Em 2021, a editora alumiar apresentou o livro Ressignificando vida e morte: narrativas sobre cuidados paliativos1, organizado pela assistente social Letícia Andrade.
Trata-se de uma obra que descreve dezoito casos cujo tema versa sobre cuidados paliativos e atendimento multiprofissional aos pacientes e familiares. Sua proposta diferente preza por descrever componentes do cotidiano, qual uma obra de arte revela várias tonalidades de cores, por vezes, tornando-a peça única.
A miscelânea dos textos, de diversos autores, pode ser considerada como leitura obrigatória aos profissionais da área da saúde e não apenas aos assistentes sociais que queiram atualizar-se na agenda contemporânea acerca dos cuidados paliativos. Difere do que já se tem produzido sobre o tema tanto por conta da diversidade de casos apresentada, mas também por trazer à tona as contribuições das intervenções e estratégias de ação multiprofissional.
Está apresentada em forma de textos livres e delicados. Alguns possuem dupla face: um lado mostra a história e, o outro, o contador que vivenciou o fato. Ora a fala é do profissional ora do paciente ou do familiar. Diferente das outras obras como as dos autores Miele2 e Pastore Neto3 que registraram, pela lente de quem recebe o tratamento, em livro, toda a trajetória pessoal, esmiunçada das vivências do adoecimento. Andrade1 retrata o que se cala, o que não se conversa de ambos os lados: profissional e paciente/familiares. Destaque para o enredo ímpar do médico Pastore Neto3 que expõe, em primeira pessoa, o que lhe ocorreu enquanto paciente. Assinala a experiência vivenciada, que além de ensinar, para quem tem a possibilidade de fazer (profissionais) ou solicitar algo diferente (pacientes).
As obras expõem a complexidade da dimensão humana, dado que esta conclama o desempenho relevante dos que ocupam o lugar da assistência à saúde. As equipes são formadas por profissionais diversos, como a autora ressalta no caso denominado “Aquela feijoada tinha gosto de saudade”. A feijoada com o tempero dos conflitos familiares, composta de resignação por parte do paciente à sua situação de saúde-doença e da vontade de desfrutar de um prato típico de sua região. Um encontro de todos os familiares com o sorriso daquele que estava desejoso de saborear o que lhe era caro, foi proporcionado pela equipe após analisar riscos e benefícios. Não foi servido o prato original com todas as iguarias, mas algo próximo com desculpas inventadas, em dedo de prosa tão importante quanto.
Borges e Pegoraro4, em capítulo voltado aos familiares e às equipes de saúde, trazem sentimentos e valores, tais como amor, aceitação, fé, empatia, generosidade, flexibilidade, relevância do que houve no passado e reconhecimento das necessidades do familiar adoecido. Tais ideias também coadunam com Andrade1 e os diálogos francos e esclarecedores tecem os fios dos episódios, como quem cose um artesanato. O contraponto esteve em “Seu José”, a profissional de Serviço Social reconheceu que precisava obter mais conhecimentos acerca dos cuidados paliativos e, em outro, “Por que eu indico cuidados paliativos”, uma mãe detalhou o sofrimento durante o tratamento convencional recebido pelo filho mais velho. Essa foi a maior narrativa do livro, pois dos seus quatro filhos, três tinham doença degenerativa e apenas os dois mais novos receberam cuidados paliativos.
Os demais casos, incluindo a introdução, compartilham das vivências permeadas por condutas paliativistas. Antes da introdução, está a carta dos direitos do “paciente terminal”, que remonta ao ano de 1989, em seminário nos EUA. Ficou esclarecido que este termo não é mais utilizado.
A introdução feita por uma paciente explanou o seu trajeto de tratamento não mais curativo, as tomadas de decisões e o ressignificar do processo de morrer. Chamou a atenção ao questionar como seria se não tivesse recebido cuidados paliativos que lhe trouxeram conforto, acolhimento e segurança.
O primeiro caso, “A história de Ester e Isaque” lembrou da importância da rede social construída ao longo da vida. “Conjugando o verbo amar” e o reconhecimento do processo de finitude junto com o exercício da espiritualidade. “Dona Candinha e o pão de queijo” remeteu às lembranças vivas dos entes queridos que se foram antes da paciente e o aroma da iguaria que ela tanto servira ao longo da vida que adentrou a enfermaria e sinalizou o seu último pedido. “Embaixo da escada” enfatizou o quanto das aparências foi preciso ultrapassar para que a realidade do paciente, em atendimento domiciliar, pudesse ser acessada. A consternação da equipe ou a sensação de inadequação deu lugar ao reconhecimento e admiração.
