Em 2022, o Brasil alcança seus 200 anos de independência política em meio a múltiplas, graves e interconectadas crises. O que celebrar? Há pouco espaço para um otimismo racional. Estamos diante de crises sanitárias globais, da emergência climática, do declínio da confiança na ciência e nas instituições democráticas e do ataque político e ideológico ao papel do Estado em todas as suas formas de proteção social e produção de bem-estar. O dossiê Da Independência ao Império: saúde e doença no Brasil do Século XIX é um ato acadêmico e político de comemoração, isto é, um ato para lembrarmos juntos e criticamente os desafios, as continuidades e mudanças da saúde pública em um país que transitava do status de colônia de Portugal para o de país soberano em 1822.
A história da saúde no Brasil do século XIX oferece algumas chaves para a melhor compreensão da saúde pública no século XX e de seus desafios no século XXI. Interpela visões estabelecidas na saúde coletiva brasileira sobre história e “passado” muitas vezes lineares, unidirecionais e evolutivas, e sua busca pelas “lições da história”, principalmente em momentos de crise política e sanitária como os eventos epidêmicos. O trabalho dos historiadores e historiadoras torna tempo e espaço elementos constituintes dos debates, dos processos, das ideias, das práticas, das políticas, dos agentes e das instituições de saúde pública. Esse diálogo está explícito neste dossiê e vem sendo promovido pela Ciência & Saúde Coletiva1.
A literatura a respeito da história da saúde no Brasil se concentrou até recentemente no século XX, em especial na Primeira República. Na última década, o campo da história da saúde tem avançado de modo original e instigante sobre o período imperial, dialogando e renovando temas correntes na historiografia brasileira. Os artigos desse dossiê refletem esse movimento que incorpora as histórias intelectual, política, social e cultural. Escritos por historiadores e cientistas sociais de diferentes instituições e regiões, os artigos apresentam, em perspectiva histórica, as múltiplas e descentradas facetas da saúde e da medicina pública no Brasil Imperial.
Em particular, as experiências locais e provinciais, a dinâmica das instituições médicas, assistenciais e de saúde pública, o ecletismo terapêutico e o pluralismo médico, as inovações, como a introdução da vacina antivariólica, as profissões de saúde e os praticantes de cuidados e curas, médicos, farmacêuticos e enfermeiras, as epidemias e as condições sanitárias nas cidades, os debates médicos e políticos sobre saúde e doenças, o periodismo médico, as questões sanitárias na imprensa, as etiologias das doenças e, principalmente, a tragédia humana da escravidão e do tráfico de africanos escravizados e seu impacto longevo na sociedade brasileira. Os artigos tratam das continuidades e das mudanças entre a experiência colonial na América Portuguesa e o período pós-independência se estendendo até a primeira década do Brasil República.
Em 1922, ano do primeiro centenário da Independência, as elites intelectuais e políticas brasileiras celebravam o Brasil moderno, o país civilizado e o porvir. Esse futuro imaginado demandava o apagamento de um presente e de um passado caracterizados pela violência, pelas desigualdades e pelas exclusões. Em 2022, no bicentenário da soberania política do Brasil, refletir a respeito da história da saúde no Brasil oitocentista não é apenas produzir mais conhecimentos sobre o passado. É parte da luta por futuros melhores.
Referências
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
15 Ago 2022 -
Data do Fascículo
Set 2022