Open-access O insustentável peso da autoimagem: (re)apresentações na sociedade do espetáculo

Resumo

Este estudo teve por objetivo identificar a autoimagem apresentada pelos adolescentes, frente à uma sociedade tecida pela exigência de imagem e padrões corporais considerados perfeitos, compreendendo a influência das relações sociais e da mídia na construção de suas identidades. Trata-se de uma pesquisa qualitativa, alicerçada na História Oral, envolvendo 13 adolescentes de 15 a 19 anos, dos sexos feminino e masculino, alunos de uma escola pública de Minas Gerais. Utilizou-se de entrevistas com roteiro semiestruturado para a coleta dos dados, que posteriormente foram interpretados por análise temática de conteúdo, proposta por Bardin. Os achados foram dispostos em duas categorias: 1 - A imagem de si no processo de construção da identidade do adolescente e 2 - O ideal estético da sociedade do espetáculo. Os relatos demonstram a forte influência das tecnologias na formação de suas identidades e possíveis consequências que a busca de uma imagem espetacular para atender aos padrões estéticos do mundo virtual ou real podem trazer aos adolescentes. Esta autoimagem idealizada revela o modo de ser e viver da contemporaneidade, os valores, a fragilidade e a superficialidade das relações estabelecidas na sociedade do espetáculo.

Palavras-chave: Adolescente; Autoimagem; Imagem corporal; Identificação social; Cultura à beleza

Abstract

This study aimed to identify adolescent self-image in the face of a society forged by perfect image-body standards, understanding the influence of social relationships and the media in constructing their identities. This is qualitative research based on Oral History involving 13 male and female and adolescents aged 15-19, students from a public school in Minas Gerais. We employed interviews with a semi-structured roadmap to collect data, which were later interpreted by thematic content analysis proposed by Bardin. The findings were arranged into two categories: 1 - Self-image in the construction of the adolescent’s identity and 2 - The aesthetic ideal of the spectacle society. The reports show a strong influence of technology in forming their identities and possible consequences that the search for a spectacular image to meet the aesthetic standards of the virtual or real world can bring to adolescents. This idealized self-image reveals the new way of being and living, the values, and the fragile and superficial relationships in the spectacle society.

Key words: Adolescent; Self-image; Body image; Social identification; Beauty culture

Introdução

A adolescência é uma etapa compreendida por mudanças biopsicossociais, caracterizado por comportamentos próprios, questionamentos sobre regras e valores advindos da família, distanciamento desse ciclo familiar e aproximação dos grupos de amigos com os quais se identifica. É nesse momento de descoberta que o adolescente busca se inserir na sociedade, se conhecer e reconhecer no meio em que vive1.

As transformações vivenciadas, como a perda do corpo infantil e a reestruturação corporal podem trazer sofrimento ao adolescente na busca pela aceitação social, gerando preocupações com a imagem corporal, a forma como se apresenta e se relaciona, o corpo que tem e como ele é reconhecido. A influência sociocultural das mídias e do mercado de consumo, ligada à indústria do corpo, definem o padrão de beleza ideal e atuam como importante fator de risco para insatisfação corporal2.

No mundo contemporâneo, a imagem ganha extrema relevância, o espetáculo constitui o modelo atual de vida, como afirma Debord3. A sociedade do espetáculo diz respeito ao cenário capitalista, no qual capital e consumo significam satisfação pessoal, e se traduz numa nova estética que envolve corpo e relacionamentos, permeados ainda por novas tecnologias, onde a imagem media a relação social. Nesta sociedade de aparências, o adolescente arrisca volatizar-se na imagem em sua busca por aceitação e pertencimento.

O espetáculo está disseminado por toda a sociedade, seja por meio de mercadorias, comportamentos que seguem um padrão determinado ou imagens de contentamento subjetivo, com predisposição a se tornar regulamentário3,4. A vida é transformada em show e as relações se baseiam na imagem, valores subjetivados e validados pelo adolescente. É a visão atual do mundo, onde se destacam a credulidade e a utopia baseadas na filosofia de “o que aparece é bom, o que é bom aparece”3. Há uma progressiva exibição do eu, onde a apreciação do que é intrínseco e as reflexões de aspecto retrospecto se tornam dispensáveis5.

Concomitante ao mercado consumista, tem-se uma mídia de poder exacerbado pelo advento da internet e das redes sociais, que exercem um papel persuasivo na fixação pelos padrões de beleza preconizados6. Além disso, existe o processo de estigmatização advindo de uma sociedade embasada em padrões estéticos que contribuem e reforçam a desvalorização do sujeito quando não corresponde a essas perspectivas7.

