Open-access Incorporação de medicamentos no SUS: comparação entre oncologia e componente especializado da assistência farmacêutica

Resumo

O cumprimento dos prazos legais para incorporação e disponibilização de tecnologias no Sistema Único de Saúde (SUS) é fundamental para o acesso da população aos medicamentos considerados essenciais. Objetivou-se analisar o cumprimento destes prazos comparando a Oncologia e o Componente Especializado de Assistência Farmacêutica (CEAF). Comparou-se os processos de incorporação de medicamentos no SUS da Oncologia e do CEAF que foram submetidos à Conitec no período de 01 de janeiro de 2017 a 30 de abril de 2020. No período, 83 processos de incorporação de medicamentos foram recomendados para incorporação pela Conitec, dos quais 13 (15,66%) eram da Oncologia e 70 (84,34%) eram do CEAF. Verifica-se que o tempo de análise e recomendação pela Conitec até a publicação da decisão pelo Ministério da Saúde foi, em média, 15 dias maior para processos que continham medicamentos oncológicos e o tempo para disponibilização das tecnologias incorporadas da área da oncologia foi, em média, 389 dias maior que do CEAF. Reconhece-se o importante avanço obtido com a criação da Conitec no Brasil, porém os resultados deste estudo apontam para a necessidade de aprimoramento do processo de disponibilização de tecnologias incorporadas no SUS, em especial da Oncologia.

Palavras-chave: Acesso a Medicamentos Essenciais e Tecnologias em Saúde; Avaliação da Tecnologia Biomédica; Oncologia; Assistência Farmacêutica; Sistema Único de Saúde

Abstract

Compliance with legal deadlines for the assessment and incorporation of technologies in Brazil’s Unified Health System (SUS) is essential to ensure public access to essential medicines. The scope of this paper was to analyze the compliance with legal deadlines for incorporation and availability of medicines in the SUS, comparing Oncology and the Specialized Component of Pharmaceutical Assistance (SCPA). A comparison was made of the drugs incorporated that were submitted to Conitec in the period from January 1, 2017, to April 30, 2020. A total of 85 drugs were recommended for incorporation by Conitec, of which 15 (17.64%) were for Oncology and 70 (82.36%) were for SCPA. The time between analysis and recommendation by Conitec until the publication of the decision by the Ministry of Health was, on average, 86 days longer for oncological drugs and the availability timeframe of technologies incorporated in the oncology area was, on average, 389 days longer than for SCPA. The major progress achieved with the creation of Conitec in Brazil is acknowledged, but the results of this study point to a pressing need to improve the process of making available technologies incorporated into the SUS, especially in oncology.

Key words: Access to Essential Medicines and Health Technologies; Biomedical Technology Assessment; Oncology; Pharmaceutical Assistance; Unified Health System

Introdução

Há uma década, com a publicação da Lei nº 12.401/2011 que alterou a Lei Orgânica do Sistema Único de Saúde (SUS), criaram-se o marco regulatório brasileiro sobre a incorporação de tecnologias em saúde no âmbito do SUS1 e a Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (Conitec), que tem a função de assessorar o Ministério da Saúde (MS) na incorporação, exclusão ou alteração de novos medicamentos, produtos e procedimentos, bem como a constituição ou alteração de Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas (PCDT)1,2.

Além de determinar a utilização de evidências científicas e análises econômicas para decisão por incorporação de tecnologias no sistema de saúde, a chamada Lei da Integralidade do SUS1 também estabeleceu prazos para conclusão do processo administrativo de incorporação, exclusão ou alteração de tecnologias. Tais prazos têm a finalidade de monitorar a implementação das decisões nos respectivos sistemas de saúde3. No Brasil, o prazo para recomendação final de incorporação de uma tecnologia é de 180 dias corridos, prorrogáveis por mais 90, contados a partir da data em que o dossiê de solicitação de avaliação da tecnologia foi protocolado na Conitec1.

A recomendação final por incorporação de tecnologia deve ser publicada no Diário Oficial da União (D.O.U.), porém tal publicação não é sinônimo de disponibilização automática da tecnologia à população. A partir da divulgação em D.O.U., as áreas técnicas do Ministério da Saúde (MS) têm 180 dias para viabilizar a oferta no sistema de saúde2,4. Dependendo da tecnologia, diferentes áreas do MS são envolvidas no processo. No caso dos medicamentos, eles podem ser financiados por meio dos Componentes da Assistência Farmacêutica ou da Assistência à Saúde de Média e Alta Complexidade (MAC), como é o caso dos medicamentos oncológicos5-7.

