Open-access Demanda por contracepção no Brasil em 2006: contribuição para a implementação das preferências de fecundidade

Resumo

Este estudo buscou estimar a demanda por contracepção no Brasil a partir dos últimos dados disponíveis e identificar possíveis associações entre características sociodemográficas e econômicas das mulheres com a ocorrência desse fenômeno. Para isso, utilizaram-se dados da Pesquisa Nacional de Demografia e Saúde da Mulher e da Criança (PNDS) de 2006 e o método de estimação revisado por Bradley et al. (2012). Apesar do elevado percentual de uso de contracepção no Brasil, estimou-se uma necessidade não atendida por planejamento da fecundidade de 8,3% entre mulheres casadas/unidas de 15 a 49 anos. Isto é, existe um grupo específico de mulheres (no início e no final da vida reprodutiva, de estratos econômicos inferiores, evangélicas e sem religião) que não gostariam de ter mais filhos ou tê-los mais tardiamente e não conseguem fazê-lo devido à falta de acesso aos meios de regulação da fecundidade. Conclui-se que houve uma irrisória redução da demanda em relação à 1996 e com isso, tem-se reforçada a necessidade de investimentos públicos focalizados para que se consiga reduzir os níveis e diferenciais da demanda não atendida por contracepção no país e se tenha garantido os direitos de implementação das preferências reprodutivas.

Palavras-chave Planejamento familiar; Necessidade não atendida por contracepção; PNDS 2006; Preferências reprodutivas

Abstract

This study aimed to estimate the demand for contraception in Brazil from the latest available data and identify possible associations between the sociodemographic and economic characteristics of women and the occurrence of this phenomenon. For this, we used data from the National Demographic and Health of Women and Children (PNDS) 2006 database and the estimation method reviewed by Bradley et al. (2012). Despite the high percentage of contraceptive use in Brazil, there was an estimated unmet fertility planning need in 8.3% of married/partnered women aged 15-49 years. That is, there was a specific group of women (at the beginning and end of their reproductive life, in the lower economic strata, evangelical and without religion) who wanted to have more children or have them later and failed to do so due to a lack of access to fertility regulation means. It was concluded that there was a negligible reduction in demand compared to 1996, which has reinforced the need to focus public investments to achieve lower unmet contraception demand differentials in the country and has guaranteed the implementation of the rights of reproductive preferences.

Key words Family planning; Need not met by contraception; PNDS 2006; Reproductive preferences

Introdução

A análise das preferências reprodutivas tem adquirido destaque crescente como instrumento que possibilita uma predição mais precisa dos níveis de fecundidade. Isso porque, os desejos e intenções por filhos formam a dimensão subjetiva mais importante para se avaliar o quão realizados e satisfeitos estão os indivíduos com a fecundidade alcançada1. Além disso, possibilita compreender os motivos que levam os indivíduos a não atingirem sua fecundidade desejada, seja não alcançando o número de filhos desejados, seja tendo mais filhos do que gostariam2.

A partir da análise dos nascimentos desejados e indesejados e do uso de métodos contraceptivos, emerge um dos indicadores mais relevantes para a área de população e saúde sexual e reprodutiva: a demanda não atendida por contracepção. Esse conceito relaciona-se à discrepância entre as preferências de fecundidade e o uso de contracepção, especificamente, refere-se ao comportamento de mulheres que queriam evitar ou adiar a gravidez, contudo, não estavam utilizando métodos contraceptivos para tal fim. A identificação e mensuração desse grupo de mulheres, sobretudo, nos países em desenvolvimento, passou a ter grande importância, devido às conferências de população (especialmente a Conferência do Cairo de 1994) e às reivindicações do movimento feminista, em que os debates sobre a oferta de planejamento familiar e direitos reprodutivos ganharam força, refletindo também em mudanças no contexto nacional3.

Bongaarts et al.4 destacam ainda que o planejamento familiar se relaciona diretamente com as melhorias de saúde, redução da pobreza e capacitação das mulheres. E assim, a estimação da demanda não atendida por métodos contraceptivos continua sendo um tema de pesquisa relevante em diversas áreas, uma vez que exerce diferentes impactos sobre os níveis de fecundidade e a vida sexual e reprodutiva dos indivíduos5.

