Resumo
O estudo analisa a incidência dos custos de transação no processo de regionalização das políticas de atenção à saúde no sistema federativo brasileiro. As ações de saúde regionalizadas, contratadas e pactuadas entre os entes federados assumiram neste trabalho o caráter de transação. Foi elaborado um ensaio teórico conceitual de natureza reflexiva com o propósito de problematizar e propor novas abordagens para as melhorias no processo de regionalização da saúde. As principais considerações apontam que os instrumentos institucionais de gestão propostos pelas normativas e regulamentações do Sistema Único de Saúde apresentam baixo potencial para reduzir os custos de transação, especialmente devido a dificuldades na conciliação de objetivos comuns entre os entes, ambientes cercados de incertezas, assimetrias e informações incompletas, racionalidade limitada e conflito de interesses. Entretanto, o processo de regionalização pode reduzir a incidência de custos sociais e/ou operacionais, através do melhoramento do acesso à saúde e na construção de modelos de governança mais eficientes.
Regionalização; Política de saúde; Sistema Único de Saúde; Federalismo; Serviços de Saúde
Abstract
This study analyzes the incidence of transaction costs in the regionalization process of health policies in the Brazilian federal system. In this work, regionalized health actions contracted and agreed between federal agencies have assumed a transactional nature. A conceptual theoretical essay of reflective nature was prepared with the purpose of questioning and proposing new approaches to improve the health regionalization process. The main considerations suggest that institutional management tools proposed by the standards and regulations of the Unified Health System have a low potential to reduce transaction costs, especially due to hardships in reconciling common goals among the entities, environment surrounded by uncertainty, asymmetries and incomplete information, bounded rationality and conflict of interest. However, regionalization can reduce the incidence of social and/or operational costs, through improved access to health and the construction of more efficient governance models.
Regionalization; Health policy; Unified Health System; Federalism; Health services
Introdução
No Brasil, a conformação das regiões de saúde está institucionalizada pelo modelo federativo adotado, que condiciona toda organização do sistema. Nesse modelo, estão intrínsecos fatores controversos de competição e cooperação intergovernamentais, que influenciam a conformação de redes regionalizadas e hierarquizadas.
Desde o início da década de 1990, o Sistema Único de Saúde (SUS) tem publicado periodicamente normativas que (re)criaram instrumentos de gestão no intuito de operacionalizar a regionalização das ações e dos serviços de saúde. No entanto, cada vez que um novo instrumento é proposto pelo governo federal, surgem novas dificuldades de adesão pelos gestores municipais e estaduais. Além disso, as constantes mudanças nas formas de gestão e governança tendem a promover insegurança institucional, que podem aumentar as assimetrias de informações, incertezas e, por consequência, ações oportunistas, gerando maior competição entre os agentes envolvidos.
A regionalização é a diretriz organizativa que orienta o processo de descentralização das ações e dos serviços de saúde e os processos de negociação e pactuação entre os gestores nos três níveis de governo e para a qual os arranjos institucionais e a relação política administrativa são variáveis que permeiam o planejamento, a gestão e a organização de redes de atenção à saúde1.
A configuração de redes de atenção à saúde regionalizada, com cooperação entre os entes federados, implica na existência de fluxos de informações e de recursos financeiros e econômicos, que resultam da pactuação entre esses entes através da celebração de “contratos” formais e/ou informais, incompletos que os tornam invariavelmente menos eficientes.
Neste contexto, a Economia dos Custos de Transação (ECT) pode fornecer subsídios para a análise do processo de regionalização e pactuação das redes de saúde e os custos intrínsecos existentes. Esse estudo discute a descentralização das redes regionalizadas de atenção à saúde, a partir do modelo federativo brasileiro e considera seus efeitos sobre a eficiência dos serviços prestados à luz da teoria dos custos de transação.
Este artigo utiliza o termo “serviço” referindo-se à disponibilização de diversos tipos de procedimentos/ações/atividades em relação à atenção à saúde e de acordo com a complexidade tecnológica (atenção primária, secundária e terciária).
