Resumos
Pacientes com diabetes mellitus requerem um autocuidado extenso, com tratamentos complexos e comportamentos de saúde adequados, sendo, essas habilidades, fator chave. Frente a tal complexidade surge a importância do letramento funcional em saúde. O objetivo do estudo foi analisar fatores associados ao letramento em saúde e sua relação com controle glicêmico em pacientes diabéticos. Este estudo foi realizado com 82 pacientes diabéticos tipo 2, atendidos em um ambulatório de endocrinologia de um hospital público, de ambos os sexos e com idade entre 19 e 59 anos, que responderam à versão abreviada e traduzida do Test of Functional Health Literacy in Adults (b-TOFHLA). Valores de glicemia de jejum e hemoglobina glicada foram coletados dos prontuários dos participantes. Foram realizadas correlações, comparações de médias e modelos de regressão linear. O letramento inadequado foi encontrado em 65,9% dos pacientes. Foram fatores associados à pontuação do b-TOFHLA, a idade e os anos de estudos. O letramento global não explicou o controle glicêmico, mas o numeramento apresentou associação com tal controle. Nossos resultados apontam para a necessidade de melhorar o numeramento em saúde dos pacientes para obter seu melhor controle glicêmico, principalmente naqueles com maior idade e menos anos de estudo.
Doença Crônica; Diabetes; Letramento em Saúde; Numeramento em saúde
Diabetes mellitus patients must concentrate on self-care, with complex treatments and adequate health behavior in which such habits are a key factor. Due to the complexity of this issue, the importance of literacy in health arises. The goal of the study was to analyze factors associated with literacy in health and its relation with glycemic control in diabetic patients. It involved a study with 82 type 2 diabetic patients of both sexes and aged between 19 and 59 attended in the outpatient endocrinology ward of a public hospital, who filled out an abbreviated and translated version of the Test of Functional Health Literacy in Adults (b-TOFHLA). Fasting glycaemia values and glycated hemoglobin were collected from the clinical history of the participants. Correlations, mean comparisons and linear regression models were tested. Inadequate literacy in health was encountered in 65.9% of the patients. The issues involved factors associated with the b-TOFHLA point scores were age and years of schooling. Global literacy did not explain the glycemic control, but the level of numeracy presented an association with this control. The results point to the need to improve the numeracy in health of the patients to obtain enhanced glycemic control, mainly in those with more advanced age and less years of schooling.
Chronic disease; Diabetes; Health literacy; Health numeracy
Introdução
As doenças crônicas não transmissíveis (DCNT), como doenças cardiovasculares e pulmonares, neoplasias, asma e diabetes mellitus, têm uma importância extremamente relevante no perfil atual de saúde das populações. As DCNT caracterizam-se por ter uma origem incerta, múltiplos fatores de risco, longos períodos de latência, curso prolongado, origem não infecciosa e por estarem associadas a deficiências e incapacidades funcionais1.
Dada a crescente prevalência de DCNT, o conhecimento da capacidade de compreensão das informações médicas para a manutenção do estado de saúde é altamente significativo e importante para que as pessoas possam receber instruções que efetivamente possam ser colocadas em prática2 , 3.
Nos últimos anos passou-se a discutir que tal compreensão vai além da mera escolarização formal e perpassa pelo letramento em saúde do indivíduo. Nessa perspectiva, a pessoa pode ter um bom nível de instrução formal, mas ainda assim não conseguir compreender as orientações sobre sua doença. O baixo letramento em saúde está relacionado com diversas doenças crônicas como, doenças cardiovasculares4, câncer5 e diabetes6.
Há mais de uma década, a United Nations Education, Science and Culture Organization (UNESCO) definia o indivíduo alfabetizado funcionalmente como "a pessoa que pode participar de todas as atividades em que a alfabetização é necessária para o funcionamento efetivo do seu grupo e comunidade e também para lhe permitir continuar a utilizar a leitura, a escrita e o cálculo para seu próprio desenvolvimento e da comunidade"7.
No entanto, no que tange ao letramento ou alfabetização funcional em saúde, uma das primeiras aproximações conceituais é a criada por Parker et al.8, em 1995, que aplicou a "capacidade de usar a leitura, a escrita e a habilidade computacional em um nível adequado para atender as necessidades do cotidiano" ao contexto da saúde. Ao longo do tempo o conceito vem evoluindo em detalhamento9 , 10, mas pode-se afirmar que o mesmo ainda está em construção.
