Open-access Transtornos Mentais Comuns em quilombolas rurais do Norte de Minas Gerais, Brasil

Common Mental Disorders in rural “quilombolas” in the North of Minas Gerais, Brazil

Resumo

O objetivo deste artigo é avaliar a prevalência e fatores associados aos Transtornos Mentais Comuns (TMC) em quilombolas residentes em comunidades rurais localizadas no norte de Minas Gerais, Brasil. Trata-se de estudo transversal realizado em 2019 a partir de entrevistas estruturadas e aplicação do Self Reporting Questionnaire (SRQ-20). Foi conduzida regressão logística binária. A prevalência de TMC foi de 38,7%. Houve maior chance de TMC entre quilombolas do sexo feminino (OR: 2,69; IC95% 2,00-3,62), com 1 a 8 anos de estudo (OR: 1,70; IC95% 1,15-2,51), renda familiar entre 1 a 1,5 salário mínimo (OR: 2,51; IC95% 1,60-3,94); que sofreram discriminação em serviços de saúde (OR: 2,44; IC95% 1,44-4,13); com autorrelato de doença pulmonar (OR: 2,10; IC95% 1,25-3,54), doença cardíaca (OR: 1,58; IC95% 1,01-2,50) e insuficiência renal crônica (OR: 1,97; IC95% 1,08-3,94), e com autopercepção de saúde negativa (OR: 3,07; IC95% 2,31-4,07). A alta prevalência de TMC observada neste estudo demonstra a necessidade de políticas de atenção à saúde mental voltadas para as populações vulnerabilizadas, como as comunidades quilombolas, a fim de mitigar o sofrimento mental e favorecer uma atenção profissional contextualizada com as singularidades das condições de vida e saúde desse grupo populacional.

Palavras-chave: Saúde mental; Transtornos mentais comuns; Quilombolas; Grupos de ascendência africana

Abstract

The scope of this article is to assess the prevalence and factors associated with Common Mental Disorders (CMD) in “quilombolas” (Afro-Brazilian residents of quilombo settlements) in rural communities located in the North of Minas Gerais, Brazil. It is a cross-sectional study of 2019 based on structured interviews and application of a Self-Reporting Questionnaire (SRQ-20). Binary logistic regression was conducted. The prevalence of CMD was 38.7%. There was a higher preponderance of CMD among female quilombolas (OR: 2.69; 95%CI 2.00-3.62), with 1 to 8 years of schooling (OR: 1.70; 95%CI 1.15-2,51), family income of 1 to 1,5 minimum wages (OR: 2.51; 95%CI 1.60-3.94); who suffered discrimination in health services (OR: 2.44; 95%CI 1.44-4.13); with self-reported lung disease (OR: 2.10; 95%CI 1.25-3.54), heart disease (OR: 1.58; 95%CI 1.01-2.50) chronic renal failure (OR: 1.97; 95%CI 1.08-3.94), and negative self-perception of health (OR: 3.07; 95%CI 2.31-4.07). The high prevalence of CMD revealed in this study demonstrates the need for mental health care policies aimed at vulnerable populations, such as quilombola communities, in order to mitigate mental suffering and promote professional contextualized care for the idiosyncrasies of health and living conditions of this population group.

Key words: Mental health; Common mental disorders; Quilombolas; Groups of African descent

Introdução

Os quilombolas são grupos étnico-raciais de definição autoatribuível, formados por indivíduos com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica e com relações territoriais específicas1. As comunidades quilombolas são encontradas em todas as regiões do país e representam espaços de resistência e luta por direitos e pela conservação de sua cultura, crenças religiosas, valores e práticas tradicionais2.

A maioria das comunidades quilombolas estão situadas em áreas rurais, ocupam ecossistemas diversos e, por meio do trabalho, exploram os recursos naturais disponíveis em seus territórios3. A vulnerabilidade social desses grupos é evidenciada pelas múltiplas desigualdades, como a pobreza, o desemprego e o analfabetismo; um relativo grau de isolamento geográfico agravado pelo difícil acesso a esses espaços; além de uma escassa e precária oferta de serviços de saúde e saneamento ambiental, especialmente nas comunidades situadas em contextos rurais4-6. Essas amplas desigualdades sociais que geram fragilidades em todos os aspectos da vida cotidiana das populações quilombolas estão associadas à produção de sofrimento psíquico4.