Na sociedade de consumo há uma espetacularização da vida, de tendências fluidas, que traz como consequência a alienação e a redução do sujeito à imagem3. A adolescência constitui o grupo mais vulnerável às influências e à mídia. Sustentar essa imagem ideal, principalmente para o adolescente que está em processo de mudança é bastante complexo, porque vai além da questão do corpo8.

Por ser um período vivencial caracterizado por peculiaridades que estão além das transformações biológicas, o adolescente está em busca do reconhecimento social que ultrapasse o núcleo familiar. Há necessidade de uma reconfiguração dos papéis sociais e individuais. A complexidade das mudanças vividas torna-o vulnerável frente às mídias e exigências sociais, que impõem determinados padrões de comportamento e estilo de vida. Essas exigências os enlaçam em uma condição existencial, com o risco de se reduzir à imagem numa sociedade na qual os valores subjetivos se desfazem. O culto ao corpo transforma-o em um objeto de consumo, e alcançar o ideal estético torna-se mais relevante que pensar, sentir, criar ou ser saudável9.

Na adolescência é imperativo a construção de uma identidade, que por sua vez é influenciada pelo grupo social e por valores culturais da sociedade contemporânea. Associa-se ainda a mídia, que oferece recursos simbólicos para a construção de padrões sociais, influenciando as identidades individuais e sociais10.

Por identidade, utiliza-se o conceito de identidades fluidas de Bauman11, construídas com todo tipo de materiais disponíveis, relacionadas às comunidades em que estão inseridas, para serem usadas e exibidas. Os indivíduos modernos são frágeis e inseguros, vivem de forma superficial e precisam se esconder atrás das facilidades tecnológicas e mercadológicas, construindo assim várias identidades utilizadas para esconder um rosto e trazer maior satisfação.

Numa perspectiva Debordiana, os valores simbólicos da sociedade do espetáculo, representados pelo consumo e pela imagem são constitutivos desta identidade3. Nas palavras de Tostes e Sanches12, “o consumo, nesse processo, nos aproxima e distância do que queremos ter ou nos tornar, já que está em constante mudança de padrões. O valor simbólico do que consumimos é o que expressa a nossa identidade”.

A imagem é formada através de questões intrínsecas e das vivências cotidianas do sujeito, é uma condição de arranjo individual onde ele se conhece e é reconhecido, ou seja, se dá a partir da fusão dos padrões sociais e das relações construídas. Destaca-se a relevância crucial da autoimagem na construção desta identidade.

A autoimagem pode ser compreendida como a forma como o sujeito se vê, como acha que é ou se sente. Trata-se de “um fenômeno psíquico que possibilita ao sujeito representar e registrar os eventos vividos e/ou percebidos. Forma-se como representação visual, que interfere na maneira como o sujeito percebe, reage e interage com o meio social”. Pode-se dizer que a construção desta imagem se dá na interação do sujeito com o mundo, nas suas relações afetivas e espaços socioculturais13.

A percepção de sua imagem corporal reflete sua relação com o ambiente, relação esta que permite se conhecer e construir uma identidade14. Sugere-se que na contemporaneidade a identidade se constitui pela imagem (o que nos captura e nos projeta) e pelo consumo (o que consumimos e como consumimos). Ao expressar ideais estéticos e modos de viver, a mídia influencia a construção de um padrão de corpo no inconsciente do sujeito. Na adolescência esta imagem é introjetada e validada, constituindo um valor9.

Nesta perspectiva, o estudo teve por objetivo identificar a autoimagem apresentada pelos adolescentes, frente a uma sociedade tecida pela exigência de imagem e padrões corporais considerados perfeitos, compreendendo a influência das relações sociais e da mídia na construção de suas identidades.

Percurso metodológico

Trata-se de um estudo qualitativo, atento à pluralidade das vozes compartilhadas, permitindo conhecer situações que perpassem números considerando a subjetividade, dinamismo e peculiaridades das opiniões15. As narrativas foram obtidas com base no referencial metodológico da história oral, conjunto de procedimentos que utiliza fontes orais e revela as experiências dos sujeitos envolvidos, possibilitando uma nova versão dos fatos a serem considerados socialmente16,17. Utilizou-se história oral híbrida, que promove um diálogo entre os depoimentos orais coletados e outros documentos já existentes, e história oral temática como gênero narrativo, o que permite ao participante, aqui denominado colaborador, revelar sua percepção sobre si mesmo, sobre a influência da mídia e suas relações sociais16,18.

