Open-access Mulheres da segurança pública do litoral do Paraná, Brasil: intersecções entre gênero, trabalho, violência(s) e saúde

Resumo

Este artigo busca compreender as relações entre gênero, violências e o processo saúde-doença de mulheres que trabalham na área de segurança pública no litoral do estado do Paraná. A metodologia foi qualitativa, por meio de pesquisa etnográfica com 50 mulheres (policiais civis e militares, e agentes penitenciárias), realizada em três municípios balneários da região entre março de 2014 e março de 2015. A análise dos resultados revelou: 1) dilemas concernentes às sobrecargas de trabalho impostas pela conjuntura local, marcada pela sazonalidade; 2) exposição às violências (principalmente institucional e de gênero) e repercussão na saúde dessas mulheres; 3) relações de poder, assinaladas pelas hierarquias das corporações e assimetrias de gênero entre profissionais homens e mulheres. Esta pesquisa evidenciou: como as profissionais femininas nas instituições de segurança pública sofrem diretamente o impacto das violências e desigualdades de gênero em suas vidas pessoais e profissionais; e as resistências e rearranjos dessas mulheres nas instituições, suas reinvenções em meio a um ambiente de hegemonia tradicionalmente masculina.

Mulheres; Segurança pública; Gênero; Violência

Abstract

This study aimed to promote visibility of women working in public security along the Parana coast, articulating issues of gender, violence(s), and the health-disease process. The methodology was qualitative, through an ethnographic research which included 50 women (civilians, military policewomen, and prison officers) from municipalities along the Parana coast, between March 2014 and March 2015. Results revealed: 1) the dilemmas that these women are subjected to, facing the seasonal dynamics in the field of public security in the region; 2) exposure to violence (mainly institutional and gender-based) and its impact on these women’s health; 3) power relations, marked by corporations’ hierarchies and gender asymmetries between men and women in professional settings. In summary, this research highlighted the need to promote visibility of women working in public security institutions, considering the impact of violence and gender inequalities in their personal and professional lives, including the resistance and rearrangements promoted by these women in the institutions in response to their presence in a hegemonic and traditionally male environment.

Women; Public security; Gender; Violence

Introdução

O tema da segurança pública tem sido pouco abordado no âmbito acadêmico e também na área de saúde coletiva, principalmente no que tange às condições de vida dos e das profissionais dessa categoria, como seres humanos possuidores de subjetividades e não como seres robotizados, produtores da segurança almejada pela sociedade1. Esse coletivo de profissionais constitui-se em um grupo de maior risco a mortes violentas, com elevada vulnerabilidade a determinados tipos de doenças físicas e mentais, observado nas pesquisas realizadas recentemente1-6.

Alguns trabalhos trazem uma discussão sobre os riscos das profissões ligadas ao campo da segurança pública, colocando em pauta a reformulação da amplitude dos conceitos de risco e de segurança, bem como a valorização de policiais dentro e fora da instituição7.

A curiosidade sobre esse panorama foi o ponto de partida deste estudo, que focalizou o olhar nas mulheres profissionais da segurança pública, cada qual com sua especificidade: 1) a polícia militar caracterizada pelo risco diário, na sujeição a preceitos rígidos de disciplina e hierarquia, compartilhando um sentimento de pertencimento e identificação com sua atividade, muitas vezes atrelado ao fardamento; 2) a polícia civil, que não obedece a uma hierarquia rígida, desempenha as funções de polícia judiciária e a apuração das infrações penais; 3) às Agentes Penitenciárias é atribuído o papel de salvaguardar a sociedade civil, contribuindo através do tratamento penal, da vigilância e custódia da pessoa presa no sistema prisional, conforme determinadas pelos instrumentos legais. Fundamenta-se simultaneamente na dupla missão de punir e ressocializar criminosos, utilizando-se de estratégias defensivas em seu cotidiano laboral8,9.

