a superação dos complexos problemas postos a toda a sociedade. Constatou-se que as políticas públicas voltadas para este segmento populacional na região não representam prioridade e, por conseguinte, dificilmente entram na agenda atual da cooperação internacional.

Envelhecimento populacional; África Subsaariana; Saúde e velhice


The Sub-Saharan part of the African continent is the area that has the highest disease burden in the world and is the only region of the planet where it is expected that the number of poor people will increase in the coming decades. The countries of this region, to different degrees, experience slow process of population aging but at the same time, it is the are where the elderly population grows fastest in absolute numbers. Based on a review of the literature, an attempt was made to highlight the social and demographic situation in which the elderly live in the Sub-Saharan region and the main challenges faced by local governments to overcome the complex problems affecting society as a whole. It was found that public policies geared to this segment of the population in the region do not represent a priority and, consequently, are unlikely to be included in the current agenda of international cooperation.

Population aging; Sub-Saharan Africa; Health and old age


REVISÃO REVIEW

Velhice e Saúde na Região da África Subsaariana: uma agenda urgente para a cooperação internacional

Aging and health in Sub-Saharan Africa: an urgent agenda for international cooperation

José Luiz Telles; Ana Paula Abreu Borges

Departamento de Administração e Planejamento em Saúde, Escola Nacional de Saúde Pública, Fiocruz. Av. Brasil 4365, Manguinhos. 21.040-360 Rio de Janeiro RJ Brasil. jluiztelles@fiocruz.br

RESUMO

A região Subsaariana do continente africano é onde se concentra a maior carga de doença do mundo e é a única região do planeta onde se espera que o número de pessoas pobres irá aumentar nas próximas décadas. Os países desta região, em diferentes graus, experimentam processo lento de envelhecimento populacional, mas, ao mesmo tempo, é onde a população idosa mais cresce em números absolutos. A partir de revisão da bibliografia, buscou-se destacar a situação demográfica e social em que vivem as pessoas idosas na região subsaariana e os principais desafios que se impõem aos governos locais para a superação dos complexos problemas postos a toda a sociedade. Constatou-se que as políticas públicas voltadas para este segmento populacional na região não representam prioridade e, por conseguinte, dificilmente entram na agenda atual da cooperação internacional.

Palavras-chave: Envelhecimento populacional, África Subsaariana, Saúde e velhice

ABSTRACT

The Sub-Saharan part of the African continent is the area that has the highest disease burden in the world and is the only region of the planet where it is expected that the number of poor people will increase in the coming decades. The countries of this region, to different degrees, experience slow process of population aging but at the same time, it is the are where the elderly population grows fastest in absolute numbers. Based on a review of the literature, an attempt was made to highlight the social and demographic situation in which the elderly live in the Sub-Saharan region and the main challenges faced by local governments to overcome the complex problems affecting society as a whole. It was found that public policies geared to this segment of the population in the region do not represent a priority and, consequently, are unlikely to be included in the current agenda of international cooperation.

Key words: Population aging, Sub-Saharan Africa, Health and old age

Introdução

Envelhecimento populacional representa o aspecto dominante e mais visível da dinâmica da população mundial no século 21. Espera-se que no ano de 2050 as populações de numerosos países serão compostas com mais de 30% de pessoas acima de 60 anos. O Plano Madrid de Ação Internacional para o Envelhecimento, assinado pelos países membros das Nações Unidas no ano de 2002, fundamenta-se em três princípios básicos: a) participação ativa dos idosos na sociedade, no desenvolvimento e na luta contra a pobreza; b) fomento da saúde e bem-estar na velhice: promoção do envelhecimento saudável; e, c) criação de um entorno propício e favorável ao envelhecimento1.

Desde então, os países, em diferentes graus, têm buscado caminhos para que estes princípios se tornem realidade. Neste contexto, os estudos sobre o envelhecimento demográfico e suas consequencias para as políticas públicas cresceram significativamente, em particular nos países desenvolvidos. No entanto, a região da África Subsaarina talvez seja aquela em que menos se estruturam estudos e pesquisas sobre envelhecimento populacional2.