A pesquisa envolveu 13 adolescentes, com idade entre 15 e 19 anos, sendo 10 do sexo feminino e 3 do sexo masculino, alunos de uma escola pública estadual localizada no centro oeste de Minas de Gerais. A escolha da amostra foi intencional, considerando os critérios de inclusão: estar regularmente matriculado na escola, apresentar a autorização do responsável através do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) e assinar o Termo de Assentimento Livre e Esclarecido (TALE). Os critérios de exclusão foram não cumprir as condições descritas. O recorte considerou a faixa etária (adolescência), e questões como gênero, raça ou etnia não foram analisadas, embora os adolescentes apresentassem alguns marcadores sociais comuns, como serem alunos de escola pública.

Os adolescentes foram convidados a participar da pesquisa, após uma breve apresentação do tema em sala de aula. Os interessados, maior parte do sexo feminino, preencheram um formulário com nome, endereço, nome e telefone do responsável. Após contato e autorização por meio do TCLE e assinatura do TALE, foi feita uma entrevista individual com cada adolescente, em dia e horário acordados, em uma sala da escola, fora do horário das aulas, garantindo um espaço de privacidade que favoreceu a aproximação com o adolescente e a escuta de suas percepções, sentimentos e escolhas, impregnadas de subjetividade. O adolescente foi identificado como “A”, seguido do número que representa a ordem em que foram realizadas, o sexo F (feminino) e M (masculino) e a idade.

Para coleta de dados foram utilizadas entrevistas semiestruturadas, com questões norteadoras sobre percepção da autoimagem, padrões de corpo e beleza ideal e influências das mídias sociais na autoimagem, realizadas no período de maio a julho de 2019, gravadas em aparelho digital e transcritas na íntegra para análise e interpretação das narrativas, seguindo as etapas: pré-entrevista, entrevista e pós-entrevista16.

As entrevistas foram encerradas por saturação teórica, quando se percebeu que não havia mais acréscimo nas informações obtidas, dessa forma tornou-se validado o conjunto de dados possibilitando a compreensão do fenômeno pesquisado19. Ressalta-se que os achados da pesquisa destacam o conteúdo das entrevistas, independentemente do número de participantes, e permitem a compreensão dos significados, sentidos das ações e experiências dos adolescentes, em sua (re)apresentação social.

A interpretação qualitativa dos dados utilizou a análise temática de conteúdo, seguindo as etapas propostas por Bardin20: pré-análise, exploração do material e tratamento dos resultados. A utilização desta técnica se justifica devido à forma com que trata as informações coletadas, além de favorecer a análise do contexto das mensagens e caracterizar sua influência social, o que vem ao encontro dos objetivos do estudo. A análise compreendeu: a organização e transcrição das narrativas na íntegra; a leitura vertical, que compreende a leitura estafante de cada narrativa individual para captação das idéias centrais; e as leituras horizontais para determinar discursos que se assemelham, a fim de organizá-los em grupos que deram origem às categorias e subcategorias.

O estudo foi aprovado pelo CEPES-UFSJ, em consonância com a Resolução 466/2012/CNS.

Resultados e discussão

A imagem de si no processo de construção da identidade do adolescente

Na contemporaneidade, a imagem ganha novos contornos e exige dos sujeitos uma outra forma de se apresentar. Neste contexto, em sua travessia para o mundo adulto, o adolescente, considerado “nativo digital” por ter nascido num mundo de novas tecnologias e mídias digitais21, manifesta esta influência em seu comportamento e características, como se vê na definição de si mesmos, fortemente associada a elementos eletrônicos, direta ou indiretamente:

Não tem uma coisa fixa tipo... eu gosto... que tem gente que... tipo eu gosto de praticar esporte tal, eu não gosto tipo de fazer nada, só ficar no telefone mesmo sabe? - A 4 (F, 16).

[...]eu gosto de ver bastante televisão, de dançar, ouvir música... sou uma menina bem amiga, o que precisar pode contar comigo. - A 11 (F, 17).

Sobre mim... Eu levo menino na escola, chego, arrumo lá em casa, depois eu vou ver série, aí quando acaba a série eu vou ver novela, depois da novela eu vejo mais um pouco de série, aí depois é outra novela. - A 13 (F, 18).

Os relatos apontam que os adolescentes são extremamente ligados à tecnologia e ao falar de si mesmos, tem dificuldade de separar suas características pessoais dos seus hábitos, interesses ou desejos.

