Resumo
Este artigo de revisão tem como objetivo realizar análise e discussão crítica da literatura sobre métodos de correção da mortalidade por acidentes e violências notificados ao Sistema de Informações sobre Mortalidade-SIM. Foram consultadas as bases Medline e Scielo, e o site do Global Burden of Disease, com uso de filtro temporal de 1996 a 2015. De 77 estudos identificados, 29 foram inicialmente selecionados, e 14 atendiam ao critério de produção de correções para um dos casos de subinformação: sub-registro de óbitos ao SIM, declaração do óbito no SIM devido a causas mal definidas, ou devido a causas externas não definidas (declaradas com códigos inespecíficos). Verificou-se que o sub-registro das causas externas não se mostrou muito diferente do relativo aos óbitos totais, e em alguns casos foi maior, em municípios de porte pequeno e médio. A reclassificação das causas mal definidas corrigiu as externas a valores não desprezíveis. Os estudos divergem nas propostas de correção das causas externas não definidas. Há evidências que sustentam intervenções para aprimoramento da qualidade dos dados, e ainda a disponibilidade de modelos de correção das causas externas que reúnem condições de aplicação.
Palavras-chave Sistemas de informação; Registros de mortalidade; Causas externas; Sub-registro; Revisão
Abstract
This review article aims to perform analysis and critical discussion about the literature on methods correcting mortality from accidents and violence reported to the Brazilian Mortality Information System. We consulted Medline and SciELO databases, as well as the Global Burden of Disease site, using time filter for the 1996-2015 interval. Of the 77 studies identified, we selected 29, and 14 met the corrections production criteria for cases of underreporting: underreporting of deaths in the Mortality Information System, deaths declared as ill-defined causes or deaths from external causes declared with nonspecific codes. We found that the underreporting of external causes was not significantly different from what occurs in total deaths and sometimes was higher in small and medium-sized municipalities. The reclassification of ill-defined causes of death corrected external causes to non-negligible values. The selected studies differ on proposals for correction of unspecified external causes. Evidence supports interventions to improve the quality of data, and the availability of correction procedure of external causes that bring together application conditions.
Key words Information systems; Mortality records; External causes; Underreporting; Review
Introdução
As informações de mortalidade em Saúde Pública muitas vezes são afetadas por problemas expressos na cobertura e na fidedignidade dos dados registrados, em particular o preenchimento incompleto das causas de óbitos. Esses fatores podem prejudicar substancialmente o monitoramento, a análise e a avaliação da situação de saúde, e induzir a escolhas e decisões impróprias na gestão de ações e políticas públicas em saúde1-3.
Ao avaliar níveis e padrões de mortalidade no Brasil, é fundamental a elaboração de estratégias que minimizem o viés de informação devido à subenumeração de óbitos no Sistema de Informações sobre Mortalidade-SIM, seja como efeito do óbito não informado, do óbito informado com causa mal definida-CMD, ou ainda, das causas de óbito com diagnóstico inespecífico ou incompleto. Essa recomendação também é procedente para os óbitos por acidentes e violências, que são mais bem notificados e classificados que as demais causas4.
Com um volume não desprezível, os óbitos por causas externas devem ser bem avaliados. Na década de 1990, mais de um milhão de pessoas morreram por essas causas no Brasil, das quais cerca de 40% foram por homicídios. As causas externas representam a terceira maior causa de morte no país desde o início dos anos de 2000, constituindo sério problema social com intensas repercussões na saúde pessoal e coletiva5.
Atos da administração normatizam lei ao determinar que nenhum sepultamento seja feito sem certidão6. O Conselho Federal de Medicina7 e o Ministério da Saúde8,9 editaram atos que regulamentam a responsabilidade médica no fornecimento da Declaração de Óbito-DO, utilizada para o registro público e alimentação do SIM, destacando que a DO deverá, obrigatoriamente, ser fornecida pelos serviços médicos legais – IML nos casos de mortes não naturais. Mesmo nas localidades sem assistência médica, a DO deveria ser preenchida nas delegacias de polícia ou nos cartórios, fazendo constar que se tratava de morte por causa externa. Essas determinações legais favorecem a melhor captação do registro de mortes violentas10.
