Open-access Gênero e Insegurança alimentar na pandemia de COVID-19 no Brasil: a fome na voz das mulheres

Resumo

Neste artigo apresentamos resultados de uma pesquisa que integra o projeto internacional “Gender and COVID-19”, que contempla diversos temas relacionados aos impactos da pandemia na vida de mulheres e suas famílias, entre eles a insegurança alimentar e a fome. Foram feitas entrevistas semiestruturadas entre dezembro de 2020 e novembro de 2021 com 49 mulheres, moradoras de dois aglomerados urbanos, Cabana do Pai Tomás (Belo Horizonte, MG) e Sapopemba (São Paulo, SP), e de duas comunidades rurais quilombolas, Córrego do Rocha (Chapada do Norte, MG) e Córrego do Narciso (Araçuaí, MG). As análises foram baseadas nas seguintes categorias: sentimentos e termos relacionados à fome; redução na quantidade e qualidade de alimentos; ausência de alimento e nutrientes; dificuldades para produzir alimento, receber auxílio emergencial e/ou doação de alimentos; avaliação dos governos e redes de apoio. Os relatos das entrevistadas evidenciam os desafios vivenciados, suas formas de enfrentamento e críticas à falta de respostas dos governos. Além de apresentarem uma perspectiva de gênero, as mulheres, em especial as lideranças que atuaram na construção de redes de solidariedade, são vozes fundamentais no planejamento de ações de prevenção e mitigação dos impactos de situações emergenciais em suas comunidades.

Palavras-chave: Gênero; Fome; Insegurança alimentar; COVID-19; Pandemia

Abstract

This paper presents the results of the research nested in the international project “Gender and COVID-19”, which includes several topics related to the impact of the pandemic on the lives of women and their families, including food insecurity and hunger. Semi-structured interviews were conducted from December 2020 to November 2021 with 49 women living in two urban conglomerates, Cabana do Pai Tomás (Belo Horizonte, MG) and Sapopemba (São Paulo, SP), and two rural quilombola communities, Córrego do Rocha (Chapada do Norte, MG) and Córrego do Narciso (Araçuaí, MG). The analyses were based on the following categories: hunger-related feelings and terms; reduced food amount and quality; lack of food and nutrients; difficulties producing food, receiving emergency aid or food donations; governments evaluation and support networks. The respondents’ reports show the challenges they experienced, their coping methods, and criticism of the government’s lack of responses. Besides presenting a gender perspective, women, especially the leaders who worked in the construction of solidarity networks, are fundamental voices in planning actions to prevent and mitigate the impacts of emergencies in their communities.

Key words: Gender; Hunger; Food insecurity; COVID-19; Pandemic

Introdução

Desde fevereiro de 2020, no período inicial da pandemia de COVID-19, um grupo de acadêmicas de Canadá, Reino Unido, Hong Kong e China estabeleceu uma colaboração para realizar pesquisas sobre gênero e COVID-19 nesses países. Posteriormente, a partir de junho de 2020, com financiamento da Fundação Gates, o projeto foi estendido para Brasil, Bangladesh, República Democrática do Congo, Quênia e Nigéria. Essa colaboração ganhou o nome de projeto “Gender and COVID-19” (www.genderandcovid-19.org), cujo objetivo é estabelecer quais são as lacunas na resposta dos governos à COVID-19 em relação ao gênero, de forma rápida e prática, produzindo evidências que possam embasar decisões sobre políticas de proteção a mulheres e a grupos em situação de vulnerabilidade de forma geral. De forma análoga aos grupos que se organizaram internacionalmente, no Brasil o projeto integrou acadêmicos de diferentes áreas, instituições e redes, com coordenação da Fiocruz Minas em parceria com o Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais (CEFET-MG), a Fundação Getúlio Vargas (FGV), a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e a Rede COVID-19 Humanidades MCTI (https://www.ufrgs.br/redecovid19humanidades/index.php). A pesquisa apresentada neste artigo é resultado dessa grande rede de colaboração internacional e nacional.

Estudos anteriores à pandemia da COVID-19 demonstraram que, no Brasil, a insegurança alimentar moderada ou grave é mais prevalente em domicílios nos quais a pessoa de referência é uma mulher, com baixa escolaridade e cor autorreferida negra (parda ou preta)1,2. Pesquisas durante a pandemia reforçam que este padrão se mantém: as mulheres e famílias sustentadas por elas foram as mais afetadas pela fome no contexto pandêmico3,4. Estes dados demonstram a importância de se analisar o tema tendo as mulheres como referência, sob uma perspectiva interseccional de gênero, raça e classe, entre outros indicadores sociais. Além disso, historicamente a alimentação tem sido de maior responsabilidade das mulheres dentro das famílias, devido aos papéis tradicionais de gênero e à desigual divisão do trabalho, mais especificamente, do trabalho doméstico e do cuidado. No caso da alimentação, essa desigualdade foi intensificada durante a pandemia, em que o tempo gasto pelas mulheres na preparação de alimentos aumentou de maneira significativa5.

No campo, as mulheres são as principais responsáveis pela produção de alimentos. Segundo uma pesquisa da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), em 2020 elas corresponderam a 74% dos agricultores familiares que abastecem o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA)6. Nos espaços urbanos, elas se destacam ao liderar a formação de redes solidárias que lutam pela segurança alimentar em favelas7. Sendo assim, o protagonismo feminino no ativismo político e na produção, compra, doação, distribuição e preparação de alimentos reforça a importância de investigar seus elos com a insegurança alimentar durante a pandemia, em diferentes contextos e territórios brasileiros.

