A influência da religião e seus efeitos na sociedade não pode ser ignorada pelo campo da Saúde Coletiva, tendo em vista que esta busca compreender o fenômeno “saúde” em suas diferentes relações e determinações1. Não podemos, então, nos esquivar da relevância deste aspecto, considerando os atravessamentos da religião/espiritualidade sobre as políticas de saúde e sobre o cuidado nos diferentes serviços.
O livro organizado por Eduardo Mourão e Rita Cavalcante, ao longo de sete capítulos, traz importante contribuição ao exporem a influência da religião na sociedade brasileira e suas implicações para a política de drogas. Demonstram a existência de diferentes formas de apoio social produzidas pelas instituições religiosas. Mas, também observam que essas mesmas religiões promovem, por meio de algumas lideranças, práticas e discursos que fomentam a intolerância, o desrespeito à diversidade humana e ataques às conquistas históricas das políticas sociais e dos direitos humanos.
Esse caráter complexo e paradoxal da religião promove uma tensão que, segundo os autores, deve ser sustentada para analisar os efeitos psicossociais e políticos, sem operar reducionismos ou manter dualismos excludentes2.
No capítulo 1, O campo das ciências das religiões, o paradoxo apoio social/intolerância e as práticas no lidar com situações existenciais/sociais limite e com as drogas, Eduardo Mourão apresenta uma síntese sobre as diferentes ciências que abordaram a religião como objeto de estudo. Desde uma perspectiva histórica, demonstra que a religião possui dimensões e atravessamentos econômicos, sociais, políticos, psicológicos, com reverberações sobre modos de pensar a sexualidade, as identidades e a vida em sociedade.
Situando a especificidade do nosso país, mostra uma tendência ao crescimento das filiações evangélicas com expressiva adesão das classes populares. Essa popularidade encontra respaldo na resposta à demanda de cuidado e de apoio social aos pobres, que encontram nas religiões formas de reintegração social e pertencimento. Desse modo, sustenta a ideia de que no Brasil e na América Latina, marcados pela exploração colonial, e a consequente manutenção de desigualdades sociais, a religião tem servido como uma estratégia de sobrevivência às situações sociais e existenciais limite.
Essa adesão da população envolve uma exigência do seguimento de uma moral rígida, uma visão individualizante e a histórica sobre os problemas sociais. A repercussão disso parece ser um dos fatores que nos ajudam a compreender o panorama atual, com a ascensão de posturas conservadoras, o fortalecimento do discurso proibicionista na política sobre as drogas3 e as atitudes intolerantes contra as diferenças.
Segundo o autor, não se pode deixar de denunciar os abusos de parte dessas lideranças religiosas que buscam a imposição de valores particulares, numa tentativa de suplantar a laicidade do Estado e das políticas públicas. Por sua vez, é preciso combater uma postura antirreligiosa, que impede uma compreensão integral da subjetividade e nos afasta de uma comunicação com as classes populares, e de diálogos com possíveis posturas progressistas vindas de alguns destes segmentos religiosos.
O capítulo 2 intitula-se Religião não se discute? Reflexões acerca de influências da religião no campo dos direitos humanos. De autoria de Jefferson Lee de Sousa Ruiz, o autor comenta que a recomendação sobre não discutir religião, tão afirmada no ditado popular, impede que apreendamos este fenômeno de maneira crítica. Para se desvencilhar dessa interdição demonstra que, desde longa data, religião, política e poder econômico estão juntos em vários momentos da história. Por isso, desconsiderar esse debate serviria, na verdade, para ocultar as intrincadas relações estabelecidas entre a religião e a sociedade.
Pensando a relação entre os discursos religiosos e o reconhecimento dos direitos humanos, o autor mostra que, os valores professados pelos cristãos nem sempre se conectam com os objetivos das políticas públicas, que devem ser amplos e considerar a diversidade dos modos de vida. Assim, propõe que, reduzir a influência religiosa nas decisões coletivas de uma sociedade constitui forma importante de promover a pluralidade dos interesses e o respeito aos direitos humanos.
No capítulo 3, Antecedentes históricos e teóricos da irmandade de alcoólicos anônimos, escrito por Tatiana Rangel Reis, aborda-se o histórico dos Alcoólicos Anônimos (AA) e a relação entre o tratamento do alcoolismo e a religiosidade. A autora aponta que os fundamentos do AA guardam estreita relação com a cultura protestante. Mostra, também, que o apoio de padres, pastores e seitas religiosas é nítido em todo o desenvolvimento da irmandade. Por isso, deixa-se entrever que há uma espécie de busca de conversão pelos membros que muito se assemelha aos processos religiosos.
