Open-access Política Nacional de Atenção Integral a Saúde de Adolescentes Privados de Liberdade: uma análise de sua implementação

Resumo

A efetivação do direito à saúde de adolescentes e jovens privados de liberdade no Brasil é tarefa complexa que nos coloca frente às iniquidades em saúde e às intervenções sobre seus determinantes sociais. Sendo assim, o presente estudo buscou contribuir com a discussão sobre o direito à saúde dessa população, a partir da análise da implementação da Política de Atenção Integral à Saúde de Adolescentes em Conflito com a Lei (PNAISARI). Trata-se de um estudo de abordagem analítica, utilizando análise documental dos marcos normativos e de dados de monitoramento e avaliação da política. Em suma, os resultados sugerem que a política fortalece a efetivação do direito a saúde dessa população. Entretanto, sua implementação necessita ser fomentada e qualificada para que o acesso aos cuidados em saúde seja de fato uma realidade em todos os estados e municípios.

Saúde do adolescente institucionalizado; Avaliação em saúde; Políticas públicas de saúde e colaboração intersetorial

Abstract

The realization of the right to health of adolescents and young people deprived of their liberty in Brazil is a complex task that places us before health inequities and interventions on their social determinants of health. Therefore, this study sought to contribute to a discussion about the right to health of this population, based on the analysis of the implementation of the Comprehensive Healthcare Policy for Adolescent Offenders (PNAISARI). This is an analytical approach, using documentary analysis of legal frameworks and policy monitoring and evaluation data. In short, the results suggest that the policy strengthens the realization of the right to health of this population. However, its implementation must be promoted and qualified so that access to health care is, in fact, a reality in all states and municipalities.

Institutionalized adolescent health; Health evaluation; Public health policies and intersectoral collaboration

Introdução

A Constituição Federal de 1988 consagrou o princípio da prioridade absoluta para o acesso de crianças, adolescentes e jovens aos direitos sociais, colocando, assim, o ordenamento jurídico nacional em consonância com a perspectiva internacional de Direitos Humanos. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) veio consolidar um novo modelo de garantia de direitos: a proteção integral1.

Apesar do ECA considerar a adolescência como a faixa etária compreendida de doze até 18 anos, o Ministério da Saúde adota parâmetros da Organização Mundial de Saúde (OMS), em que esta é a fase da vida entre dez e 19 anos. Esse ciclo do desenvolvimento é considerado prioritário para a saúde, sendo compreendida em seu contexto plural e de diversidade, reconhecida assim enquanto adolescências2. No Brasil os adolescentes têm uma importante representação demográfica, aproximadamente 18% da população, com cerca de 34 milhões de brasileiros, entre dez e 19 anos, conforme censo IBGE em 20103.

Quando se fala no direito à saúde de adolescentes, de modo geral, um ponto sensível é a invisibilidade dessa população nos serviços de saúde, apesar da relevância da Estratégia de Saúde da Família (ESF) em direção à saúde de adolescentes, dentro dos princípios do Sistema Único de Saúde (SUS)4,5. Entre as principais barreiras destacam-se o desconhecimento sobre os serviços, a negação do atendimento por não estar acompanhado pelos pais ou responsáveis, ou ainda a falta de um serviço de saúde que converse com essa faixa etária5,6. Nota-se um agravante nas barreiras de acesso quando o adolescente está em cumprimento de medida socioeducativa, pois esse carrega consigo preconceitos e paradigmas punitivos que reverberam diretamente na forma como é assistido na saúde7.

No caso de adolescentes em conflito com a lei, que cometem atos infracionais, o ECA determina seis diferentes medidas que devem ser aplicadas de forma proporcional ao ato infracional e relacionada com a capacidade em cumpri-la. Tais medidas são: advertência, obrigação de reparar o dano, prestação de serviços à comunidade, liberdade assistida, semiliberdade e internação (privação de liberdade em unidade socioeducativa)1.