A fome é um fenômeno definido, observado e analisado por diferentes perspectivas em disputa. As primeiras tentativas de se mensurar a fome a reduziram a índices de massa corporal e quantidade de calorias ingeridas, ligada a uma visão estritamente preocupada com o balanço energético do indivíduo8. Essa concepção foi amplamente criticada, de modo a incorporar aspectos psicológicos, sociais, culturais, ambientais etc., pensando a fome de forma socialmente reconhecida, e não apenas clinicamente identificada. Além disso, a fome passou a ser estudada como um processo, com etapas de intensidade gradativa e considerações sobre a qualidade, quantidade e frequência da alimentação, com a adoção de escalas de (in)segurança alimentar e questionários aplicados em domicílios8. Essas escalas contribuíram para a compreensão da fome como um fenômeno mais complexo. Entretanto, o termo “insegurança alimentar”, adotado nessas escalas, tornou-se um eufemismo que muitas vezes mascara a existência da fome, como discute Ribeiro Júnior et al.8 Tal mascaramento faz parte também das estruturas de classe, sobretudo daquelas historicamente presentes na sociedade brasileira, marcadas pela escravidão, a primazia de latifúndios e da fome como fator indelével de um capitalismo dependente9. Diante disso, neste artigo buscaremos utilizar preponderantemente o termo “fome”, embora “insegurança alimentar” possa ser usado como sinônimo.

Apesar dos avanços teóricos/analíticos, ainda permanece no senso comum uma visão da fome como algo associado apenas a corpos mal nutridos em contextos de miséria ou condições excepcionais, como guerras e epidemias. Tais representações auxiliam na negação da existência da fome em situações de aparente “normalidade”. Isso foi questionado por Josué de Castro, no livro Geografia da Fome10, no qual o autor faz duas importantes distinções: a fome total (ausência de alimento) e a fome parcial ou oculta (falta de elementos nutricionais). Também diferencia a fome permanente (endêmica) e a transitória (epidêmica). Como ressalta o autor, a fome parcial e permanente é mais frequente e grave no contexto brasileiro, levando a uma degradação gradual da saúde de populações inteiras ao longo do tempo e de forma oculta.

A fome no contexto da pandemia de COVID-19 tem sido tratada em discursos políticos como um evento transitório, determinado por fatores econômicos resultantes das limitações necessárias para conter o vírus. Entretanto, é importante ressaltar que a fome no país vinha se agravando devido à crise econômica e política, principalmente a partir de 20144. O estágio atual não é simplesmente um resultado repentino da pandemia. Como ressalta Josué de Castro10, a fome é consequência da tomada de decisões políticas guiadas por interesses econômicos, quando deveriam ser guiadas por interesses de saúde pública.

Nesse sentido, a pandemia tem tornado cada vez mais evidente o favorecimento da manutenção de privilégios econômicos de uma minoria, do agronegócio, dos agrotóxicos, dos transgênicos e das monoculturas, em detrimento da saúde da maioria da população, principalmente daqueles que vivem no campo e que desenvolvem uma agricultura familiar sustentável. Pesquisas demonstram que a insegurança alimentar nas áreas rurais, justamente onde se produz alimento, é maior do que nas áreas urbanas1,3,4,8, devido a fatores como baixa renda, acesso limitado aos recursos hídricos, falta de saneamento básico e subcapilarização de políticas públicas de segurança alimentar.

Portanto, neste artigo buscamos responder à pergunta: como mulheres, de contextos urbanos e rurais vulnerabilizados, vêm lidando com a segurança alimentar no contexto da pandemia da COVID-19 no Brasil?

Procedimentos metodológicos

A pesquisa contemplou entrevistas em profundidade, baseadas em roteiro semiestruturado revisado após pré-testes com cinco mulheres. O roteiro e o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) foram aprovados (CAAE 39133020.8.0000.5091) pelos comitês de ética (CEPs) das instituições participantes e pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP), e estão disponíveis no SciELO Data (https://doi.org/10.48331/scielodata.S3XCJX).

As entrevistas foram realizadas com mulheres de dois aglomerados urbanos, Cabana do Pai Tomás (que inclui bairros da região oeste Belo Horizonte, MG) e Sapopemba (distrito que inclui bairros da região leste de São Paulo, SP), e de duas comunidades rurais quilombolas do Vale do Jequitinhonha (MG), Córrego do Rocha (Chapada do Norte) e Córrego do Narciso (Araçuaí). Esses territórios foram selecionados por se tratarem de regiões com populações de baixa renda, marcadas por processos de vulnerabilização significativos em relação à pandemia, onde os(as) pesquisadores(as) do projeto já empreendiam ações de extensão e pesquisa. Apesar de serem semelhantes em relação aos fatores mencionados, cada território possui particularidades fundamentais para compreender de forma local os processos de fome e insegurança alimentar e suas especificidades.

