Villela EFM, Natal D. Epidemia, Mídia e História: A emergência do virus Rocio. Jundiaí, São Paulo: Paco Editorial; 2014.
A relação entre as epidemias e a história das populações humanas está bem estabelecida na literatura1. O surgimento e disseminação das doenças é favorecido por uma gama de fatores. Para Ujvari tais fatores seriam: a criação de uma nova estrada ou rota comercial, a formação de conglomerados urbanos, a falta de saneamento (característica de lugares com alta desigualdade social)2, o surgimento da agricultura e as migrações e movimentações em busca de novos conhecimentos1. Assim, o livro Epidemia, mídia e história: a emergência do virus Rocio avança ao conseguir estabelecer o papel de um elemento novo nesta relação: a mídia.
As respostas da mídia aos surtos e epidemias tem sido cada vez mais estudadas. Para Yan et al.3 a mídia de massa tem sido utilizada para informar ao público a dinâmica das infecções e reforçar medidas de controle e prevenção. Garret4 aborda a resposta da mídia aos eventos de saúde e trata da evolução de tratamento dada à mídia por governos e população. Antes, muitas vezes tratados como sensacionalistas, os jornalistas que cobrem as epidemias trazem hoje respaldo aos fatos. A autora descreve o ocorrido em 1995, no caso do surto pelo vírus Ebola, no Zaire, como um exemplo do que pode ocorrer quando uma comunidade se encontra em uma catástrofe e sem qualquer mídia. As únicas fontes de informação eram rumores espalhados entre as pessoas, que variaram da ideia de que espíritos “castigavam” as pessoas por meio da doença, ao pensamento de que os médicos estariam “matando” seus pacientes para extrair diamantes do corpo de bandidos. Para trazer informações confiáveis às pessoas, na ausência de qualquer dado ou evidência consistente, a Organização Mundial da Saúde recrutou estudantes de medicina locais para distribuírem panfletos e orientarem a população4. Garret traz à tona, então, a importância da mídia no acompanhamento de eventos severos ligados à saúde humana.
A obra de Edlaine Villela e Delsio Natal surge na perspectiva de unir esses três elementos (epidemia, mídia e história), o que é uma expectativa gerada pelo próprio título.
O livro relata a epidemia de encefalite causada pelo vírus Rocio, ocorrida no Vale do Ribeira, São Paulo. Além da descrição de um evento epidêmico importante, do relato sobre um vírus perigoso e potencialmente pandêmico, a obra aborda a forma como a mídia se manifestou frente ao temor de uma doença desconhecida e potencialmente fatal e mostra suas repercussões na população. A precariedade de informações na época, causada por um vírus até então desconhecido, trouxe grande preocupação local e nacional, em um contexto de um governo não democrático. O papel da mídia de divulgar à população a severidade da epidemia fica claro. Assim, trata-se de adição ao conhecimento de uma epidemia muito próxima às que acometeram os brasileiros em tempos recentes.
Após a Apresentação e o Prefácio, o Capítulo 1 – Uma introdução ao processo epidêmico – conceitua surto, epidemia, endemia e pandemia. O Capítulo 2 – A importância da interdisciplinaridade na pesquisa – trata dos conceitos de interdisciplinaridade e transdisciplinaridade e como os autores buscaram informações sobre a encefalite devido ao Rocio. Chama a atenção o item 5 (Resgate Histórico: em Busca de Informações); e o Quadro 2, que descreve a natureza das fontes de informações obtidas.
Os Capítulos 3 – Um breve histórico da região, 4 – Caracterização Regional e 5 – Contexto Socioepidemiológico da Doença descrevem a região sul da baixada santista e a região do Vale do Ribeira, especialmente as áreas rurais das cidades de Itanhaém, Mongaguá e Peruíbe, onde a epidemia se desenvolveu. A região tinha predominância de mata atlântica, cidades com baixo desenvolvimento e comunidades com escasso amparo governamental, sendo propícia para o desenvolvimento de uma arbovirose com todas as condições de sua manutenção, como criatórios naturais para os vetores (Aedes scapularis e Psorophora ferox) e hospedeiros, como aves silvestres. Além de possíveis explicações de o porquê do processo epidêmico não se ter espalhado – como limites geográficos do terreno – aborda a origem do vírus: o Bairro Rocio, no município de Iguape, foi o local de origem do paciente em cujo sistema nervoso central encontrou-se o patógeno.
O primeiro caso de infecção no sistema nervoso central, conhecido como encefalite, foi relatado em janeiro de 1975, precedendo os picos epidêmicos dos 2 anos seguintes. Apesar dos dados oficiais, houve casos relatados desde 1973, com quadros semelhantes e sequelas de encefalite, que na época foram confundidas com doença meningocócica. Números oficiais declaravam que 1021 pessoas contraíram a doença em 20 municípios diferentes, havendo evidência de subnotificação. Dados indicam letalidade de 10% e taxa de sequelas de 20% nas regiões acometidas pela doença. Reconhecida como doença grave e reconhecido também o fato do tratamento ocorrer por meio de medidas paliativas, houve tentativa de formulação de uma vacina em 1983, que chegou a ser testada, mas apresentou resultados insatisfatórios e não foi adotada.