No Brasil, foi registrado, em 2016, um total de 26.450 adolescentes que estavam em situação de privação de liberdade, com predominância do sexo masculino (96%), com maior proporção concentrada na faixa etária entre 16 e 17 anos (57%). Quanto à distribuição de raça/cor, 59% foram registrados como pardo/pretos, 22% de cor branca, 2% de raça amarela mais indígena, e 17% não tiveram registro. Entre os atos infracionais mais praticados, 47% foram classificados como análogo a roubo, 22% análogo ao tráfico de drogas, 10% análogo ao homicídio, e mais 3% como análogo a tentativa de homicídio8.

Referente a condição das unidades que recebem os adolescentes privados de liberdade, estudo realizado pelo Instituto de Pesquisa Aplicada (IPEA) retratou um cenário de grave violação de direitos nas instituições de privação de liberdade. Salienta que em alguns espaços a questão da saúde é o ponto mais delicado no atendimento socioeducativo. Os altos índices de doenças sexualmente transmissíveis, perfil nutricional agravado, problemas dermatológicos e comprometimento da saúde mental, com excesso de prescrição que pode indicar o uso de psicotrópicos como forma de controle, estão entre os principais agravos9.

Frente ao contexto de violações e considerando os marcos legais de garantia de direitos de adolescentes, no ano de 2004, o Ministério da Saúde em parceria com a Secretaria Especial de Direitos Humanos e a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, publicaram a Portaria Interministerial nº 1426/2004, que aprova as diretrizes para implantação e implementação da Política de Atenção Integral à Saúde de Adolescentes em Conflito com a Lei, em regime de internação e internação provisória (PNAISARI). Essa normativa detalha a operacionalização da política, trazendo especificações sobre o financiamento, as responsabilidades federativas, a organização dos serviços de saúde e do socioeducativo e os instrumentos de gestão de trabalho intersetorial10.

Nessa perspectiva de normatização e definição de papéis, o Sistema de Atendimento Socioeducativo (SINASE) foi instituído em 2012, enquanto política pública11, visando a articulação dos diferentes setores sociais através de um Sistema de Garantia de Direitos, e tendo como princípio norteador a incompletude institucional12. No capítulo V, Seção I, o SINASE reafirma que a atenção integral à saúde de adolescentes e jovens seguirá as diretrizes e normas do SUS. Dessa forma, a PNAISARI vem sendo formulada e implementada com o objetivo do reconhecimento da lógica de atendimento do SUS para os adolescentes em atendimento socioeducativo, e compreendendo a atenção básica como a principal ordenadora da rede de saúde e coordenadora do cuidado no território, com o papel de articular os níveis de atenção, bem como incidir sobre os determinantes e condicionantes de saúde da população atendida13.

Apesar dos escassos estudos sobre a PNAISAIRI, observa-se que a intersetorialidade vem sendo discutida e apresentada como elemento fundamental para a mudança no modelo de atenção e reorganização do cuidado em saúde, o que remete a ideia de integração de território, de equidade e de direitos sociais14,15. Além de se mostrar ferramenta fundamental na atenção à saúde e na implementação da política, também consiste desafio contínuo para a garantia de direito de adolescentes em atendimento socioeducativo e, mais especificamente, daqueles privados de liberdade16,17.

Considerando o desafio da intersetorialidade entre as políticas setoriais e da garantia do direito à saúde de adolescentes privados de liberdade, este estudo pretende analisar a implementação da PNAISARI a partir das alterações ocorridas em seu marco normativo e das ferramentas de Monitoramento e Avaliação da política, utilizadas pelo Ministério da Saúde.

Estratégia metodológica

Trata-se de um estudo de abordagem analítica, utilizando análise documental dos marcos normativos da política e de dados quantitativos do sistema de monitoramento e avaliação da PNAISARI do Ministério da Saúde.

Na etapa de análise documental, foi realizado o levantamento da legislação referente à política, através do portal oficial do Ministério da Saúde e buscou-se identificar as principais mudanças ocorridas nestas, construindo dimensões de análise e correlacionando-as com a literatura encontrada.

