Open-access O movimento da Saúde Bucal Coletiva no Brasil

Resumo

A Saúde Bucal Coletiva (SBC) pode designar um fenômeno histórico especifico, distinto das outras “Odontologias Alternativas” e um referencial teórico para as práticas odontológicas em serviços de saúde. Este estudo buscou compreender a permanência das “Odontologias Alternativas” no espaço social de luta pela saúde bucal no Brasil, a partir de posições dos agentes fundadores e precursores, levando em consideração as concepções de SBC, Saúde Coletiva (SC) e SUS. Partiu-se da teoria das práticas de Pierre Bourdieu, complementada pelos conceitos de hegemonia e contra-hegemonia em Gramsci. Realizaram-se 12 entrevistas em profundidade, revisão documental e análise da produção científica, além das trajetórias dos agentes e seus capitais em 1980 e 2013. Os resultados indicam que a concepção de SBC e SC como ruptura com as práticas de saúde oriundas às “Odontologias Alternativas” prevaleceu entre aqueles com disposições políticas em defesa da democracia e da Reforma Sanitária. Embora a SBC tenha proposta crítica, permanecem antigas “Odontologias” na produção científica e nas práticas de saúde bucal.

Saúde bucal coletiva; Sociologia da saúde; Saúde bucal

Abstract

Group Oral Health (GOH) is a specific phenomenon in time, separate from other “Alternative Odontology”, and a theoretical reference for dental practice in healthcare services. This study is an attempt to understand how long “Alternative Odontology” will remain with the social context of struggling for oral health in Brazil, based on the positions of the founding agents and their precursors, bearing in mind the concepts of GOH, GH (Group Health) and the SUS (Unified Healthcare System). We started out with Pierre Bourdieu’s Practice Theory, complemented with Gramsci’s concept of hegemony and counter-hegemony. We completed 12 in-depth interviews, reviewed the literature and analyzed the scientific output. We also looked at the trajectories of the agents and their capital between 1980 and 2013. The results show that the concept of GOC and GH as a breach with health practices, which gave rise to “Alternative Odontology”, prevailed among those with the political will to defend democracy and Healthcare Reforms. Although GOC is a critical proposal, the older “Odontology” remains in scientific journals, and in the practice of oral care.

Group oral health; The sociology of health; Oral health

Introdução

A expressão Saúde Bucal Coletiva (SBC) surge no final dos anos 1980 no Brasil e tem sido utilizada para designar um fenômeno histórico específico e distinto das “Odontologias alternativas”, tais como Odontologia Sanitária, Odontologia Preventiva e Social (OPS), Odontologia Simplificada, entre outras1,2, como uma denominação nova para esses mesmos movimentos3 e como referencial para as práticas em curso nos serviços públicos odontológicos4. Distingue-se das demais “Odontologias” ao propor tratar a saúde bucal na perspectiva dos determinantes sociais da saúde.

Embora se proponha a um fenômeno social distinto, estudo de revisão revelou que a maioria dos estudos que mencionam a SBC, na verdade, se aproximavam mais da OPS5 que dentre as “Odontologias” mencionadas, ganhou maior expressão no Brasil, no âmbito público e privado, no campo científico e nas políticas públicas, especialmente pela atuação da Associação Brasileira de Odontologia de Promoção da Saúde (ABOPREV).

Tais achados são reiterados no trabalho de Celeste e Warmeling6, o qual verificou o aumento das publicações da SBC em revistas odontológicas, embora se assemelhando à OPS. Também a análise do perfil das pesquisas de saúde bucal em um congresso odontológico, por meio dos resumos publicados nos anais da 27ª SBPqO, em 2010, observou que a OPS se encontra entre as áreas de pesquisas mais frequentes7. Ademais, estudos de revisão evidenciam que há permanência das antigas “Odontologias” que aparecem sob a nomenclatura de SBC5,6,8.

Nesse sentido, visando discutir essa problemática, o presente artigo analisou as concepções sobre SBC, Saúde Coletiva (SC) e SUS a partir dos agentes fundadores e precursores da SBC do polo dominante do subespaço científico da SBC na atualidade, bem como a análise da produção científica da referida área, buscando compreender a permanência de antigas “Odontologias” no espaço social de luta pela saúde bucal no Brasil.

Metodologia

O artigo apresenta um recorte da tese de doutorado que analisou a constituição da SBC no Brasil. Analisou-se o espaço da SBC nos últimos 24 anos (1990-2014), buscando observar a permanência das antigas correntes odontológicas no espaço social de luta pela saúde bucal. Tomou-se como referência a teoria das práticas de Pierre Bourdieu9 e seus conceitos fundamentais, complementados pelos conceitos de hegemonia e contra-hegemonia de Gramsci10.