“‘Homi brabo’ da terra que dá fruto” trouxe a história do paciente interiorano que foi para a cidade grande em busca de tratar a doença que o desenganava, mas a saudade de sua gente e de sua terra competia com o sentido da vida. “Idas e vindas: o desvelar da família ideal/real” mostrou o modo de viver da filha que passou a ser a dona da casa da mãe, quando esta adoeceu. Reuniões familiares, atendimentos individuais e cooperação dos cuidados foram o alicerce das intervenções da equipe de saúde.
“Lar é onde o coração está” destacou o porvir depois do entendimento de uma assistente social e um paciente idoso que solicitou alta hospitalar a pedido. A equipe discutiu o caso e acatou o desejo que proporcionou uma despedida familiar. “Mais um dia em uma enfermaria de Cuidados Paliativos” mencionou a reflexão de uma assistente social a partir do falecimento de uma paciente chamada Maria. Refletiu sobre a romantização dos papéis dos profissionais de saúde que buscam por transformações das vidas de pacientes em fim de vida. “Minha última grande realização” elucidou o relato de um psicólogo acerca do reconhecimento de um paciente sobre a inevitável proximidade da morte.
Em “Mudando de decisão”, uma médica descreveu que uma paciente demonstrou aversão quanto aos procedimentos invasivos e ao internamento hospitalar. Assim, a equipe multidisciplinar passou a atendê-la no domicílio. A paciente teve a iniciativa de montar uma caixa com cartas, pequenos objetos e fotos suas para quando a filha crescesse tivesse como lembrar dela. No entanto, em uma das visitas, a médica percebeu seu estado, dialogaram e ir para o hospital era o melhor a se fazer no momento. Ela concordou pela internação, mas antes fez as pazes com a genitora com quem mantinha relação difícil.
No “O pôr do sol de Otávila”, uma assistente social, uma psicóloga e o esposo da paciente narraram o súbito e grave adoecimento de sua esposa, até ali saudável, ativa e com planos de viagem. De repente, estava em unidade de terapia intensiva respirando com auxílio de ventilação mecânica. Depois vieram as sequelas. A meta do plano de cuidado era diária, tal a gravidade. Ela recebeu a visita do pai que vivia em instituição de longa permanência. O esposo ingressou no grupo de apoio aos parentes ou entes que participam da vida dos pacientes sob cuidados paliativos chamado Estamos ao seu lado. Porém, ir a casa e ver o silêncio das roupas, dos objetos e seus significados faziam-no voltar-se para a sua fé que era o que lhe fortalecia ante o não realizado, o inacabado. O tempo, reflexo da chama de uma vela, doía, pois remetia ao fim que se aproximava.
Em “Olhares”, uma assistente social delineou o caso de uma paciente consciente do diagnóstico, prognóstico e da impossibilidade curativa. Seu desejo era o de ficar em seu domicílio acompanhada dos pais quando chegasse a hora da morte.
“Vestindo de infância um menino doce” remontou outro atendimento realizado por uma assistente social. O pai cuidava do filho e da esposa que tinha diagnóstico psiquiátrico. Chamou a atenção, a maturidade do menino para a idade e a equipe por meio de uma cartografia familiar organizou o plano terapêutico do paciente.
Na parte final do livro, “Uma aposta de amor para sempre” traçou uma visão geral de quatro assistentes sociais e uma terapeuta ocupacional sobre o desejo de uma paciente de casar-se no dia do seu aniversário. A equipe refletiu sobre liberdade, autonomia e a qualidade de vida de uma pessoa com o sonho que pôde ser realizado.
O livro Ressignificando vida e morte: narrativas sobre cuidados paliativos contribui para a compreensão acerca do campo de conhecimentos relativos ao tema ao trazer à tona uma multiplicidade de casos por quem atua ou vivencia os cuidados paliativos. Além de esmiunçar elementos que impactam para as boas práticas de saúde visando a assistência às pessoas de forma integral para melhorar a qualidade de vida dessa população.
Por fim, registro o agradecimento pela apreciação deste estudo à organizadora e, também autora da obra, Letícia Andrade.
Referências
- 1 Andrade L, organizadora. Ressignificando vida e morte: narrativas sobre cuidados paliativos. Volume 1. São Paulo: Alumiar; 2021.
- 2 Miele MJ. Mãe de UTI: amor incondicional. São Paulo: Editora Terceiro Nome; 2004.
- 3 Pastore Neto M. A personificação do improvável: Por um médico "im"paciente. Belo Horizonte: Editora Expert; 2022.
- 4 Borges VGA, Pegoraro RF. Trajetórias de vida e cuidado paliativo domiciliar: vozes e experiências de mulheres que cuidam em domicílio. São Carlos: Pedro & João Editores; 2022.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
07 Jul 2023 -
Data do Fascículo
Jul 2023