Para a etapa de análise de dados quantitativos, foi solicitado à Coordenação Geral de Saúde de Adolescentes e Jovens, do Departamento de Ações Programáticas e Estratégicas do Ministério da Saúde (CGSAJ/DAPES/SAS/MS), os dados relacionados à gestão da política a nível municipal e estadual, compondo assim os seguintes formulários: Gestão Municipal da PNAISARI e Gestão Estadual da PNAISARI. Assim, foram disponibilizados pela CGSAJ/DAPES/SAS/MS a base de dados primários do 2º semestre de 2016. Os dados foram coletados, via FormSUS, dos formulários do processo de Monitoramento e Avaliação da PNAISARI. Os formulários são de natureza semiestruturada, com questões objetivas e subjetivas, de autopreenchimento pelos gestores municipais e estaduais de saúde e do socioeducativo. A estrutura dos formulários é composta pelos seguintes blocos: Identificação; Gestão municipal/estadual; e Percepção sobre a implementação da política no território.

No bloco Identificação foi analisada a área responsável pela implementação da política no setor saúde, no de Gestão municipal/estadual foram analisadas variáveis relacionadas à identificação das ferramentas de gestão dos grupos de trabalho, tais como: reuniões do grupo gestor do SINASE e reuniões do Grupo de Trabalho Intersetorial (GTI) da PNAISARI. Por último, no bloco Percepção da PNAISARI analisou-se as questões fechadas relacionadas ao acompanhamento, existência ou não de cofinanciamento e a comparação sobre a atenção à saúde antes e depois da implementação da política no território, ou seja, informações sobre o estado da arte da política nos municípios brasileiros.

Todos os formulários duplicados foram excluídos da análise de dados, considerando os formulários mais recentes no banco de dados. Os dados foram tabulados e analisados no programa Office Excel 2010, onde foi adotado método descritivo.

Resultados e discussão

Os resultados e sua discussão foram organizados em duas partes: (A) Análise das alterações da normativa da Política e (B) Estado da arte da implementação da política, a partir dos resultados do monitoramento realizado pelo Ministério da Saúde.

(A)Análise das alterações da normativa da Política

Na pesquisa sobre as normativas da política foram identificadas as portarias que a regulamenta, sendo elas: Portaria interministerial nº 1.426/2004; Portaria SAS/MS nº 340/ 2004; Portaria SAS/MS nº 647/2008; Portaria GM/MS nº 1.082/2014, nº 1.083/2014 e nº 1.084/2014. No entanto, foram utilizadas para a análise a Portaria SAS/MS nº 647/2008 e as Portarias GM/MS nº 1.082/2014 e 1.083/2014, sendo as duas últimas as portarias mais recentes, que tratam da operacionalização da política e financiamento, respectivamente, e que apresentam diferenças relevantes para a implementação da política. Foram construídas dimensões de análise e a descrição das alterações ocorridas na legislação da PNAISARI, conforme pode ser observado no Quadro 1.

Quadro 1
Alterações das Portarias SAS/MS nº 647/2008 e Portarias GM/MS nº 1082/2014 e nº 1083/2014, Brasil, 2014.

Na dimensão governança a alteração está relacionada à formalização do Grupo de Trabalho Intersetorial (GTI), enquanto espaço intersetorial responsável pela elaboração dos planos operativos e de ação, assim como do acompanhamento e monitoramento da política. Estudo realizado no Acre deixa evidente que a formalização do GTI impulsiona os entes federativos no sentido da intersetorialidade16.

O financiamento apresenta uma atualização dos recursos em todas as modalidades de atendimento socioeducativo, mantendo-se orientada pelo número de adolescentes atendidos. Além da ampliação dos valores, foi inserido um modelo de financiamento específico para a semiliberdade. Importante ressaltar que o financiamento é um incentivo de custeio repassado diretamente do Fundo Nacional de Saúde para o fundo do ente federado responsável pela gestão das ações da PNAISARI.

No que tange à equipe de referência, a principal alteração identificada foi a inclusão do profissional de saúde mental na equipe de referência da atenção básica. Salienta-se que esta é uma demanda recorrente dos setores envolvidos no SINASE, por ser uma das principais demandas de saúde dessa população, o que corrobora com estudos internacionais18-21. O aumento da capacidade de resolução da atenção básica por meio da ampliação de serviços, acrescentando à equipe um profissional de saúde mental, possibilita o acesso a meios diagnósticos e terapêuticos, buscando evitar a descontinuidade e a fragmentação da integralidade do cuidado22.