O Componente Especializado da Assistência Farmacêutica (CEAF) é o componente que mais possui demanda por incorporação de tecnologias em saúde e maior impacto orçamentário8. Este componente “é uma estratégia de acesso a medicamentos no âmbito do SUS, caracterizado pela busca da garantia da integralidade do tratamento medicamentoso, em nível ambulatorial, cujas linhas de cuidado estão definidas em PCDT, publicados pelo Ministério da Saúde”9. Os medicamentos incorporados no SUS e alocados no CEAF devem ser incluídos na Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (Rename)4,7.

Já a disponibilização dos medicamentos oncológicos não se dá por meio destes componentes, mas sim pelo Bloco da MAC, na qual o fornecimento do medicamento ocorre por meio do estabelecimento habilitado em Oncologia, após inclusão da tecnologia nos procedimentos quimioterápicos registrados no subsistema de Autorização de Procedimento de Alta Complexidade do Sistema de Informação Ambulatorial (APAC-SIA). Via de regra, a instituição oferta o medicamento e é ressarcida pelo Ministério da Saúde por meio da APAC. Entretanto, há exceções nas quais o Ministério da Saúde realiza a compra centralizada dos medicamentos contra o câncer, por meio do CEAF, como o Trastuzumabe10. Diferentemente do que ocorre no CEAF, os medicamentos incorporados não são incluídos na Rename. Adicionalmente, em Oncologia geralmente o uso de medicamentos é uma recomendação que é descrita em Diretrizes Diagnósticas e Terapêuticas (DDT), enquanto no CEAF o uso do produto deve seguir estritamente o conteúdo do PCDT. No caso da DDT, portanto, o prestador de serviço, bem como o prescritor, não são obrigados a seguir estritamente o recomendado.

As diferenças entre os processos de financiamento e distribuição dos medicamentos podem ter consequências no cumprimento dos prazos previstos em legislação para disponibilização da tecnologia incorporada. O tempo para a disponibilização da tecnologia à população é tema de diversos debates no Brasil, porém o dado não é publicizado pelo MS e há carência de estudos na área. Por este motivo, o presente trabalho visa preencher a lacuna de estudos sobre a análise do cumprimento dos prazos legais para incorporação e disponibilização de medicamentos no SUS, comparando a Oncologia e o Componente Especializado de Assistência Farmacêutica (CEAF), no período de 2017-2020.

Métodos

Trata-se de um estudo retrospectivo, quantitativo, de análise documental. Foram analisados os processos de incorporação de medicamentos que foram submetidos à Conitec no período de 01 de janeiro de 2017 a 30 de abril de 2020. Todas as decisões por incorporação de medicamentos no SUS para as áreas da Oncologia e do CEAF no período avaliado foram objeto do estudo.

As submissões foram analisadas quanto ao demandante, se interno ou externo ao SUS. Também foram avaliados os intervalos de tempo para incorporação após recomendação favorável da Conitec e para disponibilização dos medicamentos no SUS. Todas as análises foram comparativas entre os processos de incorporação contendo medicamentos oncológicos e do CEAF.

Considerou-se tempo para incorporação da(s) tecnologia(s) analisada(s) em cada relatório técnico da Conitec os dias transcorridos entre a data de protocolo de submissão do dossiê de solicitação de avaliação da(s) tecnologia(s) até a publicação da decisão em D.O.U. Ambas as informações estão disponíveis no sítio eletrônico da Conitec. Para tanto, acessou-se o sítio no item “Recomendações da Conitec”, selecionaram-se os anos 2017, 2018, 2019 e 2020. Em cada ano, selecionaram-se os relatórios técnicos da Conitec para os quais houve decisão de “Incorporar ao SUS”. Nestes, verificaram-se as datas de protocolo de submissão de dossiê e de publicação da portaria da decisão em D.O.U.

