Resumo
Objetivos Revisar os artigos sobre o estado nutricional de ferro, vitamina A e zinco em crianças brasileiras assistidas em creches, enfocando métodos diagnósticos, prevalências das respectivas deficiências e fatores associados.
Métodos A pesquisa de artigos foi efetuada nas bases PubMed, Lilacs e SciELO. Foram incluídos estudos observacionais com amostras representativas aleatórias que utilizaram indicadores bioquímicos para avaliar o estado nutricional de ferro, vitamina A e zinco de crianças assistidas em creches. Calcularam-se as prevalências médias ponderadas de anemia e de deficiência de vitamina A. Computaram-se as variáveis associadas à anemia.
Resultados Foram incluídos 21 estudos, nos quais o estado nutricional de ferro, vitamina A e zinco foi analisado em 17, quatro e três, respectivamente. As prevalências médias ponderadas de anemia e de deficiência de vitamina A foram de 42,7% e 12,5%, respectivamente. Crianças de menor idade e de pior condição socioeconômica representaram as principais condições explicativas para a ocorrência de anemia.
Conclusões Os resultados sugerem altas prevalências de anemia e de deficiência de vitamina A entre as crianças brasileiras assistidas em creches com perspectivas etiológicas centradas nas doenças infecciosas.
Micronutrientes; Ferro; Vitamina A; Zinco; Creches
Abstract
The scope of the study was to review the scientific publications on the nutritional status of iron, vitamin A and zinc among Brazilian children attending daycare centers, focusing on diagnostic methods, the prevalence of respective deficiencies and associated factors. A review of the literature was conducted in the PubMed, LILACS and SciELO databases. Observational studies with random representative samples using biochemical indicators to evaluate the nutritional status of iron, vitamin A and zinc of children attending public daycare centers were included. The average weighted prevalence for anemia and vitamin A deficiency was estimated. The variables associated with anemia were computed. Twenty-one observational studies were included, in which the nutritional status of iron, vitamin A and zinc were analyzed in 17, 4 and 3, respectively. The average weighted prevalence of anemia and vitamin A deficiency were 42.7% and 12.5%, respectively. Young children and children living in less favorable socioeconomic situations represented the main explanatory conditions predominantly associated with the occurrence of anemia. The results suggest a high prevalence of anemia, as well as vitamin A deficiency in Brazilian children attending daycare centers, with etiological prospects focused on infectious diseases.
Micronutrients; Iron; Vitamin A; Zinc; Daycare centers
Introdução
As creches têm como objeto as relações educativas, decorrentes da função indissociável do cuidar/educar, que visam à garantia dos direitos e das necessidades próprias das crianças. As atividades realizadas nas creches direcionam-se ao desenvolvimento integral da criança em seus aspectos físico, psicológico, intelectual e social, num espaço de convívio coletivo que tem como sujeito a criança e cujo trabalho deve ser desenvolvido em parceria dos profissionais com a família1. Além disso, as creches são consideradas como uma das estratégias dos países em desenvolvimento para aprimorar o crescimento e o desenvolvimento das crianças pertencentes aos estratos sociais menos favorecidos2,3.
No Brasil, principalmente nas grandes e médias cidades, a demanda por esses serviços é grande e tende a aumentar com a participação crescente da mulher no mercado de trabalho. Essa procura tem produzido um aumento expressivo no número de creches e de crianças com o benefício no país3-5. Porém, o aumento do número de creches no Brasil vem acontecendo sem a intensificação necessária da vigilância eficaz sobre as normas que regulamentam sua implantação e funcionamento, como também com carência de profissionais capacitados para o desenvolvimento das atividades4,6,7. Esses aspectos, considerando que as características dos programas, dos serviços ou dos cuidados oferecidos podem influenciar o impacto desejado8, bem como o fato de o bem-estar da criança depender principalmente da alimentação, dos cuidados e do ambiente onde está inserida6,8,9, podem contribuir de forma negativa na consecução dos objetivos das creches e prejudicar, portanto, a saúde infantil.