Métodos baseados em técnicas demográficas têm sido utilizados para avaliar a cobertura do registro de óbitos11,12. Entretanto, a literatura não aponta uma única metodologia mais adequada para estimar a mortalidade “real”13. Além disso, esses métodos não têm o caráter de continuidade necessário para avaliar ações de saúde. Mais recentemente, a busca ativa de óbitos tem sido considerada uma estratégia promissora para identificar mortes não captadas pelo SIM. A pesquisa realizada no Nordeste e Amazônia Legal14 representa um modelo de estudo capaz de produzir fatores de correção e estimativas coerentes e confiáveis a partir da metodologia do resgate de informações associada a modelos estatísticos, agregando capacidade de generalização dos resultados.
Em 2011, foram notificados ao SIM 1.170.498 óbitos no Brasil. A subnotificação estimada passou de 9% para 6% entre 2000 e 2011, ao passo que os óbitos registrados com CMD diminuíram de 14% para 7%15. Os resultados são devido a um conjunto de ações que normatizam prazos para a transferência dos dados, estabelecendo regras para a suspensão da transferência de recursos9,16. Não obstante a elevada cobertura nacional e a redução das CMD, o sistema apresenta condições menos favoráveis nas regiões Norte e Nordeste, com proporção de CMD em 2011 de 11% e 8%, respectivamente15.
Torna-se, portanto, necessário dimensionar também a magnitude das CMD e buscar metodologias de redistribuição, e assim precisar seus impactos na mortalidade por causas externas. Não há consenso, no entanto, sobre como lidar com este problema. Alguns pesquisadores têm proposto a redistribuição das mortes por CMD baseada na distribuição proporcional com que ocorrem as causas dentre as mortes por causas bem definidas. Entretanto, essa metodologia tem sido considerada não satisfatória, em particular no caso de exclusão das causas externas depois de achados de ocorrência de violências e acidentes entre CMD investigadas10,17-19.
A relação entre a cobertura do SIM e o percentual de CMD tem sido em geral inversa: comparando 1980-1991 com 2000-2010, verificou-se aumento da cobertura de óbitos de 80% para 95% no país, com redução de 53% das causas mal definidas de morte12. Esses dois fatores atuariam de forma sinérgica na melhoria da qualidade da informação sobre causas externas. Por outro lado, pode ocorrer a migração de óbitos como sugere estudo sobre um possível erro de classificação de suicídios em envenenamento não intencional nos Estados Unidos20.
As DO por causas externas nem sempre apresentam informações precisas sobre o tipo de acidente ou violência que levou à morte. Em 2012, 21% (n = 152.013) das causas externas foram registradas como sendo de intenção indeterminada ou com diagnósticos incompletos21. O expressivo número de mortes de causas externas não definidas pode ser um dos principais indicadores de má qualidade dos registros produzidos pelo sistema médico legal, na medida em que reflete a sua capacidade de não aferir adequadamente o motivo que levou ao óbito, bem como de limitações no acesso a serviços de referência para o esclarecimento da morte nos municípios.
O preenchimento correto da causa de mortalidade firma-se na qualidade do exame pericial do médico legista que, por sua vez, depende das condições materiais de trabalho, da atualização dos profissionais, e da coleta de informações minuciosas sobre a cena em que o evento ocorreu. Os médicos legistas não poucas vezes colocam no atestado somente a natureza da lesão, negligenciando o tipo de causa externa. Esse fato levou o Ministério da Saúde a incluir variáveis na DO que informam as prováveis circunstâncias da morte não natural, as quais, entretanto, nem sempre são preenchidas22,23. Alguns estudos, contudo, verificaram que os IML comumente dispõem de dados detalhados, mas não os transcrevem para as DO4,23-25. Condição semelhante foi observada em estudo de validação das causas de óbitos em Barcelona26.