As entrevistas nas áreas urbanas foram feitas via telefone, entre março e agosto de 2021. Na área rural, a maioria das entrevistas foi conduzida presencialmente, seguindo todos os protocolos de segurança, entre o fim de 2020 e novembro de 2021. Foram entrevistadas 49 mulheres, sendo 16 do aglomerado Cabana do Pai Tomás, 15 de Sapopemba, nove de Córrego do Narciso e nove de Córrego do Rocha. A duração média das entrevistas foi de uma hora. Diversas vezes as entrevistas foram remarcadas devido à falta de tempo das entrevistadas, sobrecarregadas com intensas rotinas de trabalho. A maioria das entrevistas ocorreu à noite, quando encontravam tempo livre. Poucas entrevistadas tinham acesso à internet, por isso o telefone foi o meio mais usado. Nem sempre o sinal de telefone era de boa qualidade, o que comprometeu em alguns casos a qualidade das gravações. Algumas não atenderam ligações de número desconhecido, sendo necessário contato por indicação (método bola de neve). O TCLE foi importante para comprovar a legitimidade da pesquisa e estabelecer confiança. A impessoalidade da entrevista a distância exigiu um cuidado maior no convite à participação, em respeito ao luto e às dificuldades vividas pelas entrevistadas. O conhecimento prévio dos(as) pesquisadores(as) sobre as pessoas e seus contextos foi fundamental nesse processo.

Os resultados apresentados neste artigo correspondem ao tema de insegurança alimentar, o qual foi abordado no roteiro de entrevista principalmente por meio de cinco perguntas: se a pandemia afetou o acesso a alimentos; se foi necessário reduzir o consumo de algum alimento durante a pandemia; se durante a pandemia (a) recebeu doação de alimentos e (b) fez doação de alimentos; como avalia a atuação dos governos em relação a este tema. Perguntas complementares foram feitas de forma livre pelos entrevistadores de acordo com o andamento da entrevista, por se tratar de roteiro semiestruturado.

As respostas a essas perguntas específicas, assim como menções ao tema em outras partes da entrevista, foram analisadas em maior profundidade em relação ao seu conteúdo, com base na literatura sobre o tema. As principais categorias de análise foram: sentimentos e termos relacionados à fome; redução na quantidade e qualidade de alimentos; ausência de alimento e nutrientes; dificuldades para produzir alimento, receber auxílio emergencial e/ou doação de alimentos; avaliação dos governos e redes de apoio. Para traçar o perfil das respondentes foi utilizado um questionário sociodemográfico, com perguntas sobre idade, raça/cor/etnia, escolaridade, estado civil, número de filhos, gestação, número de moradores do domicílio e renda domiciliar.

Resultados e discussão

Perfil das entrevistadas

Com relação ao perfil das 49 entrevistadas, 22 se identificaram como negras (parda ou preta), 18 quilombolas, uma indígena e oito brancas. Apenas oito das entrevistadas não têm filhos, sendo que uma delas estava grávida na época da entrevista. A idade das entrevistadas variou de 21 a 64 anos, o que garante uma relevante diversidade etária. Em relação ao estado civil, 18 entrevistadas são casadas, nove vivem em união estável, 16 são solteiras, quatro são divorciadas e duas são viúvas. Das 16 mulheres solteiras, oito são mães.

Em relação à renda domiciliar, os dados foram organizados em número de salários-mínimos, ou sua fração (valor de referência R$1.100,00, que corresponde a 193,78 dólares americanos no dia 16 de dezembro de 2021). Sendo assim, a pesquisa encontrou que nove mulheres têm renda domiciliar menor que um salário-mínimo por mês, 11 recebem até dois salários-mínimos, sete têm renda familiar mensal entre dois e três salários-mínimos, quatro ganham até 5 salários-mínimos por mês e cinco mais de cinco salários-mínimos. Ou seja, 41,66% das entrevistadas têm renda domiciliar mensal menor que dois salários-mínimos. Vale dizer que nove mulheres não responderam e quatro não têm renda fixa. O número de pessoas por domicílio variou de dois a sete pessoas.

Ainda pensando na renda domiciliar mensal, o auxílio emergencial foi essencial para a subsistência de muitas delas durante alguns períodos da pandemia no Brasil, e entre as entrevistadas, 18 (36,73%) afirmaram ter recebido o auxílio, enquanto 24 (48,97%) não receberam e seis não responderam (12,24%).

A seguir, apresentamos relatos com nomes fictícios, como forma de garantir o sigilo das entrevistadas, conforme informado no TCLE. Esses relatos são importantes para compreendermos como essas mulheres são afetadas pela insegurança alimentar em seus mais diversos contextos.

A fome como tabu

Esses perrengues que eu tô passando com o meu filho, essa situação da gente em casa, da falta de alimento, essas coisas. [...] Não quero falar mais não (branca, 51 anos, Sapopemba, São Paulo, SP).

O relato acima é representativo da dificuldade que muitas mulheres sentiram em relatar as diversas privações que têm vivido durante a pandemia. Para além do caráter impessoal da entrevista por telefone, essa dificuldade pode estar associada aos sentimentos negativos que esses relatos suscitam. Mais especificamente, algumas entrevistadas relataram o sentimento de vergonha. Ao falar de seu passado, Sônia, da comunidade quilombola Córrego do Rocha, comenta sobre esse sentimento, em um momento em que ela e sua filha chegaram ao ponto de ter apenas café em casa:

Às vezes, as pessoas têm vergonha de contar, eu já tive vergonha, hoje, eu não tenho mais. [...] Aí eu entrava em desespero, só que eu não contava a minha situação para ninguém, para ninguém. [...] Porque eu nunca gostei assim de tá se expondo, né? (mulher quilombola, 50 anos, Córrego do Rocha, Vale do Jequitinhonha, MG).

Esse sentimento também é percebido no meio urbano, como comenta Marcela, da Cabana do Pai Tomás, ao ser perguntada sobre a existência de uma rede de solidariedade entre os vizinhos para doação de alimentos. Apesar de responder que os vizinhos sabem que podem contar uns com os outros e que trocam alimentos principalmente entre familiares, ela percebe que há uma vergonha, mesmo durante uma pandemia, em se buscar ajuda:

Então assim, às vezes, possivelmente alguma pessoa próxima dali que esteja passando necessidade, mas não vai recorrer ao vizinho do lado, porque possivelmente tem vergonha. Dele falar assim: “Ah, eu tô passando uma necessidade” (mulher parda, 30 anos, Cabana do Pai Tomás, Belo Horizonte, MG).