O espaço de luta da Saúde Bucal foi analisado como uma rede de relações entre agentes com inserção e trajetórias que atravessam diferentes campos sociais. Assim, considerou-se o campo científico como um espaço social onde o que está em disputa é a autoridade científica, que corresponde à “capacidade técnica ou poder social que se expressa na capacidade de falar, de agir legitimamente, de maneira autorizada e com autoridade, socialmente outorgada”11, que por sua vez possui relações de força e monopólios, lutas para conservar ou transformar essas relações de força, estratégias, interesses e lucros9,11. O campo burocrático, como espaço de formulação e implementação das políticas públicas, corresponde à política de saúde bucal (PSB). Esse subespaço é representado pelo Estado, que detém o uso legítimo da violência física e simbólica em determinado território e determinada população9. O Estado é o lugar do acúmulo de diversos tipos de capital como o da força física, capital econômico, capital cultural, capital simbólico, constituindo um metacapital que permite sua intervenção sobre diferentes subespaços12. Já o subespaço político representa um microcosmo de relações relativamente autônomo, onde existe uma minoria que participa do campo (políticos profissionais) e uma massa de “profanos” que não encontra legitimidade social para a ação política e tende a interiorizar e naturalizar sua própria impotência13.

Três tipos de capitais específicos foram considerados: o capital científico objetivado a partir da análise da produção científica , pesquisa e prestígio, nas escolhas dos problemas (científicos e políticos), nos métodos (estratégias científicas) acumulado por meio das ações pertinentes ao campo científico11; b) capital burocrático objetivado a partir dos cargos ocupados na estrutura de direção das instituições de saúde ou na hierarquia universitária9,11; e, c) capital político acumulado e expresso no poder de mobilização pela militância com o objetivo de ocupar cargos em instituições de saúde, associações, participação no Movimento Brasileiro de Renovação Odontológica (MBRO), partidos políticos ou Centro Brasileiro de Estudos em Saúde (CEBES)13,14 (Tabela 1 e 2).

Tabela 1
Distribuição dos capitais específicos dos entrevistados no espaço de luta da saúde bucal nos anos 1980.

Tabela 2
Distribuição dos capitais específicos dos entrevistados que permaneceram no espaço da SBC nos anos 2013.

Os referidos capitais foram mensurados a partir da análise do Currículo Lattes dos agentes selecionados, que por sua vez, forneceram informações para a análise da trajetória social, profissional e política dos entrevistados, bem como para as posições ocupadas pelos agentes no espaço social em análise e aferição do volume de capital.

Foram entrevistados doze cirurgiões dentistas (CD), agentes que ocupam posição dominante na produção cientifica das PSB na atualidade, e que foram fundamentais nas origens da SBC no Brasil; e aqueles que ocupavam posições dominantes no espaço de luta da Saúde Bucal nos anos 1980. Posteriormente foi observada a posição daqueles que permaneceram nesse espaço em 2013. Os mesmos agentes foram indagados sobre concepções de SBC, SC e SUS e questionados acerca dos principais problemas da área da SBC nos dias atuais. O cotejamento das evidências permitiu analisar a correspondência entre as posições, disposições e tomadas de posições dos agentes investigados.

Também foram considerados os conceitos de habitus, como disposições inconscientes dos agentes, seus esquemas de percepção, produzidos pela história coletiva e modificados pela história individual de cada um15. Para o habitus analisou-se a trajetória considerando a participação nos espaços de militância, partidos políticos, diretório acadêmico e MBRO, bem como a profissão dos pais e avós. Também se considerou a illusio entendida como reconhecimento de que o jogo social merece ser jogado9,15 no espaço de luta em estudo.

Todos os entrevistados assinaram termo de consentimento informado, disponibilizando a publicação das informações concedidas e suas identificações. O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em pesquisa do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia. Os dados foram analisados tomando-se a concepção de SBC nas origens do espaço social, que pode evidenciar uma possível “amnésia da gênese”9, ou seja, um processo de esquecimento das origens, o que significou, neste caso, o fechamento do espaço dos possíveis na construção da contra-hegemonia10,16 desejada ao interior desse espaço de luta, na perspectiva de Gramsci.