A primeira seção deste artigo discorre sobre o processo de regionalização na saúde, em seguida, na segunda seção, apresenta os fundamentos teóricos conceituais do custo de transação, por fim busca-se analisar a relação entre os fatores determinantes dos custos de transação e a regionalização do sistema de saúde no Brasil.
A regionalização no Sistema Único de Saúde
No período recente, o processo da regionalização na saúde no Brasil pressupõe conhecer a descentralização do poder outorgado advindo da Constituição Federal de 1988 (CF/1988)2, sua interdependência com a tipologia sui generis de federalismo implementado no país e, finalmente, suas implicações no que concerne à especificidade da política de saúde. Isso porque, embora o sistema federativo no período anterior à CF/1988 tenha se apoiado dominantemente na relação entre o governo federal e os governos estaduais, o sucedâneo marca a crescente importância dos governos municipais, seja como executores de políticas públicas por delegação e desconcentração do poder estadual, seja por sua consagração como ente federativo, dotado de autonomia plena.
No Brasil, a “municipalização à todo custo”, em detrimento do comando e da regulação exercida no nível estadual de governo, torna mais penoso e complexo o processo de pactuação entre entes governamentais, bem como retira eficácia dos incentivos federais à adesão a políticas de cunho nacional e universal3.
Os dilemas e os conflitos da organização federativa são de múltipla natureza, particularmente onde a autonomia fiscal e de gestão se combinam com uma descentralização por hierarquias de serviços, organização de redes e diferenças de funções entre os governos. Ainda mais quando associado ao porte populacional e a diferenças na oferta de infraestrura de bens e serviços públicos.
No que concerne ao SUS, a descentralização na década de 1990 é marcada pelo processo de transferência de recursos e competências para os municípios diretamente da União, a principal formuladora e financiadora da política de saúde. Essa década é também marcada pela pouca prática de mecanismos de cooperação e pelas disputas por mais recursos entre governos estaduais e municipais para a administração de serviços de saúde. Além disso, a estrutura de governo fortemente municipalizada enfrenta grandes desafios para atender aos objetivos do SUS frente à extrema diversidade e desigualdade que caracteriza a federação brasileira.
Não obstante, nos anos 2000 o conceito de regionalização é resgatado, no sentido que esse efetive a “racionalização do sistema para equacionar a fragmentação na provisão dos serviços e as disparidades de escala e capacidade produtiva existente entre os municípios, sob o risco de perda de eficiência e consequente piora dos resultados”4.
Nesse contexto, e como principal diretriz da descentralização, a regionalização é retomada como um dos pilares fundamentais do SUS na perspectiva da estruturação e organização das ações e serviços de saúde; esta, inclusive, caracteriza-se também pela consolidação de base territorial para o planejamento e a organização de redes regionalizadas e hierarquizadas de atenção que possuem distintas densidades tecnológicas e capacidades de oferta de ações e serviços de saúde.
Após sucessivas normas regulamentadoras nos anos 1990 e 2000, a política de regionalização foi efetivamente resgatada pela publicação do Pacto pela Saúde5, em 2006. Na realidade, o pacto pela saúde é uma continuidade das proposições da Norma Operacional de Assistência à Saúde (NOAS), tão criticadas quando das suas publicações em 2001 e 2002. O Pacto pela Saúde reúne um conjunto de reformas institucionais e políticas que são pactuadas entre os três gestores do SUS e tem por meta estabelecer um novo patamar na forma do financiamento, novas definições de responsabilidades, metas sanitárias e ainda pactuar compromissos entre os gestores da saúde com o objetivo de organizar a atenção à saúde.
Em 2006, com o lançamento do Pacto pela Saúde, diretrizes são preconizadas para a regionalização do sistema de saúde, baseadas no fortalecimento da pactuação política entre os entes federados, sobretudo no âmbito municipal e na diversidade econômica, cultural e social das regiões do país para a redefinição das regiões de saúde5.
Somente a partir da publicação do pacto, os entes subnacionais tiveram a oportunidade de restabelecer a autonomia para definir quais serviços teriam capacidade de ofertar e assinam um termo de cooperação através da pactuação direta entre municípios, estados e União. O pacto levou seis anos de negociação e, quando timidamente implantado, foi substituído pelo Decreto n° 7.508/20116. Esse fato demonstra as constantes mudanças às quais estão submetidos os agentes responsáveis pela conformação da rede de atenção à saúde regionalizada, o que leva à insegurança institucional.