Concomitante a esta realidade, na última década do século que se inicia, a saúde passa a ser questão que ultrapassa definitivamente as fronteiras nacionais. A saúde global, termo que busca dar sentido aos desafios de um mundo globalizado e em constantes mudanças, se caracterizaria "pelo sentido da responsabilidade coletiva pela saúde [a contemplar] os determinantes mais amplos da saúde a partir de uma perspectiva governamental integral e de envolver, de maneira tanto formal como informal, uma gama diversificada de interlocutores e interesses articulando atores estatais e não estatais3. No cenário da saúde global, a cooperação entre os países em diversas áreas, incluso a da saúde, tem se intensificado e adquirindo novos contornos. A cooperação entre países do Hemisfério Sul, ou simplesmente, cooperação sul-sul, ganha relevância na medida em que pode ser identificada como um tipo de cooperação horizontal, "objetivando-se uma concertação com vistas à obstrução das desigualdades internacionais dirigidas pelos países desenvolvidos do Norte, bem como ações conjuntas com vistas ao enfrentamento de problemas domésticos semelhantes"4. O envelhecimento populacional é uma das questões que gradativamente ganha terreno no âmbito das cooperações internacionais. Mas até onde as consequencias do envelhecimento demográfico em África tem sido foco de atenção dos governos locais? Não o sendo, conforme deveremos explicitar neste artigo, dificilmente será tema da agenda de desenvolvimento de acordos de cooperação sul-sul.

O objetivo desta revisão é caracterizar demografica e socialmente o processo de envelhecimento no continente africano, com foco na África Subsaariana, com o intuito de trazer à luz questões essenciais para a agenda da saúde global tendo por referência os princípios básicos do Plano Internacional para o Envelhecimento.

A pesquisa bibliográfica teve por referência o Portal PubMed na base de artigos Medline ao longo de 2011. A finalidade foi a de levantar a literatura publicada com descritores relacionados com envelhecimento populacional, doenças cronicas não transmissíveis, saúde do idoso, condições de saúde e de vida em África Subaariana.

A estratégia genérica de busca foi: "Health of the Elderly" OR "Demographic Aging" OR "Chronic Disease" OR "Health Status" OR "Social Conditions" AND "Africa".

Outras bases de dados como Scielo, Lilacs, Google e Google Acadêmico foram visitadas a partir de artigos de referência previamente selecionados, o que possibilitou acesso à literatura não indexada ao Medline. Outras fontes foram importantes, tais como documentos e relatórios técnicos, para complementar a pesquisa.

Transição demográfica e envelhecimento populacional

A transição demográfica é o processo pelo qual um país passa de um regime com alta mortalidade e alta fecundidade para outro caracterizado por baixa mortalidade e baixa fertilidade5.

Nos anos 1960 foi observado um declínio na mortalidade em quase todos os países em desenvolvimento. Entretanto, as taxas de fertilidade ainda estavam elevadas. O resultado imediato foi o rápido crescimento populacional nestes países o que fez alguns estudiosos afirmarem que o mundo estava caminhando para uma catástrofe. Nas décadas posteriores, entretanto, o que se viu foi um rápido decréscimo nas taxas de fertilidade nas regiões da Ásia, América Latina e Norte da África6.

Na África Subsaariana também tem sido observado o processo de transição demográfica. A falta de dados, no entanto, dificulta precisar quando as taxas de mortalidade começaram a declinar. Os dados disponíveis apontam que a queda se deu no início dos anos 1950. A tendência de queda nas taxas de mortalidade continuou nas décadas seguintes e, com taxas de fertilidade relativamente estáveis, o resultado desta equação foi maior aceleração do crescimento geral da população6-9.

Durante pelo menos três décadas, o declínio das taxas brutas de mortalidade e, também, das taxas do componente infantil (óbitos menores de um ano) manteve-se relativamente uniforme em todas as regiões da África Subsaariana. A partir dos anos 1990, em função da emergência da epidemia de HIV/AIDS em fins dos anos 1980, verifica-se piora nos indicadores de mortalidade em toda a região.