Resultados e Discussão

Precursores e Fundadores da Saúde Bucal Coletiva: contribuições e espaço de luta

A SBC emergiu do núcleo de dentistas que fizeram parte das discussões sobre a implantação das práticas e PSB no Instituto de Saúde de São Paulo. Entre eles, Paulo Capel Narvai, Marco Manfredini, Paulo Frazão e Carlos Botazzo. A principal contribuição desse quarteto foi a sistematização de uma concepção de SBC, em 1988, que se fundamentava nas experiências das “Odontologias Alternativas” como orientação das práticas odontológicas nos serviços municipais de saúde bucal, na implantação do SUS, especialmente a Odontologia Simplificada e sua versão crítica, a Odontologia Integral. No caso particular de Paulo Capel Narvai, o esforço de síntese na sua dissertação de mestrado inaugurou para o subespaço científico essa proposta teórica que fora sistematizada, anteriormente, pelos quatro agentes no texto “Saúde Bucal Coletiva”, com pouca divulgação no período. Além disso, os avanços na implantação da saúde bucal no serviço público de saúde, pela atuação de certos agentes, na gestão municipal da saúde bucal em São Paulo, Santos, Porto Alegre e Curitiba, notadamente Marco Manfredini, Fernando Molinos Pires, Djalmo Sanzi Souza e Sylvio Gervaed, foram fundamentais para a elaboração da concepção de SBC, defendida por esse grupo (Figura 1).

Figura 1
Editorial da Revista do CEBES, Saúde em Debate, número 18, março a abril de 1986 que versa sobre a Saúde Bucal Coletiva.

Dos precursores, Volnei Garrafa e Jórge Córdon foram responsáveis pela introdução dos jovens dentistas no subespaço político do espaço de luta pela saúde bucal, pela RSB e o SUS. Suas articulações, com o processo de democratização e as lutas pela democracia, foram elementos de mobilização e aglutinação que resultaram na participação da organização do MBRO, na fundação e desenvolvimento do CEBES e na organização da 1ª Conferência Nacional de Saúde Bucal (CNSB).

Nos anos 1980, Vitor Gomes Pinto publica a primeira obra com o título “Saúde Bucal Coletiva”. Todavia a mesma foi mantida sob as mesmas bases teóricas e epistemológicas da anterior, intitulada “Odontologia Preventiva e Social”, cujo nome havia mudado por solicitação da editora, que afirmara, à época, que a especialidade havia mudado de nome, segundo afirmação do autor em entrevista. Nesse caso, não constituiu uma obra que demarcasse algum tipo de ruptura e contribuísse para a consolidação da SBC.

No subespaço político, o principal contribuinte foi Swedenberger Barbosa, o Berger, cuja atuação nos sindicatos e, principalmente, na Federação Interestadual dos Odontologistas (FIO), influenciou várias ações no subespaço burocrático, no período da emergência do SUS.

Ademais, no processo de formação de dentista nesse subespaço com visão crítica e política sobre a realidade brasileira, quase todos os entrevistados tiveram algum grau de participação.

Cabe registrar que coube ao grupo paulista as principais contribuições para o nascedouro do subespaço científico da SBC. Esses agentes, quase todos findam o doutorado na década de 1990, e os objetos das suas teses contribuíram para o desenvolvimento desse subespaço.

Posição, disposição e tomadas de posição: SBC, SC e SUS

Entre os agentes analisados, fundadores e precursores, aqueles que ocuparam posições no campo burocrático e atuaram no processo de implementação da atenção à saúde bucal no serviço público odontológico e no SUS e que apresentaram disposições políticas, isto é, militância no MBRO, participação nos Encontros Nacionais de Administradores e Técnicos dos Serviços Odontológicos (ENATESPO) e militância em partidos políticos, possuem pontos de vista muito próximos, com algumas variações. Entre eles, predominou a visão de SBC como um movimento de ruptura com as práticas odontológicas desenvolvidas nos anos 1980. Seja a prática de mercado hegemônica, sejam aquelas oriundas da OPS, da Odontologia Simplificada e até da Odontologia Integral. A questão central que permite a proximidade entre esse grupo, autodenominado bucaleiros, era o compromisso com a sociedade, com seus direitos sociais, com o sistema de saúde universal, igualitário, o compromisso com a ruptura do instituído e a construção de uma práxis política compatível com a transformação da sociedade em geral.

SBC foi uma reflexão teórica que ela se processou aí nos anos 1980 e que ela parte de uma crítica de que todas as correntes anteriores [...] havia certo entendimento de que as práticas de OPS, Odontologia Simplificada, Odontologia Integral [...] surgiu essa possibilidade de você pensar no referencial para organização das práticas odontológicas. (E 10).

Como ruptura consiste em conteúdo crítico para as práticas em questão, seus fundamentos se originaram nas ideias da SC e na RSB e das experiências práticas em curso na década de 1980. Acrescenta-se a questão da práxis política para a defesa e compreensão da sociedade.