Para determinar o tempo de disponibilização do medicamento incorporado à população, calculou-se os dias transcorridos entre a publicação da decisão em D.O.U. e 1) a data em que foi publicada a inclusão dos procedimentos na Tabela de Procedimentos, Medicamentos, órteses/Próteses e Materiais Especiais do SUS ou a decisão por compra centralizada, no caso da Oncologia; 2) a data de publicação do PCDT da doença incluindo a tecnologia, no caso do CEAF, visto que em alguns casos, já havia procedimentos incluídos na Tabela de Procedimentos, Medicamentos, órteses/Próteses e Materiais Especiais do SUS e/ou código incluído no SIGTAP (Sistema de Gerenciamento da Tabela de Procedimentos, Medicamentos e OPM do SUS) contendo o medicamento antes da incorporação pela Conitec. Cabe ressaltar que a publicação do código SIGTAP ou procedimentos incluídos na Tabela de Procedimentos, Medicamentos, Órteses/Próteses e Materiais Especiais do SUS não conferem, necessariamente, a imediata disponibilização do medicamento para a área de oncologia no SUS. Isso ocorre porque o serviço de saúde habilitado pode decidir por não adquirir o medicamento incorporado ou adquiri-lo tempos após. Os autores, portanto, assumem as limitações deste método pela falta de padronização de processos para disponibilização de medicamentos oncológicos no SUS.

Para avaliação do cumprimento dos prazos legais estabelecidos por lei, considerou-se 270 dias o tempo regulamentar entre a submissão e a decisão pela incorporação do medicamento - visto que a legislação permite prorrogação de 90 dias, após decorridos 180 dias - e o prazo de 180 dias para a disponibilização do medicamento1,4. Por considerar o período de 180 dias como prazo legal para a disponibilização da tecnologia incorporada e a coleta dos dados ter sido realizada em 30 de novembro de 2020, foram incluídos no estudo os relatórios técnicos da Conitec que continham medicamentos incorporados cuja publicação se deu até 30 de abril de 2020.

Para analisar os dados e estudar os tempos de incorporação e disponibilização dos medicamentos, foram realizadas análises estatísticas descritivas e testes de Shapiro Wilk, de Mann-Whitney, e análise de sobrevivência por meio do algoritmo de Kaplan-Meier, que possibilita estimar o tempo até a ocorrência de determinado evento.

Testou-se a hipótese de que o prazo entre a submissão e a decisão em oncologia era maior do que para o CEAF. O resultado do Teste de Shapiro-Wilk indicou que, com um nível de confiança de 95%, há evidências de que a amostra do componente especializado provém de uma população normal, porém a amostra de oncologia rejeita a hipótese inicial de prover de uma população normal. Procedeu-se, então, com o teste Não-Paramétrico de Mann-Whitney (IC≥95%; p<0,05).

O presente estudo utiliza dados de acesso público e sem identificação de participantes. Por este motivo, não foi necessária a submissão do projeto do estudo à apreciação de Comitê de Ética em Pesquisa em Seres Humanos.

Resultados

Entre os anos de 2017 e 2020, 83 processos de incorporação de medicamentos obtiveram parecer favorável da Conitec para incorporação, dos quais 13 (15,66%) eram da Oncologia e 70 (84,34%) eram do CEAF. Quanto à origem da demanda, 48 (57,83%) eram provenientes de demanda externa ao SUS e 35 (42,17%) eram de instituições do próprio sistema, como as secretarias que compõem o Ministério da Saúde do Brasil. Quando comparadas as áreas Oncologia e CEAF, verifica-se que as demandas externas corresponderam a 76,92% (10; n=13) e 54,28% (38; n=70), respectivamente.

Tempo transcorrido entre a submissão de um dossiê e a incorporação pela Conitec

O tempo de análise e recomendação pela Conitec até a publicação da decisão pelo Ministério da Saúde foi, em média, 15 dias maior para medicamentos oncológicos (Tabela 1). O menor e o maior tempo foram observados na área do CEAF (3 dias e 469, respectivamente).

Tabela 1
Comparação entre o tempo transcorrido entre a submissão de dossiê para análise da Conitec e a decisão pela incorporação de medicamentos das áreas do Componente Especializado da Assistência Farmacêutica e a Oncologia (em dias) no Sistema Único de Saúde (em dias), no período de 01 de janeiro de 2017 a 30 de abril de 2020.

Quanto ao cumprimento do prazo de 270 dias (180 + 90 dias) previsto em legislação para análise do dossiê e decisão final, 46 das 70 demandas do CEAF (65,71%) e 10 das 13 da oncologia (76,92%) ficaram dentro do prazo previsto. Verifica-se que a média e a mediana de tempos das duas áreas estiveram dentro do prazo legal.

A Conitec não cumpriu o prazo legal de 270 dias para avaliação dos dossiês de incorporação de tecnologias, com média de 282 dias para a área da oncologia, apenas no ano de 2017 (Figura 1).

