Open-access “Reservatórios de doenças venéreas”, “MSM/HSH” e “PWA”: continuidades, rupturas e temporalidades na produção de bioidentidades no contexto da epidemia de AIDS

“Reservoirs of venereal diseases,” “MSM” and “PWA”: continuities, ruptures and temporalities in the production of bioidentities in the context of the AIDS epidemic

Resumo

Este artigo examina as continuidades, rupturas e temporalidades na produção de bioidentidades no contexto da epidemia de HIV-Aids. Problematiza, a partir de um estudo multissituado na confluência de áreas e subáreas biomédicas que despontavam em popularidade nas décadas de 1980 e 1990, as agendas comuns de pesquisa sob a moldagem dos termos e categorizações popularizadas durante o pânico sexual provocado pelo aumento das taxas de contágio e morte. O desenho metodológico é caracterizado como de métodos mistos e envolveu, prioritariamente, pesquisa documental e revisão temática sobre a produção acadêmica nas áreas e disciplinas inseridas no eixo das biociências, com a finalidade de buscar e selecionar os estudos primários sobre homossexualidade e HIV/Aids, por meio da produção global. As conclusões atestam que a administração da Aids em sua condição crônica tratável produziu afinidades eletivas e de correspondência entre categorias epidemiológicas e sociais (MSM/HSH, PWA, GMLA) com noções de gênero e sexualidade definidas.

Palavras-chave: Aids; HIV; Homossexualidade; Sociologia da saúde; HSH

Abstract

This article examines the continuities, ruptures and temporalities in the production of bioidentities in the context of the HIV-AIDS epidemic. Based on a multi-site study at the confluence of biomedical areas and sub-areas that rose in popularity in the 1980s and 1990s, it questions the common research agendas under the influence of terms and categorizations popularized during the sexual panic of AIDS caused by the increase in contagion rates and death. The methodological design is characterized as mixed methods and primarily involved documental research and thematic review on academic production in the areas and disciplines included under the aegis of the biosciences, in order to search for and select primary studies on homosexuality and HIV/AIDS, through global production. The conclusions attest that the management of AIDS in its treatable chronic condition produced elective and correspondence affinities between epidemiological and social categories (MSM/PWA, GMLA) with defined notions of gender and sexuality.

Key words: AIDS; HIV; Homosexuality; Sociology of Health; MSM

Introdução

Desde a constituição dos primeiros estudos em cluster para investigações sobre doenças venéreas, na década de 1950, na América do Norte, o interesse em descrever e classificar sexualidades não-heterossexuais em pesquisas sobre infecções sexualmente transmissíveis era o mote das ações e das campanhas organizadas pelo Center for Disease Control (CDC) para recrutamento e seleção de homens homossexuais. Isso se deu, por convergência e como política de saúde, junto às campanhas antitabaco e contra doenças venéreas após a Segunda Guerra Mundial, financiadas pela Organização Pan-Americana de Saúde, a partir de preocupações sobre a saúde global da população, reprodução e fecundidade. Esse movimento fez parte da chamada nova epidemiologia e marcou as produções científicas a respeito da sífilis, de 1950 até a década de 19801. Nessas produções científicas, que designaram a epidemiologia das doenças venéreas, métodos que haviam sido populares no final do século XIX, como a inferência estatística e a causalidade, refloresceram sob o olhar de técnicas ultraespecializadas de classificação e diferenciação biomédicas2. Notadamente, por meio de estudos sobre doenças cardíacas, do aparelho respiratório e venéreas com clivagens sociodemográficas definidas - gênero, sexualidade, raça/cor, etnia, idade e origem social.

À época, essas configurações emergentes na maneira de classificar e diferenciar, contudo, não necessariamente proveram uma linguagem mais positiva a grupos historicamente classificados como não-hegemônicos, ou como “grupos especiais”, “grupos expostos” e “minorias raciais/étnicas”3. Segundo Ferreira e Miskolci4, os estudos signatários da nova epidemiologia, como os biogerontológicos, grosso modo até a emergência sanitária da Aids em meados da década de 1980, recrudesceram enquadramentos e percepções estigmatizantes mais antigas, informadas pelos diagramas em cluster aplicados aos estudos da sífilis desde os anos 1950. Entretanto, tais nexos permanecem indiscutidos pela produção acadêmica contemporânea e que se debruça sobre os contornos do pânico sexual. O pânico provocado em torno do sexo anal entre homens surgiu como um cofator de causalidade da transmissão, uma vez que associou uma prática socialmente percebida como de potencial exposição ao vírus. Na produção analisada, verificou-se o aparecimento do termo já na década de 1980, perdurando até as recentes publicações, ao lado de “MSM”, “sex”, “among” e “men”.

No contexto da Aids e, precisamente, a partir da década de 1980, entendimentos racistas, sexistas e patologizantes se somaram à produção da profilaxia dos fatores de risco ao HIV nas disciplinas que abarcavam as biociências - isto é, as ciências do comportamento e as disciplinas biomédicas e tecnológicas de fronteira. Uma parte expressiva desses estudos, conforme avaliou McKay2, produziu linhagens para descrições sobre fatores associados à Aids, individualizando experiências de contágio e adoecimento em detrimento de diagnoses médicas que versavam sobre o comportamento sexual. O cluster method, em particular, popularizou-se na década de 1950 em estudos epidemiológicos e contribuiu com ferramentas teórico-metodológicas que designavam determinadas populações como mais suscetíveis e/ou propensas à sífilis na América do Norte. Quando longos processos de escrutínio e entrevistas fundamentadas em anamneses clínicas examinavam as implicações acerca da mobilidade de sujeitos, os estudos em cluster avaliavam os efeitos das interações com outros possíveis pacientes infectados pela sífilis. O legado desses estudos foi a equiparação das relações não-heterossexuais e não-monogâmicas a uma profilaxia de risco que se propagou socialmente. Naquele contexto, a categoria MSM (“men who have sex with men” - em português, “homens que fazem sexo com homens”, HSH) foi alçada ao centro de diagramas em cluster em pesquisas médicas financiadas pelo CDC e que investigavam a etiologia e a transmissibilidade das doenças venéreas.