Com relação à fertilidade, a média geral na região é significativamente alta para os atuais padrões internacionais, em especial se comparadas com os países em desenvolvimento, tanto da América Latina quanto do continente asiático. Alguns fatores são relacionados à alta taxa de fertilidade observada na maioria dos países da África Subsaariana: taxas elevadas de mortalidade infantil6,10,11; casamentos e gestações precoces10; baixa utilização de métodos contraceptivos10,11; valorização social da mulher com prole numerosa10,12; baixa escolaridade das mulheres11; a prática de poligamia, muito comum principalmente nas áreas rurais10; baixo desenvolvimento economico6,11 e garantia de sobrevivência "proteção social demográfica"12. Há consenso nos estudos que todos os fatores relacionados às altas de fertilidade estão direta ou indiretamente interligados e alguns são interdependentes.

Para completar a caracterização da transição demográfica na região subsaariana, observa-se que a tendencia de aumento gradativo na esperança de vida ao nascer verificada tanto nos países desenvolvidos quanto naqueles em desenvolvimento não ocorreu em alguns países da região subsaariana. Em alguns deles verificou-se mesmo um decréscimo na expectativa de vida. Este fenômeno é em larga medida decorrência do impacto da epidemia de HIV/AIDS no continente africano em geral e nos países da região subsaariana em particular. É certo que outras situações concorreram para a estagnação ou diminuição da longevidade tais como os conflitos violentos, que ainda levam, nos dias de hoje, milhares de pessoas a se refugiarem em outros países; a escassez de recursos de atenção à saúde e as péssimas condições gerais de vida. Entretanto, em muitos países, é o HIV/Aids a principal razão para tal fenômeno7.

A tendência da expectativa de vida ao nascer no Zimbabwe é um bom exemplo para ilustrar a devastação causada pela epidemia de HIV/Aids. A expectativa ao nascer caiu de 61.6 anos em 1986 para 40.4 anos em 2006, isto é, um decréscimo de 21 anos. O impacto para as mulheres foi ainda maior. A expectativa de vida para o sexo feminino neste país no mesmo período decresceu 27 anos. Tendencias similares são observadas em outros países da região que tiveram sua população afetada pelo HIV/Aids7.

O fato de os países que compõem a região subsaariana da África terem as menores expectativas de vida ao nascer do mundo não quer dizer, em absoluto, que não existam pessoas idosas nesta área do planeta. É verdade que a África Subsaariana, em contraste com as outras regiões, é a que tem menor proporção de população idosa e, também, menor crescimento relativo.

A projeção da média de proporção de pessoas idosas por região da África Subsaariana no ano de 2011 está assim distribuída: a) África Ocidental 4,2%; b) África Central 4,5%; c) África Austral 8,3%; e d) África Oriental 4,7%13.

As projeções futuras mantêm a tendencia de a Região Subsaariana possuir a menor proporção de pessoas idosas entre suas populações. Enquanto que na Europa, em 2030, projeta-se uma proporção de 28% de pessoas com 60 anos e mais, na África Subsaariana esta proporção será de 5,6%7.

Entretanto, quando se analisa a população idosa em números absolutos o cenário se apresenta bastante diferente. As atuais projeções demográficas mostram que a região é onde se verifica o maior crescimento populacional de pessoas idosas no mundo. Em termos absolutos, se verificará um crescimento significativo deste contingente populacional nesta região passando de 42,6 milhões em 2010 para 160 milhões no ano de 205013.

As pessoas da região que conseguem alcançar os 60 anos de idade podem esperar viver mais anos quase tanto quanto as pessoas da mesma idade em outras regiões do mundo14.

Os números impressionam ainda mais quando se correlaciona o aumento expressivo da população idosa na África Subsaariana ao atual nível de desenvolvimento econômico e social e, ainda, às transformações pelas quais a maioria dos países desta região está a apresentar.