Nesta medida, a edição do Decreto nº 7.508/20116, que tem como objetivo consolidar o processo de regionalização cooperativa e solidária, também possibilita maior sustentação operacional e institucional à estruturação de modelos da rede assistencial nas regiões de saúde. O importante nesse dispositivo é a responsabilidade dada aos entes federativos no sentido de gerar um efetivo acesso à população dos bens e serviços ofertados por meio de contratualização, através do Contrato Organizativo de Ação Pública (COAP).
Teoria dos custos de transação (TCT)
Os custos de transação, são os “custos para ‘planejar, adaptar e monitorar o cumprimento de tarefas’ em atividades produtivas”, bem como aqueles associados à má adaptação das condições do contrato, de eventuais renegociações e monitoramento do cumprimento dos contratos7. Em tese, o objeto da TCT é a análise das condições e das consequências dos custos de transação para a eficiência do sistema econômico8.
Dentre as várias concepções já explicitadas por alguns autores na literatura, os custos de transação são, em síntese, aqueles inscritos na elaboração e negociação dos contratos, na mensuração e fiscalização de direitos de propriedade, no monitoramento do desempenho e na organização de atividades9, sendo ainda descritos como o custo de mensurar as múltiplas dimensões valorizadas incluídas na transação e os relativos aos de execução contratual10.
Conforme Williamson11, os custos de transação podem ser do tipo ex-ante, ou seja, o de esboçar, negociar e salvaguardar o acordo, ou ex-post, decorrente do ajustamento e das adaptações, que podem até resultar em rompimento contratual devido a falhas, erros ou interesse próprio de uma das partes.
A relação entre custos de transação e governança tem ampla referência na literatura. No entanto, o seu significado tem sido expresso por diferentes conotações, que se traduzem desde arranjos organizacionais até como estratégia e modo de governar12. O conceito contemporâneo de governança não está mais limitado à condução estatal, mas também a da sociedade por meio de instituições e atores sociais. Com isso a governança remete a formas adicionais de condução social13,14.
Segundo Williamson11, a estrutura de governança de uma transação é condicionada por seus atributos, pelo ambiente institucional e pelos pressupostos comportamentais exercidos pelos atores envolvidos. Para o autor, as transações variam segundo a sua natureza e conforme a sua dimensão, que é expressa pela especificidade de ativos, incerteza e frequência; sendo que o grau de sua manifestação implica em distintos desenhos de solução eficiente. Também, de acordo com o autor, a racionalidade limitada e o oportunismo interferem sobremaneira na condução de uma transação15. A Figura 1 representa o modelo, a partir de estudo de Zylberstajn16.
O oportunismo, decorrente do processo de contratualização, implica no reconhecimento de que os agentes não apenas buscam o autointeresse, mas também se apropriam de benefícios associados às transações; mesmo que a teoria econômica argumente que os agentes se comportam de maneira isenta na busca da satisfação de seus interesses. Segundo Williamson15, o oportunismo é responsável pelas condições reais ou aparentes de assimetria de informação, ou seja, as informações não estão disponibilizadas igualmente para os agentes envolvidos em uma transação.
Quanto à racionalidade limitada, Williamson11 afirma que os agentes desejam ser racionais, mas que só conseguem sê-lo parcialmente, posto que o ambiente que cerca suas decisões é altamente complexo e afetado por limites cognitivos. Em outras palavras, a racionalidade limitada leva ao desenho de contratos incompletos os quais não prescindirão uma renegociação e para o qual os agentes por precaução se utilizarão de salvaguardas e mecanismos de incentivos. Do ponto de vista da eficiência transacional, portanto, faz-se necessária a implementação de mecanismos de adaptação ao permanente esquema conflitivo presente nas relações contratuais17.
A incerteza é tratada por Williamson18 em termos de complexidade dos eventos, que a dimensionou em três categorias: a primeira – relacionada às contingências ambientais, aí incluída a preferência dos consumidores e/ou usuários; a segunda – relacionada à falta de informação; e a terceira estratégica ou comportamental – relacionada ao oportunismo.