De tal modo, a questão em torno da mobilidade de grupos não-heterossexuais e que mantinham relações sexuais sem compromisso, comumente apresentada pela categoria MSM/HSH, levou a uma onda progressiva de estudos que objetivavam compreender os efeitos da livre circulação de pessoas rotuladas, à época, como “reservatórios de doenças infecciosas venéreas” (reservoirs of infectious venereal disease - RIVD).

Por meio de uma linguagem que se assentava na observação dos hábitos e das histórias pessoais pregressas baseadas na espacialização da mobilidade dos sujeitos e na contagem de parceiros sexuais, os estudos da sífilis operacionalizados pelo cluster method produziram cientificamente a categoria de “suspeitos” para os estudos das doenças infectocontagiosas transmitidas sexualmente. Baseado sobretudo na investigação da interação social de “vetores” e “suspeitos”, entre 1983 e 1986, o método recriou a hipótese sobre a constituição de um “Paciente O” - categoria epidemiológica popularizada durante a emergência global de HIV/Aids, na qual a letra “O” alfabética representava o termo “[O]ut of Califonia” (“fora da Califórnia”, em português), em um dos estudos liderados pelo CDC, em 1984. Devido a sucessivos erros de transcrições para matérias jornalísticas na primeira metade da década de 1980, o “O” alfabético apontado nos diagramas em cluster passou a ser descrito pelo numeral “0/zero”. Isso, por um lado, reforçou o entendimento social e epidemiológico corrente de que o vírus estava circunscrito a segmentos sociais delimitados. E por outro minorou as ações coletivas e políticas em saúde pública.

Assim como homossexuais (MSM/HSH), trabalhadoras sexuais, usuários de drogas endovenosas e segmentos sociais racialmente classificados como não-brancos foram os principais grupos de correspondência com as classificações e generalizações relativas ao status viral no imaginário médico e popular com altos índices de infecção por doenças venéreas, como se depreende pelos estudos das doenças venéreas, nas décadas de 1950, 1960 e 1970, e do HIV-Aids, a partir da década de 19801,2,5-7.

Isto posto, e em análise à produção nas biociências vigentes a partir da década de 1980, quais seriam as continuidades e rupturas nos termos e categorias utilizados no contexto da epidemia de HIV/Aids? Haveria tendências históricas a respeito da produção de bioidentidades informadas, por exemplo pela concatenação de clivagens sociodemográficas, em relação ao status viral? Dois pontos históricos, de modo particular, sintetizam e informam as análises que atravessam as duas questões de pesquisa elencadas: (i) em primeiro lugar, a aproximação da linguagem epidemiológica vigente a partir da década de 1980 com as ferramentas e técnicas de pesquisa que compreendiam a nova epidemiologia, notadamente pelos estudos em cluster baseados na mobilidade de homens homossexuais; (ii) em segundo, o papel conferido às categorizações originárias do período mais letal da epidemia de HIV-Aids, referentes a estudos sobre o sarcoma de Kaposi, em particular, e à cristalização das categorias PWA (patient with AIDS, em inglês; paciente com Aids, em português) e MSM/HSH no imaginário sociomédico.

Organizada sob enquadramentos biossociais, a linguagem da patologia forneceu um amplo vocabulário fundamentado em identidades biológicas, concebidas aprioristicamente como princípio e condição natural para a Aids. Uma parte considerável da produção socioantropológica e histórica a respeito da pandemia de HIV-Aids nas décadas de 1980 e 1990 está centrada em leituras críticas sobre as ciências biomédicas e epidemiológicas. Em que pese a relevância dessas produções pela evidente contribuição em debates ainda atuais sobre a longa exposição a processos de estigma e preconceito, acesso a medicamentos, terapias antirretrovirais e a políticas de saúde, as análises focalizadas nas biociências e na interface com os estudos acerca da homossexualidade, ainda no presente, são incipientes. Este artigo, portanto, avança ao traçar uma espécie de conexão entre o tempo e a epidemia. Ou seja, a partir de um olhar multissituado na confluência de áreas e subáreas biomédicas que despontavam em popularidade nas décadas de 1980 e 1990, cujas produções estabeleceram agendas comuns de pesquisa sob a moldagem dos termos e das categorizações popularizados durante o pânico sexual provocado pelo aumento das taxas de contágio e morte por HIV/Aids.