Envelhecimento e Pobreza

A saúde de uma determinada população é afetada ao longo da vida pelas características do contexto social, que geram desigualdades nas exposições e vulnerabilidades. Esses determinantes sociais interferem no bem-estar, independência funcional e qualidade de vida da população idosa15. Apesar das limitações em considerar as medidas de pobreza convencionais (ex. linhas de pobreza) como indicadoras fiéis da real condição de vida16, principalmente dos idosos, o grau de pobreza pode expressar os limites aos quais a população idosa pode estar sujeita.

A região subsaariana da África é a mais pobre região do mundo, o que implica que o envelhecimento da sua população é em grande parte vivenciado em contextos de pobreza generalizada e de profunda restrição economica. Entre os dez países que possuem o menor rendimento nacional bruto do mundo, nove estão nesta região17.

A África Subsaariana terminou o último milênio mais pobre do que era em 1990. Em 2005, 23 países da região eram mais pobres do que eram em 1975. Neste mesmo ano de 2005, mais de 50% dos habitantes desta região viviam com menos de USD 1,00 por dia, a grande maioria da população abaixo de USD 2,00 por dia e, globalmente, é a única região onde se espera que a proporção de pessoas vivendo na pobreza cresça14.

Apesar de atingir a população em todas as faixas etárias, as crianças e as pessoas idosas são mais vulneráveis à pobreza. A incidencia de pobreza agrava-se de acordo com os arranjos familiares. Residencias onde há algum morador idoso, ou onde há pessoas idosas a coabitarem com crianças menores de 10 anos e domicílios chefiados por pessoas idosas estão, em geral, mais sujeitos à incidencia de pobreza se comparado com a média geral na população. Nos países onde a incidência do HIV-AIDS é muito alta, as diferenças são maiores e estatisticamente significativas18.

Uma das medidas de redução da pobreza na população idosa tem sido a adoção de pensões não contributivas para aquelas parcelas mais pobres. Evidências sugerem que a pobreza entre os idosos é baixa em países onde existem mecanismos de transferência de renda dirigida para esta parcela da população, como no Brasil, Chile ou África do Sul. Em contraste, em países onde os sistemas de pensões na velhice são inexistentes ou atingem um número reduzido de pessoas, as mais velhas estão sobrerrepresentadas entre os pobres19,20. Além disso, nos países em desenvolvimento os efeitos positivos das pensões vão além dos beneficiários diretos (os idosos) e refletem-se para os outros membros de suas famílias. Estudos de caso no Brasil e África do Sul mostram que as crianças dentro de famílias beneficiárias têm maiores taxas de escolarização e melhor estado de saúde do que aqueles que vivem em domicílios que não recebem uma pensão21.

No entanto, apesar de um papel comprovadamente positivo, a maioria das populações do continente africano permanece descoberta por um regime de pensões. Exceto em alguns países (África do Sul, Namíbia, Ilhas Maurícios e Botswana), quase nenhum país africano tem colocado ênfase na ampliação da cobertura dos sistemas de pensões, quando estes existem, ou na criação de um programa consistente de proteção social para a população idosa2.

Tal posição pode ser explicada pela concordância da maioria dos países do continente ter assumido as recomendações do Banco Mundial no seu relatório sobre a crise de velhice divulgado em 199422. O argumento, então, do Banco Mundial era de que os sistemas tradicionais de apoio para os idosos nas sociedades africanas, pricipalmente tendo por base a família, estão trabalhando muito bem e que os regimes de pensões formais iriam desestimular as transferências familiares, agravando ainda mais as condições de convivência para os idosos. Devido a essa recomendação, a questão da provisão de pensões tem sido raramente considerada em programas de desenvolvimento e em estratégias de redução da pobreza na África2.

O argumento de que as famílias tradicionais na região estão a prover os cuidados necessários às pessoas idosas não leva em consideração as transformações sociais que estão a ocorrer na maioria dos países da África Subsaariana.

