Resumo
O objetivo deste artigo é analisar a situação da Área Metropolitana de Brasília (AMB) antes do início da pandemia de COVID-19 com foco na disponibilidade e acessibilidade de recursos críticos para o tratamento da crise aguda respiratória causada pelo vírus SARS-CoV-2. Mapeamento geográfico da população e geolocalização dos estabelecimentos e recursos de saúde, construção de rede de relacionamentos entre a demanda potencial ao sistema de saúde público e a oferta de recursos existente em dez/2019. Análise baseada na teoria de redes complexas cruzando dados socioeconômicos disponíveis no CENSO, dados do Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES) e o micro relacionamento dos setores censitários e suas populações com o estoque e disponibilidade de recursos do tipo Leito de UTI Adulto Tipo II/III e Respiradores Mecânicos. Estabelecimentos do Distrito Federal (DF) concentram mais de 75% dos relacionamentos de acesso potencial aos recursos críticos para o tratamento de COVID-19. Embora as regiões do entorno do DF, pertencentes ao Goiás, apresentem a maior vulnerabilidade relativa no território estudado, são também as mais carentes de acessibilidade e disponibilidade de recursos, evidenciando um desequilíbrio assistencial dentro da região da AMB.
Palavras-chave: COVID-19; Acesso aos serviços de saúde; Saúde Pública; Ciência de dados; Redes complexas
Abstract
The objective was to analyze the situation of the Metropolitan Area of Brasília (AMB) before the onset of the COVID-19 pandemic, focusing on the availability and geographical accessibility of critical resources for the treatment of acute respiratory crises caused by the SARS-CoV-2 virus. Geographic mapping of the population within the territory and geolocation of health facilities and resources, construction of a relationship network between the potential demand simulated to the public health system and the supply of resources available in December 2019. The relationship analysis is based on the theory of complex networks crossing socioeconomic data available in the CENSUS and information from the National Registry of Health Establishments (CNES) and analyzing the micro relationship of census tracts with the stock and availability of health resources concerning Adult ICU Bed Type II/III and Respirators/Ventilators. The Federal District (DF) health facilities concentrate more than 75% of the relationships of potential access to critical resources for the treatment of COVID-19. Although the regions surrounding the DF, belonging to Goiás state, have the greatest relative vulnerability in the studied territory, they are also the most lacking in spatial accessibility and availability of resources, evidencing a care imbalance within the AMB region.
Key words: COVID-19; Health service access; Public Health; Data science; Complex networks
Introdução
No dia 26 de fevereiro de 2020, quando o Brasil reportou seu primeiro caso de COVID-19, iniciou-se uma corrida entre a capacidade assistencial do sistema de saúde e a ascendente curva de novos casos de síndrome respiratória aguda causada pelo novo coronavírus (SARS-CoV-2), conhecida como COVID-19. Leitos de Unidades de Tratamento Intensivo (UTI) e equipamentos médicos, tais como respiradores, são recursos críticos para o tratamento dos pacientes graves e a escassez destes recursos tem levado vários países a experimentar dificuldades no enfrentamento da pandemia, sendo a Itália o exemplo mais extremado no início da pandemia, onde os profissionais de saúde precisaram priorizar os pacientes que deveriam ter acesso ao cuidado devido, durante o pico da pandemia em algumas regiões do país1,2.
A proporção entre o número de pacientes que requerem tratamento intensivo na população infectada é um importante indicador do impacto desta síndrome viral. No período de 01 de março a 01 de maio de 2020, a Itália reportou 205.700 novos casos de infecção3, enquanto a demanda por assistência intensiva foi em torno de 9-11% do total de casos notificados4. Em março de 2020, o sistema de saúde italiano já apresentava uma ocupação de 1.028 leitos de terapia intensiva para o cuidado de pacientes com SARS-CoV-2, frente ao total de aproximadamente 5.200 leitos existentes4.
A distribuição de recursos críticos para o tratamento dos casos graves da COVID-19 no Brasil apresenta diferentes realidades. Enquanto a dependência da assistência pública à saúde encontra-se em grande parte do território nacional acima de 80%, a distribuição de leitos e respiradores é desigual, gerando diferentes desafios para o enfrentamento da pandemia no nível local5.
