Resumo
O tabagismo é um problema de saúde pública, está associado a uma elevada morbimortalidade. Os serviços de saúde vigentes para a cessação tabágica, apesar de efetivos, apresentam alcance limitado e foram comprometidos pela pandemia. O estudo teve como objetivo analisar o cuidado com a pessoa tabagista em João Pessoa (PB), na pandemia de COVID-19. Foi realizado um estudo descritivo, exploratório e quantitativo com duas fases: levantamento dos indicadores de saúde e avaliação dos perfis sociodemográficos dos profissionais e usuários dos serviços nos anos do estudo. Participaram da pesquisa sete profissionais, coordenadores de grupo de tabagismo e 20 usuários. Os resultados apontaram para uma baixa cobertura do programa, além de revelar queda no número de fumantes atendidos na pandemia, de 419 em 2019 para 129 em 2020. As entrevistas identificaram pontos positivos e limitações do programa, boa efetividade e baixo acesso, especialmente na APS, e que as estratégias utilizadas para conter o consumo do tabaco e seus riscos durante a pandemia partiram dos serviços e dos profissionais envolvidos. É possível concluir que, nessa região, o Programa Nacional de Controle do Tabagismo (PNCT) apresenta implantação incipiente na APS e que, durante a pandemia, o número de serviços ofertados foi reduzido, diminuindo a procura e as ações realizadas.
Palavras-chave: Abandono do uso do tabaco; Doenças crônicas; Atenção primária a saúde; COVID- 19
Abstract
Smoking is a public health problem associated with high morbimortality. Smoking cessation services, although effective, have limited reach and have been compromised by the pandemic. This study aimed to analyze the care for smokers in João Pessoa (PB), Brazil, during the COVID-19 pandemic. A descriptive, exploratory, and quantitative study was conducted in two phases: a survey of health indicators and an evaluation of sociodemographic profiles of professionals and service clients during the study years. Seven professionals, smoking group coordinators, and 20 clients participated in the research. The results showed low program coverage, with a declining number of smokers treated during the pandemic, down from 419 in 2019 to 129 in 2020. Interviews identified the program’s positive aspects and limitations, good effectiveness, and low access, especially in primary health care. Tobacco consumption and risk reduction strategies during the COVID-19 pandemic originated from services and professionals involved. We can conclude that the National Tobacco Control Program has an incipient implementation in primary health care in this region and that the number of services offered was reduced during the pandemic, decreasing demand and actions.
Key words: Tobacco use cessation; Chronic diseases; Primary health care COVID-19
Introdução
Considerado antigamente como um “hábito de vida”, hoje reconhecido como uma doença crônica, o tabagismo se apresenta como a principal causa de mortalidade evitável no Brasil e no mundo1. Há mais de um bilhão de fumantes no planeta, 80% deles vivem concentrados em 24 países, sendo que dois terços deles estão em países de baixa e média renda, que apresentam uma grande carga de doenças e mortes relacionadas ao tabaco. Estima-se que os fumantes atuais consumam cerca de 6 trilhões de cigarros por ano. No Brasil, hoje o percentual total de fumantes com 18 anos ou mais é de 9,8%, sendo 12,3% entre os homens e 7,7% entre as mulheres2,3.
Segundo as políticas públicas pré-estabelecidas, o Sistema Único de Saúde (SUS) oferece tratamento gratuito para os tabagistas nas Unidades Básicas de Saúde por meio do Plano Nacional de Controle do Tabagismo (PNCT). Esse processo inclui acompanhamento multiprofissional e conta com auxílio de medicamentos: terapia de reposição de nicotina (adesivos, pastilhas e gomas de mascar) e bupropiona4. Para o Ministério da Saúde, a atenção primária a saúde (APS) ocupa uma posição privilegiada e estratégica para controle do tabagismo no SUS, assim como para diversos outros agravos crônicos à saúde, resultado de seus quatro atributos essenciais: acesso, integralidade, longitudinalidade e coordenação do cuidado5.