[...] Deveria ser um conceito politizado se você exercer a saúde bucal de forma politizada, você envolver a causalidade das doenças bucais e a forma de atenção aos problemas que ocorrem a partir da causalidade de uma maneira ampliada, universalizada e includente e não excludente. [...] para mim é obrigatoriamente ter que passar por um conceito de politização da práxis odontológica, não meramente atender coletividade, atender coletividade com um compromisso realmente transformador (E 5).

Outra visão corresponde à negação dialética do campo odontológico, já que não põe em questão o campo de origem, cujos conteúdos são odontológicos, mas mantém a SBC restrita aos “iniciados” (graduados em Odontologia).

SBC não é Odontologia, [...] Odontologia não é saúde bucal, e não queremos propriamente uma ruptura de base epistemológica com a Odontologia, por que ela, de algum modo, continua sendo um leito natural de onde viemos, nós somos todos graduados em Odontologia. [...] A SBC para mim é mais um movimento, mais um dos movimentos em que nós nos jogamos na construção social, nos relacionando com o instituído, mas também sendo instituinte de novas, de novas relações, novas formas de inserção, de inclusão, de interpretação, de compreensão da sociedade (E 11).

Aqueles que participaram da construção das PSB em algum momento histórico, mas que não estiveram nos movimentos políticos do espaço social, entendem a SBC como sinônimo de Saúde Pública (SP) ou como aquela que é responsável por alcançar os mais altos níveis de saúde bucal possíveis.

Eu tenho até dificuldade de definir o que é SC, entendeu? Por que [...] o que é SC, eu me dediquei a fazer coisas. É, eu falo, eu gosto do conceito de SP (E 8).

O objetivo primordial do trabalho de um cirurgião-dentista consiste em proporcionar uma boa saúde bucal aos seus pacientes. Para a odontologia como um todo, isto corresponde ao alcance de níveis ou padrões adequados de saúde bucal para o conjunto da população de um país, de uma região ou de uma localidade (E2).

Há, ainda, um ponto de vista que aponta a SBC como uma ampliação da OPS e como aquela que trata da coletividade em todos os setores da vida humana, seja público ou privado. Essas visões correspondem a agentes que militaram na Aboprev, sob as influências da OPS e as ideias oriundas dos países escandinavos.

Eu não sou entusiasta do termo SBC. Eu acho que saúde bucal é a qualquer nível, seja ela promovida numa consultoria, seja ela promovida num grupo, seja ela promovida em nível de população, ela tem que ser saúde bucal, o melhor possível [...]. Aqui no Brasil tem essa visão de que a SP é a SC, e a saúde individual é outra. Não na Escandinávia, que é tudo SP. O Programa Nacional de SP controla a atividade até dos consultores; em função de ter saúde, eles contribuem também na saúde das pessoas. Na minha visão, não existe essa dicotomia de várias saúdes. Existe saúde; como é que nós vamos fazer com que ela chegue ao maior número de pessoas dentro de uma comunidade de um país é um desafio, mas tudo deveria ser, no meu modo de ver, coletivo, tudo deveria ser público, mesmo os consultórios particulares deveriam fazer parte do programa de SP (E 3).

Os agentes que se envolveram nos processos políticos de luta pela democracia na RSB pensavam, guardadas suas particularidades, a SBC como um conteúdo crítico, de ruptura com o instituído, com as práticas odontológicas tradicionais que envolviam tanto a odontologia privada, como a OPS e a odontologia integral. Expressa, basicamente, o pensamento acerca da sociedade e suas relações com o econômico, o político e o social. Por outro lado, os agentes que não se envolveram nesses processos de luta, pensavam como continuidade com a SP tradicional, no caso odontológico, como uma disciplina de SP, aproximando-se da Odontologia Sanitária da década de 1950.

Aqueles que explicitaram concepções relativas à SP tradicional, por sua vez, apresentaram grande acumulação de capital burocrático, tendo exercido altos cargos de direção relativa à saúde bucal no nível nacional e internacional, com trajetória no campo científico relacionada à Odontologia Sanitária. Nenhum destes participou do MBRO ou do Cebes, exibindo diferentes tomadas de posição quando relacionados àqueles que compreendem a SBC como ruptura.

Entre os agentes que consideraram a SBC como ruptura, há diferentes acumulações de capital burocrático e científico. Muitos exerciam cargos de gestão no nível municipal ou estadual e outros ocupavam diferentes posições no campo científico. Aqueles que definiram a SBC como saúde das coletividades eram membros ligados à Aboprev com pertencimento dominante ao campo científico. A Tabela 1 sistematiza a distribuição desigual dos diferentes capitais entre os entrevistados e suas tomadas de posição em torno dos sentidos da SBC.