No Brasil, apesar de um contexto de taxas reduzidas de fecundidade6,7, da alta prevalência de uso de contraceptivo8 e do aumento, cada vez maior, de mulheres que têm menos filhos que o desejado, um percentual representativo delas vivencia a fecundidade discrepante positiva9. Isso significa a ocorrência de gravidezes indesejadas, abortos provocados e filhos não planejados ou desejados10, o que é resultado da existência de demanda não atendida por métodos contraceptivos, que ainda é elevada no país (7,7% em 2006)8.

Assim, a determinação da magnitude da demanda total por contracepção constitui ferramenta indispensável à formulação de políticas públicas destinadas a garantir o acesso aos direitos reprodutivos5. Pois, atender a demanda insatisfeita por contracepção da população tem implicações significativas para redução do número de nascimentos indesejados, o que pode afetar, consideravelmente, as taxas de fecundidade, em especial, nos grupos em que a mesma permanece elevada em virtude da dificuldade de acesso aos mecanismos adequados de controle da natalidade11.

Contudo, não se pode assumir que ter muitos filhos constitua um valor negativo12, que precise ser combatido, nem tampouco supor que a baixa fecundidade seja sinônimo de garantia e respeito aos direitos e desejos reprodutivos das mulheres. Diferentes tipos de demanda insatisfeita implicam em distintos tipos de intervenção pública. Além do mais, a demanda pode não ser sanada simplesmente fornecendo contraceptivo ou tornando o acesso mais conveniente ou os custos menores. Pois fatores sociais, culturais e religiosos apresentam forte influência na adoção ou não de meios de regulação da fecundidade13.

O acesso a métodos contraceptivos adequados é parte do quadro geral de um sistema de garantias à saúde sexual e reprodutiva, e se vincula diretamente aos direitos reprodutivos14. Então, numa tentativa de contribuir ao desenvolvimento desse tema, e atualizar os dados sobre a demanda por contracepção no Brasil, este artigo procura mensurar a demanda insatisfeita por planejamento da fecundidade entre as brasileiras de 15 a 49 anos, casadas ou unidas. Em especial, busca-se identificar e analisar os possíveis diferenciais na demanda por contracepção, segundo variáveis sociodemográficas e econômicas das mulheres, inferindo-se acerca das diferentes formas de implementação, articulação e diferenciação do comportamento reprodutivo das mulheres brasileiras.

Panorama do uso e acesso a métodos contraceptivos no Brasil

O Brasil possui um processo histórico sobre o acesso à contracepção bastante peculiar. Devido à ausência de políticas públicas efetivas de planejamento familiar no início do processo de queda da fecundidade (iniciado na década de 60), ocorreu, por consequência (“efeito perverso”), um aumento da demanda por meios de regulação da fecundidade por parte das mulheres, sobremaneira, aquelas mais pobres15. Estas, por não poderem comprar os métodos ofertados, ficaram expostas “à gravidez não planejada, o aborto inseguro e a esterilização atrelada ao parto por cesariana, realizada no SUS e ‘paga for fora’ do parto, registrada como outros procedimentos médicos, além da troca de esterilizações por votos”16.

Tudo isso gerou fortes desigualdades no acesso e ao tipo de método adotado pelas mulheres brasileiras. Perpétuo e Wong17, numa análise comparativa dos dados da PNDS de 1996 e 2006, mostram que houve um aumento na prevalência do uso de anticoncepcional, em decorrência da expansão do uso de métodos nos estratos socioeconômicos mais baixos; mudou-se a distribuição proporcional dos métodos utilizados, pela redução da esterilização feminina e o aumento do uso da pílula, da esterilização masculina e do condom. Mas, houve pouca melhoria da “qualidade” da contracepção de mulheres com pior nível socioeconômico, pois o mix contraceptivo, qual seja, a disponibilidade de diferentes tipos de métodos, ainda é limitada, sendo ainda esterilização feminina o método mais utilizado pelas mulheres de menor escolaridade e renda. Mais recentemente, Farias et al.18 mostraram que a prevalência dos contraceptivos orais e injetáveis era de aproximadamente 33% entre as mulheres de 15 a 49 anos residentes em áreas urbanas do país. E os diferenciais foram maior e estatisticamente significativos somente para as variáveis idade, situação conjugal e região geográfica, em que o percentual de uso foi menor entre as mulheres mais jovens, sem companheiro e residentes no Norte do país.