Há evidências de que o apoio ofertado aos tabagistas para cessação do tabagismo pelos serviços de saúde no Brasil ainda é deficiente, apesar do elevado percentual dos fumantes que desejam ou tentam parar de fumar. Na Pesquisa Nacional de Saúde de 2013, dos tabagistas com idade de 18 anos ou mais entrevistados, 51,1% afirmaram que tentaram parar de fumar nos 12 meses anteriores. Do total de fumantes, porém, apenas 8,8% afirmaram ter procurado tratamento com profissional da saúde para a tentativa de cessação6. Como resposta a este problema, o acesso ao tratamento para cessação do tabagismo no Brasil tem sido ampliado nos últimos anos, abrangendo as equipes da APS. Entretanto, durante a pandemia da COVID-19, devido às recomendações de restrições e isolamento social, houve uma redução do acesso de toda a população aos serviços de saúde, incluindo ao programa de cessação tabágica7.
Na cidade de João Pessoa (PB), a prefeitura municipal conta com alguns serviços para quem deseja começar ou continuar o tratamento contra o tabagismo, no entanto, percebe-se limitações na expansão do cuidado à pessoa tabagista na APS. Esse tipo de acompanhamento e tratamento vem ocorrendo em pontos específicos na rede de atenção especializada e parece existir pouca oferta na AB, o que leva a pensar e refletir sobre o acesso ao programa, especialmente durante a pandemia.
Diante desse cenário, os resultados do programa de tabagismo, bem como a gestão de suas limitações, dependem do envolvimento de todos os setores sociais, governamentais e não-governamentais, pois o tabagismo é uma doença cujo controle não depende primordialmente da existência de vacinas, antibióticos, quimioterápicos, e sim de políticas públicas eficazes para sua gestão8.
O tabagismo e a COVID-19 são dois graves riscos à saúde, e compartilhar qualquer produto de tabaco é uma via de transmissão do vírus, então se torna importante relacionar e verificar como o programa de combate ao tabagismo vem atuando, no município de João Pessoa, frente a esses dois agravos interligados.
O presente estudo buscou avaliar o funcionamento do programa de controle do tabagismo no município de João Pessoa, na Paraíba, durante a pandemia da COVID-19.
Caminho metodológico
Tratou-se de um estudo exploratório descritivo com abordagem quantitativa, realizado por meio de levantamento bibliográfico dos indicadores de saúde, coletados junto à Coordenação Municipal do Programa em João Pessoa e por meio de questionários semiestruturados aos profissionais e usuários dos serviços que mantiveram o PNCT nos anos de 2019, 2020 e 2021, a fim de analisar o funcionamento do programa antes e após a pandemia.
Foi aplicado o seguinte critério de elegibilidade para aplicação dos questionários semiestruturados: manutenção das atividades durante período de 2019, 2020 e 2021 no município estudado.
Inicialmente, foram analisadas as planilhas de acompanhamento, provenientes dos indicadores municipais do programa de cessação tabágica, fornecidos pela coordenação do Programa Municipal de Controle do Tabagismo (PMCT), sendo esses dados considerados bibliográficos. Uma vez que o programa nacional não dispõe de sistema de informação específico, tais planilhas permitiram identificar os serviços de saúde municipais que desenvolviam o programa de cessação tabágica e o seu funcionamento.
Os questionários semiestruturados elaborados na ferramenta digital Google Forms foram enviados aos sete profissionais dos serviços selecionados, quatro integravam Unidades de Atenção Especializada, dois integravam Centros de Atenção Psicossocial Álcool e outras Drogas (CAPS AD), sendo um estadual e outro municipal, e o sétimo integrava um serviço de atendimento ambulatorial de pneumologia, associado a isso também foram incluídos 20 usuários desses serviços. Em duas policlínicas foram obtidos dados de questionários de profissionais de saúde e usuários, tendo em vista a regularidade e a instituição de grupos remotos. Na terceira policlínica foram considerados dados apenas dos profissionais de saúde, visto que esse serviço não aderiu a grupos remotos no período de 2020 e 2021. Os dois CAPS, direcionados a álcool e outras drogas, permaneceram atuando com o programa durante a pandemia.