Dessa forma, apesar das causas externas serem usualmente mais bem informadas e declaradas, pode ocorrer subenumeração dessas mortes devido à perda de casos decorrentes de óbitos não captados pelo SIM, ou ocultos entre CMD e causas externas não definidas. Torna-se então importante avaliar a qualidade do registro de morte por causa externa no SIM e métodos propostos de correção dos dados. Assim, o objetivo do presente estudo foi realizar uma análise e discussão crítica da literatura sobre métodos de correção da mortalidade por acidentes e violências notificados ao SIM. Procurou-se disponibilizar uma visão abrangente desses métodos com identificação de questões que necessitem de evidência, auxiliando na orientação para investigações futuras.
Métodos
A revisão bibliográfica sobre o tema proposto cumpriu três etapas. Primeiramente, buscou-se explicar como o problema em questão vem sendo pesquisado, especialmente do ponto de vista metodológico. Em seguida, identificar as contribuições ao conhecimento do tema, as principais lacunas, os entraves teóricos e/ou metodológicos, e os métodos de correção das causas externas de mortalidade, condensando evidências e pontos importantes do problema. Ao final, foi possível potencializar a qualidade e a extensão da pesquisa mediante a apreciação crítica e a síntese da informação selecionada27.
O termo causas externas se refere aos fatores externos ao organismo humano provocados por causas acidentais e violências. Os acidentes podem ser caracterizados como um acontecimento imprevisto, em geral indesejável, que produz lesões de caráter traumático. As violências são caracterizadas por uma ação brutal e prepotente que em geral faz uso de força, armas ou outros meios agressivos. Podem ser autoprovocadas (suicídio) ou infligidas por outra pessoa (homicídio)28.
Os óbitos por causas externas considerados não definidos podem ser reunidos em dois grupos, adaptados da proposta de Mello-Jorge et al.4. O primeiro, totalmente não definido, ocorre quando não é possível determinar se um óbito foi devido a um acidente, lesão autoinfligida ou agressão. São os eventos cuja intenção é indeterminada, códigos Y10-Y34 da 10ª. Revisão da Classificação Internacional de Doenças (CID-10)29. O outro é o de diagnósticos incompletos nas causas externas: acidentes de transporte não especificados (V87-V89, V99); demais acidentes não especificados (queda sem especificação-W19, afogamento não especificado-W74, exposição a tipo não especificado de fogo ou chamas-X09, acidentes por exposição a fatores não especificados-X59); suicídio por meios não especificados (X84); homicídio por meios não especificados (Y09).
Para identificação das publicações realizou-se busca de informações nas bases das bibliotecas eletrônicas Medline e Scielo, e ainda no site de publicações do Global Burden of Disease (GBD), com filtro para artigos completos de acesso livre em português, inglês ou espanhol, publicados entre 1996 e 2015. Tal período foi definido em razão do início da utilização da CID-10 em 1996 no Brasil. Os descritores na busca foram: information systems and Brazil, mortality records and Brazil external causes and Brazil, under registration and Brazil, e cause of death and Brazil. Foram selecionadas publicações segundo o critério de serem estudos que, ao analisar a qualidade da declaração do registro de causa de morte, produziram estimativas para possibilitar correções de óbitos por causas externas registrados no SIM. A partir das palavras-chave, o levantamento bibliográfico baseou-se nos títulos, resumos, e leitura dinâmica do texto. Após a seleção, todos os artigos foram avaliados com leitura e análise criteriosa do texto completo. Foram excluídas as publicações não relacionadas a óbitos por causas externas no SIM e que não empregaram correção do registro dessas mortes ou não publicaram os valores propostos para correção.