Buscou-se analisar e refletir sobre a realidade de suas atividades laborais, destacando a exposição às violências diárias, na busca da compreensão das particularidades deste grupo de mulheres pouco estudado, as relações que se estabelecem entre elas, e entre elas e os homens.

O surgimento deste estudo nasceu de uma motivação intrínseca da primeira autora, a partir de uma experiência ao longo de seis anos como profissional da segurança pública, previamente ao ingresso na vida acadêmica.

Para compreender os dilemas e os desafios dessas mulheres atuantes na segurança pública, é fundamental o entendimento da categoria de análise gênero. Joan Scott10,11 propõe que gênero é um elemento constitutivo de relações sociais construídas sobre as diferenças percebidas entre os sexos, sendo ele um primeiro modo de dar significado às relações de poder. A autora evidencia o gênero como uma categoria de análise, da mesma forma como quando falamos de classe, raça/etnia, geração e seus significados.

Em contraponto, Christine Delphy12 argumenta que gênero é um elemento social que constrói o sexo, assinalando que não é o gênero que é construído a partir das diferenças biológicas, mas o sexo é socialmente construído por causa da existência do gênero. Desse modo, diferenças entre homens e mulheres são fatos anatômicos que não teriam significado algum, não fossem os arranjos de gênero vigentes, que reconhecem e hierarquizam a diferença entre homens e mulheres. Para essa autora, transformar tal diferença em desigualdade é um ato social.

Joan W. Scott10,11 afirma que se incomoda quando as definições tomam gênero por uma metodologia familiar, ao invés de uma forma de questionamento. Argumenta que gênero é uma questão em aberto. Talvez seja a chave para avançarmos sobre os dilemas e sofisticarmos a compreensão das diferentes formas de opressão e de exclusão, evitando prescrições, problematizando e mantendo a abertura proposta por gênero13,14.

As intersecções entre gênero e violências são também abordadas por diversas autoras15,16, incluindo não somente a física e a sexual, mas também a psicológica, que inclui humilhações, isolamento social e intimidações, assim como a verbal, entre outras modalidades. As diversas manifestações de violência de gênero se configuram em tema bastante complexo, que requer ainda mais o estudo e o diálogo entre as distintas áreas do conhecimento, particularmente das ciências sociais e das ciências da saúde, sendo o campo da saúde coletiva um espaço privilegiado para tal.

A violência está hoje entre as maiores causas de morbidade e mortalidade de muitos países do mundo, incluindo o Brasil17. A partir dos registros do SINAN18 (Sistema de Informação de Agravos de Notificação) e da série de estudos que deu origem aos Mapas da Violência17, o Brasil encontra-se entre os países com maiores índices de homicídios do planeta, sendo um dos que mais assassina mulheres (feminicídio). Portanto, refletir sobre esse problema é fundamental, já que se trata de grande desafio para o campo da saúde coletiva. Roberto da Matta19 propõe que a violência é própria da condição humana, possuindo facetas negativas e positivas e que seus referenciais variam de acordo com a sociedade em questão. Fato é que todo esse panorama implica em agenda para a área de segurança pública, desdobrando-se em questões emergentes para profissionais que atuam na área e que lidam diuturnamente com esse problema.

Por conseguinte, a partir dessas inquietações, este estudo teve como objetivo realizar uma aproximação etnográfica com um grupo de mulheres que trabalham na área de segurança pública. Almejou-se explorar, particularmente, as questões de gênero e de exposições às violências a que são submetidas e sua articulação com o processo saúde-doença, tendo como recorte territorial o litoral paranaense. Acredita-se que a inserção do tema da segurança pública no cenário acadêmico, por meio da visibilidade dessas profissionais e identificação das dificuldades enfrentadas por elas, poderá subsidiar a elaboração de políticas públicas atentas às especificidades de gênero, voltadas a proporcionar-lhes melhores condições de trabalho e de vida.