Metodologia

O percurso metodológico é caracterizado como de métodos mistos e envolveu, prioritariamente, pesquisa documental e revisão temática sobre a produção acadêmica nas áreas e disciplinas inseridas no eixo das biociências, com a finalidade de buscar e selecionar os estudos primários sobre homossexualidade e HIV/Aids a partir da produção global. A revisão temática de literatura empreendida nesta pesquisa é distinta da revisão sistemática. Para a revisão temática, a síntese e o desfecho do resultado não consistem em apontar quais trabalhos procedem de determinada busca e seleção, mas o quê pode se depreender a partir da produção agregada, e analisada conjuntamente, pelos termos, descritores e/ou categorias originadas. Dessa forma, e revisão temática de literatura possibilita a interpretação das produções em nível macrossociológico - pela análise de aspectos da linguagem relativos aos termos mais disseminados e comuns aos estudos coletados.

Após a seleção de artigos, extraímos os títulos, resumos e o corpo do texto disponíveis, elaborando uma síntese quantitativa e qualitativo-analítica das informações dentro do recorte temporal estabelecido (1980-2010). Assim, o levantamento do conjunto de artigos se deu de três formas não ordenadas: (a) manual, (b) automática e (c) snow-balling.

  • a) Para a busca manual, foram analisados os sites e/ou anais de conferências, além de sites de revistas acadêmicas em busca dos artigos relacionados.

  • b) Para a busca automática, analisamos bibliotecas digitais, objetivando encontrar artigos de acordo com as seguintes palavras-chave e operadores booleanos: cluster study, [AND] HIV/AIDS, [AND] homosexuality, [OR] gay men, [OR] MSM, [OR] homosexual men. Essas palavras-chave, ou descritores, foram denominados por strings de busca. As bibliotecas digitais utilizadas foram LILACS, PubMed e Web of Science.

  • c) Para a busca snow-balling, analisamos a lista de referências dos artigos encontrados, visando descobrir novos estudos que se encontravam citados ao final.

Na sequência foram extraídas informações relevantes acerca do material coletado, observando detalhes de cada estudo/artigo, de maneira individual e comparada. Por fim, produzimos um resumo das informações, oferecendo um balanço dos dados de cada artigo, por meio de síntese narrativa e temática. Para documentar e analisar todo o material perscrutado, foi criado um banco de dados com auxílio do software R (versão 3.2.4). Com a finalidade de analisar os títulos, resumos e os textos completos dos artigos, nos baseamos na técnica de text mining, por meio de nuvens de palavras (word clouds) e nuvens comparativas (comparative clouds) das produções, as quais incluíram os títulos e resumos, a fim de representar a frequência com que as palavras-chave apareciam e identificar as palavras/termos com maiores prevalências.

Com o intuito de agrupar artigos com títulos similares, foi realizada a análise hierárquica de agrupamento8, via método de Ward, que busca formar grupos de maneira a atingir sempre o menor erro interno entre os vetores que compõem cada grupo e o vetor médio do grupo. Ou seja, o método busca o mínimo desvio padrão entre os dados de cada grupo9,10. Assim, o método também é denominado mínima variância, e a medida de distância entre dois vetores (A/B) consiste na soma das distâncias ao quadrado (SSE) entre os dois vetores, conforme a seguir:

I A B = S S E A B ( S S E A + S S E B )

S S E A = Σ n a ( a i a ) ( a i a )

S S E B = Σ n b ( b i b ) ( b i b )

S S E A B = Σ n a b ( y i y A B ) ( y i y A B )

Em que:

  1. ai representa o vetor de observação i thno clusterA, e a o centroide do clusterA.

  2. bi representa o vetor de observaçãoi thno clusterB, e bo centroide do clusterB.

  3. yi representa o vetor de observaçãoi thno clusterAB, e yAB o centroide do cluster AB recém-formado.

A escolha do número de grupos foi feita a partir do dendograma, uma ferramenta apropriada para definir o número de grupos, pois uma boa classificação pode ser obtida ao se cortar o dendograma em uma zona em que as separações entre classes correspondam a grandes distâncias (dissimilaridades).

Resultados

Foram coletados 839 artigos da base Web of Science, que aglutinam a produção indexada por meio dos descritores e operadores booleanos elencados na seção de métodos. A produção recolhida compreende artigos produzidos e publicados entre as décadas de 1980 e 2010 nas biociências.

A Figura 1 apresenta o dendograma de agrupamento dos artigos por título. Optou-se por trabalhar com quatro grupos. Pode-se observar que grande parte dos textos foi agrupada em um único cluster, devido à alta similaridade. O grupo em verde é composto por 284 artigos (G1), o em laranja por 209 artigos (G2), o roxo por 218 artigos (G3) e o rosa por 86 artigos (G4).

Figura 1
Dendograma de agrupamento dos artigos por título. 1980-2010.

A Figura 2 apresenta uma nuvem de comparação entre os grupos por título. As nuvens de comparação são utilizadas para comparar as frequências com que os termos aparecem entre grupos, contrastando palavras com maiores frequências em cada um. Pode-se observar que: (i) as palavras de maior destaque no Grupo 1 foram sex, men e among; (ii) as palavras de maior destaque no Grupo 2 foram HIV, infection e patients; (iii) as palavras de maior destaque no Grupo 3 foram: sexual, orientation e women; (iv) as palavras de maior destaque no Grupo 4 foram gay, bisexual e lesbian.

Figura 2
Nuvem de comparação entre os grupos por título, 1980-2010.

A Figura 3 apresenta o dendograma de agrupamento dos artigos por resumo. Optamos por trabalhar com cinco grupos. Podemos observar que grande parte dos textos foi agrupada em um único cluster, devido à alta similaridade. O grupo em verde é composto por 109 artigos (G1), o laranja por 140 artigos (G2), o roxo por 286 (G3), o por 40 (G4) e o verde claro por 155 artigos (G5).