A saúde mental é uma dimensão intrínseca e menos valorizada da saúde e do bem-estar do indivíduo e pode resultar na ampliação da desigualdade de renda, dos custos de vida, da vulnerabilidade social e pode ser algumas das razões para as altas taxas de suicídio e incremento dos níveis de estresse7,8. Estudos ainda destacam que, para além dos fatores biológicos, genéticos e pessoais, o território onde o indivíduo nasce, se desenvolve e envelhece produz e complexifica os padrões de sofrimento psíquico, sendo, portanto, uma categoria importante para pensar o cuidado em saúde e estreitar as relações entre o serviço de saúde e o contexto de existência concreta das pessoas4,8,9.

O Transtorno Mental Comum (TMC) é caracterizado por sintomas depressivos, estados de ansiedade, irritabilidade, fadiga, insônia, dificuldade de concentração e memória e queixas somáticas10,11. Os TMC são pouco identificados e tratados, geram um forte impacto na sociedade e muito sofrimento no indivíduo acometido, reduzem a possibilidade de tratamento precoce e aumentam a probabilidade para o desenvolvimento de doenças mentais12,13. O diagnóstico correto e na fase inicial desses transtornos é essencial para impedir a produção de custos elevados para o sistema de saúde e para os indivíduos e suas famílias e reduzir os custos menos mensuráveis, como os prejuízos físicos e psicológicos10,14.

No Brasil, a prevalência de TMC em moradores da área urbana da cidade de São Paulo foi de 19,7%13; na cidade de Montes Claros, norte de Minas Gerais foi 23,2%15, em assentamentos rurais localizados na região Centro-Oeste foi de 24,1%16 e em quilombolas baianos foi 29,6%12. Estudo conduzido na África do Sul detectou uma prevalência de TMC ao longo da vida de 30,3% e nos últimos 12 meses, a prevalência foi de 17%17.

As morbidades psíquicas são um dos principais problemas enfrentados pela saúde pública12. Ainda que não seja um consenso na literatura, muitos estudos transversais sugerem que a prevalência de transtornos mentais é maior na população negra que na população branca, mesmo nas análises multivariadas em que foram incluídas variáveis socioeconômicas, como escolaridade ou renda familiar18.

Em meio as precárias condições de vida, trabalho, acessibilidade e da qualidade da atenção em saúde mental, explorar o sofrimento psíquico em comunidades quilombolas é extremamente complexo, mas imprescindível para ampliar o conhecimento e as estratégias assistenciais4, uma vez que a carência de dados epidemiológicos dificulta o planejamento de políticas de saúde mental para os grupos populacionais específicos, como os quilombolas12.

Embora essas características étnico-raciais sejam uma das questões que interferem na prevalência de TMC12, ainda são escassas as investigações sobre a saúde mental da população quilombola4,5,12,18,19. Desse modo, com o intuito de lançar luz e contribuir com a produção de informações acerca dessa temática, o objetivo do estudo foi avaliar a prevalência e os fatores associados aos TMC em quilombolas residentes em comunidades rurais localizadas no norte de Minas Gerais, Brasil.

Métodos

Trata-se de um estudo transversal realizado em 2019 com comunidades quilombolas localizadas na macrorregião de saúde norte do estado de Minas Gerais, Brasil. Nesse ano, a referida macrorregião de saúde estava constituída por nove microrregiões que foram definidas como os conglomerados da pesquisa.

Para a identificação das comunidades quilombolas distribuídas nesse espaço geográfico foram consultados os dados disponíveis nas Secretarias Municipais de Saúde e Desenvolvimento Social, no Centro de Agricultura Alternativa, nos sítios eletrônicos da Fundação Cultural Palmares e do Centro de Documentação Eloy Ferreira da Silva. Verificou-se a existência de 79 comunidades e aproximadamente 19 mil habitantes quilombolas na referida macrorregião.