Com a ascensão da internet e dos meios virtuais, a comunicação tem sido cada vez mais rápida, associada à capacidade de realização de multitarefas em poucos ‘cliques’, fatores atrativos para o público adolescente, caracterizado pelo imediatismo e impaciência. Tais influências exercem importante papel na construção da identidade do sujeito10. É importante salientar que o uso indiscriminado das tecnologias pode trazer consequências negativas como problemas relacionais e ou psicológicos21.

Considerando a relação do adolescente hoje com a tecnologia e a mídia, a imagem é, portanto, um ponto importante neste contexto. Questionados sobre a importância da imagem no mundo atual, eles afirmaram que ela é bastante valorizada pela sociedade:

[...] tem muitas pessoas que, tipo, um carinha, ele vai ligar mais pra beleza agora do que pro caráter, eu acho isso muito errado, não só ele, também muitas meninas fazem isso [...] eu acho estranho porque ninguém vai ter a beleza pra sempre, então não sei porque... - A 5 (F, 17).

Infelizmente é. Vamos supor, se você só vai ser levado a sério, perante a sociedade, se você tiver bem arrumado, se você tiver bonito, essas coisas... O que é uma coisa muito ruim, porque tipo assim, a gente tem que avaliar o que a pessoa tem pra falar, o conteúdo, não essa parte externa, sabe? E tipo, eu acho erradíssimo, tanto no meio do... mercado de trabalho é assim, entende? No meio social, pra você fazer amigos, no meio de relacionamentos, entende? E a sociedade cobra muito isso de você. - A 6 (M, 16).

Sim, na sociedade sim. Cobra muito né? Mas eu acho que isso é errado do mesmo jeito. - A 10 (F, 15).

Em relação à imagem no mundo contemporâneo, os resultados se assemelham a outro estudo8 onde as narrativas apontam uma obrigatoriedade do sujeito em atender aos padrões impostos para que possa ser inserido em determinados espaços. O fato de não seguir os padrões preconizados interfere nas relações com os outros e reflete de forma significativa no olhar sobre si, gerando por vezes, desconforto e insatisfação com o próprio reflexo no espelho.

Ao falar sobre sua percepção ou sentimento frente ao espelho, alguns adolescentes trouxeram a problemática no seu relato, mencionando sentimentos negativos:

[...] uma frase que me define quando eu me vejo no espelho é tipo assim... DE NOVO... só isso, tipo, quando eu olho assim, eu só escuto uma frase: De novo. Mas eu não sei... falar o que eu... tipo, de novo você, de novo você vai passar pelas mesmas coisas, de novo você vai viver as mesmas coisas, e tal... ah ... e... você vai ver as mesmas pessoas. Você vai passar pelas mesmas coisas, as mesmas piadinhas de sempre você vai escutar... as pessoas vão te julgar sem te conhecer... isso. - A 4 (F, 16).

Nossa ... Feia. Não sei. Só queria ficar no médico o dia inteiro, só pra ele tirar tudo que eu tenho de defeito. - A5 (F, 17).

[...] tipo assim, as vezes eu fico pensando assim, “a tal pessoa é mais bonita que eu” a gente tenta melhorar, mas não bate muito às vezes... acho que é mais falta de aceitação... - A 7 (F, 17).

Cabe ressaltar que se vive um contexto histórico que traça o modelo de corpo e padrões de beleza ideais, que trazem repercussões que ultrapassam a subjetividade do indivíduo, estando envoltas em um contexto amplo de poder da sociedade sobre o sujeito, que busca atender às necessidades desta8.

Os moldes do corpo ideal têm se apresentado inatingíveis, sendo que até os indivíduos que se aproximam das exigências e dos padrões sociais de beleza sentem-se aborrecidos por não contemplar a perfeição em sua totalidade22. O que se assemelha ao estudo2 onde mesmo adolescentes eutróficos apresentavam insatisfação corporal, ou seja, o corpo que tenha o peso satisfatório não é suficiente e corrobora com os achados do presente estudo, no qual a grande maioria dos adolescentes mencionam insatisfação corporal.

Diante da possibilidade de modificação na imagem, o desejo de mudança estética aparece nas narrativas, sendo o nariz o que mais incomoda seguido do peso, cicatrizes, manchas de espinha, estrias e altura:

[...] meu nariz... rinoplastia e acho que eu só e tiraria minha cicatriz, que foi eu caí brincando com a minha irmã e caí, e essa aqui eu fui atropelada. Hoje em dia, nem tanto me prejudica, mas quando eu era mais nova eu tentava esconder ao máximo. Cortava franjinha, só para não aparecer, hoje em dia não prejudica muito não, porque eu já tô meio que aceitando. Mas eu não gosto muito não. - A 7 (F, 17).