A associação positiva entre frequentar creche e o estado nutricional tem sido sugerida, indicando-se redução dos déficits de peso e estatura5. Entretanto, as crianças que frequentam creches adoecem mais do que aquelas cuidadas exclusivamente em casa, sendo as doenças infecto-contagiosas as mais prevalentes, o que pode repercutir negativamente no seu estado nutricional, principalmente daquelas abaixo de 24 meses2,4. Os problemas alimentares e nutricionais que gravitam em torno destas crianças distinguem-se por um quadro de fatores de risco dominado pelo binômio desnutrição/infecção, que afeta, principalmente, as crianças social e economicamente vulneráveis10. Apresentam-se, assim, posições não conclusivas sobre o estado nutricional das crianças que são assistidas em creches em comparação às de similar condição socioeconômica que não têm o benefício.
A alimentação representa uma das grandes responsabilidades da creche, devendo garantir o acesso a uma alimentação quantitativa e qualitativamente adequada7,11. Entretanto, estudos sobre consumo alimentar com crianças matriculadas em creches de diferentes regiões do país têm mostrado baixa ingestão dietética de alguns nutrientes como cálcio, ferro, vitamina A, fibras e energia3. Adverte-se, assim, a probabilidade de carências nutricionais nas crianças institucionalizadas, considerando a influência da composição da dieta infantil no estado nutricional3,12. No Brasil, a prevalência de desnutrição proteico-energética tem diminuído13,14, contudo o mesmo não tem acontecido com as carências específicas de ferro, vitamina A e zinco15,16, determinantes importantes do crescimento linear9, sem se conhecer a situação específica das crianças assistidas em creches.
Face ao exposto, o objetivo deste estudo é revisar os artigos sobre o estado nutricional de ferro, vitamina A e zinco de crianças brasileiras assistidas em creches, enfocando métodos diagnósticos, prevalências das respectivas deficiências e fatores associados.
Métodos
A revisão da literatura foi realizada a partir de um levantamento bibliográfico nas bases de dados PubMed (National Library of Medicine, Estados Unidos), Lilacs (Literatura Latino-americana e do Caribe em Ciências da Saúde) e SciELO (Scientific Electronic Library Online). Na busca utilizaram-se os termos (Micronutrients OR Vitamin A OR Iron OR Zinc OR Vitamin A Deficiency OR Iron Deficiency OR Anemia OR Zinc Deficiency) AND Child day care centers. No caso do PubMed, o descritor Brazil também foi usado. Os artigos publicados entre 2000 e 2014 foram investigados, aceitando-se aqueles escritos em português, inglês e espanhol. A busca foi realizada em 12/07/2014 e realizada por dois revisores de forma independente.
Para o cômputo do total de estudos identificados, foi verificada a duplicação dos mesmos entre as bases de dados, sendo cada artigo contabilizado somente uma vez. Foram incluídos estudos observacionais realizados no Brasil com amostras representativas aleatórias que utilizaram indicadores bioquímicos para avaliar como desfecho o estado nutricional de micronutrientes (ferro, vitamina A, zinco) de crianças assistidas em creches (sem distinção se pública ou privada). A decisão sobre a inclusão dos artigos incluiu duas etapas: i) triagem por meio da leitura dos títulos e resumos, ii) leitura na íntegra. Na primeira etapa, dos 110 documentos identificados (dos 158 documentos encontrados nas bases de dados pesquisadas 48 duplicados estam duplicados), 49 foram excluídos: 26 estudos de intervenção, 04 artigos de revisão, 13 livros ou teses, 04 estudos realizados fora do Brasil, 02 trabalhos desenvolvidos com crianças não assistidas em creches. Na segunda etapa, foram excluídos 11 estudos com amostras não representativas e/ou não selecionadas aleatoriamente e 29 artigos sem o uso de indicadores bioquímicos do estado nutricional de ferro, vitamina A ou zinco. Assim, com a exclusão de um total de 89 documentos, 21 artigos foram considerados incluídos. O fluxo relacionado à identificação e seleção dos estudos encontra-se na Figura 1.