Metodologia

Este estudo baseou-se em metodologia qualitativa, por meio de aproximação etnográfica segundo Clifford Geertz20, com objetivo de compreender a dinâmica de trabalho de um grupo de 50 mulheres que atuam na área de segurança pública nos municípios balneários do litoral paranaense. São elas: policiais militares, policiais civis e agentes penitenciárias, sendo que delimitou-se apenas as que atuam nos municípios de características balneárias, buscando entender as particularidades desse território e a influência de tal dinâmica em seu processo de trabalho. A etnografia vem sendo adotada em pesquisas na área de saúde20 e segurança pública21, focalizando sua análise na cultura de um grupo, nas redes e padrões de significados que desenham uma cultura, que guiam e dão sentido às ações das pessoas. Vale salientar que elas nunca são mapeadas até o fim, mais que isso, os estudos etnográficos são sempre suposições parciais e incompletas e não explicações completas.

A pesquisa de campo ocorreu entre março/2014 e março/2015, obtida por meio de imersão na vida diária dessas profissionais, incluindo o acompanhamento da rotina laboral (nas instituições e em atendimento às ocorrências), somando-se os registros de campo e as entrevistas semiestruturadas com as interlocutoras. As observações e as vozes que emergiram do campo foram codificadas, categorizadas tematicamente e posteriormente analisadas à luz de estudos teóricos sobre gênero, violência e saúde coletiva. Nas entrevistas em profundidade, foram utilizados roteiros de entrevistas semiestruturadas. Para Liamputtong e Ezzy22, a pesquisa qualitativa baseia-se em orientação interpretativa que focaliza a complexidade do processo de criação e a manutenção do significado de um dado evento, objetivando elucidar e contextualizar a natureza de experiências e ações, gerando análises que são detalhadamente consistentes e integrativas, no sentido de relacionar eventos e interpretações individuais com padrões e sistemas significados ampliados. Optou-se por se definir o número de mulheres por inclusão progressiva, sem demarcar a priori o número de participantes, que foi interrompida pelo critério de saturação nas entrevistas23. A participação no referido estudo foi de forma voluntária e anônima. Para preservar a identidade e o sigilo das informações prestadas, não se especificou ao longo do texto, nem o quantitativo por categoria nem a corporação de origem das entrevistadas.

A pesquisa seguiu todos os preceitos éticos e bioéticos, em conformidade com os princípios contidos na Declaração de Helsinque e na Resolução 466/2012 do CNS – Conselho Nacional de Saúde. Todas as interlocutoras acordaram a participação na pesquisa por meio da assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Os nomes citados ao longo do texto são fictícios, também visando preservar a identidade das profissionais.

Resultados

Caracterização do campo etnográfico

Os municípios de características balneárias do litoral do Paraná são Guaratuba (com população de aproximadamente 34.000 habitantes), Matinhos (32.000) e Pontal do Paraná (23.000)24. São territórios peculiares de contrastes profundos, onde a sazonalidade influencia diretamente o modo de vida dos habitantes locais, uma vez que durante o verão sua população é multiplicada por dez. Argumenta-se que o território é um elo pelo qual o espaço e sociedade se relacionam, constituindo-se em relações espaciais socialmente construídas, tendo sua concepção como parte do espaço apropriado em manifestações de poder, em que os interesses políticos e culturais acabam atuando como fatores constituintes e, ao mesmo tempo, limitantes.

No quesito segurança pública, a dinâmica é bastante flutuante ao longo do ano, com destaque para a temporada de verão, período em que as ações de segurança são reforçadas, devido ao grande número de visitantes e veranistas. Polícias civis e militares, oriundas dos diversos municípios paranaenses se deslocam ao litoral para reforçar a segurança local, totalizando um efetivo de cerca de 3 mil policiais e bombeiros, contabilizados especificamente na temporada de 2014. Nas demais estações do ano, a região fica praticamente abandonada, chegando a ter uma ou duas viaturas com equipes de 3 ou 4 policiais por turno de serviço, em cada município. Ou seja, uma única viatura, para atender 34.000 habitantes, o que corrobora com relatos de aumento do risco e a insegurança por parte das mulheres profissionais da seara de segurança pública. A flutuação sazonal é notória e preocupante para as profissionais, uma vez que com o fim do verão, vão-se além dos reforços na área de segurança, também muitos empregos, persistindo os problemas relacionados à desigualdade social, ao tráfico de drogas e às distintas manifestações de violências25.