Isso reflete num contingente importante de mulheres que não querem mais ter filhos ou queriam tê-los mais tardiamente, que não estão usando métodos anticoncepcionais e, dessa forma, estão em risco de uma gravidez indesejada. Tavares et al.19 mostraram que, no Brasil em 1996, esse percentual era de 7,3% entre as mulheres unidas, sendo que 4,7% queriam limitar e 2,6% espaçar o número de filhos. A autora estimou que aproximadamente 41% das mulheres usuárias de métodos anticoncepcionais interrompem seu uso nos primeiros 12 meses. Essa descontinuidade do uso do método contraceptivo sem mudança para outro método torna essa mulher vulnerável à gravidez indesejada19.

Como consequência dessa expansão do acesso, houve uma queda significativa na proporção de indesejabilidade tanto do último filho nascido nos cinco anos anteriores à pesquisa, de 23,1% para 18,2%, como da gravidez em curso no momento da entrevista, de 28,2% para 19,0%. Apesar disso, os diferenciais sociais permaneceram, com as mulheres mais pobres, menos escolarizadas, negras, não-casadas ou não-unidas, mais velhas e com parturições mais elevadas apresentando maior prevalência de nascimentos indesejados. Quanto à gravidez em curso, a indesejabilidade é maior para as mulheres mais velhas e com maior parturição. Ainda assim, houve redução das falhas no controle do processo reprodutivo, quer seja pelo maior e melhor uso de métodos contraceptivos, seja pelo recurso à interrupção voluntária de gravidezes. Todavia, tal redução foi menor entre as mulheres socioeconomicamente mais vulneráveis20,21.

Por outro lado, o estudo de Carvalho et al.9 apontou que, de 1996 a 2006, houve inversão na defasagem entre número de filhos desejados e tidos, quando, em 1996, cerca de 40% das mulheres ao final do período reprodutivo tinham mais filhos que o desejado e apenas 24% vivenciavam o inverso. Já em 2006 o percentual de mulheres que terminaram o período reprodutivo com menos filhos que o desejado passou a ser maior do que o percentual daquelas que excediam o número de filhos desejados (34% contra 27%, respectivamente). Porém, o estudo destaca os diferenciais socioeconômicos e sugere que, apesar de uma tendência do aumento da discrepância negativa de fecundidade para o país como um todo, a fecundidade discrepante positiva permanece um problema de acesso à saúde sexual por parte de algumas mulheres.

A discrepância positiva de fecundidade e a demanda não atendida por métodos contraceptivos refletem em abortos provocados devido às gravidezes indesejadas. Mesmo inexistindo estatísticas oficiais sobre as práticas abortivas no Brasil, uma vez que muitas mulheres omitem essa informação não apenas pela preocupação com a questão da ilegalidade do ato em si, mas, também, por aspectos emocionais e psicológicos envolvidos, há estudos que sinalizam uma prevalência em torno de 1 aborto para cada 5 mulheres. Ademais, constata-se que milhares de brasileiras morrem por causa do aborto10. Logo, a existência da demanda por contracepção impacta, direta ou indiretamente, os serviços de saúde e se correlacionam a diversos pontos de atuação de políticas públicas da área de saúde sexual e reprodutiva5,11.

Mesmo com as mudanças no contexto de acesso e uso de métodos no país (cerca de 77% das mulheres utilizavam algum método moderno de contracepção em 20068) e a criação da Política Nacional de Assistência Integral à Saúde da Mulher que ampliou as possibilidades de acesso aos direitos reprodutivos a partir da Lei do Planejamento Familiar em 199614) a implementação das preferências reprodutivas no Brasil continua comprometida e deficitária, ora por domínio precário de informações por parte dos usuários, ora por falta de provisão de recursos públicos ou pelas dificuldades de acesso a serviços de planejamento familiar.