O Distrito Federal, até abril de 2020, apresentava boa disponibilidade de recursos de UTI, em comparação às demais unidades federativas, com 30 leitos de UTI e 62 respiradores para cada 100.000 habitantes6. Outra realidade pode ser percebida, no entanto, quando os números são analisados na perspectiva dos recursos disponíveis e oferecidos pelo Sistema Único de Saúde (SUS), ou seja, respectivamente, 6 leitos de UTI e 32 respiradores para cada 100.000 habitantes6. Contudo, quando se diz “leitos/população” no Distrito Federal, não está incluída a população de quase um milhão de habitantes de 12 municípios que integram a Área Metropolitana de Brasília (AMB), na qual 86% da população não possui acesso à saúde suplementar privada e, destes, 33% buscam assistência à saúde prioritariamente na rede de serviços do Distrito Federal7.
Ao se observar a realidade da AMB, coloca-se em debate os indicadores apresentados pela abordagem “Provider-to-Population Ratio”, onde a disponibilidade de um determinado recurso (neste caso, leitos e respiradores) é calculada em função da razão deste recurso com a população dentro de uma área geograficamente delimitada. Embora esta métrica seja tradicionalmente utilizada pela sua simplicidade e facilidade de transmitir a informação, conforme explica Guagliardo8, ainda assim, possui reconhecidas limitações, que escondem disparidades e ocultam o reconhecimento de barreiras no acesso à saúde, as quais podemos citar:
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i) Transposição de bordas entre o recorte espacial analisado, ou seja, ao considerar a relação recurso/população do Distrito Federal, é desconsiderada a população do entorno, que embora não pertença à região delimitada, representa uma população de quase 400.000 habitantes, potenciais usuários da rede de saúde, conforme estudo da Companhia de Planejamento do Distrito Federal7 (CODEPLAN);
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ii) Desconsideração das variações da disponibilidade dos recursos dentro da região analisada, ou seja, como o Distrito Federal tem diferentes características com regiões expostas a diferentes determinantes sociais, existe a necessidade de entender a distribuição dos recursos para estas diferentes realidades;
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iii) Não incorporação explícita de indicadores de acessibilidade geográfica, portanto, a desigualdade no acesso geográfico tende a passar despercebida, não destacando de forma objetiva barreiras geográficas de acesso entre a população e o recurso.
Analisar a distribuição de recursos de saúde utilizando métricas que destaquem as desigualdades intrarregionais e as barreiras geográficas de acesso é fundamental para compreender as decisões de uso do sistema de saúde e de cuidado com a saúde9,10 e, por último, sustentar o planejamento informado por evidências nas políticas públicas.
Este estudo teve o objetivo de analisar a distribuição intrarregional de recursos críticos para o tratamento dos casos graves da COVID-19, especificamente leitos de UTI e respiradores mecânicos, dentro da AMB, utilizando o menor nível de agregação possível, a fim de destacar aspectos relacionados com o acesso geográfico e disponibilidade de recursos.
Os objetivos do estudo também incluíram testar ferramentas de análise baseados na Teoria de Redes Complexas aplicadas ao contexto da COVID-19, permitindo destacar áreas de maior concentração de recursos e a desigualdade entre populações, com diferentes níveis de vulnerabilidade social dentro da AMB, oferecendo, desta maneira, uma perspectiva complementar e mais detalhada quando comparada com análises de “Provider-to-Population” realizadas para a mesma região6 e, deste modo, respondendo à seguinte questão “Qual seria o arranjo em termos de disponibilidade, acesso geográfico e demanda potencial ao sistema público de saúde se uma demanda simulada de 1% da população da AMB necessitasse de recursos críticos ao tratamento de crise aguda respiratória?”.
Métodos
Realizou-se uma análise transversal de dados secundários do Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde11 (CNES) e dos dados agregados do CENSO de 201012. Foram usados os dados do CNES, referentes a dezembro de 2019, para extrair a geolocalização dos estabelecimentos de saúde e a disponibilidade de leitos de UTI e equipamentos do tipo “Respirador Mecânico”, sendo considerados estabelecimentos pertencentes à rede vinculada ao SUS e com recursos a disposição do sistema de saúde público. O CENSO de 2010 foi utilizado como fonte da malha de setores censitários e socioeconômicos agregados referentes à população que vive dentro destes recortes espaciais. Assim, a utilização dos setores censitários dentro da AMB permitiu uma análise intrarregional da vulnerabilidade da população e o acesso aos recursos de saúde através de coordenadas espaciais providas pelas duas bases citadas.