Gênero, poder e segurança pública

Diversos estudos de gênero vêm sendo produzidos nos últimos anos, promovendo reflexões sobre as relações que se estabelecem entre homens e mulheres, entre as mulheres e entre os homens10,11. Ser mulher ou ser homem não significa naturalmente nascer fêmea ou macho, mas o rol de assumir papéis socialmente estabelecidos e hierarquizados. São categorias culturalmente construídas e impostas aos seres humanos. No relato a seguir, coletado durante esta pesquisa de campo, observou-se esta influência das desigualdades de gênero na rotina das mulheres da segurança pública:

... O gênero influencia diretamente no trabalho, na relação entre homens e mulheres, porque a mulher tem que provar que é competente, tem que se impor senão acaba na faxina ou no administrativo. Tem colega masculino de serviço que é preconceituoso, não trabalha com mulher, porque tem medo. Agora, se a mulher for gay aí é diferente, é tratada como um deles. Já o homem homossexual é ao contrário, é mal visto, sofre mais preconceito... (Caroline – 35 anos - Policial Militar).

O relato evidencia a valência negativa a tudo que é relacionado ao feminino. Na segurança pública, mulheres heterossexuais e homens homossexuais são menosprezados, enquanto mulheres homossexuais são tratadas de maneira diferenciada, já que são associadas à masculinidade. A hierarquia entre homens e mulheres é trazida ao debate, fazendo face à abordagem funcionalista, que, embora enxergasse as discriminações perpetradas contra as mulheres, situava seus papéis domésticos e públicos no mesmo nível, atribuindo-lhes igual potencial explicativo26.

Dowling27 fala sobre a inferioridade física da mulher, que foi construída discursivamente e aprendida gradualmente no decorrer da história, trazendo como consequência o subdesenvolvimento de sua capacidade física, bem como da força e de seu conhecimento corporal como um todo. No relato de outra interlocutora, evidencia-se esta inferioridade:

“... Existe muita desigualdade entre homens e mulheres na segurança pública, as vagas são limitadas para entrada de mulheres, não acho justo.” “...A carreira da segurança pública é desvantajosa para as mulheres, pois no Brasil, a polícia é violenta e repressiva, exigindo um comportamento agressivo, e neste ponto a mulher está em desvantagem física e emocional...” Quem entra nessa profissão acaba perdendo seu lado frágil, pois a realidade violenta afeta a maneira de ser. ... (Letícia – 27 anos – Policial Civil)

Na área de segurança pública, os princípios norteadores são a hierarquia e a disciplina, ou seja, o poder, com base na obediência às ordens estabelecidas, pois o poder está no fato de que alguns indivíduos podem mais, outros menos. Entretanto, não de uma forma repressiva, usando força física, mas pelos atributos de dominação e subordinação, o denominado poder simbólico, observado na narrativa:

“... As mulheres na segurança pública em cargos de oficialato são a minoria. Uma Coronel teve que entrar na justiça para conseguir sua promoção, que era de direito, um absurdo, muito preconceito...” “...As mulheres, muitas vezes, desempenham melhor as funções de comando, mas acho que não são muito respeitadas.” “...Quando é homem no poder a tropa obedece muito mais...” (Andréia – 30 anos – Policial Militar).