Para o cálculo da amostra composta por adultos quilombolas adotou-se a prevalência de 50% devido à heterogeneidade dos eventos que foram mensurados, precisão de 5 pontos percentuais, intervalo de 95% de confiança, efeito de desenho igual a 2,0, e estimativa de 20% de perdas, totalizando 905 indivíduos.

Para definição das comunidades quilombolas participantes do estudo, realizou-se a amostragem por conglomerado com probabilidade proporcional ao tamanho (PPT), selecionando-se 30 comunidades. Devido a distribuição espaçada entre as residências das comunidades quilombolas, a seleção dos domicílios ocorreu a partir do ponto central de cada uma delas. Em seguida, os pesquisadores deslocaram-se em sentido espiral, abordando os moradores em suas residências até atingir o tamanho amostral proposto para cada comunidade.

Foram elegíveis para o estudo homens e mulheres com idade mínima de 18 anos, autodeclarados quilombolas e residentes em comunidade quilombola certificada pela Fundação Cultural Palmares. Foram excluídos os indivíduos que possuíam algum tipo de comprometimento mental e cognitivo, segundo avaliação da família e/ou da equipe de saúde, que impossibilitasse a compreensão e resposta dos questionários. Em pessoas idosas, o rastreio de déficit cognitivo foi realizado por meio da utilização da versão em português do Mini-Exame do Estado Mental.

Para identificar a ocorrência de TMC na população quilombola, utilizou-se o Self-Reporting Questionnaire (SRQ-20). O SRQ-20 é um instrumento desenvolvido pela Organização Mundial de Saúde para estudos em países em desenvolvimento, validado no Brasil e amplamente utilizado em estudos epidemiológicos14,20. Contém 20 questões com escala dicotômica (sim/não) relacionadas às condições de saúde mental não psicótica nos últimos 30 dias e para cada resposta afirmativa é atribuído um ponto, totalizando-se 20 pontos no caso de todas as respostas positivas14,16. Neste estudo, o ponto de corte adotado foi de 7 ou mais respostas positivas.

As variáveis independentes incluídas no estudo foram categorizadas da seguinte forma:

Variáveis sociodemográficas: faixa etária (18-29, 30-39, 40-49, 50-59, 60-69 e 70 ou mais); estado conjugal (com companheiro(a) e sem companheiro(a)); escolaridade (analfabeto, 1 a 8 anos de estudo e mais de 8 anos de estudo); cor de pele (preta e não preta); atividade trabalhista (trabalho remunerado, não trabalha/desempregado(a) e aposentado(a)); renda familiar (em salários mínimos, ao valor de R$ 998: ≤0,5, >0,5 a ≤1,0, >1,0 a ≤1,5 e >1,5).

Comportamentos relacionados à saúde: atividade esportiva/artística (sim e não); consumo de álcool (sim e não); tabagismo (fumante, ex-fumante e nunca fumou); tempo desde a última consulta ao médico (há 12 meses e há mais de 12 meses); discriminação em serviços de saúde (sim e não).

Estado de saúde e morbidades: hipertensão arterial, diabetes mellitus, doença cardíaca, doença pulmonar e insuficiência renal crônica (sim e não); índice de massa corporal (IMC), calculado com as medidas de peso e altura (sem excesso de peso e com excesso de peso); utilização de medicamentos para controle de doenças (sim e não); autopercepção de saúde (positiva e negativa).

Para análise dos dados, utilizou-se o módulo Amostras Complexas do software SPSS versão 23.0. A prevalência de TMC foi estimada com intervalo de 95% de confiança e utilizou-se a distribuição de frequência (absoluta e relativa) para descrever a amostra segundo TMC e as variáveis independentes do estudo, com correção pelo efeito do desenho.

Para verificar a associação entre a variável desfecho e variáveis independentes utilizou-se o teste Qui-quadrado. As variáveis que apresentaram nível descritivo (valor-p) até 0,20 foram selecionadas para a análise múltipla.