O levantamento das publicações compôs um arquivo dos textos lidos, utilizado como instrumento para sistematização dos apontamentos das leituras por meio do fichamento30. A exploração de conteúdos dos artigos incluídos na revisão permitiu uma série de anotações que serviram para se referir aos estudos no momento da discussão, comparação, e análise de aspectos metodológicos e evidências importantes na estimativa e correção dos óbitos por acidentes e violências.
Os artigos foram organizados em três grandes grupos temáticos: 1) artigos com estimativas do sub-registro de causas externas entre óbitos não informados ao SIM; 2) artigos com identificação de causas externas entre causas mal definidas declaradas ao SIM; e 3) artigos com reclassificação das causas externas não definidas ou com diagnósticos incompletos no SIM. Cada grande grupo foi caracterizado quanto aos procedimentos empregados, síntese dos principais achados, incluindo valores das estimativas para a correção dos óbitos, local e período de coleta, e limitações. Por sua vez, os aspectos metodológicos e de procedimentos de correção da mortalidade por causas externas foram classificados em: 1) métodos com base em modelos estatísticos, e 2) métodos com base no resgate de informações, por investigação de campo ou pareamento de bancos de dados.
Resultados e Discussão
A revisão da literatura levou à seleção inicial de 77 trabalhos, com 30 artigos separados para leitura completa, dos quais 17 tinham como tema central a correção da mortalidade por causas externas e 13 tratavam da qualidade dos dados de mortalidade por causas externas. Ao final, foram selecionados 14 artigos, publicados entre 1999 e 2014, que atendiam diretamente ao recorte do objeto deste estudo (Figura 1).
Fluxograma da busca e seleção dos estudos sobre métodos de correção da mortalidade por acidentes e violências notificados ao Sistema de Informações sobre Mortalidade.
* Sistema de Informações Hospitalares do SUS.
Os três grandes grupos temáticos publicados apresentaram perfil homogêneo, cada um somando pelo menos quatro investigações realizadas a partir da década de 1990. A maior parcela das pesquisas utiliza principalmente métodos de estudo de campo para resgate da informação, e se refere a informações locais (n = 11) tendo, portanto, reduzida capacidade de generalização dos resultados. Outras investigações ampliaram a correção dos óbitos por causas externas para uma base nacional (n = 3), utilizando principalmente modelos estatísticos. Alguns trabalhos foram publicados há mais de 10 anos, mas a maioria a partir de 2005 (Quadro 1). A subenumeração de óbitos por causas externas é, portanto, preocupação recente dos pesquisadores, com estudos ainda relativamente escassos no país, condição possivelmente condicionada pela convicção desse tipo de morte ser mais bem informado4. Por outro lado, a melhoria dos registros do SIM15, a redução da magnitude de determinadas mortes na saúde da população, como as infantis e as maternas31,32, e o aumento da participação das causas externas no perfil epidemiológico5, abrem espaço na agenda política, de gestão e pesquisa para a apreciação mais atenta da produção de registros de vítimas por acidentes e violências. Cabe destacar também que essas causas só foram admitidas como problemas no setor saúde por organismos internacionais a partir da década de 1990, período relativamente recente33.
Síntese das publicações selecionadas sobre a qualidade da declaração do registro de causa de óbito por acidentes e violências no Sistema de Informações sobre Mortalidade-SIM, Brasil.
No primeiro grupo temático (Quadro 2), dos quatro estudos revisados sobre subnotificação de óbitos, três efetuaram resgate de informações em investigações de campo, com variados procedimentos: busca ativa em cemitérios para identificar registros não coletados pelo SIM na capital do Ceará34, resgate em livros de inquérito da Polícia Civil em município de médio porte de Minas Gerais35, e recuperação de óbitos em variadas fontes de informações em amostra de 10 municípios de pequeno e médio porte de Minas Gerais36. Uma pesquisa propôs métodos matemáticos por meio de estimadores bayesianos, verificando o sub-registro por unidade federada37.