Figura 3
Dendograma de agrupamento dos artigos por resumo, 1980-2010.

A Figura 4 apresenta uma nuvem de comparação entre os grupos por resumo. Podemos observar que: (i) as palavras de maior destaque no Grupo 1 foram testing, orientation e diagnosed; (ii) as de maior destaque no Grupo 2 foram MSM, men e prevalence; (iii) as de maior destaque no Grupo 3 foram HIV, women e syphilis; (iv) as do Grupo 4 foram chlamydia, histolytica e donors; (v) as de maior destaque no Grupo 5 foram: HPV, older e health.

Figura 4
Nuvem de comparação entre os grupos por resumo, 1980-2010.

O Gráfico 1 mostra o mapa percentual da relação entre os termos mais utilizados nos títulos dos artigos e a década de publicação. Uma vez que o número de artigos nas décadas de 1980 é muito reduzido, optamos por construir o mapa apenas com as décadas subsequentes. Cabe ressaltar que, quanto mais próximo o termo da década, maior a associação, assim como quanto mais distante, menor a associação. Logo, pode-se observar que (i) poucos termos apresentaram forte associação com a década de 1990, sendo os principais: homosexual, drug e older; (ii) alguns dos termos mais associados aos anos 2000 foram: patients, behavior, vírus, cohort, orientation, human e anal; (iii) os termos associados à década de 2010 foram: adults, health, sex, bissexual, HIV, MSM e syphilis.

Gráfico 1
Mapa percentual da relação entre os termos mais utilizados nos títulos dos artigos e a década de publicação, 1980-2010.

O Gráfico 2 mostra o mapa percentual da relação entre os termos mais utilizados nos resumos dos artigos e a década de publicação. Logo, pode-se observar que (i) poucos termos apresentaram associação com a década de 1990, sendo os principais: age e male; (ii) alguns dos termos mais associados aos anos 2000 foram: gay, anal, negative, positive, heterosexual e self; (ii) alguns dos termos mais associados aos anos 2010 foram: prevalence, factors, MSM, infected, sex, HIV e methods.

Gráfico 2
Mapa percentual da relação entre os termos mais utilizados nos resumos dos artigos e a década de publicação, 1980-2010.

Discussão

Os resultados apresentados evidenciam continuidades da perspectiva da linguagem patológica formada durante o período mais letal da pandemia, apontado por especialistas como o momento do pânico sexual2-7,11-15. Assim, e de forma a responder à primeira questão explicitada na introdução, os dados provenientes da análise temporal, por meio dos mapas percentuais (gráficos 1 e 2), atestam a permanência e associação histórica da homossexualidade masculina às descrições de risco e contágio por HIV/Aids.

Embora incipientes, os estudos na década de 1980 e, sobretudo, na década de 1990 se voltaram majoritariamente para a análise sobre a transmissibilidade do HIV entre homens homossexuais (Gráfico 1). A partir da década de 2000, houve um incremento de pesquisas que buscavam estudar relações heterossexuais e as diferenças no percurso de contágio e adoecimento relacionadas a idade e consumo de drogas endovenosas, porém ainda mantendo a tendência histórica de associação das pesquisas com o estudo de relações homossexuais masculinas. A popularização do termo “gay” nas biociências, por outro lado, conforme o Gráfico 2, sugere certa aproximação das pesquisas com o vocabulário corrente dos movimentos sociais e políticos, além de configurar uma marca geracional específica. Desde a década de 1990, o termo “gay” emerge como uma alternativa política e metodologicamente higienizada para minorar estigmas decorrentes das categorias “homossexualismo” e “homossexualidade” nas pesquisas. Por outro lado, também definindo uma diferença da perspectiva geracional, uma vez que “gay” enquanto categoria descritiva recuperava o sentido de urgência de estudos sobre a disseminação da doença entre homens homossexuais jovens e adultos-jovens, os quais não se reconheciam - e até evitavam - o termo “homossexual” (esse último, mais difundido entre homens homossexuais de meia-idade e acima, que vivenciaram as primeiras experiências sexuais e amorosas com o mesmo sexo em um período histórico no qual a sexualidade era concebida como um distúrbio psiquiátrico tratável). Essa distinção geracional entre os termos “homossexual” e “gay” aparece pela primeira vez no contexto da Aids na clássica coletânea organizada pela oncologista Linda Jane Laubenstein e pelo dermatologista Alvin Friedman-Kien, AIDS: The Epidemic of Kaposi’s Sarcoma and Opportunistic Infections, em 1984.

Apesar dos usos do termo “gay”, nas décadas de 2000 e 2010 há a (re)emergência da categoria MSM/HSH. Nesse contexto, MSM/HSH é alçada ao centro de investigações com desenhos metodológicos diversos - e não mais (apenas) circunscrita aos estudos em cluster que a cristalizaram no imaginário sóciomédico - como um termo guarda-chuva que compreendia, indiscriminadamente, relações entre homens homossexuais de diversas faixas-etárias, abarcando ainda homens que não se compreendiam como “gays” ou “homossexuais” e buscavam relações sexuais com pessoas do mesmo sexo anonimamente e sem compromisso.