No que se refere aos parâmetros arquitetônicos do espaço de saúde na unidade socioeducativa, uma alteração significativa na portaria consiste na supressão da indicação dos parâmetros arquitetônicos para a construção, ou ampliação, dos espaços de saúde dentro das unidades socioeducativas, o que reforça a lógica da política e a importância da criação de vínculo desse adolescente privado de liberdade com a rede de saúde. Essa adequação é fundamental para a superação do desafio que a incompletude institucional impõe ao trabalho articulado com a rede da atenção à saúde local, com a comunidade socioeducativa e demais setores fundamentais para a atenção integral ao adolescente. Esse princípio está previsto na portaria nº 1.082/2014 e no marco legal do SINASE12.

Apesar das mudanças normativas e do esforço para inserção do adolescente na rede de saúde, observa-se que no capítulo 7 do SINASE11, que trata dos parâmetros arquitetônicos para unidades de atendimento que executam a internação provisória e internação, consta a previsão de uma área de saúde, com as mesmas proporções de uma Unidade Básica de Saúde de um território. Vale destacar que uma equipe de Estratégia de Saúde da Família é responsável pela atenção em saúde de 3.000 a 4.000 pessoas ou 1.000 famílias, não sendo economicamente viável o referenciamento de uma equipe ou a construção de uma estrutura nessas proporções exclusiva para o atendimento de um grupo reduzido de adolescentes.

A existência de um espaço de saúde dentro das unidades socioeducativas, independentemente do número de adolescentes atendidos, reforça a visão dessas unidades enquanto instituição total, assim como nas unidades prisionais. Observa-se a partir de levantamentos de inspeção realizados, como em documento publicado pelo Conselho Nacional de Justiça23 uma visão equivocada a respeito da imprescindibilidade de equipes de saúde dentro da unidade socioeducativa, assim como uma percepção negativa acerca do encaminhamento dos adolescentes para a rede local de saúde.

Com relação às modalidades de atendimento socioeducativo, a ampliação das diretrizes para o meio aberto e a semiliberdade reafirmam o compromisso da PNAISARI com a saúde de adolescentes em atendimento socioeducativo, considerando a importância do fortalecimento e qualificação do atendimento e assistência destinada aos adolescentes em cumprimento dessas medidas. Essa ampliação está calcada na priorização da aplicação de medidas em meio aberto e semiliberdade, prevista no ECA.

No contexto da articulação interfederativa, a principal mudança observada é a possibilidade de habilitação direta do município. Assim, reforça-se a descentralização da política, favorecendo maior autonomia para o ente federado responsável pelas ações e agilidade no processo de habilitação na PNAISARI. Estudo sobre a atenção em saúde aos adolescentes em conflito com a lei aponta que a articulação entre as instâncias federativas, como em ações de matriciamento, envolvendo saúde municipal e sistema socioeducativo, são procedimentos estratégicos promissores24.

Entre as mudanças observadas no Monitoramento e Avaliação destacam-se as visitas técnicas in loco; a apresentação de um plano de ação anual, que está vinculado ao recebimento do incentivo financeiro do ano vigente, assinado pelo gestor municipal/estadual de saúde e pelo gestor da socioeducação; e possível suspensão do repasse do incentivo na constatação de irregularidades. O plano operativo e de ação surgem como ferramentas estratégicas indispensáveis para o planejamento das ações e para a efetivação da intersetorialidade. A construção de planos com definição expressa das responsabilidades em uma forma de acordo, é identificado na literatura como uma maneira de reduzir as lacunas entre os acordos firmados e dos entes federados se autorregularem no tocante às suas responsabilidades com a saúde25.

A importância de fortalecer a etapa de acompanhamento, monitoramento e avaliação de uma política pública traz a possibilidade de atender as modificações constantes e estruturais no dinamismo do processo de sua implementação, bem como servir de base e lições aprendidas para a aplicação em outras ações do mesmo gênero26.