Na análise dos dados, foi aplicada a Teoria de Redes Complexas, apoiando-se na modelagem descrita por Costa et al.13, que apresenta um conjunto de métricas baseado em um modelo de relacionamento entre setores censitários e estabelecimentos de saúde, empregando os conceitos de centralidade e distância geográfica entre estas entidades. Este modelo permitiu avaliar a importância de determinados estabelecimentos e tipos de estabelecimentos na cobertura do acesso potencial aos serviços e recursos de saúde. O modelo apresentado aqui, portanto, complementa estas ideias, analisando a distribuição do estoque de recursos oferecidos pelos estabelecimentos de saúde para uma população que demanda um acesso potencial a estes recursos, empregando o conceito de acesso potencial desenvolvido por Andersen9 e de disponibilidade de recursos descrito por Penchansky e Thomas10.
A fim de identificar e analisar disparidades na distribuição dos recursos, foi empregada uma métrica de vulnerabilidade social, buscando-se compreender a realidade de acesso e disponibilidade de recursos entre diferentes condições de vulnerabilidade. Para cálculo da vulnerabilidade social relativa dentro do território da AMB foi utilizado o modelo criado por Drachler et al.14. Este índice, denominado de IVS-5, é composto por indicadores que descrevem a carência de uma região em termos de renda, infraestrutura de esgoto, acesso a água potável, serviço de coleta de lixo e densidade demográfica. Para este trabalho foi excluído o componente densidade demográfica. Este componente representa a dificuldade operacional de provisão à saúde em municípios com reduzida densidade demográfica, quando avaliamos esta condição dentro da análise intrarregional da AMB observamos regiões de baixa densidade demográfica que não representam condições de vulnerabilidade, como a existente nas regiões organizadas em condomínios horizontais.
O primeiro passo para o cálculo do IVS-5 foi identificar o percentual de carência de cada um dos indicadores, a Tabela 1 reflete a distribuição de cada indicador em função de percentis, em seguida, foi atribuído a cada setor censitário um IVS equivalente ao número de desvios padrão em escore Z acima e abaixo da média dos 5.616 setores utilizados no estudo (186 setores foram descartados devido à ausência de dados, correspondendo a 3,2% do total de setores). Como o IVS é normalizado pelo uso do escore Z, a média e o desvio padrão do IVS será representada, respectivamente, por 0 e 1. Desta maneira, ao normalizar pelo desvio padrão, conclui-se a construção do índice, criando faixas para cada nível de vulnerabilidade aplicadas por setor censitário e agrupadas por município da AMB na Tabela 2. É importante ressaltar que o índice trata de vulnerabilidade relativa dentro do território, não sendo, portanto, um índice universal de vulnerabilidade.
Para modelagem do acesso geográfico e disponibilidade dos recursos críticos, foram estabelecidos relacionamentos partindo dos setores censitários para as unidades de saúde considerando um cenário aonde 1% da população do setor demandasse este recurso. O valor de 1% representa uma demanda simulada parametrizada no modelo de tal forma que uma porção proporcional de todas os setores censitários pudessem participar da distribuição dos recursos, não é esperado que este valor represente a prevalência da crise respiratória aguda dentro do território da AMB. Esta pesquisa tem como objetivo simular a aplicação de um modelo de acessibilidade e disponibilidade de recursos, por outro lado, achados no campo da carência do acesso potencial dentro de um território podem colaborar com estudos epidemiológicos microrregionais orientando as ações do serviço de saúde.
