Resumos
O objetivo do artigo é estimar a prevalência de utilização de medicamentos em crianças de zero a seis anos, analisando as características sociodemográficas associadas, e avaliar a adequação dos medicamentos quanto às indicações em pediatria e às restrições por faixa etária. Estudo transversal de amostra constituída por crianças de seis anos ou menos residentes em uma cidade no sul do Brasil, através de amostragem por conglomerados. Aplicou-se questionário padronizado sobre o uso de medicamentos nos 15 dias anteriores à entrevista. Foi realizada análise descritiva e avaliada a associação entre o uso de medicamentos e fatores sociodemográficos, além da análise da adequação dos medicamentos mais prevalentes. Das 687 crianças avaliadas, 52% utilizaram pelo menos um medicamento no período estudado. Não foram encontradas associações entre o uso de medicamentos e características sociodemográficas, à exceção da renda per capita mensal. O medicamento mais utilizado foi o paracetamol (17,1%), seguido da amoxicilina (9,5%) e da dipirona (8,4%). Entre os dez medicamentos mais utilizados, seis apresentaram restrições de faixa etária em pediatria. Os resultados indicam uso expressivo de medicamentos, incluindo os com restrições de faixa etária, particularmente em crianças menores de dois anos.
Uso de medicamentos; Crianças; Prevalência
The scope of this article was to estimate the prevalence of medication use in children between zero and six years old, analyzing the associated socio-demographic characteristics, and evaluating the adequacy of the medication with respect to pediatric recommendations and restrictions per age group. A cross-sectional study was conducted by means of cluster sampling on a sample comprised of children aged six or under, residents of a city in the south of Brazil. A standardized questionnaire about medication use 15 days prior to the interview was applied. A descriptive analysis was carried out, and the association between medication use and socio-demographic factors was evaluated, as well as the analysis of the pediatric adequacy of the most prevalent medication. Of the 687 children evaluated, 52% used at least one drug in the period. Associations between medication use and socio-demographic characteristics were not found, with the exception of per capita monthly income. The most prevalent medication was paracetamol (17.1%), followed by amoxicillin (9.5%) and dipyrone (8.4%). Among the ten drugs most used in children, six had pediatric restrictions for the age group. The results indicate significant use of medication, including medication with age restrictions, particularly for children under two years of age.
Drug utilization; Preschool child; Prevalence
TEMAS LIVRES FREE THEMES
Utilização de medicamentos entre crianças de zero a seis anos: um estudo de base populacional no sul do Brasil
Drug use among children between zero and six years old: a population baseline study in the south of Brazil
Cassia Garcia Moraes; Sotero Serrate Mengue; Noemia Urruth Leão Tavares; Tatiane da Silva Dal Pizzol
Programa de Pós- Graduação em Epidemiologia, Universidade Federal do Rio Grande do Sul. R. Ramiro Barcelos 2400/2º, Santa Cecília. 90.035-003 Porto Alegre RS Brasil. cassia.moraes@ufrgs.br
RESUMO
O objetivo do artigo é estimar a prevalência de utilização de medicamentos em crianças de zero a seis anos, analisando as características sociodemográficas associadas, e avaliar a adequação dos medicamentos quanto às indicações em pediatria e às restrições por faixa etária. Estudo transversal de amostra constituída por crianças de seis anos ou menos residentes em uma cidade no sul do Brasil, através de amostragem por conglomerados. Aplicou-se questionário padronizado sobre o uso de medicamentos nos 15 dias anteriores à entrevista. Foi realizada análise descritiva e avaliada a associação entre o uso de medicamentos e fatores sociodemográficos, além da análise da adequação dos medicamentos mais prevalentes. Das 687 crianças avaliadas, 52% utilizaram pelo menos um medicamento no período estudado. Não foram encontradas associações entre o uso de medicamentos e características sociodemográficas, à exceção da renda per capita mensal. O medicamento mais utilizado foi o paracetamol (17,1%), seguido da amoxicilina (9,5%) e da dipirona (8,4%). Entre os dez medicamentos mais utilizados, seis apresentaram restrições de faixa etária em pediatria. Os resultados indicam uso expressivo de medicamentos, incluindo os com restrições de faixa etária, particularmente em crianças menores de dois anos.