(B) Estado da Arte da implementação da PNAISARI

Com vistas a monitorar a implantação da política, desde 2014, o Ministério da Saúde solicita aos parceiros subnacionais habilitados na PNAISARI, semestralmente, o preenchimento dos formulários para cada perfil. Considera-se como estado da arte: o cenário do processo de implementação da PNAISARI nos diferentes contextos.

No 2º semestre de 2016 haviam 33 municípios habilitados na PNAISARI, com 63 equipes de saúde da atenção básica de referência, para 68 unidades socioeducativas. Responderam ao instrumento da gestão municipal 27 municípios habilitados na PNAISARI. Em relação ao instrumento da gestão estadual, nove das onze unidades federadas responderam ao formulário. Para a análise de dados considerou-se amostra intencional dos municípios e equipes que responderam ao formulário e estavam habilitados conforme a política. A Tabela 1 foi elaborada a partir das informações sobre a área responsável pela implementação da política no município/estado.

Tabela 1
Área responsável pela implementação da política.

Os dados sugerem uma heterogeneidade da área responsável pela gestão da política no setor saúde no país, não estando concentrada na coordenação responsável pela implementação das politicas de saúde para adolescentes e jovens. Tal situação pode dificultar a visibilidade dessa população na agenda política e governança da PNAISARI, pois a mesma concorre com agendas de maior aceitação e comoção social, como, por exemplo, a atenção à saúde da criança. No Brasil, apesar de um momento passado ter se fomentado a construção de políticas de saúde para diversos segmentos populacionais, ainda hoje não há uma política de saúde nacional para adolescente e jovem, o que enfraquece ainda mais a disputa na agenda política e corrobora para a piora da situação geral de saúde dessa população27.

Na ausência de uma coordenação de saúde de adolescentes e jovens na secretaria de saúde, uma alternativa positiva para a implementação da PNAISARI é a área da Atenção Básica (AB) como gestora da política. A AB é a principal porta de entrada no SUS, considerada enquanto coordenadora do cuidado e ordenadora da rede de saúde, possibilitando o acesso dos adolescentes em atendimento socioeducativo à rede de saúde. Reconhece seu território, o perfil epidemiológico e social da população adstrita, independentemente do local onde os serviços sejam prestados28. Nesta mesma perspectiva, modelos universais de saúde europeus defendem a atenção primária como coordenadora dos demais níveis, e com o objetivo de potencializar esse primeiro nível de atenção29.

A partir dos dados sobre a implementação da PNAISARI nos municípios/estados foi elaborada a Tabela 2.

Tabela 2
Dados sobre a implementação da PNAISARI.

Sobre os espaços de articulação intersetorial e interfederativa infere-se que, apesar do SINASE se apresentar como política intersetorial e de articulação de diferentes atores e áreas, a instância colegiada ainda não está institucionalizada, tanto a nível municipal quanto estadual, o que pode estar relacionado ao baixo número de unidades federadas que tiveram reunião do Colegiado Gestor SINASE. A instância referida, prevista no marco normativo12, consiste em um importante espaço para diálogo entre os diversos atores envolvidos na efetivação dos direitos de adolescentes em atendimento socioeducativo.

Nesse sentido, destaca-se o papel da saúde como indutor do trabalho intersetorial na rede de proteção e atenção ao adolescente por meio do GTI da PNAISARI. Este, como já relatado nas alterações normativas, surge como espaço privilegiado de gestão das ações em saúde para essa população. Compreende-se, a partir dos resultados, que o GTI vem realizando reuniões semestrais em todos os municípios. Contudo, identifica-se que alguns entes federados não estão participando das reuniões, o que deve ser resgatado para o fortalecimento de ações intersetoriais nesses espaços. Destaca-se, ainda, a importância da participação e realização das reuniões a nível estadual, reforçando a importância da corresponsabilização para a implementação da política.

