Resumo
O presente ensaio tem o intuito de problematizar as iniquidades em saúde, a partir da análise da violência obstétrica direcionada às mulheres negras. Pressupomos que o racismo institucional é chave interpretativa importante para compreender a dinâmica de violências raciais. Adotamos como metodologia, para evidenciar o racismo enfrentado cotidianamente por mulheres negras nos serviços de saúde, a análise descritiva de duas reportagens publicadas no site do G1. Constatamos que o racismo é (re)produtor de negação de direitos, do não acesso aos serviços de saúde, da produção da morte e da não efetivação do Bem Viver para as famílias negras, e isso vem sendo colocado através da produção e reprodução do sofrimento, da violência e do racismo em suas mais diversas expressões. Nessa dinâmica, a efetivação da Política Nacional de Saúde Integral da população negra é mecanismo importante de enfrentamento ao racismo em saúde.
Palavras-chave: Iniquidades em saúde; Racismo institucional; Saúde da população negra; Violência obstétrica; Mulheres negras
Abstract
This essay debates health inequalities by analyzing obstetric violence directed at Black women. We assume that institutional racism is an important interpretive key to understanding the dynamics of racial violence. We adopted the descriptive analysis of two stories published on the G1 website as a methodology to highlight the racism faced daily by Black women in health services. We found that racism (re)produces the denial of rights, non-access to health services, production of death, and non-realization of Good Living for Black families, and this is evidenced by producing and reproducing suffering, violence, and racism in its most diverse expressions. In this dynamic, implementing the National Comprehensive Health Policy for the Black population is an important mechanism for confronting racism in health.
Key words: Health inequalities; Institutional racism; Health of the Black population; Obstetric violence; Black women
De onde partimos?
Corpos e subjetividades das mulheres negras são corpos inscritos em uma estrutura social que conflitivamente lhes nega o direito de existir. Já nos diz a letra de “A Carne”, magistralmente interpretada por Elza Soares, composta por Marcelo Yuka, Seu Jorge e Wilson Capellette: “A carne mais barata do mercado é a carne negra”. Em 14 de novembro de 2002, Alyne da Silva Pimentel Teixeira estava no sexto mês de gestação e buscou assistência na rede pública em Belford Roxo, no estado do Rio de Janeiro. Alyne era negra, tinha 28 anos de idade, era casada e mãe de uma filha de cinco anos. Com náusea e fortes dores abdominais, buscou assistência médica, recebeu analgésicos e foi liberada para voltar a sua casa.
Não tendo melhorado, retornou ao hospital, quando então foi constatada a morte do feto. Após horas de espera, Alyne foi submetida a cirurgia para retirada dos restos da placenta. O quadro se agravou e foi indicada sua transferência para hospital em outro município, mas sua remoção foi feita com grande atraso.
No segundo hospital, a jovem ainda ficou aguardando por várias horas no corredor, por falta de leito na emergência, e acabou falecendo em 16 de novembro de 2002, em decorrência de hemorragia digestiva resultante do parto do feto morto.
Milene de Oliveira, jovem negra, de 19 anos, deu entrada em uma maternidade do estado do Rio de Janeiro no dia 05 de março de 2022, com 39 semanas. Em entrevista ao site G1, a jovem relatou que após dar entrada na unidade médica, foram 13 horas fazendo força, sem condições, e a todo momento constrangida, ouvindo que a culpa era dela. A jovem chegou a implorar para que fosse feito o procedimento de cesariana, já que não suportava mais as dores e não tinha mais forças para expelir o bebê, mas teve o pedido negado. Durante o procedimento, a jovem diz ter escutado frases como “faz força, senão seu bebê vai morrer” e “estou caprichando aqui embaixo que seu marido vai animar para fazer outro”1(p.1), no momento em que recebia pontos. Após o nascimento, seu filho precisou ser reanimado e foi encaminhado para a UTI. A criança ficou entubada e respirando com ajuda de aparelhos, mas não resistiu e morreu.
Ao resgatarmos reportagens veiculadas no site do G1 sobre violência obstétrica contra mulheres negras, sem nenhum critério de exclusão relacionado ao período de publicação da reportagem, nos deparamos com estes dois casos, que apesar de estarem separados por uma cronologia de 20 anos, escancaram a persistência histórica do sofrimento produzido pela negação da experiência do maternar das mulheres negras, fruto do racismo e das desigualdades existentes em nossa sociedade. Passos2 nos mostra que por trás das fatalidades naturalizadas pelo racismo e pela violência estrutural, podemos afirmar “que existe um projeto que não autoriza as mulheres negras a serem mães, apesar da maternidade estar colocada compulsoriamente para o gênero feminino”(p.2). Para a autora, em uma sociedade racista, patriarcal, sexista, colonialista e elitista, nem todas as mulheres podem usufruir do mito do amor materno.