Detalhamento das publicações com estimativas do sub-registro de causas externas entre óbitos não informados ao Sistema de Informações sobre Mortalidade-SIM, Brasil.
Os estudos desse primeiro grupo exibem vantagens e também desvantagens decorrentes do modelo. Pesquisas de campo de busca ativa em amplas localidades geográficas e variadas fontes como a de Campos et al.36 exigem maior logística, comumente com custo mais elevado. Esse estudo apresentou perdas de 32% em áreas predominantemente rurais. O resgate de informação em município específico34,35, e restrição a fonte única de investigação, particularmente cemitérios34, trouxe a desvantagem de captar óbitos com alta proporção de CMD ou ignoradas (54%). Além disso, determinadas fontes podem levar a maior resgate de um tipo particular de causa, tal os inquéritos da polícia civil35 que favorecem mais a identificação de homicídios. A facilidade de aplicação do modelo estatístico37 apresenta como desvantagem basear-se em modelagem a partir da ocorrência das causas definidas informadas no SIM, mas em compensação possibilita avaliar o grau de cobertura de óbitos por grupos etários em pequenas áreas38 (Quadro 2).
Embora os estudos selecionados apresentem propostas de correções do sub-registro de causas externas no SIM para recortes geográficos e temporais distintos, ainda assim é possível fazer comparações dos achados nos dois diferentes métodos. O resgate de dados em cemitérios34 identificou 13,6% de sub-registros de óbitos por causas externas na capital do Ceará, em 2000, enquanto o trabalho que usou modelos estatísticos37 publicou 7,6% de sub-registros para a região Nordeste em 2001. O primeiro estudo encontrou proporção de correção bem superior que o segundo, particularmente mais evidente por corrigir dados de uma capital, onde se espera que os dados sejam mais bem notificados, em acordo com pesquisa que mostra o aumento da cobertura do SIM conforme cresce o porte populacional dos municípios14. Isso pode indicar que o modelo estatístico subestima óbitos por causas externas no Nordeste. Na região Sudeste, o método que trabalhou com autópsia verbal36 encontrou 55 óbitos por causas externas (26,7%) entre os totais não notificados em municípios de pequeno e médio porte da macrorregião do Nordeste de MG, em 2007. E a investigação dos registros de inquérito da Polícia Civil35 identificou sub-registro de 21% das mortes por causas externas no município de médio porte de Viçosa-MG, no período de 2000 a 2009, com maiores valores de sub-registro para homicídios. Essas evidências chamam a atenção para a necessidade de considerar problemas na captação de óbitos por acidentes e violências, especialmente em municípios menores. Deve ser visto com cautela, portanto, o pressuposto de que tais óbitos são mais bem captados pelo SIM que os de causa natural2,3,39 (Quadro 2).
Investigações de campo apresentaram o benefício acessório de apontar fatores que mais contribuíram para retratar o volume subenumerado, por lidar com imperfeições e impasses materiais do processo de esclarecimento das mortes por causas externas. A depender da fonte utilizada, uma causa de óbito pode ser mais tipicamente coletada que outra, a exemplo dos dados da polícia mais sensíveis em identificar causas violentas. Os cemitérios podem ser boas fontes de recuperação de óbitos, mas possuem limitações no registro das causas. Cerqueira22 cogita ainda um tipo de sub-registro de homicídios em determinadas cidades, onde não seria incomum traficantes de drogas e milicianos desaparecerem com o corpo da vítima.
No segundo grupo temático, os artigos sobre CMD registradas no SIM corrigiram a subinformação de óbitos por causas externas a partir de investigações de campo para a recuperação da informação e reclassificação das CMD10,17,18,36. Diferentes estratégias foram usadas para definição da causa de morte, desde consulta a uma fonte de dados como o Sistema de Informações Hospitalares-SIH17, ou a fontes variadas, como prontuários hospitalares, IML e coleta de dados em domicílios por entrevistas10 ou autópsia verbal36, além de resgate de informações sobre óbitos investigados no SIM18 (Quadro 3).