Como discute Josué de Castro10, a fome é um assunto “delicado e perigoso”, “um tema proibido ou, pelo menos, pouco aconselhável de ser abordado publicamente” (p. 11-21). A vergonha de falar sobre o assunto impõe desafios metodológicos, como perguntar sobre a fome sem causar constrangimentos, e analíticos, como entender nas entrelinhas que muitas vezes a fome é relatada sem necessariamente utilizar-se esse termo.

Sobre “passar necessidade”

Não passei fome, nem nada, mas necessidade em algumas coisas sim (mulher quilombola, 21 anos, Córrego do Narciso, Vale do Jequitinhonha, MG).

A linguagem mais utilizada para falar sobre mudanças alimentares durante a pandemia foi “passar necessidade” ou “dificuldade”. A redução do consumo de alguns alimentos, a substituição de alimentos saudáveis por alimentos ultraprocessados e a falta completa de algum alimento em geral não foi interpretada como fome:

Então assim as coisas ficaram muito complicadas mesmo, é o básico mesmo, né, que a gente tem que, né, porque infelizmente a gente tem que dosar um pouco. Mas assim, graças a Deus, eu não passei por dificuldade (mulher branca, 34 anos, Cabana do Pai Tomás, Belo Horizonte, MG).

Eu não passei por necessidade, mas diminuiu muito, esse mês a gente não comeu carne mesmo, a gente teve que reduzir muita coisa em janeiro e fevereiro (mulher branca, 27 anos, Cabana do Pai Tomás, Belo Horizonte, MG).

A maioria das entrevistadas (27 mulheres, 55,1%) relatou que o acesso aos alimentos foi prejudicado pela pandemia. A diminuição da renda e o aumento dos preços dos alimentos foram apontados como as principais causas desse problema. Entre as que responderam que não (18 mulheres, 36,73%), estão aquelas cuja renda domiciliar não foi drasticamente impactada pela pandemia ou que só não “passaram necessidade” por estarem recebendo doações de alimentos. Embora respondam que o acesso aos alimentos não foi prejudicado, ao serem perguntadas sobre a redução do consumo de alimentos, elas disseram que tiveram que adotar estratégias de redução da quantidade ou qualidade dos alimentos. Os relatos de Marcela, da Cabana do Pai Tomás, e Beatriz, de Sapopemba, ilustram isso:

Assim, você comprava a penca de banana, hoje você compra metade da penca, né? Diminuiu. Mas, assim, a qualidade da alimentação a gente tá tentando manter (mulher parda, 30 anos, Cabana do Pai Tomás, Belo Horizonte, MG).

Graças a Deus não ficamos sem alimento, porém a qualidade diminuiu muito, porque tivemos que optar por alimentos mais em conta pra poder manter o sustento (mulher branca, 39 anos, Sapopemba, São Paulo, SP).

Fome parcial/fome total

[...] não tem diversidade de alimentos, não tem uma alimentação rica em vitamina, em proteína, é sempre arroz, feijão e a farinha, né. Não tem outros tipos de alimentos que podem compor essa alimentação, que é importante também, né, uma alimentação rica em vitamina, mineral, proteína, né (mulher parda, 32 anos, Cabana do Pai Tomás, Belo Horizonte, MG).

A fome parcial, ou a falta de uma diversidade alimentar, foi relatada por mulheres que durante a pandemia estão dependendo de doações de alimentos para sustentar suas famílias. Trinta das entrevistadas (61,22%) disseram ter recebido doações, das quais 17 foram feitas pelo governo municipal ou estadual. Muitas mulheres não souberam informar de onde vieram as doações. Essas doações foram importantes para garantir uma alimentação diária, mas deixam a desejar na garantia de uma alimentação balanceada. Enquanto sobram carboidratos e farinhas, alimentos ricos em calorias, faltam alimentos ricos em nutrientes:

Às vezes vem muito macarrão, mas falta outra coisa. No lugar de quatro macarrão podia ser outra coisa pra tá investindo, né? (mulher quilombola, 51 anos, Córrego do Narciso, Vale do Jequitinhonha, MG).

A maioria dos relatos revela a predominância da fome parcial. Contudo, alguns relatos de fome total demonstram o agravamento profundo da fome no país. Antônia, de Córrego do Narciso, conta que “Eu tô tendo em vista que a fome vai voltar”, como nos tempos em que era criança:

Porque nós, na verdade, nós fomos criados com sopa de osso, que a gente não comia a carne, porque não tinha condições. [...] A gente tinha aqueles arroz, aí peneirava, os rico comia o arroz bom, e nós mesmo foi criado com canjiquinha de arroz, aquele arroz todo quebradinho, é aquilo que minha mãe comprava na feira. [...] Então, hoje, nós não tem nem isso aí mais, então, agora, pra nós tá difícil (mulher quilombola, 47 anos, Córrego do Narciso, Vale do Jequitinhonha, MG).

Emília, moradora de Sapopemba, mãe de dois filhos e grávida de seis meses, conta que ela e o marido vivem de trabalhos informais, sem ter uma renda fixa e que, por isso “Tem semana que não tem nem o dinheiro do pão” (mulher parda, 26 anos, Sapopemba, São Paulo, SP). Márcia, atualmente em Sapopemba, conta que passou por momentos difíceis com o marido quando estava no interior, pois “chegava dia que tinha um copo de arroz pra poder fazer pros dois. A coisa tá muito feia” (mulher branca, 51 anos, Sapopemba, São Paulo, SP).