Material e método

Base de dados

Utilizou-se neste trabalho os dados da Pesquisa Nacional de Demografia e Saúde da Mulher e da Criança (PNDS 2006)22. Esta pesquisa teve como finalidade atualizar o conhecimento dos indicadores de saúde da mulher e da criança, seus diferenciais e determinantes. O universo do estudo foram os domicílios particulares permanentes em setores comuns (inclusive favelas), com a presença de mulheres de 15 a 49 anos de idade, de todas as cinco regiões do Brasil, urbanas e rurais. Por fazer parte das pesquisas do tipo DHS (Demographic Health Survey), apresenta ricas informações sobre a saúde sexual e reprodutiva das mulheres, informações específicas de preferência reprodutiva e uso de contraceptivos22.

A PNDS 2006 é uma pesquisa domiciliar por amostragem probabilística complexa23, obtida em dois estágios de seleção e, com isso, requer cuidados ao proceder às análises dos dados. Tendo como referência as recomendações do relatório técnico da PNDS 2006, fez-se a incorporação do plano amostral, a partir das variáveis cd002-Conglomerado, cd003-Estrato e XM999_Fator_expansão, que correspondem, respectivamente, à informação dos setores censitários, estrato e peso da mulher na amostra. Alguns softwares oferecem rotinas específicas para o tratamento de dados provenientes de amostras complexas, tendo sido utilizado o pacote estatístico SPSS, versão 9, que permite realizar tais análises (Analyze -Complex sample).

Método para estimar a demanda por contracepção

A preocupação em determinar a necessidade não atendida (unmet need) por planejamento familiar tem sido tema recorrente nas pesquisas de fecundidade desde a década de 603. Esse termo foi utilizado pela primeira vez em 1970 para definir a existência de mulheres ou casais que não estavam usando métodos contraceptivos, mas que desejavam controlar sua fecundidade, seja para adiar o próximo filho ou para evitar uma gravidez indesejada depois de ter alcançado o número desejado de filhos24.

Desde esse conceito inicial, o algoritmo para estimação da demanda por métodos contraceptivos passou por mudanças a fim de torná-lo mais eficiente e adaptá-lo aos dados disponíveis25-31. Uma revisão ampla de todas as alterações na estimação da demanda não atendida por contracepção encontra-se em Bradley et al.24, o qual foi utilizado como guia para a mensuração do indicador.

Nessa última revisão, determinou-se que o grupo foco de mulheres a serem investigadas baseia-se em conhecer o conjunto de casadas ou unidas, entre 15 a 49 anos, separando-as naquelas que praticam contracepção, são infecundas, estão grávidas ou amenorreicas e não praticam contracepção. E, entre essas duas últimas, determinar aquelas que necessitam de métodos para regular sua fecundidade24. Pode-se, então, classificar as mulheres em quatro grupos: as que utilizavam contracepção, as que não usavam métodos mas gostariam de ter filhos; e mais dois grupos que apresentam uma demanda insatisfeita de uso de métodos contraceptivos. Um grupo teria uma demanda para limitar o número de filhos (não desejam mais filhos) e o outro composto por aquelas que demandam contraceptivos para espaçar o número de filhos (desejam filhos no futuro). Abaixo segue um esquema de como esses grupos são estimados no contexto geral de mulheres casadas ou unidas na versão revisada do indicador (Quadro 1).

Quadro 1
Esquema dos componentes da necessidade insatisfeita de métodos anticoncepcionais entre mulheres casadas ou unidas entre 15 a 49 anos.

Variáveis utilizadas e modelagem estatística

As variáveis necessárias à estimação da demanda foram: está grávida atualmente; se grávida: deseja mais filhos; grávida: quanto tempo quer esperar para ter outro filho; uso de método contraceptivo atual, tipo de método contraceptivo atual; motivo de não usar método contraceptivo atualmente, quer ter ou prefere não ter mais filhos; tempo desde a última menstruação, total de filhos nascidos vivos; idade do filho; quanto tempo quer esperar para ter mais filhos; estado conjugal, data que se uniu e idade atual.

Já para a análise descritiva e estatística foram utilizadas as variáveis sobre situação de domicílio, regiões geográficas, escolaridade, idade, raça/cor, religião, estratos econômicos (também conhecido como Critério Brasil de Classificação Econômica) e idade ao ter o primeiro filho.

Primeiramente, buscou-se analisar o perfil sociodemográfico e econômico das mulheres que não utilizavam métodos contraceptivos segundo apresentarem ou não demanda insatisfeita por contracepção e o tipo de demanda (espaçar ou limitar). Foram aplicados testes de Qui-quadrado (Correlação de Pearson) para averiguar associação entre as variáveis, considerando o nível de significância de 10%.