Quanto à concepção de SC, esta resguarda as mesmas relações entre posições, disposições e tomadas de posições entre os entrevistados. Para aqueles que participaram das lutas políticas, predomina a visão da SC como um conteúdo crítico à SP tradicional, articulado ao movimento de RSB e à luta pela democracia.

SC, ela passa a ter este conteúdo conceitual crítico que a diferencia de SP. E daí por que ela não pode ser apenas uma roupagem, uma espécie de etiqueta, de rótulo que você coloque nas antigas práticas sanitárias. [...] pensar segmentos da sociedade, sobretudo carentes, pobres, população de baixa renda, gente excluída e tal para pensar comunidade, não! Nós tínhamos uma concepção universal, nós tínhamos uma concepção de sociedade e nós estávamos revolucionando por meio das plataformas dos movimentos sociais na saúde da própria RSB. (E 7)

A SC é um movimento teórico e político no âmbito da SP brasileira [...] Qual o projeto da SC brasileira? [...] lá se propõe a lutar pela construção de um sistema de saúde de acesso universal, a saúde como direito de todos (...) (E 6).

A SC como sinônimo de SP é reconhecida entre aqueles entrevistados que participaram de processos de governo, atuando nas políticas de saúde, mas que se mantiveram longe dos movimentos sociais, tendo formação na SP tradicional e Odontologia Sanitária.

SC é um sinônimo moderno de SP, o oposto da saúde considerada do ponto de vista individual (E 2).

Para os membros ligados à Aboprev, a SC representa a saúde das coletividades em todos os subsetores da produção econômica, seja público ou privado. Alguns membros não souberam defini-la.

SC é a saúde de todos. SC para mim deveria ser pleonasmo, deveria ser de todos. SC é obvio que é de todo mundo, mas criam-se rivalidades: - ah eu sou da SC, não sou da saúde de consultório, não sou disso, não sou daquilo, ah eu sou dentista privado, não sou da SC, essas compartimentalizações como eu falei antes são ruins (E 3).

Como no caso da SBC, a visão de SC como movimento crítico da saúde, de ruptura com a SP tradicional é especialmente compartilhada entre os agentes que tiveram aproximação dos problemas de implementação de políticas no serviço público, egressos dos movimentos sociais em odontologia e que possuem disposição política. Já a visão de SC como SP é comum entre os agentes cuja trajetória envolve ocupação de cargos em Ministério da Saúde e Organismos Internacionais e, por sua vez, que também não apresentaram envolvimento com a luta política das diversas ordens. Os integrantes da Aboprev, ou não conseguiram conceituar a SC, ou a entendiam como distinção entre saúde do “coletivo” que não pode pagar e os que podem pagar.

A maioria dos entrevistados compreende o SUS como projeto de transformação da sociedade e produto de lutas e embates em prol da democratização da sociedade. A visão sobre o SUS como sistema único universal, que expressa direitos sociais, é compartilhado inclusive pelos agentes que não se envolveram na luta política específica da saúde bucal e mesmo em prol da democratização, ainda que o reconheça como um sistema a se consolidar. Apenas em um dos casos o sistema é comparado ao sistema público da Escandinávia.

Observam-se congruências entre os pontos de vista apresentados pelos distintos agentes em interação nesse espaço social e suas posições e disposições. Cabe registrar que, mesmo entre aqueles que não fizeram parte da luta política pela inserção da saúde bucal no SUS, há concordância, ao menos, na visão sobre o SUS como sistema universal e maior sistema público do mundo.

Saúde Bucal Coletiva na Atualidade

A permanência das antigas “Odontologias” é notada, de início, quando observado que o plano internacional não favorece a pesquisa em SBC no Brasil17, já que a análise das áreas de fomento da Federação Dentária Internacional (FDI), não contempla os objetos da SBC.

Mas mesmo essa expressão também é muito brasileira sabe, e a gente conhece, claro, OPS, movimento da Medicina Preventiva americana, da Odontologia Preventiva americana, e o social veio por empréstimo aqui na América Latina. Mesmo Odontologia em Saúde Coletiva é mal-entendida (E 11).

Esse cenário se repete no Brasil, observando a publicação “Saúde Bucal Coletiva: Metodologia de Trabalho e Práticas”18, coletânea que reúne trabalhos de professores e profissionais de saúde bucal e que apresenta pontos positivos acerca da consolidação de um subespaço científico da SBC, porém também ilustra traços de permanência das odontologias anteriores19.

Ressalta-se, entretanto, o esforço de construção de uma teoria social para a saúde bucal, iniciado por Carlos Botazzo, um dos fundadores da SBC, introduzindo o tema da “bucalidade”20. Não há concordância, entretanto, de que essa proposta consistiria na SBC. Alguns autores referem que seria algo distinto da SBC21-23, apontando certa crise de identidade para esta na atualidade.