Recentemente, em uma revisão sobre diferentes conceitos, Sorensen et al.11 propuseram uma definição para integrar todas existentes: "O conhecimento, motivação e competências das pessoas para acessar, compreender, avaliar e aplicar informação em saúde, de forma a fazer julgamentos e tomar decisões no dia a dia, no que tange ao cuidado da saúde, prevenção de doenças e promoção da saúde, para manter ou melhorar a qualidade de vida".
Portanto, a questão não é apenas saber se o indivíduo sabe ler ou escrever, mas o que ele é capaz de fazer com essas habilidades, especificamente, no âmbito da saúde.
Devido à importância de se conhecer o letramento em saúde da população para planejar e executar ações educativas bem sucedidas foram desenvolvidos critérios e instrumentos para mensurar e classificar os indivíduos segundo seu letramento em saúde. Dentre os existentes, o mais conhecido é o Test of Functional Health Literacy in Adults (TOFHLA), assim como sua versão curta (s-TOFHLA) e abreviada (aqui colocada como b-TOFHLA), como proposto em Baker et al.2.
O TOFHLA e o b-TOFHLA englobam a investigação de duas habilidades: a capacidade leitora e o numeramento (habilidade para realização de cálculos matemáticos)2.
Embora a temática esteja em pauta há mais tempo em alguns países, no Brasil apenas recentemente despertou-se para essa ideia. Entre as primeiras publicações brasileiras, pode ser destacada a de Carthery-Goulart et al.12, que primeiramente consideraram a importância de melhorar a qualidade dos serviços prestados pelo sistema de saúde brasileiro, acrescentando esse indicador para o planejamento e execução de ações. Assim, como um primeiro passo, os autores traduziram e aplicaram o b-TOFHLA junto a 312 pacientes, de diferentes idades e anos de escolaridade, entre 2006 e 2007. No país, pode-se dizer que a produção científica ainda está na fase de conhecer o letramento em saúde de diferentes grupos populacionais, para então, poder realizar intervenções.
Nesse contexto, no Brasil ainda não foi realizado um diagnóstico de letramento em saúde direcionado para pacientes diabéticos, especificamente avaliando sua repercussão sobre o controle glicêmico da doença. A preocupação com indivíduos diabéticos procede, pois a prevalência da doença é alta na população mundial, em todas as faixas etárias13. Pacientes com diabetes mellitus, independentemente do tipo deste, requerem um autocuidado extenso, com tratamentos complexos e comportamentos de saúde adequados, sendo, essas habilidades, fator chave para os resultados do tratamento14 - 17. Nesses indivíduos, a habilidade de numeramento também é importante para o autocontrole da doença, incluindo a capacidade de interpretar os resultados de glicemia, determinar o requerimento de insulina, realizar a contagem de carboidratos e executar outras atividades afins18.
Assim, considerando que o letramento em saúde poderia apresentar associação com um controle glicêmico favorável, o objetivo do presente estudo foi avaliar fatores associados ao letramento em saúde e sua associação com o controle glicêmico (glicemia de jejum e níveis de hemoglobina glicada) em pacientes diabéticos tipo 2.
Métodos
O estudo caracterizou-se como transversal realizado no ano de 2011. O estudo integra uma pesquisa maior intitulada: "Plano AlfaNutri: um novo paradigma, a alfabetização nutricional, para promoção da alimentação saudável e prática regular de atividade física na prevenção e controle de doenças crônicas".
O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da Universidade Estadual do Ceará (UECE) e todos os entrevistados assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido anuindo participar da pesquisa.
População
Para o presente estudo foram avaliados os pacientes diabéticos tipo 2, integrantes do projeto citado, os quais foram atendidos no ambulatório de Endocrinologia de um dos hospitais. Para o cálculo amostral foram utilizados dados de coeficientes de correlação do estudo de Tang et al.19, considerou-se alfa de 5%, bilateral e beta de 20%. Verificou-se que necessitar-se-ia de um n mínimo de 74 pacientes para comprovar as inferências propostas.
Constituiu-se critério de inclusão pacientes de ambos os sexos, com diagnóstico de diabetes mellitus tipo 2, e idade entre 19 e 59 anos, além dos critérios exigidos para aplicação do teste b-TOFHLA: saber ler e apresentar acuidade visual adequada, isto é, ler os sinais no mínimo até a linha 20/50 da Escala de Sinais de Snellen. Além disso, estar em uso dos hipoglicemiantes orais (cloridrato de metformina, glibenclabina e/ou glicazida, que são os disponíveis em sistema público de saúde). O não atendimento aos critérios de inclusão configurou critério de exclusão. Foi, ainda, critério de exclusão, a inexistência, no prontuário do paciente, de pelo menos um exame de hemoglobina glicada (HbA1c) e/ou glicemia de jejum.
