Resumo
Como apresentação do dossiê “Da Independência ao Império: saúde e doença no Brasil no século XIX”, o artigo contrasta o “Brasil moderno” imaginado pelas elites médicas e políticas por ocasião do I Centenário da Independência, em 1922, com os inúmeros problemas e desafios no campo da saúde que a República, em sua terceira década, herdou dos períodos colonial e imperial. Além disso, destaca questões da história da saúde no século XIX que permitem aos leitores do dossiê refletir sobre as promessas civilizacionais não cumpridas de 1822-1922, à luz dos imensos desafios do ano de 2022, quando o Brasil completa duzentos anos de soberania política.
Palavras-chave: Saúde pública; História; República; Brasil Império; Medicina
Abstract
As a presentation of the dossier “From Independence to Empire: health and disease in Brazil in the nineteenth century,” the article contrast “modern Brazil” imagined by the medical and political elites on the occasion of the First Centenary of Independence in 1922 with the numerous problems and challenges in the field of health that the republic, in its third decade, had inherited from the colonial and Imperial periods. In addition, it highlights issues in the history of health in the 19th century that allow the readers of the dossier to reflect on the unfulfilled civilizational promises of 1822-1922 in light of the immense challenges of the year 2022 when Brazil completes two hundred years of political sovereignty.
Key words: Public health; History; Republic; Imperial Brazil; Medicine
Em setembro de 1923, uma edição especial do Almanak Laemmert foi publicada com o tema do centenário da Independência do Brasil. O mês escolhido para a publicação encerrava um ciclo de solenidades e homenagens iniciado um ano antes, cujo ápice foi a inauguração da Exposição Internacional do Rio de Janeiro1. A publicação afinava-se com o espírito laudatório que permeou as iniciativas em torno da grande efeméride de 1922. Tratava-se de anunciar os notáveis avanços civilizatórios conquistados pela nação ao longo de seu primeiro século de independência. Em outras palavras, o Brasil republicano finalmente ingressaria na modernidade.
Em vários dos capítulos, destacados membros da intelectualidade da capital - entre eles Capistrano de Abreu, Afrânio Peixoto, Barbosa Lima Sobrinho e Gustavo Barroso - celebravam as conquistas do Brasil independente na cultura, nas ciências, na economia e na religião, entre outras, anunciando um belo porvir para a vida nacional. O capítulo sobre a medicina ficou a cargo de Antônio Austregésilo, prestigiado professor da cátedra de neurologia da Universidade do Brasil, e versa sobre contribuições da medicina nacional para a saúde pública e o progresso do país:
A extinção da febre amarela no Rio de Janeiro, e nas grandes cidades brasileiras, conduzida com estrondosa vitória por Oswaldo Cruz; a profilaxia rural, a vacinação obrigatória, a campanha contra as doenças venéreas, a tuberculose, lepra, ancilostomíase, o impaludismo postos em execução pelo dileto discípulo de Oswaldo Cruz, Carlos Chagas; a assistência aos insanos, feita com dedicação por Juliano Moreira e Franco da Rocha; a higiene das habitações, a fiscalização dos produtos alimentícios, e tantas outras medidas firmadas pelo Departamento Geral de Saúde Pública provam como a medicina tem proporcionado à nossa imensa pátria benefícios indiscutíveis e perfeitamente pragmáticos (p. 93)1.
O tom autocongratulatório e a narrativa evolutiva e positiva sobre o papel dos médicos e da medicina no primeiro centenário da Independência, sejam nos textos e ou na própria exposição internacional de 1922, encobriam muitas questões e emudeciam diversos atores. Em primeiro lugar, enfatizava o protagonismo dos médicos, todos homens, membros das elites e portadores de visões hierarquizantes sobre a sociedade, e subordinava outros profissionais de saúde importantes, como farmacêuticos e enfermeiras. Na celebração do progresso, os médicos dublês de historiadores apagaram de seus textos qualquer registro do que seria o “atraso” que, segundo eles, teria sido superado: as práticas e os praticantes de cura de origem africana e indígena que continuavam a ser agentes sociais importantes. A própria população é ator amorfo nessas celebrações, ela não tem voz, cor nem gênero. Também não há apontamentos sobre o legado da experiência colonial, da violência política no Império, das diferenças regionais e da escravidão, cujo fim se dera há pouco mais de três décadas. Para os médicos formados entre o fim do Império e o início da República, a saúde evoluíra a partir da criação de escolas médicas e de instituições sanitárias, tendo como marco o desembarque da Corte portuguesa em 1808. E sempre sob a liderança dos “sábios” da medicina diplomada.
Uma história da medicina brasileira que se ocupava das descobertas e do engenho de homens e instituições responsáveis pelo triunfo do saber médico frente ao império das doenças do campo e das cidades foi transformada por historiadores e cientistas sociais no último quarto do século XX. Tornou-se uma história da saúde no Brasil, polifônica e contextualizada, que enfatiza as profundas conexões entre saberes curativos, concepções sobre o corpo, experiências de adoecimento, políticas de saúde e aspectos sociais, econômicos, políticos e culturais de nossa sociedade2.
Afinado com essa perspectiva, este dossiê retoma a análise da Independência sob o prisma da saúde e reflete parte da extraordinária ampliação de temas de pesquisa resultante de novos olhares e perspectivas teóricas e metodológicas. Nas próximas páginas, o leitor encontrará estudos sobre a saúde dos escravizados, as renhidas disputas jurisdicionais entre a medicina acadêmica e as artes curativas tradicionais, as relações entre sociedade e Estado por meio de políticas de vacinação e enfrentamento de epidemias, a criação de espaços institucionais de debate e afirmação de identidades próprias à comunidade médica local. A então capital do Império, a cidade do Rio de Janeiro, não é mais a única referência. Esse descentramento aparece nos artigos que analisam importantes experiências regionais e locais, inclusive de caráter inovador. Trata-se de questões que, embora praticamente invisíveis para análises tradicionais de médicos e sanitaristas, tornaram-se incontornáveis para qualquer balanço atual sobre a história da saúde no bicentenário do Brasil independente. Quanto ao recorte cronológico, a maior parte dos trabalhos se dedica ao século XIX, com relativa ênfase nos efeitos da emancipação política do país no processo de institucionalização das instituições de saúde durante o período imperial. Contudo, alguns trabalhos avançam até o início do século XX, enfatizando também algumas das continuidades, contradições e instabilidades que marcaram a saúde no início do período republicano. O ano do primeiro centenário foi um ano de celebrações, mas também de crise política e econômica, bem como de eleições. Um século depois, em 2022, esse dossiê pretende contribuir para colocarmos sob exame crítico a promessa civilizatória da medicina e da saúde, inviável porque excludente, celebrada em 1922.
Referências
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
15 Ago 2022 -
Data do Fascículo
Set 2022
Histórico
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Recebido
02 Jun 2022 -
Aceito
04 Jun 2022 -
Publicado
21 Jun 2022