O serviço hospitalar ambulatorial não participou da pesquisa, pois não dispõe de atendimento em grupo. O serviço conta com atendimento individualizado e distribuição de insumos, que também esteve com baixa de funcionamento em 2020 e 2021. Já as Unidades de Saúde da Família e a outra policlínica municipal não entraram na pesquisa por falta de regularidade de funcionamento.
A aplicação de questionários semiestruturados se deu para profissionais e usuários que se mantiveram no programa de cessação tabágica durante a pandemia de COVID-19. O questionário, aplicado aos profissionais e usuários, foi dividido em duas seções, na primeira foram coletados os dados sociodemográficos, na segunda, informações sobre acesso ao serviço, recaídas ao tabagismo, perfil dos medicamentos utilizados e acesso à terapia farmacológica durante o período da pandemia de COVID-19.
Os dados obtidos com a aplicação dos questionários semiestruturados a profissionais e usuários do serviço foram analisados descritivamente, a fim de se obter indicadores de processo e efetividade do programa. Os dados levantados nos grupos de profissionais e usuários e o dados analisados nas planilhas de acompanhamento do programa foram agrupados em base de dados e testados quanto à distribuição normal pelo teste de Kolmogorov-Smirnov, antes da seleção dos testes estatísticos. As variáveis com distribuição normal serão descritas utilizando-se média, desvio-padrão (DP) e intervalo de confiança 95% (IC95%). A mediana e o intervalo interquartis serão utilizados para descrever resultados de variáveis com distribuição não normal.
Para efetivação da pesquisa, foram cumpridos os critérios estabelecidos nas resoluções 466/2012 e 510/2016 do Conselho Nacional de Saúde, que regulamentam a pesquisa com seres humanos. O projeto foi submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa do Centro de Ciências da Saúde (CEP/CCS), com a anuência da Secretaria Municipal de Saúde de João Pessoa para a realização do estudo, e aprovado com o parecer nº 5.050.186.
Resultados
A rede de saúde do município em estudo tem 203 equipes na atenção primária, distribuídas em 97 Unidades de Saúde da Família (USF), bem como uma Rede de Atenção Especializada, com seis policlínicas distribuídas no perímetro urbano, além de uma Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), com uma unidade de Pronto Atendimento em Saúde Mental (PASM) e quatro Centros de Atenção Psicossociais (CAPS).
Como 2019 foi o ano de início da pandemia, esse foi tomado como ponto de partida para a análise dos dados, a fim de visualizar o impacto na continuidade do programa. Nesse período, observou-se que dez serviços de saúde estavam cadastrados no programa, destes, três compunham a APS, quatro eram componentes da atenção especializada, dois se caracterizavam como CAPS direcionados a álcool e outras drogas, e um serviço de ambulatório hospitalar.
Após avaliação dos dados referentes à continuidade do serviço no período pandêmico, ficou caracterizada a descontinuidade do atendimento do PNCT na maioria dos serviços.
Ao observarmos o número de pessoas, por sexo e faixa etária, que buscaram o tratamento de cessação tabágica em João Pessoa, os dados apontam que 409 indivíduos o procuraram em 2019, ano que antecedeu a pandemia de COVID-19. Destes, 226 (50,2%) eram do sexo feminino e 285 (63,3%) encontravam-se na faixa etária de 18 a 60 anos, sendo 103 (25,18%) acima dos 60 anos. No ano de 2020, quando foi deflagrada a pandemia, observou-se que apenas 129 usuários foram atendidos pelo serviço de cessação tabágica, sendo que 67 (52%) eram do sexo feminino e 91 (70%) encontravam-se na faixa etária de 18 e 60 anos. Essa tendência de diminuição permanece em 2021, com atendimento de 137 pacientes, ainda persistindo restrições de atendimento em grupo no modelo presencial. Nesse ano permaneceu a maior procura do sexo feminino, com 77 (56,2%), sendo os adultos, na faixa de 18 a 60 anos, o grupo de maior procura - 95 pessoas (69,34%) (Tabela 1).