Palavras-chave: Uso de medicamentos, Crianças, Prevalência
ABSTRACT
The scope of this article was to estimate the prevalence of medication use in children between zero and six years old, analyzing the associated socio-demographic characteristics, and evaluating the adequacy of the medication with respect to pediatric recommendations and restrictions per age group. A cross-sectional study was conducted by means of cluster sampling on a sample comprised of children aged six or under, residents of a city in the south of Brazil. A standardized questionnaire about medication use 15 days prior to the interview was applied. A descriptive analysis was carried out, and the association between medication use and socio-demographic factors was evaluated, as well as the analysis of the pediatric adequacy of the most prevalent medication. Of the 687 children evaluated, 52% used at least one drug in the period. Associations between medication use and socio-demographic characteristics were not found, with the exception of per capita monthly income. The most prevalent medication was paracetamol (17.1%), followed by amoxicillin (9.5%) and dipyrone (8.4%). Among the ten drugs most used in children, six had pediatric restrictions for the age group. The results indicate significant use of medication, including medication with age restrictions, particularly for children under two years of age.
Key words: Drug utilization, Preschool child, Prevalence
Introdução
A incerteza quanto à eficácia e segurança de medicamentos utilizados em crianças deve-se, em grande parte, à escassez de ensaios clínicos envolvendo estas por motivos éticos, legais e econômicos, limitando o conhecimento sobre os efeitos do medicamento no organismo infantil1-3. Como consequência, o uso de medicamentos em crianças é baseado principalmente em extrapolações e adaptações do uso em adultos. Desta forma, muitos medicamentos são prescritos e dispensados às crianças, mesmo quando o uso não está aprovado pela agência sanitária ou quando apresenta riscos pela ausência de informações para uso pediátrico1,4,5.
Os estudos sobre o padrão de utilização de medicamentos em crianças ainda são considerados escassos, sobretudo os de base populacional e os realizados nos países em desenvolvimento4,6,7. Os estudos existentes apontam que a maioria das crianças utiliza algum tipo de medicamento, principalmente as menores de dois anos8-10. Estudo realizado nos Estados Unidos indica uma prevalência de consumo de 56% nos sete dias anteriores à pesquisa11. Outro estudo, conduzido no sul do Brasil, verificou a mesma frequência de uso, mas para os 15 dias anteriores à entrevista6.
A investigação sobre o perfil de uso dos medicamentos pode fornecer uma visão geral sobre os problemas terapêuticos, ajudando a identificar as necessidades de intervenções específicas junto à população e aos profissionais da saúde12, bem como de pesquisas clínicas e/ou epidemiológicas com os medicamentos de uso prevalente. Neste contexto, estudos farmacoepidemiológicos de base populacional podem ser úteis, visando melhorias na eficácia e eficiência das intervenções em saúde13.
Com o intuito de realizar contribuições nessa área, foi realizado um estudo epidemiológico de base populacional em crianças de zero a seis anos residentes na área urbana da cidade de Bagé, situada na região sul do Brasil. O objetivo foi estimar a prevalência de utilização de medicamentos, analisando as características sociodemográficas associadas, e avaliar a adequação dos medicamentos quanto às indicações em pediatria e restrições por faixa etária.
Métodos
O estudo foi realizado na área urbana de Bagé, cidade no sul do Brasil. Em 2000 havia 114.908 pessoas residentes no município, das quais 14.205 eram crianças entre zero e seis anos. O índice de desenvolvimento humano municipal (IDHM), em 2000, era de 0,802, acima do índice nacional (0,766)14.