Para Pierre Bourdieu28,29, o poder simbólico é esse poder invisível que só pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que estão sujeitos a esse poder ou mesmo daqueles que o exercem. O autor se concentra nas situações em que esse poder é normalmente ignorado, fato que nos permite intuir que tal poder é plenamente reconhecido pelos agentes envolvidos. Configura-se como um lugar estratégico na sociedade, um tipo particular de relação que influencia e modifica a conduta dos indivíduos, o que contribui para que as relações de poder sejam complexas e produtoras de outros poderes30, como pode ser observado em outra narrativa:

“...O poder é muito marcante em nossa área de trabalho. A cadeia hierárquica é complicada, não podemos pular cadeia de comando, senão é punição na certa, sofremos assédio moral, e as vezes até sexual.” ... “Temos que seguir à risca as ordens, com disciplina, senão somos punidas. Então eu percebo que a sensação de poder vai mudando o ser humano, a sede de poder transforma a pessoa, geralmente parte para coisas negativas...” (Janaína – 28 anos – Policial Militar).

De certo modo, em uma instituição composta majoritariamente por homens, na qual os padrões de virilidade e força física são amplamente difundidos, pensar em mulheres compondo a área de segurança pública era algo improvável e não aceito pela sociedade até pouco tempo atrás. Atualmente, as mulheres entram em cena e se tornam cada vez mais visíveis no cenário da segurança pública, especialmente após o período ditatorial, em que a presença feminina começou a ser utilizada com o intuito de amenizar a imagem da polícia31. Todavia, percebe-se nos discursos alguns aspectos já há bastante problematizados pelos estudos de gênero, tais como a associação entre mulher/feminino e fragilidade.

No decorrer do estudo observou-se que as mulheres representam ainda a minoria nas instituições de segurança pública:

“...As mulheres são minoria, comparadas aos homens. Até pouco tempo atrás nós mulheres éramos proibidas de dirigir viaturas, era muito machismo. Não havia justificativa, apenas era dada a ordem. Por causa da hierarquia tínhamos que obedecer, senão ocorria punição e até assédio moral...” “... Muitas vezes somos tratadas como vagabundas pela tropa e principalmente pelas esposas dos policias masculinos, que por ciúmes, não permitem que femininas trabalhem com eles... (Priscila – 27 anos – Policial Militar).

Para Michael Focault30, não existe algo unitário ou global que chamamos de poder, mas sim, formas díspares, heterogêneas em constante transformação. O poder é uma prática social e, como tal, constituída historicamente, logo, as práticas ou manifestações de poder variam em cada época ou sociedade. Neste estudo observou-se nitidamente o que Joan Scott10,11 propõe em torno da categoria de análise gênero, que é um dos primeiros modos de dar significado às relações de poder. Ou seja, pelo fato de serem mulheres, as profissionais são consideradas inferiores aos homens, e são tolhidas de exercerem determinadas funções, além de sofrerem violências diversas, justificadas por essa lógica implícita que permeia o sistema. Algumas interlocutoras mencionaram sobre a dificuldade em se relacionar com o companheiro de serviço, particularmente, no quanto era difícil conquistar a confiança dele, quando atuam em duplas mistas. No trabalho nas ruas, para atendimento a ocorrências ou no monitoramento de rotina, policiais e guardas costumam atuar em duplas, sendo que um é corresponsável pela segurança do outro. O termo utilizado pelas interlocutoras é ‘prestar cobertura’, quando um/a defende o/a outro/a em situação de confronto ou ameaça. E quando esta dupla é formada por uma mulher e um homem, este se vê na desvantagem física, conforme relatado:

…Tive que ouvir de um companheiro de serviço que ele não trabalhava com mulher. Dizia que iria ficar na mão, que na hora do vamos ver eu “colaria as placas”, que ele não queria morrer, que não confiava em mulher pra trabalhar junto, que somos fracas e não impomos respeito (Fernanda – 35 anos – Policial Militar).