Nesse sentido, esse ponto de partida refere-se a um exercício de entrelaçamento que, através de seus fios, pode-se apontar os caminhos para identificar que o caso da Alyne teve um papel fundamental para avançar no reconhecimento dos direitos reprodutivos não só no Brasil, como também na América Latina e em todo o mundo. Ele é especialmente importante para o reconhecimento dos direitos da mulher à uma maternidade segura e ao acesso sem discriminação à serviços básicos de saúde de qualidade.
Entretanto, os entrelaçamentos do racismo institucional e da violência obstétrica equilibram-se entre passado e presente, que embora separados pelo tempo cronológico, eles são faces de um mesmo todo, em que o “novo” expressa a revolução de alguns aspectos já existentes no passado, e o “velho” já carregava consigo os germes do novo, que possibilitaram esta construção.
Se pensarmos em termos de saúde, 76% das usuárias e usuários do Sistema Único de Saúde (SUS) são negros. Também representam o maior percentual de internações no SUS, 81%3. Em 2008 o percentual de usuárias e usuários negros no SUS era de 67%4.
Importante que destaquemos também que estudos apontam grande desigualdade no acesso à saúde de negros e negras. As características socioeconômicas e a raça/cor têm determinado experiência distintas entre os grupos raciais, mulheres e homens negros são avaliados em menor tempo em consultas com profissionais de saúde, realizam menor número de consultas médicas e de exames3,5. A raça/cor no Brasil tem sido determinante nas formas de nascer, viver, adoecer, acessar o sistema de saúde, assim com morrer6,7.
Nessa esteira, a necropolítica8 direcionada aos corpos negros é evidente e cirurgicamente naturalizada no cotidiano das instituições, sendo constatada nos altos índices de encarceramento de homens negros, de institucionalização de crianças e adolescentes nos abrigos, na negação do direito de envelhecer com qualidade de vida e nas inúmeras violências direcionadas às mulheres negras. Quando tratamos da situação de mulheres negras, não podemos desconsiderar os históricos de violências e abusos sexuais, além da exploração do trabalho e negação do direito à vida evidenciada na negação e/ou desassistência do acesso aos serviços públicos, em especial os de saúde seja na atenção primária, secundária ou terciária.
A partir do exposto, fica evidente que há sim o controle sobre a vida ou a morte de corpos negros, assim como é perceptível que os direitos sexuais e reprodutivos, os quais incluem o acesso à assistência médica, a tratamento, medicamentos e cuidados na gestação, com atendimentos pré-natal e puerperal, ou seja, prevenção, promoção e cuidado em saúde, não se concretizam da mesma maneira se pensarmos na relação entre mulheres brancas versus mulheres negras.
bell hooks9 ao tratar em sua obra sobre a negação da humanidade e do Bem Viver das mulheres negras, nos mostra que a agenda dos direitos sexuais e reprodutivos, das iniquidades em saúde e do racismo institucional é pauta urgente, submersa em um mar de interesses e disputas políticas, econômicas e social.
No simulacro do racismo institucional e da violência obstétrica
Para identificar as expressões do racismo institucional, optamos por utilizar as análises desenvolvidas por Eurico10 para qualificação das duas dimensões interdependentes e correlacionadas do racismo institucional: “a político-programática, e a das relações interpessoais” (p.299). Em relação à dimensão político-programática a autora informa que ela compreende as ações que impedem a formulação, implementação e avaliação de políticas públicas eficientes, eficazes e efetivas no enfrentamento ao racismo, bem como a visibilidade do racismo nas práticas cotidianas e nas rotinas administrativas. Por sua vez, a dimensão das relações interpessoais abrange as relações estabelecidas entre gestores e trabalhadores, entre trabalhadores e trabalhadores, entre trabalhador e usuário, e entre usuário e trabalhador, sempre pautadas em atitudes discriminatórias.