Posteriormente, foi adotado o modelo de regressão logística multinomial a fim de estimar a relação entre variáveis sociodemográficas e econômicas e o tipo da demanda por contracepção. Ou seja, perceber as possíveis diferenças no grupo das mulheres que tem desejos para espaçar e limitar o número de filhos. Com base nas orientações de Hosmer e Lemeshow32, o modelo multinomial, diferencia-se porque sua variável resposta possui mais de duas categorias. Dessa forma, foram inseridas, no modelo, três possibilidades de resposta: mulheres que não utilizavam métodos e não tinham demanda (0), mulheres que necessitavam limitar a fecundidade (1) e mulheres com necessidade para espaçar o número de filhos (2).

Resultados e discussões

Ao aplicar o método revisado de cálculo da demanda insatisfeita por contracepção para as mulheres casadas ou unidas, identificou-se que, no Brasil em 2006, havia uma demanda de 8,3% pela regulação de sua fecundidade (Figura 1). Em 1996, Tavares et al.19 encontraram uma demanda insatisfeita por contracepção de 7,3% entre mulheres casadas/unidas. Esse percentual um pouco elevado para 2006 pode estar relacionado às mudanças metodológicas sofridas pelo indicador, no período. Com a mesma metodologia, ou seja, com o indicador revisado, Bradley et al.24 encontraram uma demanda de 10,8% em 1996. Isso indica que houve pequena redução da demanda por planejamento da fecundidade no Brasil, nas últimas décadas. Mesmo assim, cabe destacar que esses 8,3% referem-se a mais da metade das mulheres que não utilizavam métodos. Ou seja, corresponde a mulheres que gostariam de adiar ou não ter mais filhos, contudo, não estavam utilizando nenhum método para implementar esse desejo.

Figura 1
Distribuição percentual de mulheres segundo uso de contracepção, intenção de uso e demanda insatisfeita por planejamento da fecundidade Brasil, 2006.

Com relação ao tipo da demanda (limitar ou espaçar o número de filhos), nota-se (Figura 1) que a demanda é maior entre aquelas mulheres que desejam limitar os nascimentos (53% das mulheres que tinham demanda), ou seja, os casos que, de fato, as mulheres não desejavam mais ter filhos. Estudos anteriores em diversos países da América Latina, Ásia, Norte da África, Caribe e Brasil também apontaram a existência de uma demanda insatisfeita por contracepção para evitar um próximo nascimento, superior àquela para postergar o próximo nascimento nestas regiões8,24,33.

Ao se desagregar essa necessidade insatisfeita segundo algumas características sociodemográficas e econômicas (Tabela 1) observa-se que as variáveis região geográfica, situação de domicílio e raça/cor da mulher não foram estatisticamente significantes. As variáveis socioeconômicas (estratos econômicos e educação) mostraram que mulheres menos escolarizadas e de estratos econômicos menos favorecidos apresentavam maior demanda por contracepção, haja visto que, na maior parte das vezes, essas mulheres não queriam mais ter filhos. Ou seja, demandavam métodos definitivos ou com uma durabilidade maior. O estado conjugal da mulher também se mostrou relacionado a esse indicador, em que mulheres em união consensual apresentavam maior necessidade não atendida por métodos contraceptivos do que aquelas em união formal.

Tabela 1
Percentual de mulheres casadas/unidas que não utilizavam métodos contraceptivos de acordo com a demanda planejamento da fecundidade segundo variáveis sociodemográficas e econômicas, Brasil, 2006.

De alguma forma, a religião atual da mulher parece interferir no acesso ao planejamento de fecundidade, pois mulheres protestantes tradicionais e sem religião revelaram maior necessidade insatisfeita por contracepção. Contudo, enquanto o primeiro grupo gostaria de adiar os nascimentos, o segundo tinha uma preferência por limitar a prole. A idade mostra-se como uma variável muito relevante para demanda por contracepção, sendo que a demanda é maior entre as mulheres mais velhas e, nesse caso, para limitar a fecundidade e entre as mais jovens, as quais gostariam de adiar os nascimentos. É importante destacar que a idade também pode estar influenciando os diferenciais de tipo de demanda entre os grupos religiosos, pois, sabe-se que as mulheres protestantes tradicionais são mais velhas e com maior parturição. Já aquelas sem religião são mais jovens34 e possivelmente com menos filhos, logo, possuiriam demandas diferenciadas por contracepção.