Fluxograma das fases de identificação, triagem e seleção de artigos sobre o estado nutricional de ferro, vitamina A e zinco de crianças brasileiras assistidas em creches.
Os estudos incluídos foram caracterizados segundo autor e ano de publicação, tipo de estudo, local de estudo, faixa etária, tamanho da amostra e perdas, indicadores bioquímicos e técnicas de análises utilizados, critérios de diagnóstico (pontos de corte), variáveis controladas e principais resultados (prevalências e resultados estatísticos significantes).
Foram calculadas, para os casos dos estudos sobre o estado nutricional de ferro e de vitamina A, por meio de metanálise, as prevalências médias ponderadas de anemia e de deficiência de vitamina A pelos respectivos tamanhos amostrais e as amplitudes correspondentes. Também foram computadas as variáveis para verificar os fatores que mais se associaram à anemia (a carência de estudos/resultados para a vitamina A e o zinco inviabilizou o procedimento para esses micronutrientes).
Resultados
O Quadro 1 mostra a distribuição dos 21 estudos incluídos na revisão17-37, todos de delineamento transversal quanto aos parâmetros de caracterização adotados. A distribuição geográfica dos locais de realização dos estudos mostra maior concentração na região Sudeste17,21,22,24-26,28-31,37. Os demais estudos foram realizados na região Nordeste20,23,27,32-34,36, Sul18,35 e Centro-Oeste19. Considerando o tipo de creche, a maioria dos estudos realizou-se exclusivamente nas públicas (municipais ou estaduais)17,18,20-25,27,30,32-36. A faixa etária apresentou homogeneidade. Considerando a idade, observa-se que a maioria dos estudos18,19,21,23-28,29,31,32,34-37 envolveu crianças menores de dois anos, dos quais cinco18,19,31,32,35 limitaram-se a crianças de até três anos.
Com relação aos indicadores bioquímicos utilizados para caracterizar o estado nutricional das crianças, poucos estudos avaliaram as concentrações de zinco 20,34,36 ou de retinol sérico17,23,33,36. Em contrapartida, a maioria dos estudos17-19,21,22,24-32,35-37 avaliou o estado nutricional de ferro, com dosagem de hemoglobina (Hb) em todos; a ferritina sérica (FER)17,21,27,32 e o índice de saturação de transferrina (IST)21,27,29,32 em quatro; o receptores de transferrina (RT)21,32,35, o volume corpuscular médio (VCM)26,32,35 e o ferro sérico (FeS)27,29,35 em três; a capacidade total de ligação de ferro (CTLF)27,29 em dois estudos; e o hematocrito (Ht)17, o coeficiente de variação do volume eritrocitário (CVVE)26 e a proto-porfirina eritrocitária livre (PEL)27 em apenas um dos estudos.
Quanto às técnicas de análises dos indicadores bioquímicos, as concentrações de zinco no cabelo, zinco sérico e Fosfatasse Alcalina (FA) foram determinadas por espectrofotometria de absorção atômica. A cromatografia líquida de alta resolução23,33,36 foi o principal método em relação ao retinol sérico. Os valores de Hb, por sua vez, foram analisados por diferentes técnicas, sendo o fotômetro portátil HemoCue18,24,25,28,30,31,37 e o contador automático de células26,32,36 as mais usadas. Para a FER, o IST, o RT, o VCM e a CTLF, houve diversidade de técnicas nos estudos que utilizaram os respectivos parâmetros.