De acordo com os dendogramas de agrupamento (figuras 1 e 3) e as nuvens de comparação (figuras 2 e 4), a partir dos tipos de artigos produzidos nas biociências, o aumento da produção nas décadas de 2000 e 2010 é signatário de pesquisas que convergiam estudos sobre bissexualidade, mulheres lésbicas e outras infecções sexualmente transmissíveis (i.e., syphilis, chlamydia, entamoeda histolytica, human papillomavirus etc.) entre diferentes segmentos etários. Consideramos, ainda, que a disseminação da categoria MSM/HSH foi impulsionada em razão de sua indistinção geracional. Notadamente, desde a segunda metade da década de 1990, quando as novas infecções por HIV e seu quadro de imunodeficiência mais geral passaram a ser representados por seu status crônico, por meio dos usos combinados de DDC e AZT, dos ARVS e, finalmente, pela disponibilização comercial da high active antiretroviral therapy (HAART), em 199616.

Enquanto MSM/HSH se populariza como uma categoria programática em torno de pesquisas, políticas de saúde e investigações sobre a transmissibilidade do HIV, há a manutenção, ao menos sintaticamente, de sua estrutura original desde as últimas quatro décadas. Inversamente, a categoria RIVD desaparece, em meio a uma equiparação menos hostil e estigmatizante da perspectiva de gênero e de status em saúde17 promovida pela categoria MSM/HSH, embora mantendo a homossexualidade masculina como seu polo. A despeito de uma leitura sintética e que enxergaria nesta passagem - de RIVD para MSM/HSH - uma correspondência natural e essencialmente positiva, é preciso considerar criticamente que tais designações, categorias e termos são originados nos Estados Unidos. Historicamente, portanto, tais normatizações precedem de um tipo de especismo biomédico que reconheceu determinadas condições patológicas e agravos como doenças segmentadas a grupos socialmente distintos, minorando o papel do Estado na produção de políticas e estratégicas coletivas baseadas em um sistema universal de atenção, tratamento e aconselhamento em saúde.

Essa distinção, na esteira da produção de conhecimento acerca das epidemias transmitidas pela via sexual durante a segunda metade do século XX, de maneira particular, entre a sífilis e a Aids, é relevante para a compreensão da transmutação de tais categorias médicas em bioidentidades socialmente disseminadas. No contexto da década de 1980, e adiante, MSM/HSH se tornou uma bioidentidade fraturada por meio de divisões que atravessavam o trabalho de especialistas em doenças autoimunes, epidemiologistas, grupos civis organizados por direitos humanos, movimentos sociais, seguradoras e companhias de saúde, serviços, produtos e marketing baseados no status sorológico.

Dois pontos históricos, de modo enfático, sumarizam e informam as análises que permeiam a conformação da linguagem patológica em bioidentidades: (i) em primeiro lugar, a aproximação da linguagem epidemiológica vigente a partir da década de 1980 com as ferramentas e técnicas de pesquisa que compreendiam a nova epidemiologia, notadamente pelos estudos em cluster baseados na mobilidade de homens e seus intercursos sexuais; (ii) em segundo, o papel conferido às categorizações originárias do período mais letal da epidemia de HIV-Aids, referentes a estudos sobre o sarcoma de Kaposi, em particular, e à cristalização das categorias PWA (patient with AIDS, em inglês; paciente com Aids, em português) e MSM/HSH no imaginário sociomédico. Diante do exposto, argumentamos que a conformação da linguagem patológica deve ser compreendida em retrospecto, como um fenômeno historicamente situado7,18-20.

PWA, MSM e a produção de diferença nas biociências: decantando as biodentidades

O estudo das bioidentidades exige a compreensão de seus processos formativos e o permanente exercício de pensar tais categorizações como emergidas em algum momento no espaço e no tempo. Esse exercício tanto é útil para compreendê-las e situá-las dentro de um enquadramento histórico e social apropriado como para revogar quaisquer hipóteses que as estabeleçam como naturais, finalmente estabelecidas e a-históricas19-21.

Como ponto inicial, consideraremos as distinções fundamentais entre PWA e MSM/HSH, ponderando ainda suas conexões e atravessamentos. PWA, por um lado, é uma categoria política surgida nos Estados Unidos, na década de 1980, por grupos civis e movimentos sociais organizados em torno da Aids, como o ACT UP, o Mothers’ Group e o Gay Men Health Crisis (GMHC). A categoria PWA é empregada também, no contexto da década de 1980 nos Estados Unidos, para designar um grupo pioneiro chamado people with AIDS. Em resumo, PWA é um termo reincorporado por vertentes radicais do ativismo próximas às ações do People With AIDS Coalition (PWAC), que buscavam se contrapor à definição epidemiológica do “paciente com Aids” - AIDS patient, em inglês - e é originário das ações empreendidas pelo ACT UP22 durante a crise sanitária da Aids. No entanto, o uso do termo pode ou não indicar que a pessoa está associada a algum grupo político em particular. De qualquer forma, o termo é controverso e conservador. Do lado do ativismo, a noção recrudesceu o movimento de “auto capacitação” (self empowerment), que defendia o “protagonismo” dos indivíduos acometidos pela doença em assumir o controle da própria vida, da doença e dos cuidados, minimizando a dependência em relação ao outros23. Tal aposta, invariavelmente, sustentou afirmações ainda vigentes de que a “liberdade individual” deveria se sobrepor ao direito coletivo de amparo e assistência com base em políticas públicas de saúde sólidas, resultantes de ações pactuadas ao nível do Estado - as quais, ao menos no contexto estadunidense, sempre foram incipientes.