Estudos sobre a intersetorialidade no setor saúde apontam que tais espaços favorecem a partilha do poder decisório e o reconhecimento explícito da razão de interdependência entre os entes corresponsáveis, favorecendo a produção de ações mais efetivas para os problemas complexos que envolvem essa população30. Entre as evidências identificadas em estudo de caso realizado em 18 países, incluindo o Brasil, está a importância da intersetorialidade no enfrentamento às iniquidades em saúde e melhoria da qualidade de vida, destacando essa estratégia para países de baixa e média renda per capita14,31. Entre os desafios observados para a efetivação da intersetorialidade estão a identificação de agendas divergentes entre os stakeholders32 e a necessidade de mudança nas práticas de planejamento e de efetivação na prestação de serviços15.

Sobre o cofinanciamento, observa-se que 13 dos 27 municípios e três dos nove estados informaram que não cofinanciam a política, isso é, que não participam do financiamento tripartite das ações e serviços previstos na portaria nº 1082/2014. Cabe ressaltar que o direito à saúde é um dever linear de todos os entes e o pacto federativo não pode se impor contra os cidadãos, mas tão somente deve ser considerado entre os próprios pactuantes. É imperativo que o Ministério da Saúde reveja junto aos entes federados habilitados essa questão, uma vez que a política passa por pactuações importantes nas comissões intergestores e conselhos estratégicos antes de ser aprovada.

Os respondentes informaram que tem acompanhado a implementação da PNAISARI por meio das seguintes estratégias: GTI, ações de acompanhamento das equipes de saúde, visitas técnicas in loco, planos operativos e de ação, ações de monitoramento e avaliação da política, matriciamento e estudos de caso, além de assessoria técnica realizada através de contatos telefônicos e videoconferências. Os exemplos citados corroboram com as ferramentas de gestão recomendadas para o compartilhamento de práticas e saberes em saúde entre as equipes, buscando auxiliá-las no manejo ou resolução de problemas clínicos e sanitários, bem como agregando práticas na atenção básica que ampliem o seu escopo de ofertas33.

Sobre a avaliação da política, a maior parte dos municípios e estados informaram que melhorou o atendimento à saúde de adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa após a implementação da PNAISARI. Nesse contexto é fundamental que a CGSAJ/DAPES/SAS/MS, gestora da política, no nível central, realize maiores avaliações e estudos sobre o processo de implementação da política considerando os resultados obtidos e o custo efetividade desses resultados.

Encarar os desafios do direito à saúde de adolescentes e jovens no Brasil é tarefa complexa que nos coloca frente às iniquidades em saúde e às intervenções sobre seus determinantes sociais. Dessa forma, a implementação de políticas que se articulem intersetorialmente, com governança horizontal e com contrapartidas claras da participação de cada setor e ente federado em seu planejamento e acompanhamento, são imprescindíveis para a aproximação dos universos da formulação e da implementação, o que perpassa o próprio processo de democratização e de efetivação de direitos sociais garantidos.

Considerações finais

O presente estudo buscou contribuir com discussão sobre o direito à saúde de adolescentes privados de liberdade a partir da análise de implementação da PNAISARI. Em suma, os resultados sugerem que a política fortalece a efetivação do direito à saúde dessa população. Entretanto, sua implementação necessita ser fomentada e qualificada para que o acesso aos cuidados em saúde seja de fato uma realidade em todos os estados e municípios.

Como limitações do estudo, podemos apontar para a falta de maiores informações sobre a implementação da política e os resultados alcançados, permitindo a identificação e a correlação entre as estratégias utilizadas, os modelos de governança e a atenção integral à saúde de adolescentes privados de liberdade.

Como sugestão de melhoria da PNAISARI, recomenda-se o fortalecimento das instâncias de participação intersetorial como o GTI, a institucionalização do Colegiado Gestor do SINASE, o reconhecimento das corresponsabilidades dos entes federados para seu devido cofinanciamento, além da compreensão da lógica de organização entre os setores envolvidos para a efetivação da incompletude institucional e da garantia de direitos de adolescentes e jovens no Brasil. Finalmente, recomenda-se ainda a importância do aprofundamento de análises e estudos na área, considerando na avaliação não apenas a percepção dos gestores estaduais e municipais de saúde, mas de todos os envolvidos, com destaque para a população assistida: o adolescente.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Set 2018

Histórico

  • Recebido
    07 Out 2017
  • Revisado
    26 Fev 2018
  • Aceito
    16 Maio 2018
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