Eu queria mudar minha altura, porque eu não gosto de ser pequena e mudaria a minha gordice. Mas eu já tô um pouco tranquila, que eu já emagreci um pouquinho, é inchaço. - A 10 (F, 15).

Meu corpo, tentar mudar, as manchas, marcas (estrias). Tirar um pouco da barriga e tirar as estrias da vida. Esses dias eu tava no banheiro fui olhar pra elas, comecei a chorar lá dentro... elas é feia... fica um trem feio. - A 13 (F, 18).

Na busca incessante pela satisfação e cumprimento da ditadura da beleza, o comércio avassalador de cosméticos, adereços, vestuário, atividades físicas, dietas, e sobretudo, os procedimentos estéticos têm ganhado espaço, pois contribuem de forma rápida para o cumprimento das exigências normativas que envolvem o corpo23. Tal contexto é reforçado nas falas dos adolescentes, ao referirem a insatisfação com alguma parte do corpo e a vontade da realização de alguma cirurgia estética, como a rinoplastia.

Secundariamente às questões da imagem corporal, o desejo pela mudança em aspectos subjetivos também foi relatado:

Eu mudaria meu jeito de ser, eu sou muito ansioso... sou muito ansioso... e eu acho que eu sou muito, como é quando a pessoa é... possessivo... sou muito possessivo. Tanto em relacionamento quanto em minhas coisas. Isso eu acho que em partes é bom, mas em partes me atrapalha. - A 2 (M, 17).

Eu me colocaria uma pessoa mais extrovertida, sabe? Com mais facilidade de falar com todo mundo e tal. - A 4 (F, 16).

As narrativas confirmam a perspectiva de Debord3 de uma sociedade do espetáculo, na qual a imagem é supervalorizada em detrimento dos valores ou aspectos subjetivos. O desejo de uma mudança estética se sobrepõe às outras, pois busca-se uma imagem ideal, espetacular.

Atualmente nas mídias ocorre a ascensão das influências nominadas “transgressoras” que são as que fogem do normativo, do estereotipado e modificam o adágio social de forma a defender as diferenças e empoderar os sujeitos e suas características, muitas vezes relegadas24. É um movimento de valorização das diferenças que se contrapõe ao modelo ideal, ressaltando a diversidade. Entretanto, esta influência não foi identificada na narrativa dos adolescentes.

O que se percebe ainda é que as mídias sociais e demais meios de comunicação tem contribuído significativamente para essa busca incessante da beleza, somado ao comércio de fabricação intensiva que segue rigorosamente à moda, aos padrões e ofuscam a beleza individual do sujeito22. Bauman25 alega que a sociedade tem se tornado líquida, na qual as relações são fluidas e não há concretização de ideologias individuais, a identidade é passageira seguindo a mudança contínua dos padrões sociais.

Observa-se o imediatismo presente na adolescência, pois apenas um colaborador trouxe em seu relato planos futuros:

[...] tô no 2° ano do ensino médio, pretendo aí me entender pra ver o que eu quero fazer ainda, porque eu não sei o que eu quero fazer, estou em dúvida em ser tatuador, maquiador ou mexer com a área da moda. - A 6 (M, 16).

A vivência do adolescente é fundamentada em suas demandas particulares, caracterizada pela dificuldade em determinar seu lugar no tempo e espaço, apresentando uma oposição ao futuro com tendência a evitar atitudes que abreviem a concretização do amadurecimento, consequentemente, da fase adulta10. O que justifica a ausência, quase unânime, de relatos que abordem planos futuros ou projetos de vida.

Observa-se que a tecnologia e os meios virtuais têm exercido influências nos vínculos sociais, no fortalecimento ou não das relações interpessoais e na percepção do indivíduo nas questões que envolvem a autoimagem, o que nos instiga a uma reflexão sobre a influência das relações sociais e da mídia na construção do sujeito adolescente.

O ideal estético da sociedade do espetáculo

Dentro dos padrões de beleza impostos pela sociedade, os adolescentes pontuaram o corpo magro ou musculoso, cabelo grande e/ou liso, ser branco, ter olhos claros. Ainda que esse artigo não tenha pretendido fazer uma análise acerca da racialização da beleza na sociedade do espetáculo, tampouco foram aprofundadas estas questões com os participantes, não se pode deixar de mencionar a relevância dessas discussões em relação à valorização de certos traços racializados e as tentativas de apagamento de outros considerados desvalorizados26:

Uai, um corpo perfeito, sem tipo... um corpo estilo Barbie, é... um nariz fininho, um cabelo longo, liso, nem precisa ser liso, um cabelo longo sabe? Ah e precisa ser uma pessoa extrovertida também né? precisa conversar com todo mundo. - A 4 (F, 16).