A fome de quem produz alimento

A gente foi criado acostumado a trabalhar na roça, plantando, capinando, fazendo cerca. E trabalhando junto com mãe pra ajudar a mãe sustentar a casa, porque meu pai só bebia, meu pai não era de ajudar minha mãe (mulher quilombola, 47 anos, Córrego do Narciso, Vale do Jequitinhonha, MG).

Tradicionalmente, as comunidades quilombolas produzem uma variedade de alimentos em seu próprio território, seja para consumo próprio, seja para a venda nos centros urbanos próximos. O trabalho nas roças familiares é predominantemente realizado pelas mulheres, como conta Antônia, de Córrego do Narciso, no trecho citado. Nas comunidades contempladas por essa pesquisa, há plantações de laranja, milho, mandioca (usada na produção de farinha), diversos tipos de feijão, hortaliças, criação de galinha, porco e outros alimentos importantes para consumo e complementaridade de renda.

A falta de acesso a água de qualidade compromete historicamente a segurança alimentar dessas comunidades, que não possuem curso de água corrente em seus territórios e dependem, atualmente, de cisternas de captação de água de chuva e abastecimento de caminhão pipa com água potável. Além disso, a falta de acesso ao saneamento é um denominador comum nos quilombos, onde se usam fossas secas (onde os dejetos são dispensados diretamente no solo), sumidouros (conhecidos como fossa cinza, que são bastante rudimentares e apresentam grande risco de contaminação do lençol freático) e/ou esgotamento sanitário à céu aberto, havendo risco de contaminação da água e dos alimentos que consomem. A esses problemas estruturais somam-se conflitos territoriais devido à falta de titularidade da terra, o que, como discute Mendes11, interfere no acesso de comunidades quilombolas a recursos naturais necessários à sua subsistência.

Nessas comunidades, após aproximadamente nove meses de estiagem, chega o período das chuvas, que começam sempre ao final do ano. Embora sejam bem-vindas e muito esperadas pelos quilombolas, as chuvas causam problemas nas estradas, que são bastante precárias. Particularmente, no final de 2021 e início de 2022, as chuvas intensas bloquearam não apenas as estradas, mas causaram desalojamentos em vários municípios do Médio Jequitinhonha, dificultando inclusive a comunicação e a ida aos territórios para realização de pesquisas. Anteriormente às chuvas, o acesso das comunidades às cidades próximas foi diversas vezes restrito devido às medidas sanitárias para conter o vírus. Ivone, de Córrego do Narciso, relata ter passado necessidade nas épocas em que Araçuaí foi fechada devido à alta de casos da COVID-19:

Às vezes você tinha uma coisa pra buscar lá no mercado, era pra hoje, aí hoje você já não ia. Porque teve muita semana aí que nem os carros não foram. A cidade fechava, aí a gente não ia. Teve época da gente passar até um pouco de necessidade, né? Porque não podia ir em Araçuaí buscar (mulher quilombola, 58 anos, Córrego do Narciso, Vale do Jequitinhonha, MG).

Devido à falta de água, muitas quilombolas relataram a diminuição no consumo de alimentos antes produzidos por elas. A alta dos preços de produtos industrializados também fez com que o consumo de vários itens essenciais, como arroz e feijão, fosse reduzido. Os relatos de Fátima, de Córrego do Rocha, e Márcia, de Córrego do Narciso ilustram essas questões:

Você não pode plantar, porque na hora que dá a flor, que é para você colher a abóbora, não tem água para você molhar. E aí você vai ver a planta morrer e você não pode fazer nada. Porque tirar de beber também, a gente não pode tirar a água de beber para molhar um pé de planta (mulher quilombola, 33 anos, Córrego do Rocha, Vale do Jequitinhonha, MG).

Aumentou demais. De tudo, principalmente, arroz, o feijão. [...] Aí você tem que dividir. Tirar um tiquinho pra um canto, um tiquinho pra outro, um tiquinho pro arroz, um tiquinho pro feijão, um tiquinho pra um macarrão (mulher quilombola, 60 anos, Córrego do Narciso, Vale do Jequitinhonha, MG)

Somado à falta de água e ao aumento dos preços, o desemprego durante a pandemia agravou ainda mais a fome nas comunidades. Muitas famílias quilombolas dependem da colheita sazonal de café para complementar sua renda, que foi impactada pelas restrições impostas pela pandemia. Márcia, de Córrego do Narciso, fala da necessidade de migrar para as colheitas de café para conseguir trabalho e alimento, e da dor de ter perdido um filho longe de casa, sem poder se despedir:

E ele foi criado aqui, casou aqui e foi embora, ficou longe da família, morreu lá fora da família. Caçando o alimento para alimentar, né? Porque aqui não tem serviço (mulher quilombola, 60 anos, Córrego do Narciso, Vale do Jequitinhonha, MG).

Comida que não alimenta? Ganho de peso e perda nutricional

Aí, então assim, tinha vez que era noite, quando eu ficava muito ansiosa, eu comia, comia e continuava comendo, eu comia e sentava, eu não saía para canto nenhum, eu comia, sentava e não saía (mulher quilombola, 50 anos, Córrego do Rocha, Vale do Jequitinhonha, MG).