Nesse estudo foram avaliados 123 pacientes diabéticos, sendo excluídos 41 deles devido à inexistência de pelo menos um exame de hemoglobina glicada e/ou glicemia de jejum (n = 24), em seus prontuários; a não localização do prontuário do paciente (n = 7) e à constatação de outro diagnóstico que não fosse diabetes mellitus tipo 2 (n = 10), após análise dos prontuários. Assim, permaneceram os dados de 82 pacientes para as análises deste manuscrito.
Coleta de dados
O instrumento de coleta de dados incluiu informações sobre sexo, faixa etária, escolaridade e o teste b-TOFHLA. Optou-se por utilizar este teste devido à maioria dos poucos estudos nacionais o terem aplicado, e por Carthery-Goulart et al.12, analisando o desempenho de um grupo populacional brasileiro atendido pelo Sistema Único de Saúde (SUS) em âmbito hospitalar, terem concluído ser o instrumento adequado para avaliar o letramento funcional em saúde no Brasil. Este instrumento, em sua versão breve, engloba o instrumento em sua versão curta (s-TOFHLA), que vê apenas habilidade de leitura, como já citado, através de 36 itens, e inclui quatro itens de numeramento, avaliando também esta habilidade. A pontuação total é de 100 pontos, sendo 72 pontos referentes à leitura (peso 2 para cada item) e 28 pontos referentes ao numeramento (peso 7 para cada item), permitindo categorizar o respondente em três níveis de letramento funcional em saúde: inadequado (0 a 53 pontos), marginal (54 a 66 pontos) e adequado (67 a 100 pontos)2.
Foram coletados, no prontuário do paciente, os mais recentes valores de glicemia de jejum (GJ) e hemoglobina glicada (HG), para determinação do controle glicêmico.
Análise de dados
Letramento funcional em saúde
Considerando uma hipótese de que o letramento funcional em saúde adequado favorece um bom controle glicêmico em pacientes diabéticos, foram consideradas duas categorias de letramento funcional em saúde: adequado e inadequado (agrupando-se marginal e inadequado). Estas foram confrontadas com sexo (masculino, feminino), escolaridade (até 8 anos; maior ou igual a 8 anos) e controle glicêmico.
Para as habilidades de leitura foram adotados os pontos de corte do s-TOFHLA, que atribui peso 1 a cada um dos 36 itens e coloca como letramento adequado um desempenho de 23 a 36 pontos. Na ausência de um indicador de bom numeramento, trabalhou-se com o percentil 75 (pelo menos 21 pontos de um total de 28) como indicativo de adequado numeramento.
Controle glicêmico
O controle glicêmico foi avaliado de duas formas distintas. Classificou-se, primeiramente, como satisfatório (valores aceitáveis de glicemia de jejum e hemoglobina glicada) e insatisfatório (pelo menos um dos marcadores avaliados com valores elevados). Posteriormente, foi avaliado como satisfatório para ambos os marcadores, satisfatório apenas quanto à hemoglobina glicada; satisfatório apenas quanto à glicemia de jejum, e insatisfatório em ambos os marcadores.
Adotou-se, o critério da American Diabetic Association 20 para valores aceitáveis de glicemia de jejum (< 130 mg/dL) e de hemoglobina glicada (< 7,0%) em portadores de diabetes tipo 2.
Análise estatística
Foram utilizados os testes Qui-Quadrado ou exato de Fischer para variáveis qualitativas, além do teste de correlação de Pearson e teste t de Student, para variáveis quantitativas. Observou-se antes o teste de Levene, para a igualdade de variâncias, bem como o teste de normalidade de Kolmogorov-Sminorv. Foram realizados modelos de regressão linear para avaliar a relação entre o letramento em saúde e controle glicêmico e seus fatores associados (sexo, idade, anos de estudos).
Para todos os testes estatísticos referidos foi adotado p < 0,05, como nível descritivo de teste. Para tais análises foi utilizado o pacote estatístico SPSS versão 20.0.
Resultados
Os participantes do estudo eram predominantemente do sexo feminino (76,9%), com idade média de 42,4 ± 11,5 anos. Metade da população estudada (50,0%) apresentou escolaridade abaixo de 8 anos, correspondendo ao ensino fundamental. A média de pontuação no b-TOFHLA foi de 56 pontos (variando de 0 a 100 pontos). Constatou-se que 65,9% dos pacientes apresentaram letramento em saúde inadequado (escore de 0 a 66 pontos) (Tabela 1). Não houve diferença significante na comparação do diagnóstico entre os sexos (p = 0,404).