O crescimento bruto da população nesta região, tanto na área rural (aumento anual de 1,9%) quanto na urbana (aumento anual de 4%) é a mais alta do mundo. Desde 1990 sua população urbana vem aumentando até ter dobrado para 290 milhões de pessoas em 2007. Embora a África Subsariana continue a ser predominantemente rural, verifica-se rápida urbanização. Em 1990, 28% da população vivia em zonas urbanas. No ano de 2007, este percentual subiu para 36%. Tal crescimento pressionou significativamente a demanda por serviços urbanos. Por exemplo, no ano de 2006, somente 57% da população urbana e 23% da área rural tinha acesso a instalações sanitárias melhoradas23.

Na medida em que as sociedades africanas, tradicionalmente caracterizadas por economias baseadas primordialmente em agricultura familiar, movem-se para um estilo individualizado e urbanizado de vida, o status tradicional das pessoas idosas torna-se ameaçado e seus papéis na família e na comunidade transformados. A urbanização altera valores, atitudes e padrões individuais e, por conseguinte, os próprios regimes culturais. Inicia-se com a repartição mais ou menos acentuada e acelerada da ordem social tradicional e termina por minar a capacidade tradicional de apoiar, integrar e dar sentido à vida nas faixas etárias mais avançadas, onde se verificam, com frequencia, incapacidades24.

Além do processo de urbanização, a epidemia de HIV/Aids vem desempenhando papel crucial para as mudanças verificadas nos arranjos familiares desta região.

Enquanto os dados de 2007 da UNAIDS mostravam que a epidemia de Aids parecia ter atingido seu pico e as taxas de mortalidade estavam a cair, mais de dois terços de todas as pessoas que vivem com HIV residem na África Subsaariana, onde ocorreram mais de três quartos (76%) de todas as mortes por Aids em 2007. Estima-se que 22,5 milhões de africanos vivam com HIV/AIDS, a grande maioria deles adultos no auge da vida profissional25.

A epidemia de HIV/Aids neste continente está a esgarçar o próprio tecido da vida cotidiana com profundas implicações para o desenvolvimento social e econômico das gerações seguintes.

Primeiro, porque a epidemia atinge principalmente as pessoas em plena capacidade laboral. As roças familiares, em particular, são negligenciadas ou abandonadas por motivos de doença em algum membro da família, contribuindo ainda mais para a insegurança alimentar em muitas áreas. Em países de alta prevalência, existe um ciclo vicioso entre a escassez de alimentos, desnutrição e AIDS26. No Zimbábue, a prevalência do HIV em pessoas adultas é de cerca de 25%. Em 2000, a Aids havia ceifado o país entre 5% a 10% de sua força de trabalho agrícola. No Malawi, as famílias que perderam as mulheres com idade inferior a 60 anos tiveram duas vezes mais probabilidade de sofrer um déficit alimentar do que em famílias nas quais os homens na mesma faixa etária morreram27.

Em segundo lugar, a AIDS enfraquece ou até mesmo destrói os mecanismos que geram a formação de capital humano28.

Por último, a epidemia deixou, ao longo das ultimas três décadas, milhares de crianças órfãs pelo continente. Estimativas apontam que cerca de 12 milhões de crianças entre 0-17 anos perderam um ou ambos os pais devido à Aids na região da África Subsaariana. Como resultado, o número total de crianças órfãs por todas as causas na região está em expansão e atingiu 48,3 milhões no final de 200529.

Análise de dados em 24 países da África Subsariana constatou forte associação entre a mortalidade relacionada à Aids dentro de um país e a probabilidade de encontrar uma pessoa idosa cuidando de uma ou mais crianças órfãs30.

O cuidado de crianças órfãs por pessoas idosas em geral é precedido do cuidado dos pais das crianças. Estudo da Organização Mundial de Saúde sobre cuidadores(as) idosos(as) no Zimbabwe constatou que 39% afirmou ter experimentado doença física após a morte de um parente por HIV/Aids que estava sob seus cuidados e número quase igual relatou estresse emocional31.