Partindo de cada setor censitário, o algoritmo de relacionamento buscou os estabelecimentos de saúde mais próximos que possuíssem a quantidade de recursos equivalente ou maior que a demanda potencial do setor. Se um setor censitário possuir 1.000 moradores, este setor demandaria 10 unidades dos recursos (1% da população), e se, num raio de 2.500 metros, fossem encontrados 3 estabelecimentos de saúde com distâncias euclidianas menores que o raio de busca e com a soma dos recursos disponíveis destes estabelecimentos maior ou igual a demanda potencial do setor censitário, entende-se que esta demanda foi atendida e a busca do algoritmo se encerra. Além disso, o algoritmo admite a variação de 20% na distância, portanto, se a menor distância de um estabelecimento para o setor for 1.000 metros, estabelecimentos localizados em até 1.200 metros são admitidos como dentro do raio de busca (Figura 1).
Assim, o modelo de demanda potencial de 1% da população responderia a questões sobre acessibilidade geográfica, ou seja, onde estariam os recursos mais próximos se 1% da população do setor precisasse deles, enquanto a disponibilidade, descreveria a proporção de recursos existente para esta demanda potencial. Em seguida, foi formulada uma métrica que emprega a relação População-Recursos por estabelecimento de saúde e, portanto, destacando os estabelecimentos mais sobrecarregados e onde estão localizados. Por último, ponderou-se a população atendida em função de sua vulnerabilidade geográfica, demonstrando a acessibilidade e a disponibilidade à recursos em função do índice de IVS-5 calculado.
A métrica de centralidade utilizada para estabelecer a importância dos estabelecimentos de saúde, em função de relação entre demanda potencial e recursos, é baseada na métrica de PageRank15 da teoria de redes. Considerando que a rede representou nós do tipo Setor Censitário e Estabelecimentos de Saúde relacionando-se em função da demanda potencial por recursos, em termos práticos, a centralidade por PageRank representa o somatório de um atributo de importância dos setores censitários (população ou população ponderada pela vulnerabilidade) que foi transmitido de maneira equilibrada (ou seja, dividida pelos demais estabelecimentos de saúde que potencialmente podem ofertar aquele recurso em distâncias similares). Por sua vez, “centralidade” representa uma importante ferramenta analítica para determinar a importância estrutural de um nó dentro de uma rede16 e, neste artigo, foi empregada a fim de determinar quais estabelecimentos de saúde são chave no provimento à demanda potencial de recursos dentro do cenário simulado.
Dentro do contexto deste trabalho, os nós representam, ao mesmo tempo, os estabelecimentos de saúde e os setores censitários, sendo, portanto, uma rede caracterizada pela existência de duas partições que se relacionam unidirecionalmente, partindo do setor censitário para o estabelecimento de saúde e, desta maneira, estabelecendo uma estrutura de rede bimodal17. Assim, o cálculo de centralidade de um vértice p k (um estabelecimento de saúde), ou de um grupo de vértices18 de estabelecimento de saúdes correlacionados (do mesmo tipo estabelecimento), se dará sob a seguinte formulação:
Sendo a(p i , p k ) = 1 se, e somente se o vértice p i (um setor censitário) apresentar um relacionamento com o vértice p k (o estabelecimento de saúde ou o grupo de vértices em análise), do contrário será igual a 0, indicando que não há relacionamento entre p i e p k .Para cada relacionamento de p k com p i (um setor censitário do vetor de relacionamentos), p i terá os seguintes atributos: p i IVS = Indicador de Vulnerabilidade social do setor p i , quando calculado com este componente estamos avaliando a importância do estabelecimento de saúde para população vulnerável, quando removemos estamos considerando a população como um todo; p i Pop = População de Moradores do setor p i ; p i s = Disponibilidade Total de Recursos para o Setor p i , ou seja, o somatório de recursos disponíveis em todos os relacionados que partem de setor censitário p i para os estabelecimentos de saúde e dado pela função somatória entre a função de relacionamento entre p i e cada setor p j (onde, mas uma vez, o resultado será 0 ou 1) e a quantidade de recursos p j s existente em cada estabelecimento de saúde.