A hemoglobina glicada média da população em estudo foi de 8,5 ± 1,9% e a média de glicemia de jejum foi 160,5 ± 62,8 mg/dL. O controle glicêmico insatisfatório foi observado em 84,1% dos pacientes. Considerando o letramento em saúde, a proporção de controle glicêmico insatisfatório foi de 81,5% entre os pacientes com letramento inadequado, e de 89,3% entre aqueles com letramento adequado. O maior responsável pelo descontrole glicêmico foi a concentração de hemoglobina glicada.
Houve correlação significante dos pontos totais do b-TOFHLA, de forma negativa com a idade (r = -0,529; p < 0,001) e positiva com os anos de estudos (r = 0,671; p < 0,001). Não havendo tal significância com valores de hemoglobina glicada (r = -0,043; p = 0,700) e de glicemia de jejum (r = 0,000; p = 0,998).
Não houve diferença nas médias de glicemia de jejum e hemoglobina glicada após estratificação por escolaridade e diagnóstico de letramento (Tabela 2). Houve associação entre o numeramento com glicemia de jejum, sendo esta superior no numeramento inadequado (Tabela 3).
Foi utilizado modelo de regressão linear múltipla para prever as pontuações obtidas pelo b-TOFHILA, utilizando idade, sexo e anos de estudo. Um modelo significante foi obtido com R² ajustado = 0,424, tendo variáveis independentes, anos de estudos (β = 3,948, IC 95%: 2,570; 5,327), idade (β = -0,500, IC 95%: -0,916; -0,084) e sexo como ajuste (β = 0,815, IC 95%: -8,609; 10,239).
Discussão
Devido ao fato do letramento em saúde ser um assunto novo no Brasil, há escassos trabalhos nacionais, sendo esta, a primeira pesquisa, no âmbito nacional, relacionando o letramento funcional em saúde de pacientes diabéticos atendidos pelo SUS e seu controle glicêmico. Há um outro estudo brasileiro recente junto a diabéticos, mas realizado com idosos, grupo etário não enfocado no presente estudo, e que utilizou um instrumento de aferição de letramento em saúde que não avalia a habilidade de numeramento21.
Os resultados desse estudo apontam que, entre os pacientes entrevistados que têm diabetes tipo 2, o nível de letramento funcional em saúde não apresentou associação significante com o controle glicêmico, tanto considerando glicemia de jejum como hemoglobina glicada. No entanto, na análise estratificada por numeramento e capacidade leitora, houve associação entre maiores níveis de glicemia de jejum e numeramento inadequado.
Esses achados não condizem com alguns outros estudos semelhantes realizados em outros países, nos quais existe uma tendência de correlação significativa entre os níveis insuficientes de letramento e o mau controle glicêmico6 , 22.
O fato da elevada prevalência de inadequação de letramento e de alto descontrole glicêmico podem ter influenciado a falta de associação estatística observada.
O cuidado eficaz do diabetes requer uma série de habilidades e conhecimentos que devem ser transmitidos aos pacientes por toda a equipe de saúde de forma clara e objetiva para o sucesso do tratamento, uma vez que o autocuidado, nessa doença, é mais desafiador do que para qualquer outra DCNT, com a realização de monitorização da glicose no sangue, gerenciamento de medicamentos, mudanças de hábitos alimentares e atividade física6.
Em estudo realizado nos Estados Unidos, em que foram entrevistados 211 pacientes diabéticos de um hospital público, similar ao presente estudo, observaram que a prevalência de letramento inadequado foi menor, sendo de 45,5%2.
Uma pesquisa confrontando o letramento em saúde e a glicemia autoavaliada revelou perfil de pacientes semelhante: média de idade de 51,2 anos, sexo feminino e baixa escolaridade. Os pacientes diabéticos (n = 218) responderam o s-TOFHLA e obtiveram, em 39,1%, letramento inadequado. O letramento esteve associado positivamente à idade, e negativamente à escolaridade, porém não houve associação com o monitoramento dos níveis de glicose no sangue23.