No capítulo 4, A institucionalização clínica e política das comunidades terapêuticas e sua relação com a saúde mental brasileira, Rita Cavalcante discute a inserção das Comunidades Terapêuticas (CTs) na política de saúde mental e as estratégias que estas vem desenvolvendo para fortalecer seu modelo de atenção. Destaca que os atores religiosos vêm reivindicando isenções fiscais, financiamento público e inserindo-se nos conselhos de políticas públicas para fortalecer a institucionalização das Comunidades Terapêuticas. Além disso, o apoio oriundo de alguns profissionais de saúde endossa esse modelo baseado na abstinência de substâncias e no isolamento do sujeito, conferindo credibilidade na disputa por reconhecimento. Assim, temos um terreno político propício para o fortalecimento das CTs e um consequente enfraquecimento das iniciativas públicas no Sistema Único de Saúde (SUS).
O capítulo 5 é escrito por Pedro Paulo Bicalho, Roberta Barbosa e João Pedro Simões. Intitulado Promoção de direitos humanos no contexto de denúncias de violações em comunidades terapêuticas no Brasil, os autores chamam a atenção para a legitimação da internação e o isolamento de pessoas que usam drogas no cenário nacional apesar das graves denúncias envolvendo alguns desses locais4.
Essa constatação só reforça a tese de que, no âmbito da formulação das políticas sobre drogas, as evidências científicas são postas de lado em favor da opinião particular de grupos hegemônicos5, pois, mesmo sem comprovações de que as CTs sejam um modelo superior de tratamento, elas vêm ganhando grande espaço na política brasileira.
No capítulo 6, Religião e combate ao consumo de drogas no Brasil: análise de discursos de lideranças pentecostais e católicas carismáticas, as autoras Maria das Dores Machado e Cecília Mariz, analisaram o discurso de lideranças, católicas e evangélicas, com a finalidade de demonstrar o modo como seus princípios religiosos se articulam sobre o tratamento oferecido para as pessoas que tem problemas com drogas.
Embora digam que não pretendem converter os assistidos, os rituais dos projetos de cuidado às pessoas que usam drogas, realizados por algumas dessas lideranças, envolvem momentos de oração e leituras da bíblia. Constata-se com isso que há uma tentativa de mesclar os discursos religiosos com conhecimentos e práticas médicas e psicológicas como forma de legitimarem a articulação de suas instituições com o Estado.
O capítulo 7, O debate legislativo brasileiro no campo das drogas, desenvolvido por Míriam Denadai, apresenta uma análise documental sobre os projetos de lei envolvendo a questão das drogas no congresso nacional. Foram analisados projetos de lei entre 2006 e 2014 e entrevistas com deputados. Vê-se um conteúdo moralista nas propostas enviadas, com ênfase na droga como algo a ser eliminado, e a ausência de entendimento sobre os processos sociais, econômicos e culturais que produzem o abuso de drogas na sociedade.
Observa-se um direcionamento do congresso ao apelo da política proibicionista, que acredita ser possível um mundo sem drogas, e mostra que o debate no legislativo tende a ignorar a ineficácia dessa proibição e seus efeitos deletérios. As propostas analisadas demonstram a intenção de aumentar o poder coercitivo do Estado sobre os usuários em detrimento de uma perspectiva de atenção à saúde das pessoas.
Por fim, percebe-se que os fatores complexos que interligam as religiões no contexto brasileiro ao debate sobre a política de drogas merecem maior atenção do campo da Saúde Coletiva. Observa-se que, mesmo considerando a religião como uma estratégia de sobrevivência das classes populares e como responsável por um certo tipo de apoio social à população, a interferência desta, na política de drogas, tende a reforçar preconceitos e estigmas que prejudicam uma abordagem humanizada e que resguarde o respeito aos direitos humanos.
Referências
- 1 Minayo MCS. A busca da verdade no campo científico da saúde. Cien Saude Colet 2013; 18(10):2806-2808.
- 2 Vasconcelos EM, Cavalcante R. A importância da produção acadêmica e do debate sobre as religiões/espiritualidades na atual conjuntura social e política brasileira. In: Vasconcelos EM, Cavalcante R. Religiões e o paradoxo apoio social/intolerância, e implicações na política de drogas e comunidades terapêuticas. São Paulo: Hucitec; 2019. p. 13-27.
- 3 Prudêncio JDL, Senna MDCM. Retrocessos na atenção a usuários de álcool e outras drogas. Argumentum 2018; 10(3):79-93.
- 4 Brasil. Ministério Público Federal. Conselho Federal de Psicologia (CFP). Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura. Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão. Relatório da Inspeção Nacional em Comunidades Terapêuticas. Brasília: CFP; 2018.
- 5 Tatmatsu DIB, Siqueira CE, Prette ZAPD. Políticas de prevenção ao uso de drogas no Brasil e nos Estados Unidos. Cad Saude Publica 2020; 36(1):e00040218.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
09 Ago 2021 -
Data do Fascículo
Ago 2021