Quanto ao alcance do programa, é possível verificar que o número de atendimentos sofreu uma queda de usuários atendidos, de 501 em 2019 para 104 em 2020. Considerando o número de pacientes que pararam de fumar, percebe-se que a porcentagem de abstinência foi semelhante nos anos em estudo, sendo o maior percentual de 27% (n = 37) em 2021, e o menor, de 21,71% (n = 109), em 2019, conforme demonstra a Tabela 2.
No que diz respeito às informações fornecidas pelos profissionais de saúde e usuários do PMCT, responderam à pesquisa sete profissionais de saúde e 20 usuários. Na análise dos aspectos sociodemográficas dos profissionais, a média de idade foi de 56 anos (DP 10,24), sendo todos do sexo feminino, e 70% (n = 5) relataram ser católicas. Foi observada a predominância da formação em psicologia (n = 4). O tempo médio de atuação profissional foi de 25 anos (DP ± 7,67).
Entre os usuários que responderam à pesquisa, a média de idade foi de 53 anos (DP ± 13.37), sendo 65% (n = 13) do sexo feminino. Quanto ao grau de escolaridade, a maioria relatou ter ensino médio e superior (45% e 25%, respectivamente); sobre o estado civil, a maior parte relatou ser solteiro (60%); no que se refere à religião, a maior parte se referiu como católica (70%).
Quanto ao funcionamento dos serviços durante a pandemia de COVID-19, 75% (n = 15) dos usuários respondentes relataram que não tiveram acesso a encontros remotos em grupo durante o período da pandemia, 15% (n = 3) disseram que em algumas ocasiões houve encontros e 10% (n = 2) responderam que tiveram encontros remotos regulares.
Uma análise dos últimos cinco anos do número de pacientes atendidos e do número de pacientes que pararam de fumar, buscando entender a eficácia do PMCT, podemos verificar que o número de atendimentos sofreu queda, de 501 usuários atendidos em 2019 para 104 em 2020, podendo-se pensar que um dos motivos da queda foi a pandemia de COVID-19. Ao observar o número de pacientes que pararam de fumar, percebe-se que a porcentagem de abstinência é relativamente semelhante nos anos em estudo, com o maior percentual, de 30%, em 2017, e o menor, de 21,71%, em 2019 (Tabela 2).
Além disso, dentre os usuários do PMCT em João Pessoa, 30% (n = 6) referiram ter retornado ao hábito de fumar, outros 30% (n = 6) afirmaram que muitas vezes sentiram desejo de voltar a fumar, 15% manifestaram que raramente sentiram desejo de voltar a fumar e 25% relataram nunca ter sentido desejo de voltar a fumar durante o período da pandemia.
Em relação aos medicamentos utilizados, a terapia de reposição de nicotina (TRN), na forma de adesivo transdérmicos, associada ou não a formulações em goma e pastilha, foram utilizados em 40% (n = 8) dos usuários, seguido do uso oral de bupropiona associado à TRN, observado em 25% (n = 5) dos usuários, 10% dos usuários usaram apenas comprimidos de bupropiona para tratamento do tabagismo e 25% não utilizavam terapia farmacológica associada à abordagem comportamental do programa (Tabela 3). No que diz respeito ao acesso dos pacientes que usavam medicamentos, 55% dos respondentes da pesquisa relataram receber com regularidade o tratamento proposto, e 45% afirmaram não ter acesso aos medicamentos.
Discussão
É notória a redução de fumantes que procuraram ajuda na rede pública de João Pessoa para a cessação do tabagismo, de 501 pessoas em 2019 para 104 em 2020. Esses dados seguem a mesma projeção da região Nordeste, onde, em 2019, 35.397 fumantes buscaram o tratamento, com redução para 14.038 em 20209.