Detalhamento das publicações com identificação de causas externas entre causas mal definidas no Sistema de Informações sobre Mortalidade-SIM, Brasil.
Desses estudos, três aplicaram procedimentos em localidades específicas. Os registros hospitalares não podem ser ignorados, mas o uso isolado do relacionamento de registros nominais do SIH com o SIM17 para a reclassificação das CMD pode afetar a correção da subinformação de causas externas, dado que esclareceu apenas 16% das causas de mortes investigadas. Ademais, menos de 40% dos óbitos por causas externas tiveram como local de ocorrência hospitais, em 201321. A pesquisa com uso de autópsia verbal não investigou 25% das CMD, perdas prevalentes na zona rural36. Outro trabalho10, com uso de várias fontes de investigação, não esclareceu cerca de um terço dos óbitos. O estudo com a base nacional de óbitos investigados do SIM18 pode ter sido afetado pela ocorrência de subestimação das investigações realizadas43, por erros de fluxo ou no processamento do dado.
O método de resgate de informações empregado por Mello-Jorge et al.10 em 15 municípios dos estados de São Paulo, Mato Grasso e Sergipe, em 2002, reclassificou 6% das CMD em causas externas, corrigindo a subinformação de mortalidade por violências e acidentais em 1,2%. O SIH17 proporcionou a identificação de 5,4% de causas externas entre as CMD, aumentando-as em 0,7% no estado do Rio de Janeiro, em 2006. Estudo de autopsia verbal36 definiu 85,4% (n = 129) das CMD investigadas em 2007, e 14,7% das causas definidas foram reclassificadas como externas, elevando-as em 76%. A reclassificação das CMD, baseada em investigação no SIM18, encontrou 9,3% de causas externas para o Brasil, corrigindo esse tipo em 1,3%, em 2010. Ao identificarem causas externas entre os óbitos com CMD, as pesquisas reforçam a não aceitação dos procedimentos que consideram somente as causas naturais na redistribuição de CMD.
No terceiro grupo temático deste estudo, são propostos métodos de correção das causas específicas de acidentes e violências (Quadro 4). Dentre seis estudos avaliados, quatro adotam o resgate de informações junto a IML4,24,40, enquanto outro reúne dados de notícias veiculadas em jornais41. Essas pesquisas se diferenciam no escopo de óbitos por causas externas considerados mal classificados, sendo que a maioria24,40,41 analisou aqueles com intenção indeterminada (códigos CID-10 Y10-Y34) e acidentes não especificados (código X59). Mello-Jorge et al.4 consideraram outros eventos com diagnóstico incompleto. O estudo de Drumond Júnior et al.24 apresentou alta proporção de óbitos que se mantiveram com intenção indeterminada após investigação (66,4%). Mello-Jorge et al.4 incluíram como fonte adicional de pesquisa o domicílio, mostrando-se mais eficientes em qualificar as causas externas com má classificação, pois esclareceram quase 79% destas, desempenho um pouco superior aos resultados (70%) de Matos et al.40. Estudo a partir de notícias de jornais apontou limitações relacionadas a essa fonte, como a supervalorização de aspectos não esclarecidos e a não divulgação de suicídios41.
Detalhamento das publicações com a reclassificação das causas externas não definidas de mortalidade no Sistema de Informações sobre Mortalidade-SIM, Brasil.