Outro indicador que se mostrou relevante nesse contexto, foi o histórico reprodutivo da mulher (Tabela 1), em que, quanto menor o número de filhos, mais reduzida foi a demanda por planejamento de fecundidade e, nesta, a necessidade seria para espaçar os nascimentos. Por outro lado, quanto maior a parturição mais elevada foi a necessidade não atendida por métodos contraceptivos, agora para limitar o número de filhos, provavelmente porque a mulher já havia atingido sua fecundidade desejada. Tão importante quanto o número de filhos tidos é a idade em que a mulher se tornou mãe, pois nota-se que quase 75% daquelas que tiveram seus filhos precocemente (antes dos 20 anos) apresentaram maior demanda por contracepção. Isso pode estar relacionado ao fato de que essas mulheres já alcançaram o seu tamanho de família ideal e, com isso, gostariam de limitar a fecundidade. Já entre aquelas que se tornaram mães após os 30 anos, mais de 72% gostariam de ter filhos, ou seja, ainda não tinham alcançado sua fecundidade desejada e, então, a demanda por métodos foi de apenas 28%.

A fim de observar se as diferenças identificadas na análise descritiva bivariada foram estatisticamente significativas, foi necessário controlar o efeito de cada variável em conjunto, para eliminar possíveis relações entre as mesmas. Nesse sentido, apresenta-se na Tabela 2 o resultado do modelo de regressão logística multinomial, no qual foram incluídas somente as variáveis significantes no teste Qui-quadrado de Pearson mostrado na Tabela 1. No modelo identificou-se as associações entre as variáveis sociodemográficas, econômicas e reprodutivas com o fato da mulher não ter demanda (categoria de referência 0), ter demanda para limitar (1) e para espaçar (2) o número de filhos no total de mulheres casadas/unidas que não utilizavam métodos.

Tabela 2
Modelo de regressão logística multinomial para verificar os fatores associados à não ter demanda (Ref.), ter para espaçar e ter para limitar a fecundidade, Brasil 2006 (n = 854).

Observa-se (Tabela 2) que as variáveis estado conjugal, escolaridade e idade ao ter o primeiro filho, na análise multivariada, não evidenciaram significância estatística, talvez porque seus efeitos foram dissipados com a inclusão das demais variáveis, notadamente, estratos econômicos e número de filhos tidos. Essas variáveis, junto à idade da mulher, apresentaram as maiores associações com a necessidade insatisfeita por contracepção. Especialmente, quanto ao estado conjugal, o estudo de Barros35 já apontava piores condições de acesso à saúde sexual e reprodutiva entre mulheres unidas quando comparadas àquelas casadas formalmente ao se controlar o efeito da escolaridade.

Como já demonstrado na análise descritiva, percebe-se na Tabela 2 que mulheres dos estratos econômicos B2, C, D e E apresentaram 6 vezes mais chances de demandarem métodos para limitar a fecundidade se comparadas àquelas pertencentes aos estratos econômicos A1, A2 e B1. Esse resultado corrobora outros estudos, em que a demanda por contracepção, seja para espaçar ou limitar, é maior entre a parcela mais pobre de mulheres5,14. Quanto maior o número de filhos maior a demanda por contracepção, sobremaneira, aquela demanda por meios definitivos de regulação da fecundidade, chegando a representar entre mulheres que tinham 3 ou mais filhos, 55 vezes mais chances quando comparadas com aquelas mulheres que não tinham filhos. Quanto à idade, é interessante notar que as mulheres de 25 a 39 anos tinham menos chances de apresentarem demanda (tanto para limitar quanto para adiar o número de filhos) quando comparado às mais jovens. Por outro lado, aquelas com mais de 40 anos tinham 52% mais chances de terem demanda para limitar do que as mais novas, e de 90% menos chances de terem demanda para espaçar os nascimentos se comparado ao mesmo grupo anterior.