A pesquisa seguiu um modelo de estudo transversal. A amostra foi constituída por crianças entre zero e seis anos residentes em domicílios da área urbana de Bagé no período de 13 de abril a 25 de maio de 2009. Como critérios de inclusão, foram selecionadas crianças nascidas após 13 de abril de 2003. Os critérios de exclusão foram crianças com problemas graves de saúde e cuidadores com dificuldades de comunicação.
O tamanho amostral calculado para se estimar uma prevalência, presumida em 55%, obtida a partir de estudos prévios, com um erro absoluto de 0,05, ou seja, um afastamento tolerável de 5% entre a prevalência na população e a estimativa a ser obtida pelo estudo, e para um nível de confiança de 95%, foi de 384 crianças. Por meio de amostragem aleatória simples, foram sorteados 30 setores censitários. As quadras de cada setor foram numeradas e a primeira a ser percorrida sorteada, com uma esquina de ponto de partida também escolhida por sorteio. O entrevistador abordava todas as casas procurando por crianças nascidas após 13 de abril de 2003 até atingir o total de 25 crianças por setor. Havendo duas ou mais crianças elegíveis no mesmo domicílio, era sorteada uma das crianças para a qual os dados eram coletados.
Foram convidados a responder o questionário os pais ou o cuidador da criança, correspondendo ao principal responsável pelas decisões em relação às condutas com a saúde da criança. Na dúvida, perguntava-se "Quem é a pessoa da casa que toma as decisões sobre os cuidados com a saúde da criança, na maioria das vezes"? No caso de empate entre mãe e outra pessoa, escolhia-se preferencialmente a mãe. Caso o responsável pela criança não estivesse presente no dia da entrevista agendava-se nova visita em horário conveniente. Caso não fosse possível realizar a entrevista ou agendá-la após três tentativas de contato em dias e horários diferentes, o sujeito era considerado como perda.
Utilizamos um questionário contendo perguntas abertas e fechadas, testado em estudo piloto, fase em que foram realizadas as modificações necessárias. Os entrevistadores foram previamente treinados para os procedimentos relacionados com a localização dos domicílios sorteados, abordagem dos moradores, convite à participação no projeto e aplicação do questionário.
O uso de medicamentos, por prescrição ou por automedicação, foi verificado por meio da questão: "A criança recebeu algum remédio nos últimos 15 dias, inclusive vitaminas, chás ou pomadas?". Em caso afirmativo, eram coletados dados sobre nome comercial e/ou genérico do medicamento, forma farmacêutica e posologia. Os medicamentos citados foram ordenados de acordo com a classificação Anatomical Therapeutic Chemical (ATC).
As principais variáveis independentes investigadas foram sexo da criança, idade, número de irmãos e cuidador, e características do responsável pela criança (raça autorreferida, anos de escolaridade, idade e ocupação relacionada ao exercício remunerado ou não). Foi utilizada a classificação econômica familiar, por meio de estimativa do poder de compra da família (de acordo com o Critério de Classificação Econômica Brasil, da Associação Brasileira de Empresas de Pesquisa), a renda mensal per capita em reais e o plano de saúde familiar (se privado ou público). A principal variável de desfecho investigada foi a utilização de medicamentos, prescritos ou não. Os mais utilizados foram avaliados quanto às indicações aprovadas em pediatria e restrições por faixa etária, de acordo com as informações verificadas a partir da base de dados Drugdex Thomsom Micromedex e da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA).
Os dados foram digitalizados pelo Teleform Workgroup V10, armazenados e analisados no programa estatístico SPSS versão 18.0 para Windows (SPSS Inc, Chicago, IL). Foi realizada análise descritiva e os dados expressos em frequência relativa e razão de prevalência (RP), com intervalos de confiança de 95%. O teste do qui-quadrado foi usado para comparação bivariada de proporções, com um valor de P < 0,05 sendo considerado significativo.