Figura 1
Comparação entre a média de tempo transcorrido entre o protocolo de submissão de dossiê para análise da Conitec e a decisão pela incorporação de medicamentos das áreas do Componente Especializado da Assistência Farmacêutica e a Oncologia (em dias), ao longo dos anos (01 de janeiro de 2017 a 30 de abril de 2020).

Até 30 de novembro de 2020, apenas 2 dos 13 (15,38%) processos de medicamentos da oncologia e 44 dos 70 (62,86%) do CEAF tinham sido disponibilizados. Os dois medicamentos oncológicos disponibilizados segundo o método de avaliação do presente artigo foram Trastuzumabe e Pertuzumabe, ambos com definição por compra centralizada pelo Ministério da Saúde. Desta forma, foram avaliados os tempos transcorridos entre a decisão pela incorporação e a disponibilização da tecnologia no sistema de saúde em ambos os grupos.

Tempo transcorrido entre a incorporação pela Conitec e a disponibilização da tecnologia

O tempo para disponibilização das tecnologias incorporadas da área da oncologia foi, em média, 389 dias maior que do CEAF. O prazo mais curto e o mais longo foram do CEAF, 29 e 1314 dias, respectivamente. As duas tecnologias incorporadas para a área de oncologia tiveram média de 2 anos para serem disponibilizadas (Tabela 2).

Tabela 2
Comparação entre o tempo transcorrido entre a incorporação pela Conitec de medicamentos e a disponibilização das tecnologias incorporadas das áreas do Componente Especializado da Assistência Farmacêutica e a Oncologia no Sistema Único de Saúde (em dias), no período de 01 de janeiro de 2017 a 30 de abril de 2020.

A intenção inicial da análise estatística em realizar um teste de hipóteses não foi possível devido ao baixo número de observações que inviabilizou este procedimento, mesmo com técnicas não-paramétricas. Assim, foi realizada análise de sobrevivência com a utilização da curva de sobrevivência estimada por Kaplan-Meier e realização de teste de comparação de curvas de Log-Rank. A curva de sobrevivência obtida sugere que, para qualquer quer seja o tempo de sobrevivência considerado, a probabilidade de o medicamento ultrapassar o prazo estabelecido por lei para disponibilização após a incorporação é sempre maior na Oncologia (Figura 2). Isto é, a chance de ter o medicamento disponibilizado mais rapidamente é maior para os medicamentos do CEAF, comparado à Oncologia, em todos os pontos da trajetória pós-incorporação, o que foi evidenciado pelos resultados do teste Log-Rank, considerando um nível de significância de 95% (χ2 4,4; p<0,05).

Figura 2
Comparação entre o tempo transcorrido entre a incorporação e a disponibilização de medicamentos das áreas do Componente Especializado da Assistência Farmacêutica e a Oncologia (em dias) por meio da Curva de Sobrevivência de Kaplan-Meier.

Até o dia 30 de novembro de 2020, quando foi encerrada a coleta de dados do presente estudo, dentre as tecnologias que ainda não tinham sido disponibilizadas as tecnologias dos 13 processos de medicamentos incorporados da Oncologia e 36 do CEAF, 30,7% e 65,1% já tinham excedido o prazo legal de 180 dias as tecnologias contidas, respectivamente.

Discussão

A institucionalização do processo de ATS no SUS com a criação da Conitec foi avanço importante para o Brasil. Entretanto, os achados do presente estudo demonstram que os prazos legais vigentes para definição por incorporação e para disponibilização das tecnologias incorporadas no SUS não foram cumpridos com rigor entre os anos de 2017 e 2020, tanto para medicamentos na área de oncologia, quanto do CEAF. A despeito de a média de tempo transcorrido entre a submissão e decisão pela incorporação de tecnologias no CEAF e na Oncologia tenha sido inferior a 270 dias em todo o período estudado, a média do prazo da Oncologia é superior ao CEAF em mais de 15 dias e, no ano de 2017, excedeu o prazo legal em 12 dias.

