Resumo
O artigo evidencia o avanço da ciência na interpretação de pandemias, em contraste com o fracasso de governos que politizaram a abordagem da emergência de saúde pública global decorrente da COVID-19. Trata-se de um estudo que apresenta uma reflexão sobre o processo de dissonância cognitiva causada pela infodemia e aborda a necessidade de aplicar a infodemiologia para mitigar os efeitos deletérios de notícias falsas que são fabricadas intencionalmente, com o objetivo de confundir, enganar, manipular e negar a realidade, sem, contudo, perder de vista que as raízes do problema são históricas, conjunturais, profundas e de difícil solução. O trabalho revela os impactos dessa situação para profissionais de saúde e expõe a linha tênue que existe entre a liberdade de expressão e o direito essencial à vida, levando à conclusão de que escolhas erradas, no que tange à saúde pública, podem causar mortes evitáveis.
Palavras-chave: Pandemia; COVID-19; Desinformação; Infodemia; Saúde
Abstract
This paper highlights the advance of science in interpreting pandemics, in contrast to the failure of governments that politicized the approach to the global public health emergency resulting from the COVID-19 pandemic. This study reflects on cognitive dissonance caused by the infodemic. It addresses the need to apply infodemiology to mitigate the deleterious effects of fake news intentionally fabricated to confuse, mislead, manipulate, and deny the reality without losing sight of the fact that the roots of the problem are historical, circumstantial, profound, and challenging. This work reveals the impacts of this situation for health professionals and exposes the fine line between freedom of expression and the fundamental right to life, leading to the conclusion that wrong choices in public health can cause preventable deaths.
Key words: Pandemic; COVID-19; Misinformation; Infodemic; Health
A emergência de saúde pública global deflagrada pela virulência da COVID-19 evidenciou a evolução da capacidade humana de entender, conceituar e reagir a uma pandemia, bem como buscar as melhores evidências para a tomada de decisões. A partir das evidências estabelecidas em Wuhan, na China, em dezembro de 2019, cientistas levaram média de apenas duas semanas para fazer o sequenciamento genético do vírus Sars-CoV-2 identificado em pacientes infectados e, menos de um ano depois, já existiam vacinas comprovadamente eficazes contra a infecção causada por esse patógeno. Foi uma resposta rápida e eficiente, sobretudo, se comparada às respostas que a humanidade conseguiu ensaiar frente a outras pandemias, como a da H1N1, da Gripe Espanhola e da Peste Negra¹, guardadas as devidas proporções.
Entretanto, o notável avanço científico atinado na compreensão do novo coronavírus não impediu o fracasso retumbante nas estratégias de nações como o Brasil, a Índia e os Estados Unidos no enfrentamento à pandemia da COVID-19, fato que se confirma pelo volume expressivo de casos confirmados, internamentos dos casos graves em Unidades de Terapia Intensiva (UTI) e mortes evitáveis registradas nesses países2. Para além das equivocadas políticas de saúde pública, como a imunidade de rebanho e a aposta em medicamentos sem evidência científica, esse resultado se deve à valoração exacerbada de curas milagrosas, de teorias conspiratórias, de notícias espetaculosas e da sedição contra vacinas, em detrimento de medidas sanitárias simples e comprovadamente eficazes, como o uso de máscaras, a higiene das mãos, a manutenção do distanciamento social e a aquisição de imunizantes em tempo hábil e oportuno3.
Essas contradições levaram parte considerável da população a uma dissonância cognitiva, caracterizada pelo volume exponencial de conteúdo disponível na rede mundial de computadores sobre a pandemia. Tanto que a Organização Mundial da Saúde (OMS) passou a empregar o termo infodemia, para designar o excesso de informações, precisas ou não, que tornam difícil encontrar fontes idôneas e orientações confiáveis quando se precisa4. Segundo a OMS, apenas em março de 2020, quando foi declarada oficialmente a emergência de saúde pública decorrente da pandemia do novo coronavírus, foi possível computar a publicação de 361 milhões de vídeos, 19.200 artigos e 550 milhões de tuítes com os termos coronavírus, covid19, covid-19 ou covid_19.
Nesse contexto infodêmico, a propagação de notícias falsas ou fantasiosas pode ocorrer como um viés de confirmação5, que leva os indivíduos a buscarem informações que ratifiquem as suas próprias crenças. Não obstante, levando em conta a polarização da discussão sobre a COVID-19 no Brasil, é notável a produção em larga escala de fake news sobre a pandemia, de maneira deliberada, intencional e criminosa, com o objetivo de enganar, manipular, ludibriar e negar a realidade, por razões políticas, econômicas e ideológicas. Esse problema foi agravado sobremaneira, a partir do momento que governantes de diversos países passaram a difundir notícias sem fonte confiável, além de orientar o uso de medicações sem eficácia comprovada para o tratamento da COVID-196.
Lamentavelmente, o expediente das fake news tem servido como mote para o racismo e a xenofobia contra o povo chinês, cujo governo vem sendo acusado, sem provas, de ter promovido intencionalmente o vazamento do vírus Sars-CoV-2 de algum laboratório. No Brasil, nos EUA e na Europa, o uso de expressões como vírus chinês e comunavírus ganharam força entre conspiracionistas, que desprezam qualquer prudência na manifestação de comportamentos discriminatórios, que já estavam introjetados e encontraram terreno fértil para se proliferar em contexto infodêmico. No vizinho Japão, a acusação de bioterrorismo contra o governo chinês e a proeminência de hashtags como #ChineseDon’tComeToJapan (Chinês, não venha para o Japão) mostram a disposição do público para desenvolver comportamentos inaceitáveis7.