Fato curioso foi perceber as “desigualdades de gênero” entre os próprios colegas de trabalho, em que o preconceito vigora com tamanha intensidade. Nesse sentido é presumível que esta é uma realidade de várias profissões, não somente da segurança pública, mas especialmente daquelas associadas tradicionalmente à hegemonia masculina, como no caso o militarismo, cujas normas hegemônicas, dicotomias e assimetrias de gênero parecem mais rígidas. Por outro lado, mesmo diante de tanto preconceito, algumas interlocutoras relataram que não se sentem diminuídas, ao contrário, sentem-se empoderadas pela profissão que exercem:

“...Me sinto empoderada exercendo esta profissão. Até meu marido me respeita muito mais, acho que somos guerreiras, pois além de tomarmos conta da casa e dos filhos ainda trabalhamos fora, isso não é pra qualquer uma não...” “...Eu ralei pra entrar nessa profissão, eu fiz por merecer, minha autoestima melhorou muito depois que entrei...” (Rebeca- 24 anos – Policial Militar)

A definição de empoderamento se refere à capacidade de os indivíduos e grupos poderem decidir sobre as questões que lhes dizem respeito, escolher, enfim entre cursos de ação alternativos em múltiplas esferas – política, econômica, cultural, psicológica, entre outras32. Desse modo, trata-se de um atributo, mas também de um processo pelo qual se aufere poder e liberdades negativas e positivas. Pode-se, então, pensar o empoderamento como resultante de processos políticos no âmbito dos indivíduos e grupos. O empoderamento das mulheres da segurança pública nos traz novos olhares sobre a concepção de poder, assumindo formas democráticas, se constituindo em um desafio. Pressupõe uma mudança nas premissas de gênero, o da mulher livre, trabalhadora e chefe de família, com o acúmulo de papéis muito maior na sociedade moderna, enfrentando os desafios e sendo capaz de manejar mais funções dentro e fora da família.

Porém, é importante destacar que o empoderamento é um processo conflituoso. É uma busca constante de mudanças nas relações de poder existentes que estão arraigadas em nossa cultura, e para compreender o empoderamento, é preciso verificar que este não é um processo com início e fim definidos, nem que ocorre de maneira igual para as diferentes mulheres. O empoderamento difere para cada indivíduo ou grupo, conforme seu histórico de vida, sua cultura e sua localização em diferentes territórios.

Sazonalidade, violência(s) e saúde

Para Minayo33,34 a violência é um fenômeno complexo, que tem como espaço de criação e desenvolvimento as relações intergrupais e interpessoais da vida cotidiana. A autora destaca que o termo mais adequado a ser utilizado seria “violências”, porque envolve uma gama de fatores expressos nas ações humanas de indivíduos, classes sociais, grupos, ocasionando em atitudes violentas como mortes ou danos à integridade física, mental, moral ou espiritual.

É de fundamental importância incorporar a reflexão sobre os nexos entre violência e saúde, estabelecendo diálogos entre academia e profissionais que atuam na ponta, compreendendo a transversalidade com a qual a violência perpassa o campo da saúde coletiva e se manifesta em diferentes cenários. Nos municípios onde foi desenvolvida esta pesquisa, a violência urbana é perceptível, principalmente por disputas territoriais de gangues de tráfico de drogas que se digladiam para abastecer o mercado de turistas, resultando em homicídios, estupros e assaltos.

Em suma, a região litorânea do Paraná é composta por dois cenários distintos: verão, quando há grande afluxo de pessoas e reforço de infraestrutura pelo Estado, tanto no âmbito da saúde, quanto da segurança pública; e inverno, período que compreende a maior parte do ano, caracterizado por abandono e escassez de políticas públicas. É um cenário de contrastes profundos, onde a sazonalidade influencia diretamente o modo de vida dos habitantes locais. Importantes estudos antropológicos buscam compreender a sazonalidade como um fato social. Marcel Mauss35 e Evans-Prichard36,37, analisam o modo de vida de como determinados contextos ambientais se tornam experiências coletivas, onde representações são construídas de acordo com lógicas próprias a determinadas sociedades.