A frequência de uma transação permite o desenvolvimento de um compromisso confiável entre agentes, levando não só a diminuição dos custos associados à coleta de informações, bem como à elaboração de contratos complexos, que, em última análise, restringe a atuação dos oportunistas. Diante disso, “quanto maior a especificidade dos ativos, maior a frequência das transações e maior o nível de incerteza, maiores são os custos de transação”19.
Ao evidenciar a inscrição de custos de transação, tem-se o dilema da ação coletiva, que, como mais uma implicação, destaca a atuação dos grupos, ou mesmo classes sociais, em relação às (in) adequações das instituições vigentes na perspectiva do autointeresse.
O dilema da ação coletiva foi inicialmente descrito por Olson20, que desvela o dilema social envolvido nas escolhas circunstanciais de interdependência decisória, bem como postula que os indivíduos racionais e egoístas não agem de forma natural para a produção de um bem. Ao contrário, a forma natural, numa perspectiva de ampliar os benefícios, passa a ser a não cooperação, ou melhor, a adoção da postura free rider (carona), em que a necessidade por bens não garante a concretização da ação coletiva em vista do carona atuar como fator inibidor a ponto de impedir as ações em grupos. Ainda segundo Olson20, a solução para o dilema se dá por meio do bloqueio da conduta do carona ao imputar um custo de transação maior do que aquele incorrido se cooperasse na produção do bem.
Em resumo, a economia dos custos de transação evidencia que a forma hierárquica de governança surge para resolver os problemas causados pela racionalidade limitada e pelo oportunismo em meio a um ambiente incerto e sujeito a especificidades dos ativos. A decisão em torno da melhor forma de coordenação depende dos custos associados às transações.
Por outro lado, também pressupõe que em ambientes institucionais cercado de incertezas, assimetrias e informações incompletas, racionalidade limitada, multiplicidade de objetivos e conflito de interesses é importante o uso de um instrumental de normatização, tal como a predefinição de instrumentos de incentivo e controle, em que se inscrevem a cessão de prêmios, a aplicação de sanções e multas ou auditorias.
De forma geral, os custos de transação invariavelmente estão relacionados à eficiência produtiva, pois reflete os padrões de conduta dos agentes e a forma pela qual as atividades econômicas são organizadas e coordenadas. Em outras palavras, a redução de custos de transação é obtida tanto por parte dos agentes quanto pelos formatos organizacionais.
Custos de transação no contexto do federalismo e da regionalização da saúde
No processo de regionalização da saúde no Brasil, a questão dos custos de transação ainda não foi tema de debate. O tema recorrente tem sido aplicado ao setor privado de saúde, em especial quando consideradas as seguradoras e as operadoras de planos saúde21.
Para a análise desse contexto na perspectiva da TCT considerar-se-á a ação ou o serviço de saúde (próprio/contratado e pactuado) como a transação entre os entes federados, que fornecerá elementos de comparação e discussão sobre a melhor estrutura de governança para organizá-la entre os diferentes agentes que atuam na gestão pública da saúde.
O Quadro 1 destaca as características da transação, são hipóteses admitidas para orientar o processo de análise. A especificidade dos ativos envolvidos nos serviços de saúde é elevada, as estruturas físicas e a mobilização do capital humano são especialmente complexas. Percebe-se que existe grande aderência da TCT às ações e serviços de saúde, considerando que todos os principais pressupostos da TCT estão presentes no âmbito da regionalização da saúde. Não se deve esquecer que toda a regulamentação e regulação das ações ou serviços de saúde envolvem uma conformação institucional passível de incertezas, bem como de práticas oportunistas. Em geral o que orienta a atribuição de uma alta especificidade do ativo é o entendimento de que as ações ou os serviços de saúde no âmbito regional envolvem procedimentos complexos.
De acordo com a vertente aqui abordada, os custos de transação são maiores ou menores dependendo da maior ou menor eficiência na pactuação e/ou contratualização dos serviços de saúde entre os entes federados. Assim, a TCT aplicada na regionalização do sistema de saúde brasileiro pode ser entendida a partir de uma definição geral de que surge devido ao custo de se mensurar as múltiplas dimensões valorizadas e incluídas na transação10. Isto porque, no processo de regionalização da saúde, tanto os custos de transação advindos da cooperação/competição e coordenação entre os entes federados como aqueles decorrentes da contratualização são alvo de interesse na discussão.