MSM/HSH, porém, e conforme apresentamos na Introdução, é uma categoria metodológica que se populariza durante o período mais mortal da pandemia, sendo originária dos primeiros estudos em cluster para doenças venéreas nas décadas de 1940 e 1950. Essa distinção, ainda indiscutida no presente, deve ser analisada sob o prisma da formação de dois enquadramentos que atravessam os usos e a disseminação dos dois termos.

PWA pode ser considerado um termo êmico, criado e estrategicamente mobilizado por grupos expostos, pacientes, cuidadores e pessoas indiretamente atingidas pelas questões da Aids, cuja busca por visibilidade para a doença e seus processos de vulnerabilidade tornavam a categoria especificamente mais abrangente e menos recortada por clivagens de gênero e sexualidade. MSM/HSH, no entanto, tem suas raízes em pesquisas epidemiológicas orientadas pela demarcação do gênero e da sexualidade como estruturas fundacionais para a compreensão do surgimento e do impacto de infecções sexualmente transmissíveis.

Esses dois apontamentos nos permitem olhar com mais cautela, e até com certo ceticismo, a produção de um vocabulário - quer seja êmico e/ou científico - em meio ao período do pânico sexual e adiante. Durante a década de 1980, e enquanto a categoria PWA buscava generalizar os efeitos e o impacto da pandemia para além dos grupos expostos, ou da segmentada visão sobre a comunidade homossexual, MSM/HSH foi efeito e resultado de um alinhamento categorial3 (categorical alignment) que, a princípio, era produzido com o auxílio de uma linguagem essencialmente dermatológica da doença, por meio de pesquisas que se debruçaram sobre a disseminação do sarcoma de Kaposi.

Manchas roxas, azuladas ou marrons na pele, de tamanhos, densidade e texturas variadas, à época, simbolizavam um sinal comum no imaginário sociomédico acerca da Aids2. A evolução do sarcoma de Kaposi se manifestava, via de regra, com pequenas placas ou nódulos roxos em áreas diversas do corpo, como pernas, tórax ou rosto. Elas conferiam, nos termos de McKay2, uma “face” popularmente disseminada da doença e amplamente aceita. E eram politicamente eficientes, pois materializavam a insígnia do risco na camada mais exposta e visível do corpo humano-social2.

Por muito tempo, e desde o início, as imagens de pessoas adoecendo de Aids foram produzidas com o auxílio de uma visualização dermatológica da pele2,24-26. A hiper-representação da derme, com manchas de tonalidades azuladas e escuras, sua camada mais superficial e aparente, tornou-se uma ferramenta contundente para apontar pacientes potencialmente acometidos pela nova síndrome. Na ausência de exames laboratoriais complexos ou de relatos acerca da sexualidade e das práticas homoeróticas, a pele confirmava sua condição patológica associada.

Na primeira coletânea de trabalhos sobre a Aids publicada nos Estados Unidos, em 1984, intitulada AIDS: the epidemic of kaposis sarcoma and opportunistic infections, organizada pelo médico-dermatologista Alvin Friedman-Kien e pela especialista em hematologia e oncologia Linda J. Laubenstein, foi amplamente discutido em seus capítulos o aumento repentino do número de casos de sarcoma de Kaposi - um câncer raro que mais tarde seria identificado como uma doença definidora da Aids - em jovens homossexuais com deficiências imunológicas24,25.

De início, as chamadas infecções oportunistas (opportunistic infections) apareciam como fatores secundários à Aids, predominando narrativas médico-científicas voltadas principalmente ao sarcoma de Kaposi. Na influente coletânea, Laubenstein e Friedman-Kien25 argumentam que havia certa dificuldade de diagnóstico em pacientes mais velhos e idosos, pois em muitas ocasiões as manchas escuras na pele eram tratadas (e se confundiam) como casos específicos de melanomas ou pigmentações associadas à exposição continua ao Sol como pré-condição devido à idade dos pacientes - e portanto como cofatores da senescência biológica. Os primeiros casos, conforme relataram Laubenstein e Friedman-Kien (1984), foram identificados sobretudo entre jovens homossexuais, pois nesse segmento não havia o biomarcador da idade para confundir as análises4. Além disso, pacientes mais jovens estavam mais abertos para falar sobre as relações homossexuais do que pacientes mais velhos2-4. Uma vez que a anamnese clínica era essencialmente modulada pelo escrutínio das práticas sexuais entre homens, a abertura de segmentos jovens para narrar as multiparcerias tornava esta população imediatamente mais visível.

Após a descrição do sarcoma de Kaposi entre homens homossexuais jovens, o biomarcador da idade não mais garantiu que houvesse uma separação - e até equiparação - entre a incidência de câncer comum de pele e a sua anterior correspondência em grupos mais velhos, mas uma forte correlação entre alterações na pigmentação da derme, câncer e homossexualidade. Emergiu, por conseguinte, a partir do mapeamento do sarcoma de Kaposi, a definição de um novo biomarcador, ainda mais poderoso do que o biomarcador de idade, assentado em uma correlação historicamente mais antiga que distinguia status de normalidade e patologia pelo comportamento sexual2.

A influente coletânea, portanto, foi responsável por agrupar discursos acerca de uma alteração a nível epitelial e somático a pesquisas médicas sobre pacientes homens que mantinham relações com o mesmo sexo. Isso tanto dissolveu o critério geracional, que mantinha os estudos preliminares sobre o sarcoma de Kaposi mais restritos a áreas cujas investigações compreendiam segmentos jovens quanto reposicionou as pesquisas nas biociências para o cerne das investigações a respeito de modificações epiteliais relacionadas à idade, bem como demarcação do sarcoma de Kaposi como um tipo de senilidade rara relativa a sujeitos homossexuais em idades distintas.