Em contrapartida, um adolescente relatou sobre os padrões impostos sobre a raça negra:

Agora ficou na moda ser negro sabe?... e agora se você é negro, você tem que ser forte, alto, entendeu?... sorriso branco... e quando não tem isso, quando é baixinho... essas coisas... é favelado, é sujo... entendeu? - A 2 (M, 17).

Reafirmando o poder das mídias sociais na ditadura da beleza, sua influência aparece na distorção da autoimagem corporal que o adolescente tem de si:

[...] o mundo depois que começou esse trem de internet, blogueirinhas, essas coisas, acabou muito. Porque todo mundo ligou muito, tipo pra aparência sabe? ‘Aí eu tenho que ficar igual àquela fulana de tal ali porque fulana de tal é bonita e porque fulana de tal usa aquela roupa. - A 9 (F, 18).

Os relatos condizem com o estudo27 que afirma que a sociedade ditava regras sobre conceitos de padrões ideais, desde os séculos passados, numa busca incessante pelo fantasioso corpo perfeito, rotulando os que fugiam à norma. A imagem que os adolescentes têm de si mesmos em relação aos padrões estéticos ideais difere, assim como difere a relação que estabelecem entre os padrões de beleza e avaliação da autoimagem:

[...] nem cheguei nem perto nem na portinha, mas né. Assim, já me incomodou mais, mais sabe a ponto de sei lá... eu pensar assim que que eu vou fazer? Porque eu tô presa numa casca que tipo porque né? A pessoa você tem por dentro fica presa na pessoa você tem que por fora quando você não se encaixa, aí você fica tipo como é que eu vou fazer? - A 4 (F,16).

Eu reconheço meu lugar de fala, eu sei que estou dentro dos padrões porque eu sou alto, sou loiro, entende? Mas, ao meu ponto de vista, tem muitas coisas que eu não gosto em mim. Que muitas pessoas falam tipo “nossa mas porque você não gosta disso, você tá tão bonito, tá tão dentro do padrão” sabe? Mas eu me vejo e não gosto, entende? - A 6 (M, 16).

Ahh, eu me acho bonita. Eu não importo muito assim não. - A 11 (F, 17).

O adolescente busca atender às expectativas do grupo à qual pertence, incluindo os padrões de beleza e quando não há satisfação com a própria imagem, tende a recorrer à procedimentos estéticos “milagrosos” que podem comprometer sua saúde9. Os relatos demostram que a insatisfação corporal está ligada à comparação do corpo real com o dito ideal e mesmo quando o sujeito está dentro do padrão esperado, ainda lhe falta algo.

A exigência social em relação a imagem é correlacionada pelos adolescentes com os padrões estéticos da contemporaneidade, onde a adequação é imperativa:

Então... o mundo cobra que a gente seja do padrão deles né? Com o corpo assim... sarado, no caso do homem. corpo sarado, forte, entendeu? - A 2 (M, 17).

Assim, como eu sou adolescente, cobram muito né? Porque adolescência, acho que é a fase que as pessoas mais querem aparecer, sei lá... Aparecer para o mundo mais bonito, entendeu? Acho que sim. Super. - A 6 (M, 16).

Os relatos apresentados se assemelham ao estudo8 no qual observou-se uma obrigatoriedade dos adolescentes se adequarem às necessidades do meio em que vivem e convivem para que sejam socialmente aceitos.

Espera-se que o adolescente não fuja às normas e se ajuste ao padrão, desconsiderando sua singularidade. Somado a esta imagem existe ainda uma pressão familiar que fez questionamentos a quem esse adolescente é e como seu corpo se apresenta em um momento de transformação:

Cobram. Porque na minha família... fora assim, na rua, não... mas na minha família, eles cobram muito porque às vezes eu tô um pouquinho gordinha, ai eles falam “nossa mas você tá muito gorda, tá fazendo alguma relação?”, “Ah, mas você tá muito magra, você tá vomitando?”, “ah você tá feia”, ah faz isso, faz aquilo, é ruim também. Ainda mais de família, pai, mãe, é ruim né? Aí você fica assim, será? É verdade? Deixa eu ver o que eu faço. - A 10 (F, 15).