Por último, a variável p k s representa o total de recursos disponíveis no estabelecimento (ou conjunto de estabelecimentos) p k , em análise. Portanto a centralidade18 será calculada pela relação de população do setor censitário dividida pelo total de recursos disponíveis para aquele setor (dentro da regra de relacionamento por proximidade) e multiplicado pela quantidade de recursos disponíveis no estabelecimento em análise. O componente C PR (p i ), por sua vez, representa centralidade do autovetor, que opera de forma recursiva na fórmula, caso o setor censitário tenha relacionamentos, para esta formulação este componente representou uma constante de valor igual a 0, visto que não existem relacionamentos de entrada nos setores censitários. Para preparação dos dados, aplicação do cálculo às tabelas, análise e visualização de dados foram empregadas as ferramentas Gephi19 e a linguagem R20.
Para finalizar, o modelo foi aplicado para os recursos equipamento “64-RESPIRADOR/VENTILADOR” e, em seguida, os leitos do tipo: “75-UTI ADULTO - TIPO II’, “76-UTI ADULTO - TIPO III”. Os seguintes dados foram obtidos para análise:
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i) Distância euclidiana média entre os setores censitários e as unidades de saúde que oferecem Respiradores e Leitos.
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ii) Distribuição da distância de acesso geográfico por classe de vulnerabilidade social para cada recurso
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iii) Diferenças do acesso geográfico aos recursos quando considerado setores censitários do Distrito Federal e setores dos municípios do entorno pertencentes a AMB.
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iv) Importância dos Estabelecimentos de Saúde em função da população potencial coberta e relação recurso/população por estabelecimento.
Resultados e discussão
Duas redes foram construídas para análise, a primeira baseada na busca de respiradores constituída de 16.884 relacionamentos entre 5.616 setores censitários com 71 estabelecimentos que apresentaram equipamentos em uso disponíveis para o SUS. A segunda rede foi baseada na disponibilidade à leitos de UTI Adulto tipo II e Tipo III, conforme critério utilizado pelo IBGE para estudo de disponibilidade regional destes recursos6. Na rede de disponibilidade de leitos foram formados 24.617 relacionamentos entre 5.616 setores censitários e 21 estabelecimentos, formando uma rede dividida em duas camadas, a primeira, constituída pela procura de leitos tipo II, e a segunda, pela procura de leitos tipo III.
Na rede de respiradores, as maiores concentrações de relacionamentos foram observadas entre os Hospitais Regionais das regiões administrativas de Brasília, com destaque para o Hospital Regional de Santa Maria que possui uma centralidade normalizada que representa o atendimento de 12% dos relacionamentos possíveis desta rede. O conceito de centralidade normalizada é um determinante da importância de um nó dentro da estrutura da rede, um estabelecimento que tenha 100% dos relacionamentos (Centralidade Normalizada igual a 1) possui relacionamento com todos os setores censitários e é responsável pela exclusividade na oferta do recurso para estes setores. Portanto, como podemos observar na Tabela 3, doze estabelecimentos de saúde concentram 75,2% da centralidade normalizada da população do Distrito Federal e dos 12 municípios do estado do Goiás pertencentes à AMB.
A população dos municípios do entorno de Brasília representa 38% do total da população da AMB de 3.529.346 (conforme Censo IBGE de 2010), enquanto isto, embora os estabelecimentos de saúde listados na Tabela 3 estejam localizados no Distrito Federal, 22% dos relacionamentos destes estabelecimentos são com setores censitários localizados em municípios do entorno de Brasília, demonstrando, portanto, a sensibilidade destes estabelecimentos na cobertura de lacunas de disponibilidade de respiradores localizadas nas cidades do estado de Goiás.
Quando observamos a rede de relacionamentos para leitos de UTI Adulto Tipo II (Tabela 4), observamos uma concentração de 95,8% de todos os relacionamentos em 11 estabelecimentos de saúde, mais uma vez, todos localizados no Distrito Federal, ao mesmo tempo, 27,7% de todos os relacionamentos destes estabelecimentos tem como origem setores censitários localizados nos municípios do entorno de Brasília. Os relacionamentos baseados na procura de leitos de UTI Adulto Tipo III demonstram ainda mais concentração, tendo 99,8% da rede sendo atendida por 3 estabelecimentos de saúde (Tabela 4), todos localizados em Brasília, com 27% destes relacionamentos tendo origem setores censitários com origem no entorno.