Nesse contexto, formou-se um tipo de biossocialidade26,27 cujo objetivo consistia em classificar e coletivizar o sarcoma de Kaposi sob um status somático comum, por meio de agrupamentos biossociais que respondiam a demandas ao mesmo tempo científicas, políticas e morais por enquadramento e categorização de práticas sexuais e afetivas não-heterossexuais. Isto é, um status somático partilhado entre sujeitos diretamente afetados pela Aids, alçados a grupo de risco durante o período mais letal da doença - homens homossexuais em diversas faixas-etárias. O conceito de biossocialidade, proposto pelo antropólogo Paul Rabinow26, permite compreender tais agrupamentos biossociais e sua consequente permeabilidade a disciplinas científicas relativamente mais recentes à época nas ciências biomédicas. As biociências, como um conjunto de disciplinas científicas de fronteira entre as ciências biológicas e médicas, como observamos, mostraram-se receptivas à incorporação das narrativas sobre adoecimento e à correlação entre sarcoma de Kaposi, alterações cutâneas e (homo)sexualidade.

Seguindo as proposições de Rabinow26, consideramos que tal agrupamento biossocial promoveu uma ética individualizadora à medida que as pessoas passaram a moderar suas relações e a identificar potenciais riscos, consigo mesmas e com seus parceiros, em uma linguagem modelada por uma individualidade somática. A linguagem da patologia, a partir dos primeiros estudos em cluster aplicados à Aids, levou a uma onda progressiva de classificação de homens homossexuais infectados, com base em entrevistas e escrutínios relativos à contagem de parceiros sexuais - essa definição, aliás, pode ser historicamente datada de um dos estudos em cluster liderado pela epidemiologista Selma Dritz, do CDC da Califórnia, entre 1982 e 19842.

A concatenação da linguagem da patologia pelos estudos sobre as parcerias amorosas/sexuais tanto tornou evidente os casos de contaminação entre homens quanto expôs a hipótese sobre o meio homossexual como um lugar vulnerável a doenças venéreas e, em particular, ao HIV-Aids. Portanto, é nesse momento que MSM/HSH se consubstancia em uma bioidentidade, caracterizada por sua polivalência. Isto é, uma bioidentidade que associava um padrão específico de morbimortalidade ao gênero masculino, enquadrando-o em critérios de contágio e adoecimento que eram, em partes, justificados pelos múltiplos parceiros sexuais e pelas relações não-monogâmicas, ou pela própria homossexualidade.

Formas de classificar, estruturas semânticas e categorias descritivas não devem ser vistas como procedimentos a esmo, ou como meras traduções de explicações metodológicas em noções empíricas sobre sujeitos, práticas e relações sociais. Tal lição, extraída de Geof Bowker e Susan Leigh Star21, é particularmente útil para analisar o impacto das categorizações na maneira pela qual as biociências lidaram com a pandemia de HIV/Aids. E como questões inerentemente sociais, por exemplo, foram cindidas em modelos explicativos que almejavam naturalizar as dinâmicas de contágio e adoecimento entre homens homossexuais.

Igualmente, imagens detalhadas de pessoas adoecendo por infecções oportunistas, por outros tipos de canceres, pneumonia e até mesmo por condições patológicas pregressas, segundo as principais causas de morte, criaram um princípio coletivo atomizado na imagem do paciente masculino com sarcoma de Kaposi: a de que ele mantém relações sexuais sem compromisso com pessoas do mesmo sexo. Por meio dessa imagem, fragmentada por agregações discursivas, estilísticas e pelo próprio agrupamento biossocial que lhe foi característico, sugerimos que foi formado um dos modelos representacionais e simbólicos mais disseminados da Aids até fins da década de 1990 - o modelo epidemiológico em cluster, do homem homossexual incauto, HIV+, de faixa-etária não delimitada, com múltiplos parceiros -, identificado pela categoria MSM/HSH.

A generalização de investigações a respeito do sarcoma de Kaposi para disciplinas e áreas não-hegemônicas - embora ligadas às ciências biomédicas -, como sutura o caso da produção nas biociências, é também o ponto de viragem para o desenvolvimento de um protótipo incompleto de cidadania biológica. Em primeiro lugar, a noção de cidadania biológica (biological citzenship) - termo cunhado pela antropóloga Adriana Petryna28 - pode ser interpretada no contexto da produção nas biociências e da incorporação dos estudos sobre homossexualidade como um empreendimento no qual asserções e classificações biológicas tangenciam a definição de paciente para um tipo de agravo comum - o paciente com HIV-Aids, PWA.

E a despeito de uma análise apenas centrada na forma como as biociências respondiam aos desdobramentos sanitários e epidemiológicos da doença, consideramos que tais asserções para a produção de categorias médicas podem ser interpretadas ainda como o ponto no qual demandas múltiplas se coadunam29,30. Em outras palavras, tais regimes descritivos que popularizaram categorias médicas e epidemiológicas, como aqueles que produziram a noção de “homens que fazem sexo com homens”, não estiveram circunscritos apenas a uma lógica vocabular médica e científica. Nesse aspecto, MSM/HSH reemerge na década de 1980 também como uma categoria estratégica e polivalente, mobilizada por conservadores e empreendedores morais contrários às políticas públicas de saúde para a Aids, movimentos sociais progressistas e de direitos humanos, grupos de pacientes afetados, autoridades médicas e sanitárias, cuidadores, empresas biofarmacológicas e profissionais de saúde.