A estimativa de fumantes no Nordeste brasileiro foi de 14,2% em 2013, e em 2019 diminuiu para 10,8%, em uma população de quase 60 milhões de habitantes9. Observa-se, conforme os dados dos indicadores do programa em João Pessoa, considerando a população da cidade em 2013, que era de 780.738 habitantes, e uma estimativa para 2019 de 809 mil habitantes, que havia um percentual estimado de fumantes em 2013 de 1,30%, e em 2019, de 1,35%, isso significa uma população de aproximadamente 10 mil fumantes entre a população da capital. Dessa forma, podemos verificar que o PMCT cobre cerca de 1% da população de fumantes, indicando pouca distribuição demográfica e acesso insuficiente.
Conforme demonstrado, houve uma redução entre as pessoas que buscaram o programa a partir de 2020, quando em março teve início a pandemia de COVID-19 no Brasil. Esse fator certamente afetou a procura pelo programa, notando-se uma queda de 68,46% dos usuários que buscaram o programa em relação ao ano anterior, isso pode ser justificado pela recomendações de isolamento social. É importante destacar que a pandemia foi um acontecimento que mobilizou recursos e vontade política para seu enfrentamento em todo o planeta, mas também é importante pontuar que tabagismo é uma antiga epidemia que a sociedade enfrenta, de evolução crônica e arrastada, com elevada morbimortalidade10.
Esse quadro de redução de fumantes que procuraram ajuda na rede pública para deixar de fumar entre 2019 e 2020 é um reflexo nacional. Segundo dados do INCA, em 2019, 210.941 pessoas procuraram ajuda contra o tabagismo, e em 2020 houve expressiva redução no número de pessoas atendidas, 74.348. As pessoas do sexo feminino procuraram mais pelo programa de cessação tabágica nos três anos em estudo, esse dado também foi observado entre os usuários respondentes da pesquisa, com 65% do sexo feminino e 35% do masculino. O mesmo fenômeno se observou em todo o país, no conjunto de pacientes que buscaram tratamento para cessação do tabagismo no SUS. Em 2019 foram 58% de mulheres e 42% de homens, em 2020, 55% de mulheres e 45% de homens9.
Estudos evidenciam o sexo masculino com o maior percentual no número de fumantes, no entanto, a procura pelo tratamento em João Pessoa nos últimos três anos foi maior no sexo feminino. Podemos relacionar esse fato com as dificuldades dos homens em procurar os serviços de saúde, entre outras11.
Uma análise dos números de pessoas atendidas e o número de pessoas que pararam de fumar de 2019 a 2021 reportou percentual de cessação do tabagismo de 26%, um índice de eficácia que pode ser incompatível com os índices nacionais do programa, embora seja importante destacar novamente a queda considerável no número de atendimentos durante a pandemia, dificultando o acesso ao programa de cessação tabágica.
Estudo feito em Belo Horizonte e na Região Metropolitana para analisar o índice de cessação do tabagismo e o perfil de ex-fumantes apresentou índice geral de cessação de 56,7%11. Outro estudo que avaliou a efetividade do programa de controle ao tabagismo em uma cidade do Sul do Brasil analisou dados de 106 usuários, na maioria mulheres. A efetividade do programa foi de 51,9%, com tempo médio para cessação tabágica de aproximadamente de três semanas12.
O tratamento para cessação do tabagismo tem sido referido como o “padrão-ouro” de custo-efetividade nos cuidados em saúde, tendo em vista que o custo de implementação do programa de controle do tabagismo, incluindo os dispositivos de capacitação profissional e a aquisição de medicamentos, é muito menos oneroso do que o tratamento dos demais fatores de risco cardiovascular ou o tratamento das doenças relacionadas ao tabaco13.