Frente à sociedade espetacularizada, na qual a imagem é o valor dominante, o adolescente aposta no ideal estético, reconhecendo-o como válido para si. Na tentativa de ser aceito socialmente, ele reconhece que está fora deste ideal e se cobra, buscando uma imagem perfeita, adaptada aos padrões estéticos. Pressionados por expectativas sociais e familiares, as cobranças aparecem relacionadas ao corpo:

Cobro. Muito. Tudo. Se eu não conseguir fazer eu vou lá e cobro, porque eu sou uma pessoa muito perfeccionista, eu não gosto de nada de mim. Nada. Tipo meu peso, que emagreço, engordo, emagreço, engordo... tipo o rosto, a beleza, acho que só. - A 5 (F, 17).

Já cheguei a me cobrar muito. Muito mesmo. Tipo de olhar no espelho... eu ainda tenho essas paranoias sabe? Porque eu fico com medo, eu tenho medo de engordar. Acho que eu fiquei com tanto medo, com tanto negócio na cabeça, sabe? Que eu fiquei um pouquinho paranoica. - A 9 (F, 18).

As redes sociais, assim como a mídia, têm um papel ativo na construção dos ideais de existência. Importa dizer que esta análise é um recorte parcial, existem outras possibilidades de leituras e discursos acerca da diversidade da beleza, que fogem do normativo e valorizam as diferenças24. Considerando o recorte utilizado, os ideais se convergem em padrões a serem seguidos:

Muito. Ah eu sou... A qualquer coisinha que eu acho que tá assim errado, num tá errado, mas minha cabeça diz que tá errado, sabe? Aí, eu já fico olhando e questionando, sabe? É muito influência da internet também, saca? Porque eu, por exemplo, eu comecei a ter baixa autoestima depois que comecei a entrar mais em Instagram, ficar me comparando muito com outras pessoas, sabe? Que é uma coisa que é muito ruim, você fala, tipo assim, “ah, eu não tenho aquilo no meu corpo” aí já começa se autodepreciar, ficar mal, entende? - A 6 (M, 16).

A autocobrança extrapola o conceito de exigência em atingir os próprios limites, satisfazer seus desejos ou alcançar seus objetivos, pois também envolve a necessidade de atender os anseios dos outros com os quais se relaciona, e suprir o que é padronizado e regulamentado socialmente. Nesse sentindo, os sujeitos tendem a se tornar reféns das cobranças intrínsecas e externas e de um artifício insalubre de seus sentimentos e atitudes17. Ao incorporar o discurso midiático, a sociedade valida e reproduz o ideal estético. Na busca de alcançar este ideal, o sujeito se submete a procedimentos e práticas transformadoras que comprometem a saúde, desenvolvendo doenças como anorexia e bulimia, ou consome produtos e serviços veiculados na mídia com promessas de satisfação corporal e inserção social, ignorando o aspecto comercial por trás deste apelo, resultando em frustração e sofrimento psíquico9,28.

A sociedade do espetáculo é também a sociedade de consumo, o que estabelece uma relação entre a imagem com a qual o sujeito se apresenta e o que ele consome. Mergulhado nas imagens ideais, o adolescente é bombardeado pela mídia que garante sucesso a partir da compra de mercadorias. Para se (re)apresentar, o consumo pode ser excessivo:

Compro muita roupa. Muito mesmo, eu gosto de roupa, tipo assim, de sair à noite. Roupa preta, roupa, não muita roupa colorida, calça flare, saia, sabe? Essas coisas... Anabela, esses calçados, sabe? Anabela, salto, essas coisas, tudo que eu quero minha mãe dá. A minha mãe dá tudo. Olha ela pega o cartão com a minhas tias compra, ela nunca nega nada. Ela paga, ela compra trem caro. - A 3 (F, 17).

O consumo, estimulado por fatores como autoestima, necessidade de pertencer a algum grupo ou apelo midiático, especialmente em indivíduos em formação da identidade, tem um valor simbólico. Os produtos “possibilitam a criação de uma imagem apresentada socialmente, assim como compõem, no imaginário do indivíduo, o papel que ele deseja representar”12. Destarte, ao tentar se estabelecer e ser aceito, o adolescente associa sua autoimagem ao consumo, idealizando um padrão estético.

Observa-se, entretanto, que alguns adolescentes fogem à regra do ter para parecer ser:

Compro quando o meu acabou, tá ruim já, aí compro outro, compro só quando acho bonito e tô precisando. - A 1 (M, 18).