São explícitas as diferenças particulares desse território, da desigualdade de oportunidades, da flutuação sazonal, e que fica particularmente evidente na questão da segurança pública, principalmente nas escalas de serviço que são desgastantes, dificultando a convivência familiar, e prejudicando a saúde:

“...Nossa escala é puxada, fazemos 12 por 24 horas e 12 por 48 horas, com um reforço dentro das 48 horas de folga. É desgastante. Fica difícil o convívio com a família, acaba interferindo no psicológico da gente...” “...Desde que entrei para a polícia não passei um Natal com meus filhos. “...Essa escala prejudica a saúde, alterando o horário de sono todos os dias, um dia tomo cafeína pra me manter acordada, no outro tomo remédio pra poder dormir, a gente envelhece demais, detona com a saúde...” (Loreta- 37 anos – Policial Militar)

Minayo e Adorno2 apresentam uma importante contribuição em seu artigo, a respeito de reflexão do policial como produtor e consumidor simultâneo da segurança pública. O policial compromete sua própria segurança para garantir a dos outros e paga um elevado preço por isso. Os autores ainda abordam que a segurança coletiva não pode ser obtida negligenciando a segurança dos próprios agentes da lei, sob a cruel desculpa da sua suposta vocação para o heroísmo. Tais acepções convergem com a presente pesquisa, sendo que o relato de uma das profissionais enfoca exatamente isto:

“...Essa profissão é perigosa, arriscamos a vida. Faltam equipamentos apropriados. Lidar com presidiários é sempre uma caixinha de surpresas, quando tem rebelião é estressante, nos preocupamos, pois, a [profissional] mulher é sempre alvo de estupro...” “...A maior e pior preocupação é com a família, temos um rótulo, somos alvo de ameaça dentro e fora do serviço, e quem paga o pato as vezes é nossa própria família. Meu filho já foi ameaçado várias vezes. É terrível ter que viver em constante alerta...” (Flávia – 33 anos – Agente Penitenciária).

As dimensões da violência que recaíram sobre essas profissionais de segurança pública ao longo do acompanhamento de sua rotina profissional e que também estiveram presentes em seus discursos foram: 1) a violência urbana, que é a expressão que designa o fenômeno social de comportamento deliberadamente transgressor e agressivo, apresentado pelo conjunto dos cidadãos ou por parte deles, nos limites do espaço urbano, ou seja, é a violência a que essas mulheres estão expostas nas ruas, em atendimento às ocorrências; 2) a violência de gênero, caracterizada pelas relações assimétricas de poder, pelo fato de serem mulheres; 3) a violência institucional, que é a modalidade que ocorre dentro das instituições de segurança pública, ligada principalmente à estrutura hierárquica que predomina no sistema, causando estresse ocupacional e sofrimento psíquico corroborando para o adoecimento desta categoria de mulheres.

Como fatores adicionais, também constatou-se como desafio à saúde coletiva dessas profissionais as precárias e insalubres condições de trabalho, com sobrecarga laboral. Esse quesito dificulta a convivência familiar, causando grande sensação de insatisfação profissional. Por fim, mas não menos importante, observou-se nos discursos dessas mulheres relatos sobre a desvalorização pessoal e profissional, tanto por parte do Estado quanto da população. Todo esse conjunto de aspectos e suas repercussões necessitam ser ponderados no planejamento e execução de ações de saúde para as mulheres albergadas no grupo de trabalhadoras da área de segurança pública.

Considerações finais

Nesta pesquisa, realçou-se denso e conflituoso contexto de negociações a que as mulheres de segurança pública são submetidas, imbricadas por relações hierárquicas de poder. Observou-se uma rotina de trabalho permeada por iniquidades de gênero, em ambiente de violência institucional, que materializa desde atitudes preconceituosas e discriminatórias por serem mulheres, até relatos de casos de assédio moral e sexual. Todavia, pode se observar um fenômeno significativo relacionado ao empoderamento dessas mulheres por meio do trabalho, quebrando tabus socialmente impostos e galgando cargos importantes na corporação. Ser mulher para as profissionais participantes deste estudo significa ser múltipla, ou seja, desempenhar várias funções: filhas, esposas, mães, profissionais, donas de casa e chefes de família. Nessa perspectiva, o espaço público e o privado se fundem, o que muitas vezes é conflituoso e complexo para elas, já que ao se expor a todo tipo de infortúnio, temem expor seus familiares, principalmente os/as filhos/as.