Os pontos de corte usados para o diagnóstico de deficiência de zinco foram valores < 1,68 µmol/g de zinco no cabelo20, < 250U/L de atividade de FA20 e < 65µg/dL de zinco no soro34,36. A deficiência de vitamina A foi considerada, em todos os estudos com tal avaliação, quando as concentrações de retinol sérico eram < 0,70 µmol/L17,23,33,36. Para diagnosticar anemia, o ponto de corte mais usado foi < 11g/dL de Hb, em 17 estudos17-19,21,22,24-32,35-37. Três estudos21,26,32, com variedade de critérios, trabalharam com o diagnóstico de anemia por deficiência de ferro (ADF). Os pontos de corte e/ou unidades de medidas para FER, RT, VCM e FeS variaram nos estudos que utilizaram tais parâmetros.
As prevalências de deficiência de zinco no cabelo e da atividade de FA foram de 61,9% e 40,1%, respectivamente20. A deficiência de zinco no soro foi de 16,2% em um dos estudos34 e de 13,8% no outro36. A deficiência de vitamina A variou de 7,0%23 a 23,3%36, com prevalência média ponderada pelos respectivos tamanhos amostrais de 12,5% (amplitude: 23,3 - 7,0 = 16,3), que corresponde a 117 crianças com a carência de um total de 937. As prevalências de anemia, por sua vez, apresentaram oscilação entre 10,4%17 em crianças de creches municipais de Minas Gerais, Sudeste do Brasil, e 92,4%25 em crianças de São Paulo. As prevalências de ADF estiveram entre 51,3%21 e 75,0%26. Considerando as prevalências de anemia dos estudos sistematizados, obtém-se uma prevalência média ponderada pelos respectivos tamanhos amostrais de 42,7% (amplitude: 92,4 - 10,4 = 82,0), que corresponde a 2.357 crianças anêmicas de um total de 5.522.
Análises multivariadas com o controle para variáveis de confundimento foram conduzidas em seis18,21,24,25,31,35 dos estudos revisados. As análises sistematizadas destacam que crianças de menor idade18,21,25,31 e de pior condição socioeconômica18,24,31,35 representaram as principais condições explicativas para a ocorrência de anemia. Outras variáveis de interesse também foram citadas em vários estudos como associadas à anemia, considerando tanto as análises bivariadas quanto as multivariadas, indicando crianças comprometidas do ponto de vista antropométrico19,24,28,29 e o menor tempo de institucionalização19,25,31,35 como condições de risco.
Discussão
O presente trabalho sintetiza estudos observacionais, com crianças brasileiras assistidas em creches, que abordam o diagnóstico bioquímico do estado nutricional dos micronutrientes (ferro, vitamina A, zinco) mais importantes no crescimento linear. Foram incluídos artigos selecionados a partir de amostras aleatórias representativas, garantindo a aplicabilidade dos resultados obtidos.
Os resultados do presente estudo mostram a existência de experiências isoladas relacionadas com a avaliação bioquímica do estado nutricional de ferro, vitamina A e zinco envolvendo crianças assistidas em creches. Esse resultado pode estar relacionado à concentração da produção científica no Sudeste, fato esse anteriormente apontado por outros pesquisadores, tanto na área de nutrição38 quanto em outras temáticas sobre a saúde das crianças4.
Por outro lado, a escassez absoluta e relativa (no contexto geográfico e socioeconômico) de estudos, em especial sobre o estado nutricional de zinco e vitamina A, por meio de indicadores bioquímicos, pode estar relacionada às dificuldades implícitas na coleta de sangue em crianças, assim como às dificuldades técnicas e aos custos relacionados às análises9,39,40. Ainda, esses fatores podem explicar o predomínio de estudos de cunho transversal nesta revisão. Nesse sentido, há que destacar a importância do desenvolvimento de estudos longitudinais para explorar melhor a relação entre a creche e o estado nutricional de crianças.