Observa-se que a controvérsia apresentada na produção científica da SBC tem se refletido nas práticas de saúde bucal realizadas nos serviços de saúde. Para seus agentes, a SBC permanece subalternizada pelas práticas odontológicas tradicionais no âmbito privado e nos serviços públicos, reforçando assim, por sua vez, as práticas odontológicas tradicionais.

A SBC surge como a SC, disputando os rumos das políticas públicas de saúde bucal em todos os níveis de governos: federal, estaduais, municipais. [...]. Elas são políticas capturadas pela Odontologia de Mercado. [...] disputa os rumos das políticas públicas. A Odontologia de Mercado é hegemônica na política da saúde brasileira. O que é hegemônico na política nacional de saúde bucal não são as propostas da SBC, pelo contrário, elas são contra-hegemônicas. Elas vivem disputando e perdendo (E 6).

[...] a raiz odontológica, as pessoas no limite chegam mesmo à Odontologia comunitária e preventiva, talvez porque as pessoas gostem assim de prevenir cárie, doença periodontal. As pessoas pensam em educar para a saúde, as pessoas pensam em fazer programas comunitários para crianças, agora entrar naquilo que é o campo mais vasto, mais denso, mais conflituoso teoricamente e praticamente, eu estou falando de teoria da ação prática (E 11).

A análise das práticas de SBC revela a manutenção das contradições do campo odontológico, isto é, avanços tecnológicos com práticas eminentemente restauradoras, dificuldades de rompimento com a clínica tradicional e de incorporação da equipe de saúde bucal na estratégia de saúde da família (ESB/ESF)24. O fato dessa concepção de SBC não se encontrar consolidada no Brasil, nem tampouco no âmbito internacional, confere o desafio de ampliação da comunidade científica da SBC.

SBC talvez seja um conceito compartilhado por poucos. Ela não é uma comunidade epistêmica que pensa a SBC. [...] Fora do Brasil não dá para falar disso entendeu? Se eu uso às vezes no texto em língua inglesa que eu pretendo publicar no exterior os revisores imediatamente ou ficam na perplexidade, na incógnita, pensam que eu errei a tradução de algum conceito. Pedem para eu substituir por Dental Public Health, Oral Health, [...] (E 11).

Nesse caso, o conhecimento dessa concepção por uma parcela restrita de dentistas constitui-se em um dos principais problemas para a manutenção do espaço social, tal como nas origens. Outras pessoas “reproduzem” o termo, filiam-se a ele, mas de fato não reconhecem as distinções entre ele e as “velhas odontologias”. Permanecem velhos habitus que permitem a reprodução da OPS no Brasil. O desconhecimento da construção teórico-política da SBC faz com que esta seja identificada, de certa forma, com a velha OPS, mas com nova denominação.

Embora a produção teórica sobre SBC seja reconhecida, ainda não é subcampo nem da SC e nem da Odontologia. A mais recente reforma educacional, viabilizada pelas Novas Diretrizes Curriculares – Pró-saúde –, que promoveu incentivos na mudança dos vários currículos de cursos de odontologia, propiciou a inserção da SBC em pequena parte deles. Em alguns casos, “Odontologia em Saúde Coletiva” ou “Saúde Coletiva”, explicitando os diferentes pontos de vista dos grupos de pesquisadores da área.

Essa problemática foi investigada por Rodrigues et al.25, envolvendo a análise dos currículos de 123 cursos de Odontologia que tinham formado pelo menos uma turma até 2003. Os autores concluem na investigação que a nomenclatura mais recorrente para designar a área de SC é OPS.

Desse modo, constata-se que as preocupações com as mudanças das práticas odontológicas não ficaram no passado. É uma questão que continua em jogo. Corresponde à luta cotidiana inerentes às práticas de saúde bucal no serviço público odontológico, já que a SBC tem o compromisso com os serviços públicos de saúde, com a justiça social e com a manutenção do direito à saúde.

E o que se faz nessa área, ela é hegemonizada pelo consultório particular. As operadoras de planos de saúde tão aí com uma expansão notável. [...] Nos últimos dez anos, entre 98 e 2008, a expansão foi de mais de 400% da população coberta pelos planos privados odontológicos. Esses são os interesses que predominam. Quais são as dificuldades da SBC se reproduzir como movimento, como campo de produção de conhecimento, e campo de práticas sociais, se fortalecer pra, enfim, para fazer esse enfrentamento? (E 6)

Observa-se o compromisso de alguns fundadores com a solidificação do subespaço científico, para a conformação de um “campo” da SBC. Essa premissa encontra-se coerente com os objetivos profissionais desses fundadores, que por sua vez ilustra a illusio no interior desse espaço.