A religião, mesmo controlando o efeito de idade e renda entre os grupos, permaneceu estatisticamente significativa no modelo, indicando que mulheres protestantes tradicionais e pentecostais tinham 72% e 40%, respectivamente, mais chances de terem demanda para limitar os nascimentos quando comparadas às católicas. Já aquelas sem religião indicaram maior demanda para espaçar os nascimentos se comparadas às católicas. Em contrapartida, as mulheres pentecostais sinalizaram 16% menos chance de vivenciar essa situação do que as católicas. Esses achados podem estar relacionados aos resultados encontrados por Costa e Carvalho36, as quais relataram que as mulheres protestantes tradicionais apresentavam menor proporção de utilização de métodos contraceptivos modernos quando comparadas às católicas. E, isso ocorreria, provavelmente, porque estas mulheres possuem maior frequência a cultos e cerimônias religiosas, sofrendo, portanto, maior influência da doutrina religiosa em suas vidas. Neste caso, optando pela não utilização de métodos modernos, mesmo que o seu desejo seja de não ter mais filhos.

Considerações finais

Apesar do aumento contínuo no uso de contraceptivos no país, observou-se que o Brasil está longe de assegurar o direito reprodutivo a todas às mulheres, pois a demanda insatisfeita por planejamento da fecundidade, encontrada na PNDS 2006, para as brasileiras casadas/unidas, foi de 8,3%. Apesar de apresentar pequena redução em relação à década anterior (10,8%), esse é um percentual muito elevado, dado que representava 57% das mulheres que não utilizavam contracepção.

A distribuição da demanda por contracepção no país ocorre de maneira muito diferenciada entre as mulheres. As desigualdades sociodemográficas e econômicas presentes nas diversas esferas da vida social continuam sendo importantes no delineamento do perfil de mulheres que enfrentam a demanda por contracepção no país. Variáveis como estrato econômico, religião, experiência reprodutiva e idade acabam por reforçar desigualdades no acesso ao planejamento da fecundidade. Encontrou-se um grupo primordial para atenção das políticas públicas na área de planejamento da fecundidade (mulheres de estratos econômicos mais baixos, de 15 a 24) para métodos reversíveis que possam garantir o adiamento dos nascimentos e aquelas com mais de 40 anos para limitar os nascimentos. Também merece atenção mulheres que possuem mais de 3 filhos, pois, possivelmente já alcançaram a fecundidade desejada e gostariam de evitar futuros nascimentos indesejados.

Já passados mais de dez anos dessa estimação sabe-se a limitação deste trabalho para se pensar o contexto atual da demanda contraceptiva no país. Infelizmente, nenhuma outra fonte de dados sobre esta temática em nível de representação nacional foi realizada em período mais recente. Assim, reforça-se a necessidade de novas pesquisas que englobem a temática e se possa fazer o acompanhamento desse indicador e vislumbrar o contexto atual do acesso aos diversos métodos contraceptivos pelas brasileiras e suas possíveis demandas por planejamento da fecundidade.

Outra limitação deste estudo é a não contabilização da demanda por contracepção entre as mulheres não unidas. Sabe-se que muitas delas são sexualmente ativas e podem estar vivenciando situações similares às demonstradas. Sabe-se também que o estudo realizado não engloba todas às complexidades que cercam a temática da implementação das preferências reprodutivas. Pois, não basta analisar a demanda por contracepção apenas verificando o uso ou não do método contraceptivo. Há a necessidade de se pensar a adequabilidade dos diferentes tipos de métodos contraceptivos às expectativas e preferências das mulheres. Sugere-se, portanto, novas pesquisas que busquem avançar nestas questões.

Finalmente, reforça-se que a demanda não atendida por métodos contraceptivos é uma realidade para muitas mulheres brasileiras e existem diferenciais importantes de acesso aos direitos reprodutivos. Essa situação desigual e deficitária reflete tanto em gastos em saúde pública quanto em perdas sociais e humanas, já que as gravidezes indesejadas podem gerar abortos clandestinos, mortalidade materna e prejuízos às condições de saúde das mães e das crianças. Existe, portanto, a necessidade de políticas públicas focadas a fim de reduzir a demanda por contracepção, a qual é um dos principais entraves à implementação satisfatória das preferências reprodutivas no país.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Set 2019
  • Data do Fascículo
    Out 2019

Histórico

  • Recebido
    19 Abr 2017
  • Aceito
    26 Mar 2018
  • Publicado
    28 Mar 2018
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