Na análise múltipla, utilizou-se o Modelo de Regressão Logística Binária, com correção pelo efeito de desenho. O ajuste do modelo múltiplo se deu pelo método backward. Foram estimadas as razões de chances (Odds Ratio - OR) brutas e ajustadas, com intervalo de 95% de confiança, para as variáveis que permaneceram no modelo múltiplo.

Para análise da qualidade de ajuste do modelo ajustado foi adotado do teste Hosmer e Lemeshow, ao nível de 0,05, e o Pseudo-R² de Nagelkerke21.

O projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Estadual de Montes Claros que o aprovou por meio do parecer consubstanciado nº 2.821.454. Todos os participantes foram devidamente informados sobre os objetivos, métodos, benefícios e potenciais riscos da pesquisa e assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

Resultados

Participaram da pesquisa 1.110 quilombolas, superando a quantidade mínima prevista para representar o conjunto de interesse; não houve recusas e para a variável desfecho ocorreu uma perda amostral pouco significativa de 0,4% da amostra inicial.

Dos participantes quilombolas da pesquisa, 59,7% eram do sexo feminino, a idade média foi de 50,63 (±18,06) anos, variando entre 18 e 98 anos. Verificou-se uma predominância de participantes com 1 a 8 anos de estudo (49,8%) e renda familiar informada de 0,5 a 1 salário mínimo (47,8%). No que se refere ao estilo de vida, 61,5% informaram não participar de atividades esportivas e/ou artísticas, 41,6% consomem álcool e 15,2% são tabagistas.

Sobre a variável desfecho, observou-se uma prevalência de 38,7% de TMC. Diante do autorrelato de doenças crônicas, verificou-se uma prevalência de 35,7% de quilombolas com hipertensão arterial e 10,4% com diabetes mellitus. 48,2% encontravam-se com excesso de peso, conforme o cálculo de Índice de Massa Corporal (IMC) e 47,3% utilizavam medicamentos para controle de doenças. No que concerne à discriminação nos serviços de saúde, 9% da amostra relatou ter sofrido essa experiência, desses, 35,7% afirmaram que o fato ocorreu em razão da sua cor de pele e 47,6% em virtude de sua classe social. As demais características da amostra estão descritas na Tabela 1.

Tabela 1
Distribuição da amostra segundo variáveis sociodemográficas e de estilo de vida. Minas Gerais, Brasil, 2019.

A Tabela 2 apresenta a prevalência dos sintomas avaliados no SRQ-20 em grupos. O sintoma mais frequente foi nervosismo/tensão/preocupação (63%). Outros sintomas que foram relatados com frequência foram assustar-se com facilidade (50,4%), dores de cabeça (42,1%), sentir-se triste (39,3%) e dormir mal (38%). No grupo dos pensamentos depressivos, o sintoma mais frequente foi a perda de interesse pelas coisas (20%). Embora seja o sintoma com menor frequência, é importante destacar que 6,7% dos quilombolas entrevistados afirmaram pensar em acabar com a vida nos últimos 30 dias.

Tabela 2
Distribuição das respostas de acordo com os grupos do SRQ-20 entre os quilombolas do Norte de Minas Gerais, Brasil, 2019.

Na análise bivariada, 17 variáveis apresentaram associação com o desfecho ao nível de 20% de significância e foram selecionadas para a análise múltipla (Tabela 3). Os resultados apresentados na Tabela 4 demonstram que houve associação estatisticamente significante entre TMC e sexo feminino (OR: 2,69; IC95% 2,00-3,62), indivíduos com 1 a 8 anos de estudo (OR: 1,70; IC95% 1,15-2,51), com renda familiar entre 1 a 1,5 salário mínimo (OR: 2,51; IC95% 1,60-3,94); que sofreram discriminação em serviços de saúde (OR: 2,44: IC95% 1,44-4,13); com autorrelato de doença pulmonar (OR: 2,10; IC95% 1,25-3,54), doença cardíaca (OR: 1,58: IC95% 1,01-2,50) e insuficiência renal crônica (OR: 1,97; IC95% 1,08-3,94), e com autopercepção de saúde negativa (OR: 3,07; IC95% 2,31-4,07). O pseudo R² obtido no modelo final foi de 23,8% e o Teste de Hosmer e Lemeshow mostrou-se não significativo (p valor = 0,912).