Uma das razões para a prevalência de MSM/HSH em detrimento da categoria PWA - esta última, como vimos, advinda de movimentos sociais organizados -, por exemplo, deve-se ao fato de que a primeira foi cooptada cientificamente no contexto da inclusão dos chamados “grupos especiais” em protocolos para a produção de medicamentos. Especialmente, mas não só, em testes a partir de estudos randomizados com antirretrovirais (ARVs) no início da década de 19903.

Esse movimento por inclusão, porém, não foi trazido e incorporado por atores leigos nas políticas governamentais promulgadas preponderantemente nos anos 1990, nos Estados Unidos3. Steven Epstein3 sugeriu que o movimento por inclusão envolveu, primeiro, uma coalizão híbrida e historicamente mais antiga, que aproximou pautas de defensores e de ativistas em saúde a especialistas, burocratas, corporações e empresas farmacológicas e formuladores de políticas governamentais ligados a partidos e a órgãos públicos desde os anos 1970. Ainda de acordo com Epstein3, a produção de categorias diversas para agravos em saúde consagrou o que pode ser denominado de padronização de nicho -uma maneira geral de transformar populações humanas em objetos padronizados disponíveis para escrutínio científico, administração política, marketing, comércio biofarmacológico ou outros propósitos que evitavam o universalismo e o individualismo. Em vez disso, padronizou no nível do grupo social - um padrão para os homossexuais, outro para heterossexuais; um padrão para negros, outro para brancos, outro para asiáticos; um padrão para crianças, outro para adultos31. Apesar de não haver métrica para um padrão humano único, a padronização de nicho abalizava um conjunto de padrões de subtipos que se cruzavam.

Arguimos que esse tipo de demanda por padronização específica foi particularmente prevalente nas décadas de 1980 e 1990, em análise do contexto da epidemia de HIV-Aids. Não obstante, é possível entrever, diante dos dados apresentados, que a Aids antecipou esse especismo, criando a partir das biociências uma distinção fundamental que organizaria, por exemplo, os estudos correntes naquele momento voltados à homossexualidade. A padronização por nicho pode ser útil para explicar, ainda, a ênfase e a atenção particularizada que foi originada pela convergência entre homossexualidade masculina, risco e a recente síndrome da imunodeficiência adquirida nas biociências. Essa convergência, como um produto das relações entre ciência, Estado e mercado, demarca uma divisão qualitativa e hierárquica nas pesquisas, que passam a ser instadas a produzir categorias classificatórias que não operam fora de regimes e classificações vigentes socialmente21,26,29,31.

A (re)emergência da categoria MSM/HSH a partir da década de 1980 realçou sua permeabilidade a uma diferenciação moralizante, em que ao mesmo tempo que incluía e tornava hipervisível o segmento homossexual masculino - como novos sujeitos à pesquisa e principal grupo de risco, alvos de técnicas, discursos e procedimentos clínicos delimitados -, produziu um critério diferencial revestido por uma combinação de status de saúde com aspectos centralizados em gênero e sexualidade, recrudescendo a conhecida associação entre homossexualidade e um agravo de natureza sexualmente transmissível11 ,32. Esse fato, entretanto, não é apenas característica das biociências, tampouco é datado a partir da emergência da epidemia de HIV-Aids, como uma parte não minoritária da literatura corrente tende a reproduzir. De modo mais incipiente, por outro lado, categorias políticas e êmicas se consubstanciaram no vocabulário epidemiológico contemporâneo. GMLA - gay men living with AIDS, em inglês -, por exemplo, foi introduzida no repertório analítico das produções como uma alternativa menos hostil, porém recortada pelo gênero masculino.

Considerações finais

Por meio das ambivalências e ambiguidades estabelecidas na produção da Aids a partir de sua característica vinculação a grupos específicos, argumentamos que a emergência das bioidentidades não promoveu um imediato rompimento com desigualdades macro e microestruturais em saúde - vivenciadas, respectivamente, em nível social e dos sujeitos -, ao passo em que a terapia antirretroviral mais eficiente (HAART) ainda não é concretamente acessível a todas as pessoas que dela dependem. Como parte dessa equação, em que processos categoriais científicos e sociais produziram bioidentidades, clivando experiências sexuais com regimes morais constritos ao gênero, reconceitualizadas por uma condição patológica comum, a farmacologização das relações afetivas, sexuais e da própria homossexualidade não ofereceu garantias voltadas à equidade em saúde e ao acesso irrestrito a terapias e medicamentos. Não por acaso, a aproximação da doença com seu vocabulário epidemiológico adequado cristalizou a posição da homossexualidade no campo das doenças crônicas transmissíveis e no produtivo mercado das morbidades.

Agradecimentos

À Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo - FAPESP (GN 17/23665-9; 19/10677-4) e à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Capes (GN 23038.001024/2018-91), bem como ao Harvard Department of the History of Science e ao Radcliffe Institute for Advanced Study e à Arthur and Elizabeth Schlesinger Library.

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Editado por

  • Editores-chefes:
    Romeu Gomes, Antônio Augusto Moura da Silva

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Ago 2022
  • Data do Fascículo
    Set 2022

Histórico

  • Recebido
    17 Fev 2022
  • Aceito
    16 Maio 2022
  • Publicado
    18 Maio 2022
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