Parece contraditório que, em meio a tantas experiências de fome, encontremos também relatos de mulheres que ganharam peso. Esses relatos, como o de Sônia, vêm acompanhados de sentimentos como ansiedade, medo e falta de controle, que têm relação com o contexto de incerteza gerado pela pandemia. Somado a esses sentimentos, há o consumo de calorias vazias e carboidratos simples, como ilustra o relato de Letícia, de Sapopempa:

Então a gente exagerou muito da farinha branca na pandemia, e isso levou um ganho de peso muito grande aqui em casa. [...] A gente tenta, aí tenta fazer várias dietas que não... que não dão certo porque, né, essa ansiedade também, a gente acaba fazendo dieta, mas depois acaba sucumbindo e comendo um monte de coisas ao mesmo tempo (mulher branca, 38 anos, Sapopemba, São Paulo, SP).

Jussara, da Cabana do Pai Tomás, não teve sua renda prejudicada pela pandemia, pelo contrário, chegou a conseguir um novo emprego nesse contexto. Em seu caso, o impacto negativo da pandemia em sua saúde e alimentação foi resultado de ter passado a fazer compras por aplicativo, para evitar sair de casa e se expor ao vírus:

A gente acabou comprando coisas que não são tão saudáveis, a gente pede pelo aplicativo, aqui nos supermercados mais próximos, e aí acaba indo na onda e consome mais alimentos super processados. Então, do ponto de vista da saúde, eu acho que impactou negativamente. Não por causa da renda, mas por causa dessa dificuldade, passei por um certo comodismo da gente pedir, e aí vai e pede coisa assim, macarrão instantâneo, um monte de biscoitos, essas coisas (mulher branca, 61 anos, Cabana do Pai Tomás, Belo Horizonte, MG).

Os relatos demonstram a complexa relação entre acesso a alimentos, renda, estado emocional, ganho de peso e saúde. Ao contrário do esperado, é possível haver aumento de peso em lares com insegurança alimentar moderada ou grave, como demonstram alguns estudos, por exemplo o de Santana et al.12 Henriques et al.13 discutem a existência de um “ambiente obesogênico”, que atende a interesses de corporações comerciais de alimentos processados e do agronegócio, sendo importante estabelecer medidas de educação nutricional e regulamentação da compra e publicidade de alimentos não saudáveis.

Auxílio emergencial e doações de alimentos

Mulheres de baixa renda, com emprego formal e carteira assinada, não conseguiram receber o auxílio ou qualquer ajuda do governo, mesmo que sua renda não fosse suficiente para garantir a segurança alimentar. Diversos relatos abordam as dificuldades de mães desempregadas ou de baixa renda, como Flávia, que sustenta dois filhos sozinha com sua renda de um salário-mínimo. Conta que não tem acesso a nenhum tipo de auxílio do governo, apenas doações de outras fontes:

Eu não ganho benefício nenhum. É mais cesta básica de amigos, entendeu? [...] A gente pede ajuda aí alguém doa ou a escola [onde trabalha como faxineira] doa. Às vezes, tem verdura, às vezes tem biscoito, às vezes tem cesta básica (mulher parda, 42 anos, Cabana do Pai Tomás, Belo Horizonte, MG).

Alguns relatos apontam para uma demora no recebimento das cestas básicas, o que ocasiona a perda de validade de alguns alimentos:

Eles deram uma cesta básica na escola durante a pandemia, mas que a linguiça veio estragada. Eles seguraram a cesta básica pra depois liberar pra gente, tanto que eles preferiram deixar estragar alguns alimentos da cesta pra depois entregar (mulher parda, 26 anos, Sapopemba, São Paulo, SP).

Além disso, o acesso às cestas básicas não foi direcionado a todas as famílias. Dificuldade no cadastro escolar e nos pedidos de auxílio foram justificativas relatadas. Amanda, da Cabana do Pai Tomás, por exemplo, critica o critério estabelecido pelo governo estadual de Minas Gerais:

Com relação ao governo estadual, eu fiquei sabendo que o governo dá um kit merenda, mas não é todos os alunos que recebem, é somente aluno que recebe o Bolsa Família. E os que não recebem, como é que tá passando? (mulher negra, 33 anos, Cabana do Pai Tomás, Belo Horizonte, MG).

Diversas mães separadas tiveram problemas para receber o auxílio, mesmo sendo elas as responsáveis pelo cuidado dos filhos, como comenta Beatriz, de Sapopemba:

Às vezes, como aconteceu e eu vi acontecer com pais de família, mães que são separadas, quando o pai não tem direito e pegou auxílio, quando a mãe cuida do filho e a mãe ficou sem o auxílio (mulher branca, 39 anos, Sapopemba, São Paulo, SP).

O fechamento das escolas, mesmo com a doação de alimentos para substituir a merenda escolar, teve grande impacto na alimentação e na renda das mulheres entrevistadas. Como comenta Lígia:

E a questão das crianças também dentro de casa também é... porque queira ou não, manda o seu filho pra escola, ele come lá na escola, agora não, porque eles tão o tempo todo dentro de casa e têm que comer, e não só um monte de janta, ele tem lanche, ele quer comer alguma coisa: “Ô mãe, dá alguma coisa”. E a mãe não tem condição de dar. Isso é de cortar o coração, é difícil demais (mulher branca, 27 anos, Cabana do Pai Tomás, Belo Horizonte, MG).