O presente estudo foi submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, tendo sido aprovado. O termo de consentimento livre e esclarecido era lido e assinado no momento da pesquisa pelas partes, em duas vias.
Resultados
De um total de 693 crianças identificadas, ocorreram seis perdas por recusa ou residência fechada em três tentativas de contato. Em cinco setores censitários, não foram encontradas o total de 25 crianças que preenchessem os critérios de inclusão. Foram analisadas 687 crianças, correspondendo a 4,8% da população entre zero e seis anos de Bagé, em 200015.
Das 687 crianças incluídas no estudo, o uso de pelo menos um medicamento nos 15 dias anteriores à entrevista foi relatado para 357 crianças (52%, IC 95%: 46,9 - 57,0), por indicação médica ou por automedicação. O total de medicamentos utilizados no período foi igual a 597, sendo a média por criança de 1,7 (DP ± 1,0). Observou-se que 54,7% das crianças menores de dois anos participantes do estudo utilizaram medicamentos nos 15 dias anteriores à entrevista, enquanto 50,6% daquelas com dois anos ou mais utilizaram algum medicamento no mesmo período.
A Tabela 1 apresenta as prevalências e RP de uso de medicamentos, de acordo com as características sociodemográficas das crianças e de seus cuidadores. Renda per capita mensal maior que um salário mínimo apresentou associação positiva com uso de medicamentos (p<0,05). Para as demais características das crianças e cuidadores investigadas, não foram encontradas diferenças entre as usuárias e não usuárias de medicamento.
Os grupos terapêuticos mais utilizados pelas crianças, conforme o primeiro nível da classificação ATC, foram os medicamentos com ação no sistema respiratório, utilizado por cerca de um terço das crianças, seguido pelos que atuam no sistema nervoso central (28,0%) (Tabela 2). A Tabela 2 ainda mostra os medicamentos mais usados por grupo terapêutico. Os chás e os produtos homeopáticos foram utilizados por 24,1% das crianças, entre os quais o de laranjeira, camomila e erva-doce foram os mais citados. O medicamento mais utilizado foi o paracetamol (17,1%), seguido da amoxicilina (9,5%) e da dipirona (8,4%).
Entre os dez medicamentos mais utilizados pelas crianças no estudo, seis apresentam restrições de faixa etária em pediatria. Os medicamentos e as faixas etárias com contraindicação são apresentados na Tabela 3.
Discussão
Aproximadamente metade das crianças de zero a seis anos incluídas no estudo utilizou ao menos um medicamento nos 15 dias anteriores à entrevista, por indicação médica ou não. A prevalência estimada é semelhante a outros estudos brasileiros que usaram o mesmo período recordatório, nos quais variou de 48 a 56%4,6. Estudos realizados nos Estados Unidos11 e Alemanha16 também demonstraram prevalências semelhantes, utilizando período recordatório de sete dias. A heterogeneidade dos métodos utilizados em outros estudos dificulta a comparação dos dados, visto que a faixa etária investigada e o período recordatório têm grande variação nos diferentes trabalhos realizados, bem como a origem do uso dos medicamentos. Enquanto alguns estudos investigaram o uso de medicamentos por indicação médica1 outros avaliaram o uso por automedicação5,7.
No presente estudo, as variáveis relacionadas às características sociodemográficas das crianças e seus responsáveis não apresentaram associação com o consumo de medicamento, à exceção da renda per capita mensal, tendo em vista que uma maior renda familiar aumenta a possibilidade de aquisição tanto de produtos como de serviços16.
Os medicamentos com ação no trato respiratório formam o grupo terapêutico mais utilizado pelas crianças no estudo, em consonância com pesquisas prévias sobre o uso destes, seja por prescrição médica1 ou por automedicação5.