Precisão. Porque por mim eu nem ia comprar. Não sou de comprar. Mas assim, o que me leva a comprar mesmo é se eu achar bunitinho, tipo “nossa, aquilo ali é bonitinho, vou comprar”. Mas é só se eu estiver precisando. Caso contrário eu não gasto dinheiro com isso. - A 9 (F, 18).

Em uma sociedade capitalista, a cultura do consumismo é disseminada e intensificada. Os bens de consumo, adquiridos ou não, são usados para definir o indivíduo, favorecendo um afastamento e fortalecendo as vulnerabilidades e exclusões sociais29. Assim, a subjetividade se constitui na lógica do consumo e na maneira como se lida com seus imperativos.

Referente ao processo de escolha, os adolescentes correlacionaram o consumo com a influência das mídias e pontuaram também consequências negativas vindas dos meios virtuais:

Conforto e a moda, eu vejo muita foto no Instagram dessas pessoas mais famosas, aí eu fico olhando as roupas. - A 8 (F, 15).

Acho que as redes sociais e a mídia na nossa volta influenciam muito as pessoas... e eu tenho vários amigos aqui que até se cortam, que ... sabe... que ... é um caso de depre... é que eu não sei julgar o que é uma depressão ou não mas dizem estar em depressão, sabe? Por causa dessa questão do corpo, se comparam, na maioria, eles se comparam na mídia né... influência. - A 2 (M, 17).

E tipo eu conheço pessoas que na rede social postam uma vida perfeita e tal e na vida real, é tipo, totalmente pra baixo, não tá bem, saca? É muito isso, a rede social é pra colocar uma vida perfeita que você tem, eu mesmo me identifico muito com isso, que eu coloco muita coisa boa de mim e o ruim a gente não mostra, sabe? A gente sempre tenta bloquear o ruim. Porque eu acho que o ser humano tem disso, a gente sempre quer mostrar a parte boa da gente, só que a parte boa da gente é muito momentânea, a gente nunca tá bem, sabe? - A 6 (M, 16).

Na percepção do adolescente, os bens de consumo podem dar visibilidade social, o que o torna o principal alvo do mercado, pois representa a faixa etária que mais consome mídias sociais. Importa lembrar que a disseminação de alguns produtos ou imagens ditas ideias traz sentimentos e/ou ações negativos e disfuncionais diante da impossibilidade de atingir tais padrões ilusórios, porém necessários socialmente12.

Considerações finais

Ao possibilitar um espaço em que os adolescentes pudessem ter voz, compartilhar sua percepção sobre essa sociedade espetacularizada, os padrões socialmente impostos e de que forma as relações construídas e as mídias interferem na construção da subjetividade, foi possível observar nos discursos que as tecnologias, mais especificamente as redes sociais, fazem parte do universo dos adolescentes e exercem forte influência na construção de sua identidade, uma vez que estão intensamente imersos nesse ciberespaço.

Os padrões estéticos apresentados no mundo virtual são condizentes com os exibidos na vivência real, em ambos os casos são regulamentários e tendem a se tornar ditatoriais, trazendo consequência negativas para os sujeitos que não atendem a essas expectativas, como baixa autoestima e autodepreciação. Exigem ainda um esforço excessivo dos que tentam se ajustar a um modelo pré-estabelecido para se reapresentar socialmente, com corpos-imagem ideais.

Os adolescentes que colaboraram com a pesquisa, se percebem imersos em cobranças que perpassam os padrões sociais, midiáticos e a própria autocobrança, nesse sentido estão constantemente insatisfeitos, principalmente, fisicamente.

Sendo assim, este estudo possibilitou conhecer a percepção dos adolescentes em meio às modificações socioculturais e as representações midiáticas, o que leva a uma análise crítica e reflexiva sobre o tema. A autoimagem do adolescente revela o modo de ser e viver da contemporaneidade, os valores vigentes, a fragilidade e superficialidade das relações que se estabelecem na sociedade do espetáculo. Espera-se que estas reflexões ofereçam subsídios para outras análises e caminhos possíveis para se pensar o cuidado em saúde do adolescente, na perspectiva biopsicossocial, que possa contribuir para a construção de sua identidade.

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Editado por

  • Editores-chefes:
    Romeu Gomes, Antônio Augusto Moura da Silva

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Jul 2021
  • Data do Fascículo
    Jul 2021

Histórico

  • Recebido
    27 Fev 2020
  • Aceito
    15 Abr 2021
  • Publicado
    17 Abr 2021
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