Em análise comparativa entre o processo de ATS no Brasil, no Reino Unido, na Austrália e no Canadá, pesquisadores não identificaram que a Conitec realize etapa de (pré) seleção e/ou priorização de temas a serem analisados de forma sistematizada e amplamente divulgada, o que é realizado pelos demais países para conferir mais transparência ao processo3. A diferença dos tempos entre a análise pela Conitec e publicação da decisão por incorporação entre as áreas de Oncologia e CEAF, neste contexto, torna-se injustificada, visto que tempos diferentes poderiam estar relacionados à priorização de uma área em detrimento da outra, o que não está definido claramente no processo utilizado atualmente pela Conitec. Ainda, embora a Conitec tenha analisado 285 dossiês de demandas por incorporação de diferentes tecnologias protocoladas no mesmo período deste estudo, a legislação não condiciona o prazo legal de avaliação ao volume de dossiês protocolados.

Em um artigo sobre a incorporação de tecnologias em Oncologia no SUS5, os autores defendem que a ATS aplicada à área possui peculiaridades que dificultam o processo decisório e que a incorporação de tecnologias na Oncologia é diferente do CEAF, uma vez que a Oncologia não se resume à disponibilização de medicamentos. Entretanto, a legislação brasileira não prevê diferenciação de prazos entre as duas áreas da saúde, e tampouco dispensa o CEAF de estabelecer protocolos clínicos de diagnóstico e tratamento.

O fomento à pesquisa em oncologia para disseminar e fortalecer os núcleos de investigação independentes e especializados em ATS foi sugerido por pesquisadores brasileiros como uma das soluções para o aprimoramento das estratégias de avaliação de tecnologias no Brasil11,12.

Os resultados aqui demonstrados corroboram com pesquisadores5 que sugerem o aprimoramento das políticas e estratégias relacionadas ao processo de incorporação e desinvestimento de tecnologias, de maneira que haja mais transparência ao processo. Ademais, é mister que haja aplicação prática do princípio da equidade, que pressupõe a inserção de desequilíbrios em políticas públicas a fim de priorizar ações e reduzir desigualdades. Como destacado em publicação do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea)13, “a incorporação de medicamentos pode se constituir em mais um fator de agravamento das já grandes desigualdades nos níveis de saúde e no acesso a serviços de saúde no Brasil”. A priorização das análises e disponibilização de tecnologias de acordo com a carga de doença podem se configurar em uma maneira de reduzir as desigualdades do país.

O presente estudo verificou que os tempos cumpridos pela Conitec na análise dos dossiês, tem diminuído nos últimos 2 anos, apesar de continuar utilizando a prorrogação de 90 dias prevista na legislação. Entretanto, a tecnologia ora incorporada no SUS deve ser ofertada pelos meios adequados em 180 dias para que os serviços de saúde habilitados possam atender a população e permitir acesso de fato à nova tecnologia. No Reino Unido, por exemplo, este prazo é de no máximo 90 dias3. Nossos resultados apontam para uma disparidade entre as duas áreas avaliadas, visto que o prazo para disponibilização das tecnologias incorporadas na área da Oncologia foi maior que o praticado para o CEAF, mas especialmente porque constatou-se que há diferenças importantes entre a proporção entre tecnologias disponibilizadas quando comparados o CEAF e a Oncologia.

Reconhecem-se as iniciativas da Conitec em aumentar a participação social no processo de decisão14, incluindo a participação de representantes de pacientes com testemunhos nas reuniões e a disponibilização da gravação das reuniões em seu sítio eletrônico que ocorreram no ano de 202015,16. No entanto, as etapas envolvidas no processo de disponibilização da tecnologia incorporada, cuja responsabilidade deve ser pactuada na Comissão Intergestora Tripartite (CIT)1, não estão devidamente documentadas e divulgadas de maneira compreensível para profissionais de saúde, população em geral e até por gestores do SUS. Tal fato limita que o princípio constitucional de participação social nas políticas públicas de saúde no Brasil seja efetivamente cumprido16,17.

Dentre as duas tecnologias incorporadas e disponibilizadas na área de oncologia no período do presente estudo, ambas tiveram sua disponibilização pactuada com financiamento pela União, via CEAF, e compra centralizada18, o que não é comum para a área. Esta decisão pode ter ocorrido para aumentar o poder de negociação e provocar redução de preços das tecnologias incorporadas, aumentando o poder de compra no SUS. Entretanto, não é possível afirmar sobre as razões pelas quais optou-se por essa modalidade de aquisição para os referidos produtos, pois não foi apresentada justificativa pelo Ministério da Saúde.

Soma-se aos argumentos anteriores o fato de que os medicamentos incorporados no âmbito da Oncologia não sejam publicados junto à Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (Rename), que, segundo o Decreto nº 7.508/20117, compreende a seleção e a padronização de medicamentos indicados para atendimento de doenças ou de agravos no âmbito do SUS. Não foram encontrados na literatura e em documentos oficiais argumentos para a não inclusão dos medicamentos oncológicos na Rename.