Quando se observa o funcionamento dos serviços no programa de controle do tabagismo no Município de João Pessoa, fica evidente tanto pelos indicadores do programa, como pelas entrevistas semiestruturadas com profissionais e usuários, que as policlínicas municipais, que lideram em tempo de funcionamento e constância da oferta, apresentam um serviço mais bem estruturado, que pode servir de modelo para projeção a APS.
Percebe-se que os serviços de APS não participam efetivamente do programa, com implantação em apenas três das 203 USF durante os anos do estudo, menos de 1% (0,14%), o que certamente dificulta o acesso aos fumantes e a oportunidade de parar de fumar para a prevenção de vários agravos à saúde.
Bem diferente do observado no município de João Pessoa, em nível nacional o SUS, desde 2001, oferece tratamento do tabagismo nos três níveis de atenção (básica, média e alta complexidade), e conforme dados do INCA, os fumantes têm como grande porta de entrada para o tratamento as Unidades Básicas de Saúde, que em 2019 concentraram 87% dos atendimentos, seguidas de estabelecimentos da atenção especializada, com 10%, e dos CAPS, com 3%14.
Durante a pandemia, foi observado que os serviços sofreram adaptações no seu funcionamento, em alguns houve inclusive descontinuidade. Entendemos que o tratamento do tabagismo envolve terapias associadas a outras metodologias e tem a lógica da dinâmica em grupo, o que no momento de pandemia, sobretudo em 2020, quando foram suspensos os grupos presenciais, levou muitos serviços a buscarem alternativas de acompanhamento, como os grupos virtuais.
Observamos que 75% dos usuários respondentes da pesquisa relataram que não tiveram acesso a encontros em grupo de forma virtual durante o período da pandemia, o que expressa a dificuldade de adaptação do acompanhamento e a dificuldade de adaptação dos indivíduos às tecnologias de informação e comunicação (TIC’s), bem como a queda nos atendimentos e na eficácia do programa.
Entre os usuários do estudo, a pandemia interferiu no desejo de parar de fumar. Foi observado que 30% dos usuários retomaram o hábito de fumar e outros 30% sentiram desejo de voltar a fumar. Um fator importante para o aumento do consumo de tabaco pode ser o estado de ânimo. Estudos descrevem a relação entre uso de tabaco e afetividade negativa, angústia ou ansiedade entre indivíduos em situações de estresse. Para a neurofisiologia, há evidências da ação da nicotina sobre o sistema nervoso central, alterando o estado de ânimo ao desempenhar um papel na sensação de alívio do estresse, da angústia e da tristeza15.
Apesar de não existirem dados sobre tabagismo e sua recaída em relação às epidemias, estudos apontam que fumantes expostos a desastres naturais fumam mais do que fumantes não expostos, e que afetam também a recaída de ex-fumantes. Os estressores que mais influenciaram foram: sofrimento mental, menor apoio social e maior vulnerabilidade social e econômica16,17.
Malta et al. 2021 observam que a piora da saúde mental, da qualidade do sono e da autoavaliação do estado de saúde, bem como a ausência de rendimentos, são fatores associados ao aumento do consumo de cigarros durante a pandemia de COVID-19. Existe uma preocupação evidente entre o tabagismo e a COVID-19. A OMS considera o tabagismo algo de grande potencial para disseminação da COVID-19, e chama atenção para outro grande problema: fumantes de narguilé ou outros dispositivos de uso coletivo que estejam contaminados pela COVID-19, ao compartilharem o mesmo bocal para aspirar fumaça, transmitem o vírus18,19.
Quanto ao apoio medicamentoso no Programa Municipal de Controle do Tabagismo, entre as ofertas de insumos e medicamentosos, o mais utilizado foi o adesivo transdérmico, totalizando 40% dos usuários participantes do estudo, seguido da associação de adesivos com comprimidos de bupropiona, e a maioria dos usuários refere ter acesso ao tratamento proposto. O uso de medicamentos no tratamento do tabagismo vem passando de coadjuvante da terapia cognitivo-comportamental para um papel central na abordagem da maioria dos pacientes. Exceto na presença de contraindicações, os medicamentos deveriam ser empregados em todos os pacientes que estejam tentando parar de fumar13.