Insatisfações com o governo

A falta de iniciativa de todas as esferas e poderes do governo em relação ao tema da fome foi criticada. Vinte mulheres (40,81%) avaliaram que a atuação dos governos em todas as esferas foi ruim, e oito (16,32%) afirmaram que precisa melhorar. Sete mulheres avaliaram o governo federal como ruim, mas os governos estadual e municipal como bons. Apenas uma mulher elogiou o governo municipal e uma se limitou a criticar o governo federal. Doze não responderam. De modo geral, 36 (73,46%) estão insatisfeitas.

As mulheres comentaram que o governo poderia ter sido mais ativo na questão da alta dos preços dos alimentos, ter feito mais doações de alimentos, ter agido mais rápido, ter colocado em prática mais políticas públicas de combate à fome e ter tido ações voltadas para as mulheres. Jussara, da Cabana do Pai Tomás, é conselheira municipal no Conselho Municipal de Segurança Alimentar de Belo Horizonte e sintetiza a insatisfação com o poder público de forma geral:

Apesar de a prefeitura fazer uma propaganda de que tem um plano municipal de segurança alimentar, eu acho que esse plano tá muito no papel. Você tem um orçamento grande, mas a informação que eu tenho é que muito pouco foi utilizado para o combate à fome dentro das políticas de assistência social. Os governos dentro de todas as suas esferas e poderes não vêm que este é um ponto importante no combate da desigualdade. A inércia do governo é impressionante (mulher branca, 61 anos, Cabana do Pai Tomás, Belo Horizonte, MG).

O governo federal, em especial, foi o mais criticado em relação ao tema da insegurança alimentar. Como comenta Paula, de Sapopemba, o presidente Jair Bolsonaro chegou a negar que existem pessoas passando fome no país:

Eu vi uma matéria em que o presidente tava dizendo que no Brasil ninguém passava fome não, que essa conversa era mentira. E aí eu queria tanto por alguns instantes passar na frente dele e dizer assim: “Onde que você viu isso, meu filho, então dá uma voltinha comigo que você vai mudar sua concepção”. E aí você vê o descaso, né? (mulher negra, 43 anos, Sapopemba, São Paulo, SP).

Redes de apoio e atuação de lideranças femininas

[...] tudo que tá sobrando dentro da casa da pessoa, ela tenta achar alguém pra doar, e aí cria essa rede de solidariedade aqui dentro da comunidade (mulher parda, 25 anos, Cabana do Pai Tomás, Belo Horizonte, MG).

Diante da insuficiente atuação do poder público, diversas redes de solidariedade têm sido fortalecidas e criadas nas comunidades, muitas lideradas por mulheres. Entre as entrevistadas, a grande maioria (32 mulheres, 65,3%) disse ter participado de doação de alimentos, seja compartilhando seus próprios alimentos ou conseguindo doações por meio de parcerias, contribuindo com a logística das entregas e na identificação das famílias que mais precisam de doações dentro de seus territórios. Destacamos aqui as falas de três lideranças que aceitaram ser identificadas:

E eu consegui uma parceria e todo mês eu, na minha associação com a nossa equipe, a gente tem conseguido distribuir em média de 70 cestas, por mês. E mais um kit de verduras no final de semana, na quinta ou na sexta (Lúcia Helena Apolinária, vice-presidente da Associação Comunitária Vila Imperial do grande aglomerado Cabana do Pai Tomás, Belo Horizonte, MG).

Nós fomos em 98% das comunidades rurais levar essa cesta. E foi cesta que a gente não mobilizou ninguém para sair de casa, a gente foi levando até as famílias. Peguei com as agentes de saúde, para a gente mapear todas as famílias vulneráveis, né, teve comunidade que teve cinco, teve comunidades que deve dez, que teve 20 (Maria Aparecida Machado Silva, presidente do Sindicato de Trabalhadores Rurais de Chapada do Norte, Vale do Jequitinhonha, MG).

A situação de insegurança financeira e alimentar de familiares de presos e sobreviventes vem demandando, desde o começo da pandemia, a mobilização de redes de solidariedade em busca de ajuda cada vez mais urgente. A Coalizão Negra, Uneafro, CEDECA Sapopemba e CDHS (Centro de Direitos Humanos de Sapopemba) têm contribuído de forma solidária com a doações de cestas básicas para a Amparar fazer a distribuição para os familiares (Míriam Duarte Pereira, fundadora da AMPARAR - Associação de Familiares e Amigos de Presos, Presas e Internos da Fundação CASA, Sapopemba, São Paulo, SP).

Considerações finais

Os relatos das mulheres foram um panorama do contexto de insegurança alimentar em diferentes territórios brasileiros e chamam atenção para a urgência de se levar a sério a fome no país, a qual segue negada e invisibilizada em meios políticos ou apenas superficialmente amenizada por doações. Buscamos expor esse cenário por meio das vozes de mulheres que convivem diariamente com a fome, e destacamos a necessidade de se pensar a fundo os indicadores sociais que atravessam essa questão, em especial questões de gênero, raça e classe.

Um traço importante dos efeitos da pandemia no Brasil é a ausência ou insuficiência de dados sobre a população atingida pela COVID-19, bem como seus efeitos colaterais e, consequentemente, a falta de políticas públicas plurais destinadas aos grupos mais vulnerabilizados. Em resposta a essa ausência de respostas governamentais, tais grupos se organizaram produzindo agendas de reivindicações e novas formas de existir na pandemia. É importante destacar que a desastrosa atuação do governo federal durante a pandemia não se trata de incompetência ou negligência, mas uma ação proposital de propagação do vírus, para retomar as atividades econômicas a qualquer custo, como comprova o estudo de Asano et al.14

Observamos que as mulheres, sobretudo as negras, foram as mais atingidas. Se por um lado essa situação indica uma permanência histórica de invisibilização e subalternização imposta às mulheres negras na sociedade brasileira, por outro se coloca como uma experiência de descolonização e como novas formas sociais e políticas de pensar o mundo e produzir respostas aos problemas postos no cotidiano.