A escassez de artigos sobre o estado nutricional de zinco, além da diversidade de indicadores e de técnicas usadas nos estudos que enfocaram o micronutriente, inviabiliza qualquer tentativa de síntese sobre a magnitude e a etiologia da deficiência desse metal nas crianças institucionalizadas em creches. Esse resultado tem implicações muito importantes, pois indica uma lacuna no conhecimento que precisa ser compensada. Inexistem pesquisas de âmbito nacional e de sistematização sobre a deficiência de zinco no Brasil.
As dificuldades técnicas relacionadas à obtenção da amostra, análises de laboratório e interpretação dos resultados, são apontadas como justificativas para a carência de estudos sobre o estado nutricional relativo ao zinco, tanto no Brasil quanto em outros países40. Assim, destaca-se a necessidade de pesquisas direcionadas ao desenvolvimento de técnicas de avaliação bioquímica de menores custos e que precisem de menor quantidade de sangue9, essencial para uma caracterização mais precisa da magnitude e distribuição da deficiência de zinco, estimada como um potencial problema de saúde pública em diversos países em desenvolvimento40. Nesse sentido, adverte-se que a concentração de zinco no soro ou plasma constitui na atualidade o melhor indicador do risco de sua deficiência nas populações40, o qual foi utilizado apenas em dois estudos34,36.
Estudos sistematizados sobre a deficiência de vitamina A apontam claramente prevalências preocupantes nas crianças brasileiras41-43, que convergem com as reportadas nos estudos da presente revisão contextualizando as crianças que frequentam creches. A prevalência média ponderada pelos respectivos tamanhos amostrais de deficiência de vitamina A, estimada para o conjunto de crianças dos estudos desta revisão, de 12,5% (amplitude: 23,3 - 7,0 = 16,3), insere-se na classificação epidemiológica da Organização Mundial da Saúde como um problema de saúde pública de grau moderado42. Essa classificação coincide com a que seria estabelecida para as crianças brasileiras considerando a prevalência de 17,4% encontrada na Pesquisa Nacional de Demografia e Saúde de 200615. Estimativas da Organização Mundial da Saúde indicam que 122 países apresentam deficiência de vitamina A com significado de saúde pública em crianças pré-escolares42. Apesar de prevalências mais elevadas em outros países, principalmente da África e do Leste da Ásia, no Brasil a deficiência de vitamina A ainda apresenta relevância epidemiológica, principalmente nas regiões Sudeste e Nordeste41,42.
Embora a escassez de estudos e de resultados inviabilize a sistematização do conhecimento sobre a etiologia da deficiência de vitamina A, há que ressaltar a possível contribuição da enfermidade por doenças infecciosas42, que apresenta alto índice no grupo de crianças assistidas em creches4,6. Episódios de infecções graves ou prolongados podem afetar os estoques hepáticos de vitamina A como consequência de alguns fatores, entre os quais a redução da ingestão alimentar e problemas relacionados à utilização biológica44. Por sua vez, a presença de infecção subclínica pode acarretar deficiência de vitamina A por efeito de uma diminuição da proteína de transporte de retinol. Essas circunstâncias apontam para a importância de se controlar o efeito da inflamação subclínica nos marcadores bioquímicos do estado nutricional de vitamina A44,45, limitação que, em geral, pode ser atribuída aos estudos sistematizados, uma vez que não consideraram esse procedimento. Entretanto, confirmando as indicações da literatura, todos os trabalhos utilizaram as concentrações de retinol sérico, considerado o principal indicador do estado nutricional de vitamina A16.