Entre os medicamentos com ação no trato respiratório, os mais utilizados foram os anti-histamínicos, fármacos para tosse e expectorantes e as preparações nasais. Diversas revisões sistemáticas têm revelado que não existem evidências suficientes de que estes medicamentos apresentam benefício superior ao placebo no tratamento de sintomas gerados por infecções respiratórias das vias áreas superiores, como congestão nasal e rinorreia associados a resfriado comum17,18 tosse aguda19,20, tosse crônica inespecífica21 e sinusite aguda22.
Embora alguns dos medicamentos para o trato respiratório como dexclorfeniramina e a associação bronfeniramina e fenilefrina sejam contraindicados para crianças menores de dois anos, verificamos que cerca de um terço das que usaram esses medicamentos estavam nesta faixa etária23,24. Além dos efeitos adversos intrínsecos de cada substância ativa, existem outros fatores que podem torná-los potencialmente perigosos para esse grupo etário, incluindo a interpretação incorreta da dose ou do intervalo entre doses, o uso de medidas inadequadas de dosificação, ou ainda a administração simultânea de vários medicamentos, com o intuito de obter maior alívio dos sintomas.
Entre os analgésicos e anti-inflamatórios, os mais utilizados foram paracetamol, dipirona e ibuprofeno, fármacos reconhecidamente eficazes no manejo da febre, um dos sintomas mais comuns em pediatria25. O paracetamol e o ibuprofeno estão na lista de medicamentos para infância da Organização Mundial de Saúde26. A segurança da dipirona, analgésico/antitérmico de baixo custo e integrante da lista de medicamentos do Programa Farmácia Popular, tem sido questionada em várias partes do mundo. Resultados do Latin study, estudo de caso-controle multicêntrico realizado em sete locais do Brasil, dois na Argentina e outro no México, apontam para baixa incidência de anemia aplastica (1,6 casos por 1 milhão de habitantes/ano) e ausência de associação com dipirona27, e incidência extremamente baixa de agranulocitose (0,38 casos por 1 milhão de habitantes/ano) e associação positiva, embora não estatisticamente significativa, com dipirona (OR = 2,4; IC 95% 0,8-6,7; p = 0,12)28. Por outro lado, estudo sobre a qualidade dos produtos contendo dipirona comercializados no Brasil, revela desvios de qualidade no teor do fármaco e nas informações presentes na embalagem e em bulas de medicamentos, principalmente dos similares29, chamando a atenção para a necessidade de maior vigilância, no Brasil.
Destacamos ainda o uso expressivo do diclofenaco em crianças com menos de um ano de idade, faixa etária para o qual o medicamento é contraindicado. A eficácia e a segurança deste fármaco para uso em pediatria não estão estabelecidas24.
Outro grupo terapêutico que chama a atenção pelo elevado percentual de utilização corresponde aos chás e produtos homeopáticos, agrupados em "outros produtos terapêuticos". Mesmo que as evidências de segurança ou efetividade de terapias complementares sejam escassas, se comparadas à terapêutica convencional, tais produtos são geralmente considerados seguros e/ou naturais pelos pais, que os administram aos seus filhos com ou sem ciência do médico30,31. Ao avaliar essa prática, é importante compreender os aspectos psicológicos e socioculturais que explicam os motivos pelos quais os pais sentem-se estimulados a adotar esses recursos para amenizar o desconforto dos seus filhos.
Os antibióticos representam o terceiro subgrupo mais utilizado pela amostra investigada. Em diversos estudos2,4 os antibióticos aparecem na lista dos medicamentos mais utilizados por crianças, principalmente naqueles com medicamentos prescritos10,11. Este resultado já era esperado, tendo em vista que as doenças infecciosas também estão entre as morbidades mais comuns em crianças, principalmente as infecções de vias respiratórias, que são responsáveis por grande parte das prescrições ambulatoriais de antimicrobianos9. Dentre os antibióticos, a amoxicilina foi o mais utilizado pelas crianças, resultado similar ao verificado por outros investigadores4,10,11. A amoxicilina é citada em diretrizes internacionais como primeira escolha de tratamento para as infecções mais comuns da infância, como a otite média aguda, faringo-amigdalite e sinusite3.