Na perspectiva do índice de vulnerabilidade relativo (Gráfico 1), calculado para a região do AMB, observa-se que, quanto maior é a condição de vulnerabilidade, maior é a barreira para acesso geográfico a respiradores. Em grande parte, esta população vulnerável encontra-se no entorno de Brasília (mapa interativo https://rpubs.com/costa_/heatmapvul01), em municípios do Estado de Goiás, e tem o sistema de saúde do Distrito Federal como opção mais próxima para cobertura da lacuna assistencial destes municípios. Enquanto pouco mais de 1% da demanda potencial com origem no DF precisa percorrer mais de 20 quilômetros para ter acesso a um respirador, nos municípios do entorno analisados esta proporção chega a 33%. Este número é alarmante ao observarmos que o total de relacionamentos do entorno corresponde 27,5% de todos os relacionamentos da rede e, ao mesmo tempo, concentra setores com maior vulnerabilidade relativa (Tabela 2), ou seja, 71% dos setores com mais de 1 desvio padrão da média de vulnerabilidade do território encontram-se na região do entorno do DF da AMB.
Esta relação entre distância média e vulnerabilidade social relativa se mantem quando analisamos a distribuição de Leitos Adultos Tipo II e III (Gráficos 2 e 3), aumentando ainda mais a distância entre os setores mais vulneráveis e os estabelecimentos que oferecem os leitos. Embora a centralização de recursos de maior complexidade seja um aspecto esperado, é relevante observar que mesmo em regiões de maior concentração populacional, como em Val Paraíso do Goiás e Luziânia, a ausência destes recursos leva a um aumento da demanda por leitos nos estabelecimentos de saúde localizados na borda do DF.
Distribuição da distância para acesso à Leitos de UTI Adulto Tipo II em função da vulnerabilidade social.
Distribuição da distância para acesso à Leitos de UTI Adulto Tipo III em função da vulnerabilidade social.
A distribuição da centralidade dos relacionamentos para os três recursos analisados demonstra que o modelo foi capaz de capturar uma forte dependência dos municípios do entorno da AMB à rede pública de saúde do DF na demanda aos recursos críticos para o tratamento do COVID-19. Embora o entorno tenha o peso de 27,5% dos relacionamentos da rede, nenhum estabelecimento de saúde do entorno apresentou centralidade normalizada de pelo menos 3%. Desta maneira, o enfrentamento a uma epidemia com as características do COVID-19 em uma simulação de demanda de 1% da população teria potencial de causar uma sobrecarga no sistema de saúde do DF que não é refletido nos números de “recurso por população” tradicionalmente divulgados. Além disto, é importante lembrar que o modelo incluiu municípios adjacentes à AMB, pertencentes aos estados de Goiás e Minas Gerais, embora esta população não tenha sido objeto de análise, os estabelecimentos de saúde destas regiões foram utilizados quando esta era a opção mais próxima para um setor censitário da AMB.
Considerações finais
Desde o início da pandemia, a escassez de recursos para o tratamento de crise aguda respiratória já chamava a atenção da comunidade científica. Além disso, na época, já era estimado que 5% da população poderia contrair o vírus dentro de 3 meses, e entre estes, 20% poderiam demandar o uso de serviços médicos avançados no tratamento da crise aguda21. No Brasil esta preocupação não foi diferente, trabalhos como apresentado por Bezerra et al.22 e nota técnica23 apresentada pelo Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS) traduzem-se como uma latente preocupação acerca da escassez de recursos, especialmente num pais onde há um desequilíbrio no acesso à infraestrutura de serviços de saúde.
A escassez de recursos e a dificuldade de acesso implicam aspectos críticos para combater a evolução da doença, por se tratar de uma condição inflamatória aguda, sua evolução pode levar a lesões cardíacas e renais, além de complicações no sistema circulatório. Exceto em casos assintomáticos, a doença manifesta-se como uma crise respiratória aguda, semelhante a uma típica infecção respiratória viral, podendo levar a até 14% das incidências a demandar tratamento via oxigenoterapia24. Nota-se também o papel de determinantes sociais como renda e adensamento da moradia como agentes determinantes do agravo e letalidade dos casos COVID-19, portanto, observamos uma doença onde há evidente determinação social tanto para o incremento da incidência quanto para a mortalidade, condição apontada por Figueiredo et al.24. Portanto, compreender o acesso a recursos críticos e a exposição da população a condições de vulnerabilidade social constituem importantes dimensões para compreensão do fenômeno de mortalidade e gravidade dos quadros de COVID-19.