[...] meu objetivo seria mexer com a prática [...] então é mexer a carga conceitual que tá colocada, e ver o quanto que você pode estar transformando isso na prática (E 4).

Ademais, alguns fundadores permanecem tematizando a SBC, tais como Carlos Botazzo, Paulo Capel e Paulo Frazão21,26,27, tendo a publicação “Diálogos sobre a boca”, em 2013, um esforço de recuperação conceitual e da trajetória da SBC28, bem como o texto intitulado “Saúde Bucal Coletiva: antecedentes e estado da arte” em livro de SC, no qual aparecem novos agentes abordando a SBC27.

Outros movimentos vêm ocorrendo no subespaço científico nas décadas que sucederam a emergência da SBC, na direção de construção de um arcabouço teórico e metodológico para a prática da SBC. Várias obras têm sido publicadas com essa intenção. Em 2008, Samuel Moysés, Leo Kriger e Simone Moysés publicam coletânea que mescla discussões teóricas e experiências práticas29. Recentemente, Samuel Moysés, em parceria com Paulo Goes, lançou a obra denominada: “Planejamento, Gestão e Avaliação em Saúde Bucal” com a participação de vários agentes citados ao longo desse trabalho, incluindo alguns dos fundadores30. O termo utilizado mais recorrentemente como título das obras é SC31.

A resposta a essa problemática talvez esteja no fato de que, embora a SBC se filie aos pressupostos da SC, seu processo de reprodução se aproxima cada vez mais da “odontologia” e de suas práticas sociais, notadamente aquelas orientadas pela OPS e pela Odontologia Sanitária. Sendo assim, um dos principais desafios para a SBC, na atualidade, seria articular seus subespaços burocrático e político, de modo que o desenvolvimento teórico dê subsídio para a prática odontológica nos serviços de saúde.

Dentre os agentes estudados, alguns permaneceram no espaço desde sua fundação, mas ocupando posições distintas. Esses profissionais, que figuravam nos anos de 1980 como dominados no espaço, hoje assumem posições dominantes, encabeçando discussões sobre o tema no subespaço científico, assim como alguns deles vêm integrando o burocrático através de comissões de assessoramento da política nacional ou no planejamento e realização dos inquéritos epidemiológicos brasileiros (Figura 2). Todos os agentes que permaneceram no espaço tomaram posição, em relação à SBC, de ruptura com as práticas odontológicas então vigentes, tendo como campo de domínio o científico (Tabela 2).

Figura 2
Arquitetura do Espaço de Luta da Saúde Bucal no Brasil nos anos 1980 e a posição dos agentes fundadores em 2010.

A recuperação da sua face política também deve compreender a pauta dos agentes desse espaço social. A formação de dentistas comprometidos com a SC e com a mudança das práticas odontológicas tem sido preocupação de alguns fundadores. A ampliação na quantidade de dentistas com formação crítica e comprometidos com a prática de saúde bucal, “não odontológica”, pode ser um caminho para assegurar novos movimentos contra-hegemônicos.

Cabe, então, recuperar e reatualizar a crítica das origens da SBC como um resgate da amnésia da gênese e da matriz política que se perdeu ao longo do tempo histórico, no período pós-constituinte, particularmente pela implementação das PSB no processo da RSB. Ademais, a configuração atual do espaço odontológico e as relações políticas, econômicas e sociais, que se refletem na hegemonia das práticas e na permanência da odontologia de mercado, encontram-se entre os principais problemas da área hoje, cujo reforço às “Odontologias Alternativas” das décadas anteriores preserva a autonomia do campo odontológico.

[...] A Odontologia de Mercado mudou no país [...] quando a gente fazia faculdade, quando começou a discutir essa questão da prática odontológica privada, ela era uma prática de dentistas ou de grupos de dentistas que faziam a sua prática pelo desembolso direto [...] O crescimento desse setor de planos e seguros odontológicos introduziu uma nova forma de relação de capital [...] (E 10).

Essa hegemonia acaba sendo reforçada pela Política Nacional de Saúde Bucal (PNSB), ou seja, pelo subespaço burocrático, hoje liderado por egressos da “Odontologia em Saúde Coletiva”, movimento ideológico prévio que originou a SBC.

Educar, limpar [...] tá tudo preservado, tudo colocado, embora a PNSB não conduza obrigatoriamente a esse caminho, mas a tradição está colocada aí. [...] o resto da odontologia privada fica preservada. Então, [...] distribuição de kit de Higiene Bucal [...] a Colgate está muito bem obrigado (E 4).