Tabela 3
Distribuição da amostra segundo TMC e variáveis sociodemográficas e de estilo de vida. Minas Gerais, Brasil, 2019.
Tabela 4
Modelo de Regressão logística ajustado para os fatores a associados aos TMC. Minas Gerais, Brasil, 2019.

Discussão

Foi observada uma alta probabilidade de TMC na população quilombola localizada no norte de Minas de Gerais. Esse dado é importante e inspira atenção e cuidado, uma vez que a identificação das populações com maior carga de transtornos mentais é valiosa e necessária para a compreensão dos fatores de risco relacionados com o ambiente e com o contexto individual e social, a fim de, eventualmente, prevenir esses transtornos18.

Neste estudo, a chance de desenvolvimento de TMC em mulheres foi 2,69 (IC95% 2,00-3,62) aquela observada entre os homens. Investigação conduzida em comunidades quilombolas e assentamentos rurais também observaram uma maior prevalência de sofrimento psíquico entre as mulheres4,22. Essa distribuição desigual de sintomas de TMC entre os sexos pode ser compreendida, dentre outros fatores, pela elevada carga de trabalho, tanto no seio familiar quanto na comunidade, associada com a desvalorização e invisibilidade do trabalho feminino, gerando uma grande sobrecarga física e emocional4,22,23. Destaca-se ainda que os papéis femininos tradicionais - como esposa, mãe, filha e cuidadora - aliados aos fatores sociais que abrangem desemprego, situação de violência e condições precárias de vida e saúde, contribuem para o adoecimento psíquico das mulheres11.

Apesar da relevância dos dados relativos à saúde mental, observa-se ainda uma lacuna nas políticas públicas voltadas para esse fim10,24 e destinadas para grupos específicos, como as mulheres rurais10. Nota-se que a saúde mental das mulheres é atravessada por questões socioeconômicas e políticas relacionadas a esse grupo13, entretanto, grande parte das pesquisas acadêmicas e das políticas e programas voltados para a saúde da mulher no Brasil são voltados exclusivamente para as questões de saúde sexual e reprodutiva10,25.

O estudo indicou que a renda familiar e escolaridade da população quilombola estudada possuem uma importante relação com as formas de adoecimento e sofrimento mental. Pessoas com menores rendimentos, sem acesso à educação e em condições de moradia precárias por falta de acesso a serviços básicos se mostram mais expostas onde a grande maioria é negra26.

Há uma relação estreita entre pobreza, problemas de saúde mental e perturbações psiquiátricas27,28, uma vez que as condições socioeconômicas têm grande impacto na qualidade de vida e bem-estar das pessoas e grupos com menores recursos7. Nota-se que à medida que o nível socioeconômico diminui, devido ao desemprego, empobrecimento e endividamento, as pessoas são capturadas por sentimentos de incerteza, insegurança e perda, tornando-se mais vulneráveis aos problemas de saúde mental27. Por outro lado, estudo realizado em Michigan constatou que, embora uma maior renda familiar esteja associada a uma melhor saúde mental, a magnitude dessa associação depende da raça/etnia, uma vez que os negros americanos apresentaram taxas mais altas de morbidade e mortalidade em todos os níveis de posição socioeconômica que ocupavam29.

Evidenciou-se que a chance de desenvolvimento de TMC em quilombolas com 1 a 8 anos de estudo foi 1,70 (IC95% 1,15-2,51) aquela observada em quilombolas com mais de 8 anos de estudo. Investigações em âmbito mundial apontam que a pouca escolaridade é considerada um dos múltiplos fatores que podem gerar eventos vitais produtores de estresse e determinar o nível de saúde mental das pessoas7,19. Ademais, a baixa escolaridade pode ser considerada uma fragilidade que limita as possibilidades de construção de projetos de vida futuros e que, consequentemente, gera preocupações cotidianas e sofrimento4.