Alguns estudos evidenciaram que o uso de medicações pode duplicar ou até triplicar o resultado do tratamento para cessação do tabagismo, de forma que a farmacoterapia é considerada a medida terapêutica mais efetiva pelos usuários, o que ressalta a importância da assistência farmacêutica e do acompanhamento farmacoterapêutico no processo de cuidado desses pacientes13,20.
No que diz respeito à análise do funcionamento antes e após a pandemia, realizada a partir dos questionários submetidos a usuários e profissionais, 75% (n = 15) dos usuários participavam de encontros em grupo antes da pandemia com frequência semanal ou quinzenal, e após a pandemia, apenas 25% (n = 5) responderam que participaram de encontros remotos. Entre os sete profissionais respondentes, houve atendimento presencial antes da pandemia nos grupos de quatro profissionais e não houve grupos remotos após a pandemia segundo três desses profissionais.
O INCA, preocupado com o cenário da pandemia e as medidas de isolamento social, ofertou a capacitação de cerca de 5.400 profissionais de saúde para tratamento ao fumante, fortalecendo não apenas a APS, mas os centros de atenção psicossocial e especializada e o desenvolvimento de diversos materiais para apoiar a população. Os fumantes e as equipes de saúde foram estimulados para os cuidados a distância, para uso de TIC’s, como os aplicativos WhatsApp, Zoom e Skype, para teleatendimento3.
Em meio ao cenário pandêmico e de isolamento social, tornou-se oportuno o fortalecimento de ações de educação em saúde por meio da internet e do aconselhamento por telefone, que se converteram em estratégias pertinentes e complementares a todas as medidas regulatórias estabelecidas no mundo e no Brasil, sendo necessária a mudança de hábitos de convivência social para usuários e profissionais, bem como adaptações nas formas de manejar o cuidado à pessoa tabagista.
Considerações finais
O estudo propiciou, com seus indicadores, uma análise da situação dos serviços do município de João Pessoa (PB) no cuidado com a pessoa tabagista na pandemia de COVID-19. As entrevistas com os profissionais de saúde e usuários do programa identificaram seus pontos positivos e suas limitações, e apontaram para uma boa efetividade, no entanto com baixo acesso, especialmente na APS, além de indicarem que as estratégias utilizadas para conter o consumo do tabaco e seus riscos durante a pandemia partiram dos serviços e dos profissionais envolvidos.
A análise situacional permitiu identificar como problema central a limitada oferta do tratamento do tabagismo no município de João Pessoa pelo SUS. Sua implantação é incipiente na atenção primária à saúde. O número de pessoas que procuraram o programa foi reduzido durante a pandemia, e entre os fumantes houve desejo de voltar a fumar, o que pode ter sido afetado pelo isolamento social e/ou situações de medo e ansiedade vivenciadas.
O uso de medicamentos combinados com as terapias propostas no PNCT no município de João pessoa trouxeram bons resultados entre os usuários do programa, apesar do baixo acesso. Quanto à análise de estratégias utilizadas pelo município para conter o consumo do tabaco e seus riscos durante a pandemia de COVID-19, percebeu-se que apenas dois serviços investiram em grupos remotos.
Portanto, é fundamental que investimentos sejam feitos para o aumento da cobertura do tratamento para cessação do hábito de fumar, especialmente na APS de João Pessoa, com medidas eficazes para prevenir a iniciação de jovens no tabagismo, além de fomentar as estratégias nacionais para enfrentamento da COVID-19, incluindo medidas capazes de reduzir ainda mais o número de fumantes na capital.
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Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
31 Jul 2023 -
Data do Fascículo
Ago 2023
Histórico
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Recebido
26 Out 2022 -
Aceito
17 Abr 2023 -
Publicado
10 Maio 2023