Um aspecto relatado na literatura como interferente no letramento em saúde é a idade, pois com o avanço desta há um declínio na função cognitiva e memória e uma diminuição das habilidades sensoriais, como a visão prejudicada, havendo também maior dificuldade de interpretação e memorização de informações médicas6 , 24. No entanto, este fato não foi relevante no presente estudo, pois idosos não foram incluídos. Já considerando o estudo de Souza et al.21, o letramento em saúde dos idosos avaliados foi abaixo do adequado em 56,6% deles, embora o instrumento aplicado tenha sido o SAHLPA-18 (Short Assessment of Health Literacy for Portuguese-speaking Adults), um teste que avalia a pronúncia e compreensão de termos médicos comumente utilizados.
Em um dos poucos trabalhos brasileiros, realizado entre 2006 e 2007, Carthery-Goulart et al.12 avaliaram o nível de letramento, através do mesmo instrumento aqui utilizado, de 312 indivíduos atendidos no SUS, dos quais 32,4% indicavam letramento inadequado, portanto situação melhor do que a aqui encontrada. A pesquisa demonstrou uma correlação positiva entre escolaridade e pontuação no b-TOFHLA e uma correlação negativa entre a idade e o nível de letramento, semelhantes aos dados do presente estudo.
Um estudo mais antigo, realizado em dois hospitais públicos americanos, apresentou forte correlação de idade e escolaridade com o nível de letramento. No entanto, a análise isolada do número de anos de estudo não retratou o grau de letramento funcional em saúde9. A literatura relata que um dos erros mais comuns cometidos por médicos é avaliar o nível de letramento em saúde do paciente apenas com a informação do grau de escolaridade4.
O letramento em saúde não é apenas importante para o autocuidado de pacientes com doenças crônicas, mas também os afeta desde a prevenção e diagnóstico até o entendimento da doença e seu tratamento25. O baixo letramento em saúde impossibilita a compreensão e a aquisição de hábitos diferenciados pelo não entendimento da doença26.
Pignone et al.27 revelam que o baixo letramento pode ter um efeito negativo direto sobre a saúde. Esse efeito é particularmente importante para as condições que requerem integral e complexo autocuidado por parte do paciente, que é a realidade de portadores de diabetes tipo 2, por causa das barreiras para entender e utilizar informação de saúde, principalmente a informação escrita.
A maior parte dos pacientes entrevistados revelou controle glicêmico insatisfatório, apresentando níveis médios elevados de ambos os marcadores. Tal fato evidencia que a doença não está adequadamente controlada, tanto em nível agudo, como crônico, pois a hemoglobina glicada é avaliada trimestralmente, devido ao seu tempo de meia vida mais longo20 , 28.
Schillinger et al.6 mediram a relação entre capacidade de leitura e controle glicêmico em 408 pacientes de um hospital público. Diferentemente, encontraram uma associação independente entre letramento em saúde e controle glicêmico, tendo inadequado nível de entendimento como um preditor independente para o insatisfatório controle glicêmico. Portanto, pode ser que uma amostra maior, também no grupo aqui avaliado, tivesse permitido chegar a outras constatações.
Em um estudo realizado com 125 adultos diabéticos, o letramento em saúde foi significativamente associado ao conhecimento da diabetes, porém não foi associado com o controle glicêmico29.
Al Sayah et al.30, em uma atual revisão bibliográfica, discutiram não existir relação consistente na literatura entre letramento e controle glicêmico, existindo apenas relações indiretas. As diferenças metodológicas e os fatores de confusão podem interferir nesses resultados, necessitando de uma padronização de limites de classificação de letramento, por exemplo, para melhor avaliação.
Outra revisão31, que envolveu os anos de 1990 a 2008, avaliou vinte e quatro artigos que abordaram a associação entre letramento em saúde e diabetes em estudos transversais e de intervenção. Tal estudo forneceu evidência de uma associação entre letramento em saúde e diabetes, principalmente em estudos transversais.
Uma análise da relação entre letramento em saúde, autocuidado e controle glicêmico não apresentou correlação direta entre letramento e controle da glicemia, porém sugere-se existir, indiretamente, um efeito do autocuidado sobre o controle glicêmico por meio do apoio social. Discute-se que o paciente pode compensar a baixa habilidade de compreensão, uma vez diagnosticada, pelo envolvimento de pessoas importantes, como médicos, familiares e amigos, para o tratamento e controle da doença32.
Um aspecto importante a ser discutido é o relativo ao numeramento, um tópico do letramento em saúde, que foi associado com o controle glicêmico. Numeramento (do inglês numeracy) é "a habilidade para acessar, usar, interpretar e comunicar informações e ideias matemáticas, para participar e administrar demandas matemáticas em uma série de situações da vida adulta33" e numeramento em saúde é "a capacidade para acessar, processar, interpretar, comunicar e agir com informações em saúde: numéricas, quantitativas, gráficas, bioestatística e probabilísticas34".