Em relação ao estado nutricional de ferro, com base nas altas prevalências de anemia e de ADF, pode-se inferir que a deficiência de ferro em crianças assistidas em creches contribui, também, para aquele que representa, em termos de magnitude, a principal carência nutricional das crianças brasileiras46,47. Considerando a prevalência média ponderada pelos respectivos tamanhos amostrais de anemia de 42,7% (amplitude: 92,4 - 10,4 = 82,0) pode-se assumir um problema de saúde pública severo, segundo a classificação epidemiológica da Organização Mundial da Saúde48. Esse resultado, embora um pouco discrepante da prevalência encontrada pela Pesquisa Nacional de Demografia e Saúde de 200615 (20,9%), assemelha-se ao de outros estudos de base populacional49-51 e à proporção (39,0%) nos países em desenvolvimento, entre os quais o Brasil, apresentando a segunda maior prevalência da América Latina46.
A pobre condição socioeconômica das famílias com crianças assistidas em creches públicas e as condições de convívio aos quais essas crianças estão expostas, como a aglomeração e a higiene, são fatores que se entrelaçam podendo conduzir à baixa ingestão dietética de ferro biodisponível e/ou à maior incidência de parasitoses que produzem perda sanguínea6,46, explicações cabíveis em relação à maior proporção de anemia entre as crianças assistidas em creches do que nas crianças do Brasil em geral.
Por outro lado, indica-se que a persistência de prevalências elevadas de anemia nas crianças brasileiras associa-se a mudanças no consumo alimentar, particularmente à elevação do consumo de leite que substitui outras fontes alimentares mais ricas em ferro ou limita a absorção de ferro47. Assim, a adoção de práticas alimentares adequadas no primeiro ano de vida é relevante na prevenção da deficiência de ferro, principalmente a alimentação complementar com o de alta biodisponibilidade e o consumo de suplementos em dose profilática e/ou de alimentos fortificados52. Tais recomendações são importantes e devem ser consideradas na alimentação das crianças, sobretudo nas creches com berçário.
Do ponto de vista metodológico, é necessário ressaltar que a variedade constatada nas técnicas de análise do estado nutricional de ferro pode limitar a obtenção de resultados não conflitantes. Essa diversidade pode estar relacionada à necessidade de avaliar os diferentes compartimentos de distribuição do ferro. Nesse sentido, é importante destacar que a Hb, parâmetro utilizado na totalidade dos estudos revisados, justifica-se por suas vantagens relacionadas ao baixo custo e por estar universalmente disponível, entretanto é um indicador de baixas sensibilidade e especificidade, reforçando a importância de sua utilização com outros indicadores53, o que aconteceu em um número limitado dos estudos sistematizados. Além disso, há que enfatizar a influência que a técnica de coleta do sangue e que os tipos de amostra de sangue (venosa, capilar) pode ter nos resultados das análises, destacando que hemoglobina em sangue capilar medida pelo HemoCue é adequada como estimativa da prevalência de anemia (comparando à hemoglobina em sangue venosa medida por espectrofotômetro automatizado)54.
Os resultados do presente trabalho indicam a influência da idade da criança e da situação socioeconômica na etiopatogenia da anemia. Apesar das limitações do presente estudo, devido à não utilização de indicadores de consumo alimentar e da situação de saúde/morbidade, esses resultados situam, novamente, influenciado por variações decorrentes de características como a idade e a situação socioeconômica, a ingestão de ferro biodisponível e/ou as perdas sanguíneas devido a parasitas como possíveis explicações46. A maior prevalência de anemia nas crianças de menor faixa etária e de maior vulnerabilidade socioeconômica entre as menores de cinco anos tem sido igualmente apontada em outros cenários epidemiológicos55,56, no âmbito nacional15 e em outras revisões57,58.
Abordando fatores associados à ocorrência da anemia baseada em estudos populacionais, trabalho de revisão, além de mostrar que a idade da criança representa o principal fator biológico associado a esse agravo, concluiu que a situação socioeconômica mostra-se relevante nos países em desenvolvimento57. Assim, apesar da garantia de acesso à alimentação nas creches6,12, as crianças desse cenário apresentam similar determinação da anemia em relação ao âmbito nacional e em outros cenários. A maior carga de enteroparasitoses entre as crianças que frequentam creches4 e indícios sobre baixos índices de aceitação da alimentação escolar59, podem ser fatores essencialmente envolvidos nessa problemática e precisam, portanto, de maior atenção.