No sentido de dinamizar a reflexão, a questão relativa à incidência dos custos de transação será abordada sob duas diferentes dimensões, a do federalismo vis-à-vis a regionalização e a da conformação da rede de atenção à saúde vis-à-vis a contratualização, considerando os pressupostos comportamentais, os atributos da transação e a estrutura de governança. Nessa medida, a eficiência da transação é dada pelo acesso do usuário à atenção à saúde integral e de qualidade na perspectiva de um melhor arranjo institucional.
Ancorado no estudo elaborado por Axelsson et al.22, a dimensão da análise em que se considera os processos de regionalização e a (des)centralização tem como uma premissa o fato de que a trajetória histórica da conformação do sistema de saúde determina como e onde incidem os custos de transação e como estes, em via de mão dupla, determinam ou são determinados pelas estruturas de governança.
A partir dos fundamentos teóricos conceituais, é possível discutir como os atributos da transação e os pressupostos comportamentais podem interferir na incidência de custos de transação na conformação das redes de saúde a partir do processo de regionalização, considerando a peculiaridade do federalismo no Brasil.
O Quadro 2 demonstra a dualidade federativa na qual está sujeito o processo de regionalização dos serviços de saúde. De forma geral, os efeitos positivos proporcionam redução nos custos sociais e/ou operacionais através da oferta de serviços de saúde de melhor qualidade, enquanto os efeitos negativos, além de terem impacto sobre o custo social e operacional nulos, geram aumento de custos de transação.
Em outras palavras, na concepção da regionalização da saúde inscreve-se a ideia de redução de custos sociais e/ou operacionais, associados a maior eficiência na oferta de serviços de saúde. Contudo, é na pactuação entre os entes federados que se observa a incompletude de contratos, a especificidade de ativos e o oportunismo, que geram em maior ou menor medida os custos de transação. Esses custos são maiores em regiões em que os efeitos negativos se sobrepõem aos positivos, portanto sua incidência pode ser considerada extremamente subjetiva, dependendo de mecanismos conciliatórios entre os entes federados.
A grande incidência de normatizações e regulamentações, implementada durante os últimos anos, demonstra a complexidade e as especificidades de ativos, associada a certo grau de incerteza relacionado à prestação de ações nos serviços de saúde de maneira regionalizada.
Neste sentido, a implantação do Pacto pela Saúde5, em 2006, e a publicação do Decreto Presidencial nº 75086, em 2011, levou a que dois instrumentos de acordo contratuais fossem instituídos – o Termo de Compromisso de Gestão (TCG) e o COAP, respectivamente, os quais propiciam que a direção da análise em relação ao objeto do estudo se efetive na perspectiva da relação contratual per se e que aborda a questão a partir de características inerentes do federalismo – competição, cooperação e coordenação. É importante realçar que o TCG, em que pese ser uma estratégia de contratualização entre entes federados, ao reforçar a responsabilização dos gestores municipais no que concerne ao acesso às ações de saúde por parte da população, manteve a autonomia dos municípios quanto à definição de sua política.
Diante do processo de regionalização, os custos são impactados pela assimetria de forças entre os entes federados, pelo desequilíbrio de poderes e assimetria política, legal, técnica, administrativa e relacionada ao financiamento, e, desta forma, o aumento dessa assimetria dificulta a cooperação institucional e propicia a postura free rider (carona), advinda da impossibilidade de coordenação de uma ação coletiva.
Em que pese à análise de normas, recursos, incentivos e construções cognitivas que integram as ações regulatórias no processo de regionalização da saúde, o arcabouço institucional observado na maioria dos estados é incipiente. Certamente, essa evidência sugere um reexame à luz de uma análise que qualifique as possíveis fontes de custos de transação, assim como, por decorrência, nas regiões de saúde nos estados.