Apesar de ser, muitas das vezes, experienciado como sobrecarga no dia a dia, a percepção do cuidado por parte das pessoas idosas pode ter outro significado. Em estudo realizado em área rural da África do Sul com mulheres idosas cuidadoras, houve hesitação por parte das entrevistadas ao relacionar os cuidados sob sua responsabilidade como sendo uma "carga" na medida em que estavam simplesmente "cuidando de seu próprio sangue"32.

A gravidade da epidemia do HIV/Aids, ainda, foi significativa e positivamente associada com aumento da proporção de pessoas idosas vivendo sozinhas33.

Envelhecimento Demográfico e Carga de Doenças

A transição demográfica é associada à epidemiológica, isto é, mudanças ocorridas ao longo de um determinado tempo nos padrões de morte, morbidade e invalidez que caracterizam uma população específica e que, em geral, ocorrem concomitante a outras transformações34. A transição epidemiológica engloba três mudanças básicas no padrão de mortalidade de uma dada sociedade: a) substituição das doenças transmissíveis por outras não transmissíveis e causas externas; b) deslocamento da carga de morbi-mortalidade dos grupos mais jovens aos mais idosos; e, c) transformação de uma situação em que predomina a mortalidade para outra na qual a morbidade é dominante35.

Na África Subsaariana, os dados que permitem caracterizar a passagem de um estágio da transição para o próximo são escassos. Entretanto, existem evidências demonstrando que o perfil das doenças vem experimentando mudanças importantes em um contexto cada vez marcado pela coexistência de doenças infecciosas, de deficiências nutricionais e de doenças crônicas não transmissíveis. Os dados disponíveis apontam que a crescente urbanização está a contribuir para estilos de vida pouco saudáveis (mudanças nos hábitos alimentares, sedentarismo, tabagismo e maior consumo de álcool) levando ao aumento dos riscos para as doenças coronarianas36.

Os Estudos sobre a Carga Global de Doença de 1990 e de 2000 estimam que a África Subsaariana tem a maior carga de doença no mundo37. A região tem registrado aumento acelerado das doenças não transmissíveis (DNT), incluindo violência e lesões, aumentando a carga já pesada das doenças transmissíveis. Projeta-se, se não houver mudanças significativas em relação ao cuidado e à prevenção, que as doenças não transmissíveis representarão pelo menos 50% da mortalidade no continente africano em 2020. Os principais fatores de risco para as doenças crônicas não transmissíveis estão relacionados com estilos de vida individuais e fatores de risco não modificáveis, incluindo considerações genéticas e étnicas, juntamente com o aumento gradativo da expectativa de vida, fatores pré-natais e de gênero38.

As doenças cardiovasculares são as causas secundárias mais comuns de óbitos de adultos na África Subsaariana, além de ser uma das principais causas de doença crônica e de incapacidade nas idades mais avançadas. Metade das mortes por doenças cardiovasculares ocorre em pessoas na faixa etária entre os 30 e os 69 anos de idade. Comparada com as regiões mais desenvolvidas, morre-se na África Subsaariana 10 ou mais anos mais jovem por doenças cardiovasculares39.

Uma proporção considerável de pessoas idosas sofre de desnutrição40, de múltiplas condições crônicas físicas e mentais (tais como as condições músculo-esquelético e cardiovascular, deficiências visuais ou auditivas, depressão e demência)41-44 e, por consequencia, possuem uma saúde bastante debilitada45,46.

Ademais, adultos e pessoas mais velhas portadoras de doenças cronicas não transmissíveis, muitas vezes, não têm acesso a serviços necessários para procedimentos de diagnóstico precoce, de tratamento adequado e de prevenção de outros agravos e complicações47,48.