Nessa discussão, é importante destacar que a amostra é composta majoritariamente por uma população de parcos recursos financeiros e que os indivíduos com uma renda familiar igual ou menor que 0,5 salário mínimo tiveram uma chance menor de desenvolvimento de TMC em comparação com aqueles que relataram renda familiar maior que 0,5 salário mínimo e menor ou igual a 1,5 salário mínimo. Também é válido salientar que os quilombolas que relataram ser analfabetos tiveram uma chance menor de desenvolvimento de TMC em comparação com aqueles que declararam 1 a 8 anos de estudo.

Essa aparente contradição observada entre a prevalência de TMC e baixos níveis de escolaridade e renda pode ser sustentada pela resiliência e baixa expectativa de melhoria das condições de vida e saúde desse público, o que, por conseguinte, pacifica as possíveis frustrações. Possivelmente, os indivíduos que auferem renda familiar entre 0,5 e 1,5 salário mínimo e com 1 a 8 anos de estudo tenham uma maior expectativa de alcançar ascensão social e, devido aos reveses enfrentados e prováveis desapontamentos, estão mais suscetíveis ao desenvolvimento de sintomas relacionados com TMC. Embora, tenham prevalência reduzida para TMC, os quilombolas mais vulnerabilizados no que tange a renda e escolaridade, carecem de atenção especial, pois acomodam caraterísticas que impactam significativamente na sua qualidade de vida.

O autorrelato de doenças crônicas como, hipertensão arterial, diabetes, doenças cardíacas, doenças pulmonares e insuficiência renal crônica estão estatisticamente associadas ao TMC. Entretanto, somente as doenças cardíacas, a insuficiência renal crônica e as doenças pulmonares, como enfisema pulmonar, bronquite e doença pulmonar obstrutiva crônica permaneceram significativas ao ajustar por todas as variáveis. Essa observação demonstra a relevância do conhecimento das condições crônicas de saúde em populações de baixa renda, uma vez que o acesso precário aos serviços de saúde e a necessidade de consultas com especialistas e/ou exames complementares podem privá-las de um diagnóstico precoce e dos tratamentos necessários30. A associação entre TMC e as enfermidades crônicas e suas consequências clínicas podem agravar os transtornos mentais14 e, por isso, tais informações são importantes para profissionais e gestores de saúde para que o cuidado voltado para essas morbidades crônicas contemple a prevenção, diagnóstico e tratamento de possíveis doenças psiquiátricas13,14.

Neste estudo, embora apenas 9% da amostra tenha referido ter se sentido discriminado ou tratado pior do que as outras pessoas em serviços de saúde, essa experiência aumentou significativamente a chance de TMC em quilombolas (OR: 2,44; IC95% 1,44-4,13). Destaca-se que a experiência de discriminação é igualmente nociva para todas as pessoas, entretanto, a população negra acumula uma carga maior desses desfechos, uma vez que a probabilidade de os sofrer é maior18. A discriminação e o estigma geram baixa autoestima, baixa confiança, motivação reduzida, menos esperança no futuro e podem provocar isolamento, que é um importante fator de risco para futuras condições de saúde mental28.

A desigualdade, racismo e saúde mental compõem uma equação que se sustenta na compreensão de que o sofrimento psíquico está atrelado às tramas do cotidiano e do mundo circundante4. Assim, o processo saúde-doença-cuidado deve estar articulado aos contextos, condições e modos de vida das populações e ancorado nas experiências concretas e sensíveis das pessoas que, por sua vez, é atravessado por marcadores de raça/etnia, classe social, gênero e sexualidade4.

Independente do sexo, as pesquisas demonstram que a autopercepção de saúde é uma variável relevante para a compreensão do desenvolvimento de transtornos psiquiátricos30, entretanto, no que concerne à saúde quilombola, esse assunto ainda é pouco discutido31. Em 2013, foi identificada uma elevada prevalência (46%) de autopercepção de saúde negativa nas comunidades quilombolas no norte de Minas Gerais e, após análise hierarquizada, essa variável apresentou associação estatisticamente significante com a depressão (OR: 2,78: IC95% 1,75-4,42)31. No presente estudo, a autopercepção negativa da saúde foi observada em 50,3% dos participantes e, após análise múltipla, essa variável triplicou a chance de TMC entre os quilombolas. Autores indicam que a presença de sentimentos negativos, a baixa autoestima, a não aceitação da imagem corporal, entre outros comportamentos, podem gerar tensão, ansiedade, estresse e, consequentemente, impactar de forma negativa a avaliação do estado de saúde do indivíduo20.