Em tese, o desenho per se das transações intrarregionais advindas de acordos já implica em custos de transação do tipo ex-ante; afinal o exercício implementado nesta fase requer uma gama de informações para as quais a simetria é indispensável. Convém citar que estes custos são admissíveis. Já os do tipo ex-post, relativos à normalização do acordo em um período de adaptação ou aos ajustes, que em geral advém de falhas institucionais, são indesejáveis e, nesse sentido, devem ser senão abolidos, pelo menos minimizados.
O estabelecimento de um acordo onde os agentes detêm pleno conhecimento das informações é uma condição não factível. Nessa medida, a assimetria de informação, particularmente a incerteza, decorrente da ausência de informações relacionadas às atitudes da outra parte, não só reforça o pressuposto comportamental oportunista, bem como a racionalidade limitada, que, em síntese, leva à elaboração de um acordo incompleto que, em última análise, pode propiciar o rompimento contratual.
Diante do exposto, e de acordo com avaliação elaborada por Schneider et al.23, vários foram os fatores que contribuíram para o aparecimento dos pressupostos comportamentais e atributos básicos das transações em relação ao TCG. De acordo com os autores, a Comissão Intergestores Bipartite (CIB) ao não cumprir plenamente com a missão para si desenhada, principalmente em relação à articulação com os Colegiados de Gestão Regional (CGR), levou a uma competição entre municípios por maiores recursos e ao aumento de delegação de funções de um dado município para outros da região, o que caracteriza a posição do carona (free rider).
Ainda que como mera especulação, e tendo como prerrogativa a redução dos custos de transação, a implementação do COAP deverá se ater principalmente à regulação do comportamento oportunista dos entes federados, posto que recursos mal empregados em um município ou em uma região de saúde originam ineficiência no sistema como um todo. Se um ou poucos municípios se destacam positivamente quanto à eficiência, podem induzir um comportamento oportunista dos demais, posto que advirá repasse dos custos do sistema de saúde para a região como um todo, e, como decorrência, ocorrerá redução da geração de benefícios.
A regulação do COAP pressupõe a indução de comportamento cooperativo, até mesmo por meio das eventuais concessões de incentivos. Caso não prevaleça a cooperação, resta ainda a adoção de soluções através de sanções coercitivas. Assim, para que não se imponha uma situação coercitiva – o que certamente não é desejável – é fundamental que na região de saúde se consubstancie uma forte governança, no sentido de reduzir a aplicação das sanções previstas.
Redes de atenção à saúde e contratualização versus custos de transação
Diante da multifuncionalidade da rede de serviços de atenção à saúde e da heterogeneidade de atores e de interesses, certamente uma estrutura complexa de governança deve ser consolidada. E, nesse sentido, conformar essa rede pode sujeitar um expressivo custo de transação, uma vez que invariavelmente existe assimetria de informações entre os entes federados, bem como os contratos e as pactuações que não conseguiriam contemplar toda a complexidade das relações entre os diversos agentes que compõem a rede de atenção à saúde24. O desafio, contudo, é refletir até que ponto a manutenção da rede também incorrerá em altos custos de transação, assim como até onde o alto custo de transação levará, ou não, à inviabilização da sua efetiva conformação; lembrando que o custo de transação não se confunde com os operacionais, mas sim com os de tornar a rede de atenção a saúde eficiente.
O ordenamento do processo de regionalização, a pactuação entre os gestores e o planejamento integrado têm como base os instrumentos de gestão do SUS, o Plano Diretor de Regionalização (PDR) e seus complementos, o Plano Diretor de Investimentos (PDI) e a Programação Pactuada Integrada (PPI), que podem compreender as noções de territorialidade e da conformação de sistemas de saúde, que visam à otimização do uso de recursos físicos e financeiros e consequentemente facilitam o acesso da população. Na prática, com poucas exceções, tais instrumentos são meramente peças fictícias de gestão, a saber: o PDI nem sequer conta com rubricas financeiras nos orçamentos públicos; e o PDR e a PPI funcionam no papel, mas quando envolvem as relações pessoais, seja dos atores governamentais/políticos ou dos profissionais dos serviços, e mesmo a dinâmica populacional, sua implantação é muito mais complexa e raramente as pactuações se efetivam.