Outros fatores que se mostraram associados ao estado nutricional de ferro foram o perfil antropométrico e o tempo de institucionalização. Apesar de os estudos de base longitudinal mostrarem influência positiva da frequência à creche na redução da anemia5 e a sistematização da associação entre a anemia e o déficit de estatura9, considera-se a necessidade de maior quantidade de pesquisas brasileiras de base populacional que possibilitem confirmar esses resultados.
Os resultados apresentados permitem a composição de um panorama preliminar de altas prevalências de anemia e de deficiência de vitamina A, com contribuição importante nas respectivas taxas da população de crianças brasileiras. Esses resultados são constatados em situações positivas relacionadas à existência de programas nacionais de suplementação de vitamina A e de ferro, o que indica a necessidade de esforços direcionados, também, à avaliação de impacto de tais programas. A prevenção das deficiências de ferro, vitamina A e zinco é essencial para melhorar a sobrevivência, a morbimortalidade, o crescimento e o desenvolvimento das crianças. Nesse contexto, as condições associadas ao maior adoecimento por doenças infecciosas nas crianças assistidas em creches devem ser particularmente considerados.
Conclui-se, que a anemia, a deficiência de vitamina A e a deficiência de zinco constituem graves problemas de saúde pública que permanecem com incertezas quanto ao perfil epidemiológico das crianças assistidas em creches. Os estudos sobre as prevalências da deficiência de zinco nas crianças institucionalizadas em creches são escassos, o que inviabiliza qualquer tentativa de síntese sobre a sua magnitude e etiologia. Os estudos sobre o estado nutricional de vitamina A também são escassos, porém, com maiores semelhanças nos métodos diagnósticos. Para o diagnóstico da anemia, os métodos adotados pelos pesquisadores apresentam-se heterogêneos. Os resultados sugerem altas prevalências de anemia e de deficiência de vitamina A entre as crianças brasileiras assistidas em creches, e perspectivas etiológicas centradas nas doenças infecciosas.
Considerações finais
As creches são uma realidade na vida de grande parcela das crianças brasileiras, onde permanecem por um longo período de tempo, cinco dias por semana. É conhecida a determinação multicausal das carências nutricionais, com condicionantes biológicos e sociais relacionados ao atendimento das necessidades básicas como alimentação, saneamento, educação e saúde. Assim, é fundamental precisar a magnitude desses agravos e o entendimento sobre os fatores de risco, inclusive em grupos ou populações específicas, como subsídio para a adoção de medidas eficazes de prevenção e controle. A vulnerabilidade biológica e social, bem como as particularidades relacionadas com a institucionalização, faz das crianças assistidas em creches um grupo populacional de interesse.
Há que ressaltar que nenhum dos estudos revisados considerou todos os três micronutrientes de interesse. Esse aspecto torna-se relevante uma vez que o crescimento representa um processo altamente dependente de vitamina A, zinco e ferro, cujas carências normalmente não ocorrem isoladamente. Nesse contexto, fatores como o custo das técnicas de avaliação bioquímica e a necessidade de grandes quantidades de sangue devem ser considerados limitantes no diagnóstico do estado nutricional de micronutrientes de grupos populacionais e, portanto, reparados.
Face à dificuldade de implementação de grandes pesquisas nacionais, a alternativa de estudos multicêntricos, aliada a investigações pontuais, mas comparáveis, poderia ser adotada como estratégia para uma melhor caracterização etiopatogênica, morfofuncional e diagnóstica das deficiências de micronutrientes, bem como da repercussão dessas carências no crescimento e no desenvolvimento infantil.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
Maio 2016
Histórico
-
Recebido
17 Set 2014 -
Revisado
15 Maio 2015 -
Aceito
17 Maio 2015