A influência sazonal foi aspecto marcante no cenário de estudo e interconecta os quesitos segurança pública e saúde, determinando o modo de vida de grupos ou sociedades sujeitas à essa dinâmica. As profissionais de segurança pública bem como a população, experimentam dois estilos de vida distintos, um na temporada de verão, outro nas demais estações do ano. O local fica desfalcado em termos de estrutura de segurança pública e de saúde pública fora do verão, fato que possivelmente afeta outros locais com as mesmas características. Outro fator notório foram as precárias condições de trabalho que reverberam diretamente no processo saúde-doença, em ambientes insalubres, com sobrecarga de trabalho nos períodos de maior movimento e de déficit de profissionais e aparatos de segurança pública, no período de inverno. O trabalho repercute na vida pessoal e social dessas mulheres, principalmente o risco e a ameaça da segurança de seus familiares, causando um forte impacto emocional e psicológico, devido ao estado de alerta constante, principalmente por se tratar de municípios pequenos, onde são facilmente identificadas como profissionais de segurança pública, tornando-se alvos fáceis para bandidos e facções criminosas.

Também é importante elencar as limitações de um estudo dessa natureza. Destacamos que este, sendo um estudo etnográfico, consiste em leitura parcial de uma determinada realidade, sendo que a influência dos pesquisadores é inerente ao processo. Estudos etnográficos nunca objetivam esgotar o objeto de pesquisa, mas sim traduzir um problema em tempo e espaço delimitados. Diferentemente de estudos estatísticos que podem ter seus resultados extrapolados para outros cenários, é possível que este estudo seja circunscrito ao território estudado, ou que apresente convergências com outros locais, particularmente aqueles marcados por dinâmicas sazonais. Ao mesmo tempo, evidenciamos potencialidades do método, que vem sendo advogado em estudos da saúde coletiva38,39. Nesse sentido, uma das grandes contribuições para o campo da saúde coletiva consiste no nível de profundidade que um estudo como este, de característica etnográfica, é capaz de traduzir. O tempo de permanência em campo aliado ao aprofundamento teórico permite um olhar reflexivo da realidade dessas profissionais, que talvez seja mais difícil de ser apreendido por meio de outras metodologias.

Este estudo revelou a complexidade de violências a que essas mulheres são expostas a partir do seu trabalho, em sua própria instituição e nas ruas também, se estendendo às suas famílias, sendo o gênero o principal elemento de intersecção. Durante a pesquisa de campo buscou-se “dar vozes” a essas mulheres, no sentido mais amplo da palavra, pois assim sentiram-se, falando sobre seus anseios e medos em uma seara de difícil acesso e diálogo, em que tudo é muito velado. Portanto, espera-se que este artigo resulte em discussão a respeito dos dilemas vivenciados por essas profissionais, promovendo visibilidade às suas angústias. As experiências subjetivas dessas mulheres ainda permanecem invisíveis nas estatísticas oficiais da segurança pública e é bem possível que não seja só no Paraná. Portanto, a necessidade de conhecer quem são estas mulheres, como é sua rotina e quais os desafios que enfrentam em seus ofícios, para problematizar a realidade, pode se constituir em uma importante estratégia para visibilidade. Espera-se assim, contribuir na construção de conhecimento sensível às questões de gênero, colaborando com a diminuição das assimetrias entre homens e mulheres.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Set 2017

Histórico

  • Recebido
    08 Dez 2015
  • Revisado
    07 Jun 2016
  • Aceito
    09 Jun 2016
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