A ação protagonista dessas mulheres na produção de estratégias para garantir a segurança alimentar de suas famílias é carregada não apenas de resiliência, mas de indignação com as injustiças a que são submetidas, de afeto com os seus e da invenção de outras maneiras de lidar com o alimento, que vão na contramão da lógica capitalista. A luta dessas mulheres não é apenas pelo prato de comida na mesa, mas por terra para plantar, renda para escolher o que comprar, ou seja, representa uma luta por uma vida mais justa e igualitária. Assim, acreditamos que as trajetórias e experiências das mulheres presentes nesse trabalho e de tantas outras deixam pistas que a superação dos impactos da COVID-19 não está nas estratégias universais, mas sim nas respostas locais, respeitando as especificidades e necessidades dos diferentes grupos sociais e seus atravessamentos de gênero, raça e classe.

Por fim, outra faceta evidenciada nas narrativas femininas diz respeito à importância das associações civis e dos movimentos sociais na criação de agendas, no diálogo com as entidades governamentais e não governamentais, sobretudo em contextos em que os governos negligenciam as demandas da sociedade civil. As políticas públicas devem levar em consideração os saberes e reivindicações desses grupos.

Agradecimentos

A todas as mulheres que aceitaram participar da pesquisa e compartilhar conosco suas histórias. A Sidnei Ferreira da Silva, Sebastiana Rodrigues dos Santos e Janaína Machado de Souza pela colaboração na coleta de dados em seus territórios.

Referências

  • 1 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios: PNAD 2004: suplemento de segurança alimentar. Rio de Janeiro: IBGE; 2006.
  • 2 Marin-Leon L, Francisco PMSB, Segall-Corrêa AM, Panigassi G. Bens de consumo e insegurança alimentar: diferenças de gênero, cor de pele autorreferida e condição socioeconômica. Rev Bras Epidemiol 2011; 14(3):398-410.
  • 3 Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede PENSSAN). Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da COVID-19 no Brasil. 2021.
  • 4 Galindo E, Teixeira MA, Araújo M, Motta R, Pessoa M, Mendes L, Rennó L. Efeitos da pandemia na alimentação e na situação da segurança alimentar no Brasil. Food for Justice Working Paper Series. Berlin: Food for Justice: Power, Politics, and Food Inequalities in a Bioeconomy; 2021.
  • 5 Leão N, Moreno R, Bianconi G, Ferrari M, Zelic H, Santos T. Trabalho e vida das mulheres na pandemia. In: Oliveira DA, Pochmann M, organizadores. A devastação do trabalho: A classe do labor na crise da pandemia. Brasília: Editora Positiva; 2020, p. 289-309.
  • 6 Companhia Nacional de Abastecimento (CONAB). Agricultura Familiar. Programa de Aquisição de Alimentos - PAA: resultados das ações da Conab em 2020 (Compêndio de Estudos Conab, v. 30). Brasília: Conab; 2021.
  • 7 Nunes NRDA. The power that comes from within: female leaders of Rio de Janeiro's favelas in times of pandemic. Glob Health Promo 2021; 28(2):38-45.
  • 8 Ribeiro Junior JRS, Sampaio MDAP, Bandoni DH, De Carli LLS. Atlas das situações alimentares no Brasil: a disponibilidade domiciliar de alimentos e a fome no Brasil contemporâneo. Bragança Paulista: Universidade São Francisco; 2021.
  • 9 Silva MZTDS. A segurança e a soberania alimentares: conceitos e possibilidades de combate à fome no Brasil. Configurações 2020; 25:97-111.
  • 10 Castro JD. Geografia da fome. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; 2008.
  • 11 Mendes PM. Segurança alimentar em comunidades quilombolas: estudo comparativo de Santo Antônio (Concórdia do Pará) e Cacau (Colares, Pará) [dissertação]. Belém: Universidade Federal do Pará; 2006.
  • 12 Santana DD, Barros EG, Salles-Costa R, Veiga GV. Mudanças na prevalência de excesso de peso em adolescentes residentes em área de alta vulnerabilidade a insegurança alimentar. Cien Saude Colet 2021; 26(12):6189-6198.
  • 13 Henriques P, O'Dwyer G, Dias P, Barbosa R, Burlandy L. Políticas de Saúde e de Segurança Alimentar e Nutricional: desafios para o controle da obesidade infantil. Cien Saude Colet 2018; 23(12):4143-4152.
  • 14 Asano CL, Ventura DDFL, Aith FMA, Reis RR, Ribeiro TB. Mapeamento e análise das normas jurídicas de resposta à COVID-19 no Brasil. Boletim Direitos na Pandemia 2020; 10;2-3.
  • Financiamento
    Essa pesquisa contou com os financiamentos INV-017300 da Fundação Bill & Melinda Gates; convênio 0464/20 FINEP/UFRGS da Rede COVID-19 Humanidades MCTI; Wellcome Trust Grant 218750/Z/19/Z; e Inova Fiocruz/Fundação Oswaldo Cruz.

Editado por

  • Editores-chefes:
    Romeu Gomes, Antônio Augusto Moura da Silva

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Out 2022
  • Data do Fascículo
    Nov 2022

Histórico

  • Recebido
    23 Mar 2022
  • Aceito
    16 Maio 2022
  • Publicado
    18 Maio 2022
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