Observou-se que 6,7% dos participantes assinalaram “sim” para a pergunta “tem pensado em tirar a vida?” do SRQ-20. Em estudo conduzido em assentamentos rurais no Piauí, 13,4% responderam “sim” para essa mesma questão. Outras pesquisas conduzidas com populações distintas, também encontraram prevalências superiores à que fora observada na amostra em estudo32,33. Embora a comparação entre os dados demonstre uma menor prevalência, a ideação suicida na população quilombola do norte de Minas Gerais merece especial atenção, uma vez que é importante superar o tabu social que circula essa temática e que, inclusive, pode ter refletido na menor prevalência de respostas positivas, e também impulsionar intervenções com caráter multiprofissional que acolham esses indivíduos e minimizem o sofrimento psíquico.

Embora seja um ato individual, o suicídio é um fenômeno complexo e multifacetado, que reúne fatores ambiental, antropológico, psicológico, econômico, cultural, social e religioso23. Hodiernamente, o comportamento suicida é considerado um problema de saúde pública e tem chamado a atenção das autoridades sanitárias em todo o mundo, inclusive em áreas rurais devido à maior exposição a situações de vulnerabilidade e privação associadas com a baixa cobertura e fragilidade na organização da rede de saúde23.

Entre as limitações do estudo destacam-se o autorrelato das doenças crônicas e dos comportamentos relacionados à saúde, sendo, portanto, sujeito a interferência da falta de atenção e memória, e a possibilidade de resultados falso positivos para TMC, apesar do desfecho ter sido mensurado por instrumento de rastreamento validado, como o SRQ-20. Entre seus pontos fortes, salienta-se o grande número de participantes da pesquisa, compondo uma amostra representativa das comunidades quilombolas do norte de Minas Gerais e a oportunidade de discutir aspectos relevantes acerca da saúde mental, temática pouco abordada em estudos que envolvem esse grupo populacional.

O processo saúde-doença-cuidado é imerso por elementos micro e macrossociais9. Desse modo, expor as desigualdades estruturantes que assolam as populações rurais é importante para a compreensão do processo de vulnerabilização e precarização das suas condições de vida e de saúde, apontando a estreita associação entre cenários de vida marcados por intensas desigualdades, injustiças, racismos, violência, modalidades de relações de gênero com a produção de sofrimento psíquico, especialmente nas mulheres4.

A saúde mental das populações rurais não é contemplada nas principais políticas públicas do país e a Atenção Primária em Saúde ainda não consegue acolher de forma equitativa e integral a essas demandas9. Frente a isso, é importante e necessária uma reavaliação das políticas públicas voltadas para a saúde mental, a fim de torná-las mais eficazes, tanto na garantia dos direitos dos grupos vulnerabilizados como na manutenção de sua saúde psíquica7.

Nessa direção, os resultados dessa pesquisa, especialmente por ter sido conduzida com uma população ainda pouco estudada no Brasil, pode ser uma ferramenta relevante para o planejamento estratégico e singular de políticas de atenção à saúde mental que realmente alcancem as populações vulnerabilizadas, como as comunidades quilombolas. Diante das particularidades do território e das condições de vida e saúde desse grupo populacional, é meritório que os serviços e profissionais de saúde, sobretudo aqueles voltados para a Atenção Primária em Saúde, compreendam essa realidade para que possam atuar de forma contextualizada e para que as estratégias de intervenção sejam planejadas com a intencionalidade de minimizar o sofrimento mental dos quilombolas, sem perder de vista as suas circunstâncias.

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  • Editores-chefes:
    Romeu Gomes, Antônio Augusto Moura da Silva

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    Jun 2023

Histórico

  • Recebido
    13 Jun 2022
  • Aceito
    04 Nov 2022
  • Publicado
    06 Nov 2022
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