Habilidades de numeramento são importantes para a pessoa diabética, considerando os cálculos que a mesma terá que fazer, por exemplo, na contagem de carboidratos na dieta, ou quanto às dosagens, horários e intervalos de medicação, além da própria interpretação de sua glicemia, como já comentado18.
Mesmo entre pessoas com elevado nível de educação formal são encontradas dificuldades de numeramento em saúde. McMullan35 investigou habilidades numéricas de estudantes de enfermagem e enfermeiros para cálculo de medicamento a ser administrado a pacientes. Foram aplicados testes para avaliar habilidades de cálculo de adição, subtração, multiplicação, divisão, frações, decimais, porcentagens e conversões relativos ao uso de medicamentos. Houve baixo desempenho geral, respectivamente em 55% dos estudantes de enfermagem e 45% dos enfermeiros, principalmente quanto a cálculo de porcentagens de drogas e velocidade de infusão. O autor destacou a necessidade de prática constante dos profissionais nestas tarefas, bem como o enfoque do tema nas universidades, a fim de garantir a segurança dos pacientes.
O estudo desenvolvido por Cavanaugh et al.36 pode trazer subsídios para o melhor atendimento de pacientes diabéticos e mesmo se aplicar à abordagem educativa de portadores de outras doenças ou em ações de promoção da saúde. Esses autores realizaram um estudo de intervenção focado em melhorar o letramento, incluindo as habilidades de numeramento de pacientes adultos e idosos diabéticos tipo 2. Inicialmente os autores realizaram uma a duas sessões de treinamento com a equipe de saúde, com duração de uma a duas horas cada sessão, abordando letramento em saúde, numeramento e técnicas adequadas de comunicação. Os pacientes foram distribuídos em dois grupos, sendo que um deles foi atendido de forma convencional e o outro foi o grupo de intervenção, o qual recebeu orientações em 2 a 6 sessões, durante 3 meses, através de um instrumento educativo integrado por módulos sobre o autocuidado, enfocando monitoramento da glicemia, dieta, cuidado com os pés e administração da medicação, incluindo insulina. O instrumento selecionado foi o desenvolvido por Wolff et al.37, o qual foi delineado dentro das diretrizes do letramento em saúde, com linguagem clara, uso de figuras apropriadas, sentenças simples e curtas, texto adaptado para leitura em nível de sexto grau (equivalente ao sétimo ano no Brasil), destaque para pontos chave e instruções passo-a-passo. Os pacientes foram avaliados antes e ao final da intervenção, bem como 3 meses após o seu término. Houve melhora discreta, estatisticamente significante, nos relatos referentes ao autocuidado e nos níveis de hemoglobina glicada, mas esta diferença deixou de ser significante na avaliação 3 meses após o término da intervenção. Provavelmente o sucesso deste tipo de atividade depende de sua continuidade em todos os contatos com o paciente.
Assim, os dados do presente estudo aliados aos relatos existentes na literatura apontam para a necessidade de se planejar e executar ações educativas adaptadas ao nível de letramento em saúde do grupo alvo, com maior ênfase nos tópicos associados ao numeramento em saúde. Nesta perspectiva é importante que, a priori, seja investigado o letramento em saúde da população com instrumentos que permitam aferir numeramento e que a equipe seja treinada para abordar o paciente face este indicador. Mesmo no caso de não se mensurar o letramento em saúde, os dados da literatura mostram que é alta a proporção de indivíduos com letramento não adequado e este fato legitima uma proposta de se abordar o paciente partindo do pressuposto de que ele apresenta alguma dificuldade de compreensão das informações em saúde. Demanda-se, assim, o empoderamento das equipes de saúde deste indicador, em âmbito conceitual e operacional, melhorando a qualidade das intervenções realizadas.
Conclusão
A população estudada apresentou alta prevalência de inadequação em letramento, seguido de um desfavorável controle glicêmico. Pelas associações mostradas, constata-se que há necessidade de melhorar o numeramento dos pacientes para se obter seu melhor controle glicêmico, principalmente naqueles com maior idade e menos anos de estudo. Torna-se, assim, fundamental que as equipes de saúde sejam alertadas para a inter-relação existente entre o cuidado e o letramento em saúde.
Agradecimentos
Ao Ministério da Saúde, CNPq e Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FUNCAP).