Embora os resultados apresentados aqui sejam fruto de um processo de simulação de demanda potencial, estes resultados permitiram lançar luz sobre como métricas e agregações baseadas em “Provider-to-Population” podem conduzir a interpretações superficiais quanto à distribuição e acesso à recursos, muito embora, esta abordagem seja frequentemente empregada pela mídia, instituições de pesquisa e divulgação cientifica6,23,25. As técnicas aqui empregadas, por outro modo, buscaram a desagregação dos dados espaciais ao menor agregado possível, tentando, portanto, expor de forma mais precisa as condições espaciais de acesso. Embora existam diferentes técnicas para estimar a acessibilidade e disponibilidade de recursos em um território, os modelos baseados em disponibilidade de recursos e serviços no provedor mais próximo são empregados de forma mais frequente, podendo variar quanto as diferentes técnicas para medir a impedância de deslocamento e a distância8,26,27 e variar quanto a formulação da disponibilidade, podendo basear-se em funções de decaimento em função da distância ou competição por recursos28. Este modelo empregou uma modelagem que prioriza a perspectiva do estabelecimento de saúde e sua importância posicional na rede de relacionamentos, assumindo simplificações, mas ao mesmo tempo oferecendo uma perspectiva mais rica que o emprego da proporção entre recurso e a população total de um território.
Como todo modelo que representa a realidade do objeto de estudo, existem limitações. Em primeiro lugar, é preciso considerar que o acesso aos serviços de saúde tem determinantes e características multidimensionais, tais como descritas por Andersen9 ou Penchansky e Thomas10. Além disso, o modelo usou distâncias euclidianas como parâmetro determinante da decisão sobre o uso de um ou outro estabelecimento de saúde, adotando a perspectiva da acessibilidade geográfica e, portanto, não considerando aspectos como a aceitabilidade do serviço pela população, por exemplo, que potencialmente afetaria a disponibilidade do serviço. Embora seja um conceito simples, a distância euclidiana pode ser um bom modelo de acessibilidade geográfica por ser uma aproximação em geral adequada para regiões sem complexidade topográfica e com boa cobertura de malha urbana de ruas e avenidas27,29,30.
A discrepância entre a infraestrutura pública de assistência à saúde do Distrito Federal e dos municípios do entorno de Brasília é um fenômeno conhecido, e muitos são os fatores que levam a população do entorno buscar o sistema de saúde do DF, entre eles podemos citar, o encaminhamento pelas unidades de atenção básica, percepção de baixa resolutividade da rede de saúde do entorno em comparação com a rede de média e alta complexidade da capital federal, ausência de recursos ou serviços de média e alta complexidade, entre outros27. Este desequilíbrio, expresso em diferentes realidades assistenciais, não pode se perder em recortes agregados da realidade, devendo estar presente e ser alvo de atenção em qualquer modelo que construa evidências para o planejamento de ações para o enfrentamento de crises sanitárias e epidemias, especialmente tratando-se de regiões metropolitanas integradas e com elevada mobilidade urbana.
Embora o Complexo Regulador em Saúde do DF conte com uma central de regulação interestadual, esta estrutura opera no âmbito de procedimentos de alta complexidade, havendo necessidade do desenvolvimento de ações pactuadas para a gestão do fluxo de assistência de saúde dos demais níveis de atenção dentro do território metropolitano formado pelo Distrito Federal e Goiás31. Ações isoladas e sem um planejamento integrado, podem causar fricções entre os agentes responsáveis pela condução das políticas públicas, especialmente em uma pandemia, onde há um desequilíbrio da estrutura demanda e oferta de serviços. Um exemplo disso foi observado na própria AMB quando veículos de imprensa noticiaram32 que o Governo do Distrito Federal consideraria, por decreto, impedir o acesso à saúde da população residente no Goiás à rede de saúde pública do DF.
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Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
22 Abr 2022 -
Data do Fascículo
Abr 2022
Histórico
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Recebido
05 Set 2020 -
Aceito
31 Jan 2022 -
Publicado
02 Fev 2022