Assim como a SC, a SBC corresponde a um caso sui generis, que nasce influenciado pelas ideias e pelos agentes da SC. A articulação entre dois espaços sociais mantém as antigas redes de relações estabelecidas naquele período, que vieram se estreitando e ampliando ao longo do tempo e que podem ser observadas nos processos de orientações de teses. Nestes, os agentes da SC orientam os trabalhos dos da SBC, envolvendo odontólogos nos programas de pós-graduação em SC, na organização e participação dos congressos da Abrasco, o que culminou com a criação, em 2007, do GT de Saúde Bucal da Abrasco.

Considerações Finais

A SBC, como fenômeno sócio-histórico, representou um espaço social que emergiu da constituição de uma rede de relações entre agentes da SBC oriundos do movimento da RSB, SC e OPS mais sensíveis às práticas comunitárias. As correntes odontológicas em curso nas décadas de 1970 e 1980 eram incapazes de mudar a prática odontológica e a situação de saúde bucal no Brasil.

Pode-se dizer que esse espaço nasceu como crítica às práticas vinculadas à odontologia privada de mercado e, também, como crítica às “Odontologias Alternativas”, sendo, portanto, um movimento de politização da odontologia brasileira, evoluindo para uma reflexão crítica envolvendo os modelos de prática odontológica em curso naquele período, especialmente a simplificada e a integral. Corresponde também a um referencial teórico para as políticas e as práticas de saúde bucal no âmbito do SUS, uma vez que se propõe a intervir sobre os determinantes sociais, admitindo-se práticas sociais de naturezas distintas como as técnicas, ideológicas e políticas. Na política e na ciência, ela está na retórica dos discursos, mas ainda não na prática dos serviços de saúde.

Destaca-se que o grupo de dentistas, inicialmente dominados, alcançou o polo dominante no espaço de luta da saúde bucal brasileira na atualidade. Isso deve-se ao fato dos mesmos terem assumido posições importantes nos subespaços burocrático (assumindo cargos ou em comissões de assessoramento) e político, participando da formulação e implementação da PNSB e contribuindo para a constituição do discurso das principais entidades de classe. No subespaço científico, entretanto, continuou precisando adequar-se às normas dos periódicos odontológicos e/ou assumir posição dominada no âmbito dos periódicos da SC, sendo a própria criação de um GT específico de Saúde Bucal na Abrasco questionada por diversos membros da entidade.

Outra leitura possível é que esse grupo de dentistas, em posição dominada no espaço de lutas pela saúde bucal nos anos 1980, rompeu com a OPS na busca de criar um novo espaço, a SBC, onde assumiram posições dominantes. Esse novo espaço, criado tendo como base os referenciais do espaço da SC32, ainda que trouxesse uma crítica à abordagem odontológica, não conseguiu instituir uma efetiva mudança nas práticas. Os processos de trabalho no âmbito assistencial ou da gestão em saúde continuaram restritos ao cirurgião-dentista, nas práticas higienistas oriundas da OPS, ampliando-se, quando muito, às profissões auxiliares em saúde bucal. O fazer e o pensar a saúde bucal continuaram sendo uma tarefa exclusiva do cirurgião-dentista e de seus auxiliares, sem a participação de outras áreas da saúde e de outros setores da sociedade. Não há multidisciplinariedade e a intersetorialidade fica restrita às práticas escolares.

É possível ainda uma reflexão de cunho epistemológico acerca do termo SBC. Considerando a SC como espaço com autonomia ainda em construção32, a proposição de ruptura no âmbito da odontologia adequar-se-ia ao que poderíamos provisoriamente denominar de Saúde Bucal em Saúde Coletiva, ou, até mesmo, e, principalmente, por identificar uma ausência de multidisciplinaridade, Odontologia em Saúde Coletiva.

Ainda que a SBC se constitua como uma vertente crítica, análise do espaço da saúde bucal na atualidade aponta também para a expansão da face privada da odontologia. Nesse particular, observa-se que a SBC ainda não foi capaz de desenvolver a contra-hegemonia necessária para reverter a direção das práticas odontológicas em curso.

A persistência de práticas de odontologia sanitária e preventiva podem estar relacionadas aos desafios revelados pelos seus fundadores, como a ampliação de quadros com constituição de novos sujeitos, formação política e visão crítica, compromisso com práticas além das odontológicas, incorporação de outras profissões de saúde no fazer e pensar a saúde bucal e vice-versa. Assim, A SBC permanece na luta pela hegemonia das práticas, tal como nasceu, disputando os rumos das PSB no Brasil.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jun 2017

Histórico

  • Recebido
    17 Ago 2016
  • Revisado
    04 Nov 2016
  • Aceito
    06 Nov 2016
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