Dois trabalhos aplicaram modelos estatísticos na predição de causas externas específicas22,42. Um deles verifica22 as características associadas a cada incidente violento para predizer a intenção do evento, reclassificando as intenções indeterminadas. Entretanto, exclui os acidentes de transporte do modelo e não foi tão satisfatório para predizer suicídios. O outro trabalho, o Global Road Safety Facility42, baseado no estudo GBD-201044, testa vários modelos estatísticos para estimar mortes no trânsito e, portanto, apresenta a dificuldade adicional de serem modelos complexos, de não fácil reprodução. Além disso, o estudo GBD-2010 propôs alguns fatores de correção que muito possivelmente não eram adequados à realidade brasileira, a exemplo da reclassificação de 40,98% das agressões por meios não especificados como tendo sido por meio de objeto contundente44, diferente dos dados do Brasil que indicam as armas de fogo como principal meio (71,1%)21.
Drumond Júnior et al.24 conseguiram reclassificar a maioria dos acidentes sem especificação (66%) e parte menor das intenções indeterminadas (33,6%), corrigindo os acidentes de transporte terrestre-ATT (7%), as quedas (13,4%), os suicídios (2,2%) e os homicídios (0,8%). Mello-Jorge et al.4 esclareceram 82,3% das intenções indeterminadas, classificando a maioria como homicídio e acidente de transporte, e 76,1% dos diagnósticos incompletos. Os ATT não especificados (código V89) migraram para ocupante de veículo (41,2%), motociclista (20,6%), pedestre (11,8%) e ciclista (2,9%). A reclassificação do conjunto das causas não definidas de causas externas elevou os acidentes de transporte em 67%, os homicídios em 40,6%, e os suicídios em 23,5%. Matos et al.40 esclareceram 82,9% dos acidentes não especificados, 79% reclassificados em causas acidentais, e 70,7% das intenções indeterminadas reclassificadas principalmente em homicídios. O maior incremento após investigação foi para acidentes automobilísticos (33,3%), quedas (28,4%), suicídios (12,9%) e homicídios (5,7%). Villela et al.41 reclassificaram 67% das intenções indeterminadas, elevando os acidentes de transporte em 14,3% e os homicídios em 5,6%. Apesar de divergirem na ordem e magnitude de reclassificação das causas, essas investigações evidenciaram que o IML não utilizou informações disponíveis no próprio Instituto para o preenchimento das DO em capitais do sudeste do Brasil e em outros municípios de São Paulo, Mato Grosso e Sergipe.
Cerqueira22 estimou para o estado do Rio de Janeiro 3% de mortes por acidentes acima do registrado e os homicídios ocultos em 22%, entre 2002 e 2006. No primeiro caso, a subnotificação teria sido elevada para cerca de 6% a partir de 2008, e alcançado 62,5% dos homicídios em 2009. Os óbitos por suicídio não registrados variaram de 44% a 115,6%, entre 2000 e 2009, mesmo com a subestimação do modelo para essa causa. No estudo do Global Road Safety Facility42, 20,5% os óbitos por ATT foram corrigidos em 2010 no país, aumentando de 36.499 para 43.985 mortes. O SIM registrou no referido ano 42.844 óbitos por ATT21.
Estudo sobre a confiabilidade do SIM45 reforça os achados desta revisão, ao identificar causas externas entre CMD e esclarecer causas externas de diagnóstico incompleto, a partir de dados do IML. É necessário que as DO sejam preenchidas por médicos legistas dentro de padrões recomendados, e, por outro lado, as guias de remoção de cadáveres precisam ser mais bem preenchidas em hospitais e delegacias quando do encaminhamento ao Instituto46.
Regiões com piores condições socioeconômicas e de acesso a serviços, incluindo IML, podem apresentar maior subnotificação de óbitos por causas externas em razão de dificuldades adicionais relacionadas à precariedade dos equipamentos de saúde e segurança pública, sobretudo, nos municípios pequenos e médios35,36. Em especial nesses municípios, os sub-registros de óbitos gerais e por causas externas não se mostraram tão distintos. Esse conjunto de evidências questiona interpretações comumente aceitas das causas externas serem mais bem notificadas em qualquer contexto, pois há muito a ser conquistado enquanto os legistas não alcançarem um estágio ideal no preenchimento das DO4.