Essas especificidades podem se tornar uma fonte de geração de custos de transação (reforçando os efeitos negativos na regionalização da saúde, demonstrado no Quadro 2), já que a existência de peças fictícias de gestão pode gerar práticas oportunistas por parte de agentes com maior poder político.
Esses instrumentos são reforçados no pacto pela saúde5 com a função de potencializar o processo de descentralização federativa do SUS reconhecendo as grandes diferenças regionais e facilitando a reflexão e o planejamento das necessidades para alcançar maior resolutividade na Atenção Primária à Saúde (APS) no âmbito regional e a média e alta complexidade no âmbito macrorregional.
De acordo com a Portaria nº 399/2006 do Ministério da Saúde (MS)5, as regiões de saúde são recortes territoriais identificados pelos gestores municipais e estaduais e aprovados nas CIB, conforme as características sociais, econômicas, culturais, de infraestrutura de transportes, entre outras variáveis que podem ser agregadas25.
Nesse contexto, destaca-se o funcionamento regular das CIBs, composta de forma paritária por dirigentes da SES e representantes do Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (CONASEMS); e da Comissão Tripartite (CIT), integrada paritariamente por representantes do MS, do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (CONASS) e do CONASEMS, que, a partir da segunda metade da década de 90, foram fundamentais para viabilizar a descentralização do SUS e o entendimento dos gestores sobre suas responsabilidades federativas. Vale destacar que nesse período as CIB e as CIT aprovavam as modalidades de gestão e as metas assistenciais dos municípios e estados.
A conciliação de interesses de um grupo amplo e heterogêneo de agentes é complexa e a elevação da eficiência é improvável, gerando em algum grau, custos de transação. Nesse sentido, a construção de mecanismos que proporcione maior segurança institucional, e até mesmo jurídica possibilitaria aumento da eficiência das transações; em outras palavras permitiria maior eficiência cooperativa entre os entes federados e consequentemente menores custos sociais e/ou operacionais.
As iniciativas de planejamento e gestão do SUS estão apoiadas nestas comissões, que reúnem as diversas demandas das esferas de governo em uma mesa de negociação e deliberam sobre os rumos da descentralização e operacionalização do SUS. Esses espaços são inovações importantes do modelo federativo brasileiro ao equalizarem a representação de interesses das três esferas de governo no processo decisório. Chama-se a atenção, no entanto, para os jogos de forças entre as esferas, especialmente entre os municípios, que podem levar à ruptura dos gestores.
Tomando o atual instrumento legal como referência da complexidade institucional que está presente na conformação de redes de atenção à saúde regionalizada e hierarquizada, o COAP é o instrumento de acordo colaborativo e solidário para organizar e integrar as ações e serviços de saúde com definição de responsabilidades, indicadores e metas de saúde, critérios de avaliação de desempenho, forma de controle e fiscalização de sua execução e demais elementos necessários à implementação integrada das ações e serviços de saúde6.
A expectativa é que este instrumento jurídico de planejamento e gestão das redes de atenção à saúde possibilite maior interconexão e integração entre os serviços de saúde das regiões para que os diferentes níveis de densidades tecnológicas, estruturas físicas e recursos humanos estejam articulados e distribuídos como facilitadores do acesso à saúde. Neste acordo, as CIR são as instâncias de gestão e devem assumir as funções de integração entre as políticas regionais.
Conforme o Quadro 1, podemos classificar as relações de cooperação entre os agentes como um ativo específico, cuja complexidade constitui um fator de impacto na avaliação dos custos de transação na regionalização na saúde e particularmente na conformação de redes de atenção à saúde.
Ainda no que se refere ao oportunismo, considerando por hipótese que essa é uma característica dos agentes econômicos, tanto os contratos complexos e com possíveis lacunas, omissões e erros, como as obrigações pactuadas no âmbito das regiões de saúde, podem ser ou desconsiderados pelos agentes, caso não haja interesse na transação, ou então demandará adaptações para a manutenção da relação entre as partes26. Essa é uma consideração que deve ser tratada não só na perspectiva da relação entre os entes federados, como também na relação entre os entes públicos e privados.