O atraso na disponibilização da tecnologia pode significar perda de vidas, especialmente na área da Oncologia, visto que uma revisão sistemática relacionou pior prognóstico quando houve atraso no início do tratamento19. Sabe-se que o atraso no diagnóstico e no tratamento do câncer tem múltiplas facetas no Brasil20 e que ocorre em outras partes do mundo21, mas cabe ao Estado definir e agir em prol de políticas públicas e organização das redes de atenção em oncologia do SUS para garantir o atendimento adequado em momento oportuno. Embora a integralidade do cuidado esteja estabelecida como princípio do SUS e a Política Nacional para a Prevenção e Controle do Câncer na Rede de Atenção à Saúde das pessoas com doenças crônicas no âmbito do SUS22, reconheça a necessidade de oferta de cuidado integral ao paciente oncológico e o câncer como doença prevenível, o que está em concordância com o objetivo de reduzir a mortalidade prematura pela doença em países signatários da Organização Mundial da Saúde23, verifica-se com os resultados deste estudo que a política de incorporação de tecnologias precisa ser aprimorada para colaborar com este intuito, a fim de que o que foi incorporado seja de fato disponibilizado e dentro do prazo previsto.

Há que se registrar limitações do presente estudo, como o fato de que a publicação da inclusão dos procedimentos na Tabela de Procedimentos, Medicamentos, Órteses/Próteses e Materiais Especiais do SUS não confira, necessariamente, a imediata disponibilização do medicamento para a área de oncologia no SUS, visto que o serviço de saúde habilitado pode levar meses para aquisição do produto ou mesmo decidir por não adquiri-lo. Na prática, portanto, o prazo para disponibilização da tecnologia pode ser ainda maior e não há garantias de que a disponibilização da tecnologia na área da Oncologia possa ocorrer de forma homogênea em todos os serviços habilitados no Brasil. Assumiu-se tal limitação quando se decidiu analisar somente documentos públicos do Ministério da Saúde e não analisar o rol de produtos disponibilizados por cada serviço habilitado no Brasil, porque não é obrigatório que as instituições do SUS divulguem suas listas de medicamentos padronizados, o que reforça a necessidade de maior transparência sobre o processo de disponibilização das tecnologias incorporadas no SUS.

Por fim, cabe ressaltar que dentre as 13 tecnologias incorporadas para a área da Oncologia no período estudado, apenas 2 foram disponibilizadas, o que limita análise mais aprofundada. Ainda, são necessários conhecimentos específicos para levantar as datas de publicação da disponibilização das tecnologias. Tal fato pode reduzir consideravelmente a possibilidade de a população exercer seu direito de participação e controle social, visto que não é esperado que a população em geral tenha conhecimentos específicos para levantamento dos dados, o que pode prejudicá-la ao buscar a garantia seus direitos. Estudos que avaliem dados qualitativos do processo de decisão por incorporação de tecnologias no SUS, os impactos de políticas e processos de gestão nos diferentes tempos e áreas da saúde se fazem necessários.

Considerações finais

Reconhece-se o importante avanço obtido com a criação da Conitec no Brasil, porém os resultados deste estudo apontam para o descumprimento dos prazos previstos em legislação para a disponibilização das tecnologias incorporadas. Destaca-se o maior tempo nas decisões por incorporação e disponibilização de medicamentos oncológicos, comparados aos medicamentos do CEAF.

Urge a necessidade de aprimoramento do processo de disponibilização de tecnologias no SUS, para cumprimento do marco legal, para a preservação do princípio da equidade e para conferir maior transparência e legitimidade ao processo de disponibilização das tecnologias, de forma tal que amplie o acesso da população às tecnologias adequadas e em tempo oportuno, pilares da qualidade em saúde.

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    » https://www.paho.org/bra/index.php?option=com_content&view=article&id=5588:folha-informativa-cancer&Itemid=1094
  • Financiamento
    Este estudo foi financiado pela Empresa Novartis Biociências S.A.

Editado por

  • Editores-chefes:
    Romeu Gomes, Antônio Augusto Moura da Silva

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Maio 2022
  • Data do Fascículo
    Jun 2022

Histórico

  • Recebido
    24 Maio 2021
  • Aceito
    03 Nov 2021
  • Publicado
    05 Nov 2021
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