Em sentido estrito, é providencial discutir maneiras objetivas de aplacar a produção deliberada de notícias falsas sobre saúde pública e identificar condutas delituosas, que interferem na implantação de políticas públicas eficientes e, consequentemente, causam desassistência, caos e mortes. Contudo, é prudente e necessário buscar engendrar essa iniciativa sem ferir o direito à opinião, sem prejudicar as liberdades individuais e invadir a privacidade dos cidadãos. Nesse contexto, é fundamental não dar margem para a censura8, pois isso seria ainda mais prejudicial à sociedade e à democracia do que a própria infodemia. Por outro lado, é crucial considerar que o direito à opinião não confere a prerrogativa de baseá-la em falsidades, que a liberdade individual não pode se sobrepor ao interesse público, e que a privacidade dos sujeitos não é mais importante que o direito essencial à vida.
A pandemia de desinformação insuflada pelas redes sociais e pelos aplicativos de mensagens instantâneas, demanda uma resposta integrada e coordenada em nível global por parte das instituições e dos especialistas. Para aplacar os efeitos deletérios da infodemia, pode-se empregar a infodemiologia9, ramo da ciência da comunicação que se dedica a mergulhar fundo na internet, à procura de conteúdos relacionados à saúde pública, fornecidos por usuários comuns, com a finalidade de analisar esse conteúdo para melhorar a comunicação e a prestação de serviços de saúde pública. Na prática, isso significa monitorar informações, estimular a alfabetização sobre saúde e ciência, incentivar processos de aprimoramento das notícias, traduzir o conhecimento científico e fazer checagem e revisões sistemáticas, para minimizar os fatores de distorção e desinformação.
O emprego da infodemiologia é imperativo, uma vez que os desdobramentos da infodemia afetam diretamente os profissionais da saúde. Existe uma parcela considerável da população que trata a categoria de forma desumana, como se profissionais da saúde fossem hospedeiros de doenças, que devem ser segregados do convívio social e familiar. Segundo dados da pesquisa Condições de Trabalho dos Profissionais da Saúde no Contexto da Covid-1910, realizada pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), 40% desses trabalhadores já passaram por episódios de violência e discriminação no ambiente de trabalho, 33,7% já foram vítimas de discriminação na própria vizinhança, 27,6% relatam episódios de preconceito no transporte público, e 90% deles acreditam que as notícias falsas são um obstáculo no combate à COVID-19, uma vez que, segundo os próprios profissionais da saúde, 76% dos pacientes chegam às unidades de saúde com algum tipo de crença baseada em fake news.
Esforços práticos estão sendo desdobrados em escala global para conter os efeitos negativos da infodemia decorrentes da pandemia da COVID-19. Logo após a decretação da emergência de saúde pública global decorrente desta doença, a OMS lançou uma nova plataforma de informação chamada WHO Information Network for Epidemics (EPI-WIN)11, com o objetivo de divulgar, compartilhar e amplificar mensagens corretas para públicos específicos. Essa medida comprova que uma epidemia global de desinformação, se espalhando rapidamente por meio de redes sociais e aplicativos de comunicação instantânea, representa uma preocupação relevante de saúde pública. Nesse sentido, embora não seja uma solução definitiva, é fundamental a contribuição permanente das instituições de saúde pública, no sentido estimular que as pessoas sejam informadas e estimuladas a agir de maneira adequada.
No entanto, a tarefa não é nada simples. O combate à epidemia de notícias falsas, sobretudo àquelas que afetam a credibilidade das vacinas e a eficiência de medidas sanitárias, passa por questões estruturais que transcendem as fragilidades de segurança dos aplicativos de comunicação e a atividade criminosa das quadrilhas de desinformação. O prélio à fácil penetração das fake news em uma determinada sociedade passa essencialmente pela qualidade da educação, pelo nível de desenvolvimento cognitivo dos indivíduos e pela sanidade do debate político, entre outros fatores sociais, culturais, políticos e econômicos. Por isso, é tão difícil equacionar a solução do problema em tempo hábil, na medida em que o fenômeno ocorre.
Na pior das hipóteses, considerando o volume de vacinas contratadas para o segundo semestre de 2021, o avanço das pesquisas sobre novos medicamentos e o domínio do conhecimento científico acumulado sobre o vírus Sars-CoV-2, a atual pandemia pode ser debelada e deixada para trás em 2022. Diferentemente da infodemia, para a qual não se vislumbra a disseminação de uma vacina completamente eficaz ou de um remédio definitivo em prazo determinado. Ainda sem data para acabar, a epidemia de notícias falsas continuará causando prejuízos à sociedade, mesmo depois que a pandemia for superada.
Referências
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Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
27 Set 2021 -
Data do Fascículo
Set 2021
Histórico
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Recebido
17 Jun 2021 -
Aceito
30 Jun 2021 -
Publicado
02 Jul 2021