O Envelhecimento Demográfico e Agenda dos Governos de África

No ano de 2003, como desdobramento do Plano de Ação Internacional sobre o Envelhecimento das Nações Unidas de 2002 (Plano de Madrid), a União Africana publicou o documento intitulado Plano de Ação sobre o Envelhecimento da União Africana49. Neste documento propugna-se o desenvolvimento de estratégias para melhorar a prestação de serviços de saúde para pessoas idosas da África como uma maneira de realizar seu direito à saúde e de promover a sua contribuição para as famílias e as sociedades. Ambos os planos atentam para dois tipos principais de medidas: (i) estratégias multifacetadas de promoção da saúde para prevenir doenças e invalidez entre os distintos grupos etários que compõe a velhice; e, (ii) políticas específicas para assegurar o pleno acesso aos cuidados curativos e de reabilitação adequados para pessoas mais velhas doentes e/ou portadores de algum grau de deficiência/incapacidade50.

Entretanto, desde a publicação do Plano, o cenário da atenção à saúde da população idosa na África Subsaariana pouco mudou. Parece haver falta de convicção de que a ação sobre a saúde da população idosa deva ser uma prioridade dentro de um contexto de alta prevalência de doenças infecto-contagiosas com impacto direto na morbimortalidade materno infantil50.

A postura aparentemente típica dos legisladores e dos profissionais de planejamento nos níveis centrais de governo, em especial aqueles relacionados às finanças do país, é que os orçamentos nacionais não têm capacidade de sustentar políticas específicas para o segmento da população idosa em seus países. Tais políticas, ao contrário de programas essenciais de saúde voltados para crianças, jovens e adolescentes são vistas como um obstáculo, ou na melhor das hipóteses, como irrelevantes para os interesses de desenvolvimento do país. Ou, ainda, há falta de clareza sobre quais as medidas específicas necessárias para efetivamente garantir a saúde das pessoas idosas48. Junte-se a isso, todas as carências cronicas, materiais e humanas dos serviços de saúde nesta região.

Considerações Finais

O processo de envelhecimento demográfico verificado na grande maioria dos países que pertence à região da África Subsaariaana dá-se de forma lenta em virtude das altas taxas de fertilidade ainda presentes nesta região. No entanto, o número de pessoas idosas está a crescer de forma intensa em toda a região. As doenças infectocontagiosas ainda são responsáveis por grande parte da mortalidade geral, com destaque importante para a epidemida de HIV/AIDS que tem reconfigurado as estruturas familiares. Ademais, o processo de urbanização e as mudanças de estilos de vida têm contribuido para o aumento das doenças cronicas não transmissíveis. Assim, configura-se um quadro de dupla carga de doença que traz sérios desafios para a organização e para o financiamento dos sistemas nacionais de saúde.

Neste contexto, o acesso ao diagnóstico, tratamento e ações de prevenção por parte da população idosa é precária. Por outro lado, os governantes, apesar de instituirem documentos que firmam compromisso com a melhoria da qualidade de vida deste segmento populacional, ainda não incorporaram efetivamente nas agendas das políticas públicas as necessidades e as demandas da população idosa.

A concertação em torno dos objetivos e metas do milênio, instituído pelas Nações Unidas no ano de 2000, tornou-se referência central para as iniciativas de cooperação internacional que têm como foco os países em desenvolvimento. Ainda que possam ter relação com as condições de vida da população idosa em geral, a agenda específica do envelhecimento populacional e suas consequencias acabam subsumidas por outras prioridades, notadamente a redução da mortalidade infantil e materna. Tal fato terá, a médio e longo prazo, implicações profundas na capacidade dos governos que compõem a região subsaariana em enfrentar os desafios impostos pelo envelhecimento demográfico em seus países. Trata-se, portanto, de uma agenda que deveria ser o mais rapidamente incluída nos termos das cooperações entre os países, em especial os do hemisfério sul-sul.

Colaboradores

JL Telles participou da escolha dos temas, do levantamento bibliográfico e da redação e revisão final do texto. APA Borges participou na organização da bibliografia de acordo com os temas e redação do texto.

Artigo apresentado em 22/07/2012

Aprovado em 28/08/2012

Versão final apresentada em 19/09/2012

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Nov 2013
  • Data do Fascículo
    Dez 2013

Histórico

  • Recebido
    22 Jul 2012
  • Aceito
    19 Set 2012
  • Revisado
    28 Ago 2012
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