Outro grupo terapêutico muito utilizado foi o das vitaminas. Há poucas evidências na literatura sobre os benefícios da suplementação vitamínica, principalmente quando não é detectada uma carência destes componentes32. Estabelecer precisamente as necessidades diárias de vitaminas é complicado, pois devem ser consideradas as variações individuais, além do fato de que a ingestão de nutrientes recomendados é possível com uma dieta equilibrada33.
Todos os medicamentos utilizados para o tratamento de crianças devem ser submetidos ao processo de licenciamento para assegurar a qualidade, a segurança e a eficácia nessa faixa etária. Os quatro medicamentos mais usados na amostra analisada (paracetamol, amoxicilina, dipirona e ibuprofeno) possuem uma boa documentação para o uso pediátrico, embora a indicação não seja recomendada em algumas faixas etárias23,24. Por outro lado, os medicamentos para o trato respiratório apresentam poucas evidências de eficácia, conforme discutido anteriormente. Um dos aspectos mais importantes a ser considerado na avaliação das evidências disponíveis em pediatria é como lidar com as questões éticas de proteção da criança na realização de ensaios clínicos controlados. Por definição, estes sempre envolvem algum grau de risco que, na pediatria, deve ser assumido pelos pais, frente a potenciais benefícios que não serão imediatamente usufruídos pelos seus próprios filhos. Outro aspecto importante está relacionado com a motivação econômica da indústria farmacêutica para o desenvolvimento de medicamentos para uso pediátrico. O reduzido mercado dos medicamentos em Pediatria, comparativamente a outros grupos etários, como os adultos e os idosos, além das dificuldades inerentes à realização de ensaios clínicos em crianças, torna o desenvolvimento destes pouco atrativo à indústria farmacêutica34,35.
Quanto às limitações deste trabalho, deve-se considerar o viés de memória, já que o uso referido de medicamentos pelos responsáveis das crianças dependia de um período recordatório de 15 dias. A prevalência do uso de alguns medicamentos pode estar subestimada devido à época da realização do estudo, não abrangendo a estação do inverno, onde os problemas respiratórios tornam-se mais frequentes, aumentando a necessidade do consumo de determinados medicamentos23.
A prevalência encontrada no presente estudo corrobora os resultados da literatura, que indicam consumo elevado de medicamentos na população infantil, apontando para o uso expressivo daqueles com restrições de indicação e de faixa etária, particularmente para crianças menores de dois anos. A escassez de informações quanto à segurança e eficácia dos medicamentos identificados neste estudo reforça a importância da adoção de medidas de incentivo à realização de pesquisas clínicas e ao desenvolvimento de produtos de uso pediátrico, atendendo aos critérios éticos e de qualidade postulados pelas autoridades sanitárias, profissionais e pesquisadores da área.
Colaboradores
CG Moraes e TS Dal Pizzol participaram do planejamento e análises dos dados, redação, revisão do manuscrito e aprovação da versão final. NUL Tavares e SS Mengue participaram do planejamento do estudo, revisão do manuscrito e aprovação da versão final.
Agradecimentos
À equipe de coleta de campo, professora Lúcia Azambuja Saraiva Vieira pela supervisão de campo, aos entrevistadores Bruna Saraiva Severo, Jorge Maubrigades, Lorena da Silva Lima, Luana Lucas Alves, Raquel Leivas Spenst e Raquel Lemos Nobre.
Artigo apresentado em 03/08/2012
Aprovado em 09/09/2012
Versão final apresentada em 19/10/2012
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
19 Nov 2013 -
Data do Fascículo
Dez 2013
Histórico
-
Recebido
03 Ago 2012 -
Aceito
19 Out 2012 -
Revisado
09 Set 2012