O Capítulo 6 – Aspectos Clínicos e Patológicos da Doença – aborda a patologia dessa arbovirose. Constatou-se período de incubação de 10 dias, com três desdobramentos possíveis: recuperação total; recuperação parcial com sequelas; ou óbito. Segundo os autores, a maioria dos casos mostrou necrose inflamatória do tálamo, termo esse que parece impreciso e não foi encontrado na literatura consultada, mas que pode ser lido simplesmente como necrose do tálamo, sem perda de precisão. O importante a frisar é a gravidade dessa doença, que provoca a morte celular da substância cinzenta do tálamo, parte do cérebro associada com a sensibilidade, motricidade e comportamento emocional.
Medidas de Controle Adotadas é o Capítulo 7. Mesmo sem se conhecer qual artrópode seria o responsável pela disseminação da doença, medidas foram tomadas dada a grande urgência da situação. Dado que não se sabia a espécie específica causadora da encefalite, foi usada estratégia de eliminar mosquitos em geral, independente das espécies. Foram realizadas grandes incursões com uso de inseticidas nos diversos locais objetivando todos os processos de maturação do mosquito. Houve também desapropriações, intervenções em terrenos irregulares, e drenagem de lagoas. Pela primeira vez uma operação aérea foi utilizada para fins de Saúde Pública no Brasil. Foram criados também hospitais de emergência que eram frequentemente dedetizados. Neste capítulo são nove excertos de reportagens do Jornal A Tribuna, de 1975, além de figuras extraídas de outras fontes, que tratam desde o possível acometimento da população pela meningite até as medidas de controle de mosquitos adultos. Os autores mencionam que as reportagens sobre a encefalite foram obtidas de bancos de dados dos Jornais A Tribuna, Cidade de Santos, Jornal do Brasil e da Revista Veja, de abril a junho de 1975 […].
O Capítulo 8 – Impactos Causados na Região – abordam o recrudescimento do crescimento turístico na região do litoral sul de São Paulo devido à epidemia, em um cenário de diferentes interesses: os dos comerciantes locais versus pesquisadores e autoridades públicas. Os autores citam o exemplo da cidade de Cananéia, onde os comerciantes locais ocultaram dados sobre a epidemia, e funcionários dos hospitais foram proibidos de se manifestar sobre os quadros de encefalite que assolavam a cidade. A mídia impressa, nesse cenário, não omitiu […] a reação negativa dos comerciantes os quais atribuíam às autoridades um posicionamento alarmista, mas também não deixou de publicar alertas à população sobre os perigos de viagens aos municípios onde a doença se manifestou. Os temas mais abordados pela mídia nesse contexto foram: a busca pela cura da encefalite, a incriminação de um vetor, o isolamento e caracterização do vírus responsável, as decisões políticas […], notícias diversas sobre: condição dos doentes, mortes e, sequelas deixadas após a convalescência […]. Esta atuação da mídia, hoje se atesta em estudos recentes, é benéfica a toda a população3 e deve ter sido benéfica no controle da epidemia de encefalite.
O Capítulo 9 – Sujeitos do Discurso – traz relatos de professores da Universidade de São Paulo sobre suas impressões acerca da epidemia.
Finalmente, os Capítulos 10 – Situação epidemiológica da encefalite por Rocio – e 11 – Reflexões sobre o Rocio – chamam a atenção para o fato de que o vírus Rocio continua circulando e dão sustentação à ideia de que autoridades brasileiras de saúde pública deveriam implementar diagnósticos de rotina de outras doenças causadas por arbovírus, para proteger a saúde das pessoas, mensagem esta válida para os tempos atuais no Brasil, na presença de epidemias de dengue, febre chikungunya e microcefalia.
A obra de Villela e Natal é excelente e abre uma discussão sobre a atuação da mídia na reemergência das doenças infecciosas.
Referências
- 1 Ujvari SC. A história e suas epidemias: a convivência do homem com os microrganismos. Rev. Inst. Med. trop. S. Paulo 2003; 45(4):212.
- 2 Saiani CCS, Toneto Júnior R, Dourado J. Desigualdade de acesso a serviços de saneamento ambiental nos municípios brasileiros: evidências de uma Curva de Kuznets e de uma Seletividade Hierárquica das Políticas? Nova Economia 2013; 23(3):657-692.
- 3 Yan Q, Tang S, Gabriele S, Wu J. Media coverage and hospital notifications: Correlation analysis and optimal media impact duration to manage a pandemic. J Theor Biol 2016; 7(390):1-13.
- 4 Garret L, Understanding Media’s Response to Epidemics. Public Health Rep 2001; 116(Supl. 2):87-91.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
Mar 2018