Referências
- 1 Brasil. Ministério da Saúde (MS). A vigilância, o controle e a prevenção das doenças crônicas não-transmissíveis: DCNT no contexto do Sistema Único de Saúde brasileiro. Brasília: Organização Pan-Americana da Saúde (Opas); 2005.
- 2 Baker DW, Williams MV, Parker RM, Gazmararian JA, Nurss J. Development of a brief test to measure functional health literacy. Patient Educ Couns 1999; 38(1):33-42.
- 3 Diamond JJ. Development of a reliable and construct valid measure of nutritional literacy in adults. Nutr J 2007; 6:5.
- 4 Safeer RS, Cooke CE, Keenan J. The impact of health literacy on cardiovascular disease. Vasc Health Risk Manag 2006; 2(4):457-464.
- 5 Davis TC, Williams MV, Marin E, Parker RM, Glass J. Health literacy and cancer communication. CA Cancer J Clin 2008; 52(3):134-149.
- 6 Schillinger D, Grumbach K, Piette J, Wang F, Osmond D, Daher C, Palacios J, Sullivan GD, Bindman AB. Association of health literacy with diabetes outcomes. JAMA 2002; 288(4):475-482.
- 7 United Nations Education, Science and Culture Organization (Unesco). Alfabetismo funcional en siete países de América Latina. Santiago: Unesco; 2000.
- 8 Parker RM, Baker DW, Williams MV, Nurss JR. The test of functional health literacy in adults. J Gen Intern Med 1995; 10(10):537-541.
- 9 Ad Hoc Committee on Health Literacy for the Council on Scientific Affairs, American Medical Association. Health literacy-Report of the Council on Scientific Affairs. JAMA 1999; 281(6):552-557.
-
10 Ratzan SC, Parker RM. Introduction. In: Selden CR, Zorn M, Ratzan SC, Parker RM, editors. National Library of Medicine Current Bibliographies in Medicine: Health Literacy. Bethesda: National Institutes of Health, U.S. Department of Health and Human Services; 2000. [acessado 2011 jan 13]. Disponível em: http://www.nlm.nih.gov/archive//20061214/pubs/cbm/hliteracy.html#15
» http://www.nlm.nih.gov/archive//20061214/pubs/cbm/hliteracy.html#15 - 11 Sørensen K, Van den Broucke S, Fullam J, Doyle G, Pelikan J, Slonska Z, Brand H; (HLS-EU) Consortium Health Literacy Project European. Health literacy and public health: A systematic review and integration of definitions and models. BMC Public Health 2012; 12(1):1-13.
- 12 Carthery-Goulart MT, Anghinah R, Areza-Fegyveres R, Bahia VS, Brucki SMD, Damin A, Formigoni AP, Frota N, Guariglia C, Jacinto AF, Kato EM, Lima EP, Mansur L, Moreira D, Nóbrega A, Porto CS, Senaha ML, Silva MN, Smid J, Souza-Talarico JN, Radanovic M, Nitrini R. Performance of a Brazilian population on the test of functional health literacy in adults. Rev Saude Publica 2009; 43(4):631-638.
- 13 World Health Organization (WHO). The Global Burden of Disease: Update 2004. Genebra: WHO Press; 2008.
- 14 Schillinger D, Piette J, Grumbach K, Wang F, Wilson C, Daher C, Leong-Grotz K, Castro C, Bindman AB. Closing the loop: physician communication with diabetic patients who have low health literacy. Arch Intern Med 2003; 163(1):83-90.
- 15 Kim S, Love F, Quistberg DA, Shea JA. Association of health literacy with self-management behavior in patients with diabetes. Diabetes Care 2004; 27(12):2980-2982.
- 16 Assis Costa J, Balga RSM, Alfenas RCG, Cotta RMM. Promoção da saúde e diabetes: discutindo a adesão e a motivação de indivíduos diabéticos participantes de programas de saúde. Cien Saude Colet 2011; 16(3):2001-2009.
- 17 Chávez-Courtois M, Graham C, Romero-Pérez I, Sánchez-Miranda G, Sánchez-Jiménez B, Perichart-Perera O. Experiences, perceptions and self-management of gestational diabetes in a group of overweight multiparous women. Cien Saude Colet 2014; 19(6):1643-1652.
- 18 Cavanaugh K, Huizinga MM, Wallston KA, Gebretsadik T, Shintani A, Davis D, Gregory RP, Fuchs L, Malone R, Cherrington A, Pignone M, DeWalt DA, Elasy TA, Rothman RL. Association of numeracy and diabetes control. Ann Intern Med 2008; 148(10):737-746.