A racionalidade limitada, outro aspecto a ser considerado na conformação das redes de atenção à saúde, não é dada apenas pela informação incompleta, mas também pela falta de cognição dos agentes, que leva a um processamento equivocado em relação a uma transação mais eficiente; particularmente agravada em situação de incerteza e na perspectiva de comportamento oportunista. Em outras palavras, a racionalidade limitada influencia o comportamento oportunista e dificulta as decisões de investimentos em ativos específicos.
A recorrência/frequência de transações leva a um patamar de confiabilidade entre as partes26. Contudo, como pode ser observada, a complexa constituição de instrumentos de execução dos planos e pactuação das metas de saúde, somado às constantes mudanças no cenário institucional impedem que exista maior confiabilidade entre os entes federados e, consequentemente, impacta no grau de eficiência da construção da rede de atenção à saúde regionalizada.
Considerações finais
As ações e os serviços de saúde foram assumidos, neste estudo, como categoria de análise para a avaliação do custo de transação na regionalização da saúde. A importância do (re) conhecimento deste custo, no sentido de que se concretize a melhor performance possível no que concerne à gestão das funções de interesse comum nas regiões de abrangência, traz à tona, entre outros fatores, a necessidade da instituição de integração vertical ou horizontal, ou mesmo da consonância de ambas, da rearticulação de acordos de cooperação entre os entes federados e do estabelecimento de coordenação da ação coletiva. Até porque, em relação à divisão dos benefícios produzidos, a simetria de informações e de condições de negociação, a representação dos interesses dos cidadãos, a implementação dos acordos e, por decorrência, a ausência de custos de transação pressupõe circunstâncias teóricas de difícil ocorrência individual ou simultaneamente.
A regionalização na saúde requer a conformação de complexos arranjos no âmbito das relações intergovernamentais e intrarregionais e, diante dessa afirmativa, é imperativa a institucionalização de estruturas de governança robustas com incentivos adequados que atendam tanto a autonomia e a cooperação e/ou competição como a gestão na perspectiva da consecução de objetivos de interesse comum.
O estudo não teve a pretensão de qualificar todas as fontes dos custos de transação que incorrem no processo de regionalização na saúde, mas de indicar os principais fatores que influenciam na incidência deles. De maneira geral, a ampla construção institucional implementada, durante as últimas duas décadas, dificulta a definição de modelos de governança sólidos que reduzam as assimetrias de informações, as incertezas e as práticas oportunistas de determinados entes federados.
A pactuação e a conformação de ações ou serviços de saúde regionalizados, conforme posto pelo modelo federativo apresenta alguns efeitos positivos que melhoram a eficiência na prestação de serviços e a redução dos custos operacionais, através da oferta especializada de ações e serviços de saúde entre os diferentes agentes pactuantes. Esses efeitos podem ser bastante abrangentes, com destaque para a qualificação da oferta, na busca constante por inovações e desempenho de gestão, bem como na conciliação de interesses coletivos regionais.
Contudo, esse mesmo modelo pode apresentar efeitos negativos, em especial devido à falta de instrumentos para o estabelecimento de pactuações intergovernamentais. Neste sentido, a constituição de um modelo de governança que apresente segurança jurídica e institucional adequada pode melhorar a eficiência no processo de regionalização da saúde e, consequentemente, reduzir consideravelmente os custos de transação.
Ainda como efeito negativo, também merece destaque as disputas políticas, partidárias e fiscais. Sendo que esses efeitos são de difíceis soluções, já que envolvem interesses das mais diversas ordens. As disputas fiscais, entendidas também como os mecanismos de financiamento das ações e serviços de saúde, podem ser reduzidas por meio de modelos de governança que melhorem a eficiência alocativa.
Em suma, a construção de um ambiente institucional que proporcione maior segurança para ações cooperativas entre os agentes é essencial para melhorar a rede de prestação de serviços de saúde, em especial para garantir certa estabilidade na definição de fontes do financiamento, com responsabilidades financeiras e econômicas para cada ente federado.
Agradecimentos
Os autores agradecem o apoio financeiro da Fundação de Amparo à Pesquisa do Rio de Janeiro (FAPERJ) e ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
Referências
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
Abr 2017
Histórico
-
Recebido
17 Maio 2016 -
Revisado
04 Ago 2016 -
Aceito
29 Set 2016