Enquanto persistirem deficiências é preciso fortalecer a busca rotineira de informações adicionais nos IML, assim como em fontes complementares, como SIH, delegacias, cemitérios, uso de autópsia verbal, imprensa14,17,34,36,41, e mesmo o SINAN no caso de acidentes de trabalho47, compondo rol de variadas fontes que permite a qualificação do preenchimento das diferentes variáveis da DO48-50. No caso específico do suicídio, os 35 Centros de Controle de Intoxicação são fontes especializadas de melhoria dos registros desse evento no SIM, conforme estudo que identificou aqueles por intoxicação exógena entre CMD e intenções indeterminadas19.
Considerações Finais
Os estudos revisados apresentam evidências relevantes de subenumeração de óbitos por acidentes e violências no SIM, decorrentes de mortes não notificadas, eventos ocultos entre CMD, e má classificação das causas externas registradas. A literatura revisada sustenta um elenco de propostas de desenhos para análise e métodos de correção desses óbitos.
O sub-registro foi verificado em municípios de pequeno, médio e grande porte populacional, inclusive em capital onde se espera melhor cobertura do sistema, com a recuperação de óbitos em variadas fontes de informação. De igual modo, óbitos por causas externas foram identificados entre CMD, inclusive entre causas naturais. Tais problemas reforçam a necessidade da adoção de medidas para a melhoria das informações de mortalidade por causas externas e do uso de estimativas seguras de correção dos dados.
A facilidade de acesso aos dados e o reconhecimento da importância do monitoramento e dos investimentos da gestão pública no aperfeiçoamento das informações vitais resultaram em ampliação da base de dados coletada pelo SIM e melhora do registro da causa básica do óbito na DO14. Esses elementos compõem um contexto favorável para a pesquisa e a gestão do sistema na busca do aprimoramento do SIM, incluindo a incorporação mais sistemática da avaliação da confiabilidade da seleção da causa definida de morte28. É imperativo o compromisso imediato com a demanda de uso de medidas de correção dos dados de mortalidade de causas externas por meio da aplicação de procedimentos e métodos adequados. Dessa forma, apoiar-se-ia a construção de indicadores mais adequados para a deliberação de decisões na gestão e na implementação de ações e programas de prevenção da violência e cuidados à saúde.
Frentes de trabalho podem ser implementadas de modo associado, porque são complementares e não excludentes: uma, aplicar métodos para a correção da mortalidade por causas externas para a produção de indicadores na saúde pública; outra, institucionalizar a investigação das mortes por causas externas não definidas no escopo dos serviços de vigilância de óbito nos municípios, especialmente nas cidades com acesso ao IML, uma vez que as evidências apontam a subutilização das informações disponíveis no próprio Instituto4,23-25. A utilização de modelos de correção das causas externas viabiliza cálculos mais confiáveis de indicadores, sem prejuízo para a continuidade dos esforços dos gestores em direção à redução efetiva da subenumeração da morte por acidentes e violências.
Esses esforços em especial devem ser priorizados, pois metodologias de recuperação de informações são simples, acessíveis e factíveis, e devem ser implantadas ou reforçadas com a finalidade do desejado aprimoramento das estatísticas de mortalidade e a compreensão do processo envolvido na produção da informação em lugares com precariedade dos dados. E assim tornar possível mapear problemas no fluxo e operacionalização do SIM em âmbito local, permitindo o acerto de condutas e o seu aprimoramento4,14,36,51, condições estas que demonstram grande capacidade de qualificação das causas externas.
Agradecimentos
A Daisy Maria Xavier de Abreu, do GPEAS/UFMG, pelas sugestões. E ao apoio do Ministério da Saúde por meio da Organização Pan-Americana da Saúde-OPAS e Fiocruz.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
Dez 2016
Histórico
-
Recebido
23 Jul 2015 -
Revisado
19 Nov 2015 -
Aceito
21 Nov 2015