- 19 Tang YH, Pang S, Chan MF, Yeung GS, Yeung VT. Health literacy, complication awareness, and diabetic control in patients with type 2 diabetes mellitus. J Adv Nurs 2008; 62(1):74-83.
- 20 American Diabetes Association (ADA). Standards of Medical Care in Diabetes - 2014. Diabetes Care 2014; 37(Supl.):S14-80.
- 21 Souza JG, Apolinario D, Magaldi RM, Busse AL, Campora F, Jacob-Filho W. Functional health literacy and glycaemic control in older adults with type 2 diabetes: a cross-sectional study. BMJ Open 2014; 4:e004180.
- 22 Williams MV, Baker DW, Parker RM, Nurss JR. Relationship of functional health literacy to patients' knowledge of their chronic disease: a study of patients with hypertension and diabetes. Arch Intern Med 1998; 158(2):166-172.
- 23 Mbaezue N, Mayberry R, Gazmararian J, Quarshie A, Ivonye C, Heisler M. The impact of health literacy on self-monitoring of blood glucose in patients with diabetes receiving care in an inner-city hospital. J Natl Med Assoc 2010; 102(1):5-9.
- 24 Gazmararian JA, Kripalani S, Miller MJ, Echt KV, Ren J, Rask K. Factors Associated with Medication Refill Adherence in Cardiovascular related Diseases: A Focus on Health Literacy. J Gen Intern Med 2006; 21(12):1215-1221.
- 25 Williams MV, Parker RM, Baker DW, Parikh NS, Pitkin K, Coates WC, Nurss JR. Inadequate functional health literacy among patients at two public hospitals. JAMA 1995; 274(21):1677-1682.
- 26 Schillinger D. Improving the quality of chronic disease management for populations with low functional health literacy: a call to action. Disease Management 2001; 4(3):103-109.
- 27 Pignone M, DeWalt DA, Sheridan S, Berkman N, Lohr KN. Interventions to improve health outcomes for patients with low literacy. J Gen Intern Med 2005; 20(2):185-192.
- 28 Sacks DB, Bruns DE, Goldstein DE, Maclaren NK, McDonald JM, Parrott M. Guidelines and recommendations for laboratory analysis in the diagnosis and management of diabetes mellitus. Clin chem 2002; 48(3):436-472.
- 29 Bains SS, Egede LE. Associations between health literacy, diabetes knowledge, self-care behaviors, and glycemic control in a low income population with type 2 diabetes. Diabetes Technol Ther 2011; 13(3):335-341.
- 30 Al Sayah F, Majumdar SR, Williams B, Robertson S, Johnson JA. Health literacy and health outcomes in diabetes: a systematic review. J Gen Intern Med 2013; 28(3):444-452.
- 31 Boren SA. A review of health literacy and diabetes: opportunities for technology. J Diabetes Sci Technol 2009; 3(1):202-209.
- 32 Osborn CY, Bains SS, Egede LE. Health literacy, diabetes self-care, and glycemic control in adults with type 2 diabetes. Diabetes Technol Ther 2010; 12(11):913-919.
- 33 Organization for Economic Co-Operation and Development (OECD). Programme for the International Assessment of Adult Competencies (PIAAC). PIAAC Numeracy: a conceptual framework. Paris: OECD Publishing; 2009. OECD Education Working Paper nº 35.
- 34 Golbec A, Ahlers-Schmidt CR, Paschal AM, Dismuke SE. A Definition and Operational Framework for Health Numeracy. Am J Prev Med 2005; 29(4):375-376.
- 35 McMullan M. Exploring the skills of nurses and students when performing drug calculations. Nurs Times 2010; 106(34):10-12.
- 36 Cavanaugh K, Wallston KA, Gebretsadik T, Shintani A, Huizinga MM, Davis D, Gregory RP, Malone R, Pignone M, DeWalt D, Elasy TA, Rothman RL. Addressing Literacy and Numeracy to Improve Diabetes Care: Two Randomized Controlled Trials. Diabetes Care 2009; 32(12):2149-2155.
- 37 Wolff K, Cavanaugh K, Malone R, Hawk V, Gregory BP, Davis D, Wallston K, Rothman RL. The Diabetes Literacy and Numeracy Education Toolkit (DLNET): materials to facilitate diabetes education and management in patients with low literacy and numeracy skills. Diabetes Educ 2009; 35(2):233-245.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
Mar 2015
Histórico
-
Recebido
23 Ago 2014 -
Aceito
24 Out 2014