Neste cenário, estudos de Werneck7, identificaram a engenharia engendrada pelo racismo institucional a partir de uma ideologia presente nas redes de assistência à saúde ligada a pensamentos que naturalizam que pessoas negras são mais resistentes à dor ou que negro tem dificuldade para adoecer e por conseguinte tendem a minimizar queixas advindas de pessoas negras e minorar o uso de medicamentos e anestesias, principalmente tratando-se de mulheres nos procedimentos de pré-natal e parto.
A complexidade da temática nos convoca a pontuar que há quase uma década a violência obstétrica é reconhecida como questão de saúde pública pela Organização Mundial de Saúde (OMS), dada as evidências de desrespeito e maus-tratos às mulheres durante a cena do parto. Ela ocorre em um dos momentos da vida das mulheres em que elas estão mais vulneráveis e materializa-se como negligência, violência verbal, violência física, procedimentos desnecessários, indesejados e negados.
Para Assis11 a violência obstétrica precisa ser entendida como a apropriação do corpo e dos processos reprodutivos das mulheres por profissionais de saúde e se expressa por relações desumanizadas, por abuso de medicalização e pela patologização dos processos naturais, limitando a autonomia das mulheres e sua capacidade de decidir. A autora é enfática ao explicar que os efeitos da violência obstétrica com viés racial tendem a apresentar contornos mais intensos, por representar as violências estruturadas na dinâmica de formação social brasileira, ou seja, expressam o racismo, o sexismo, o patriarcado, o que significa mais violência, abandono, não cuidado, a barbárie naturalizada no seio da sociedade.
Conforme Curi et al.12 existem um conjunto considerável de pesquisas e artigos científicos que “sinalizam para as mulheres negras como sendo as que mais sofrem violências obstétricas” (p.7). Nesse contexto Curi et al.12, que se autodeclaram brancas, fazem um importante questionamento: “Mas, o que fazemos com isso?”. Visto que, para as autoras não dá mais para não se fazer nada. Paralelamente, considerando o questionamento levantado acrescentamos as seguintes indagações: Os serviços de saúde estão dispostos em prover um serviço profissional adequado aos sujeitos em função da cor/raça/etnia, origem e cultura? Os(as) gestores(as) conhecem e incorporam os objetivos da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra? O princípio de equidade do SUS tem se concretizado no cotidiano do trabalho dos(as) profissionais? Há investimento orçamentário direcionado para o cuidado em saúde, em especial da saúde da população negra?
Lembremo-nos que nesse processo está incluída a falta de investimento que a saúde pública enfrenta, especialmente após a Emenda Constitucional 95/2016, que tinha por objetivo congelar por 20 anos investimentos na saúde. É importante compreendermos que mulheres negras experimentam diferentes tipos de discriminação de raça e gênero, que, quando se interseccionam, comprometem a sua inserção na sociedade como um sujeito de direito, principalmente no que tange à saúde, onde as desigualdades impostas pelo racismo e sexismo diferenciam as mulheres no acesso aos serviços de saúde assim como na cena do parto13. Contudo, perceber esses aspectos requer uma análise profunda, que possibilite a interconexão de várias determinações societárias. Por isso, apostamos nas análises de Collins e Bilge14(p.15-16), para demarcarmos que a interseccionalidade investiga como as relações de poder influenciam as relações sociais em sociedade marcadas pela diversidade, bem como as experiências individuais na vida cotidiana. Como ferramenta analítica, a interseccionalidade considera que “as categorias raça, classe, gênero, orientação sexual, nacionalidade, capacidade, etnia e faixa etária - entre outras - são inter-relacionadas e moldam-se mutuamente”.
Desta forma, a leitura crítica acerca da realidade social e de suas dimensões histórica, econômica, política e interseccional possibilitará uma intervenção mais qualificada sob o ponto de vista teórico e técnico operativo, ético e político, sobretudo no que diz respeito as barreiras enfrentadas pela população no acesso à saúde, particularmente aquelas interpostas pelo racismo estrutural.
Mulheres negras, direitos e o Bem Viver!
Davis15, em sua obra clássica Mulheres, raça e classe, e Collins16 debatem o quanto é importante o lugar socialmente ocupado por mulheres negras, as quais mesmo após ter rompido formalmente com as amarras provocadas pelo racismo, conseguem lutar por direitos, pela manutenção de suas vidas e de seus descendentes. São as mulheres negras que estão nas chefias de família, que integram as famílias monoparentais, que cuidam coletivamente dos filhos, dos idosos e dos companheiros, em sua maioria, encarcerados. As mulheres negras ocupam um lugar extremamente importante do ponto de vista econômico, pois exercem inúmeras atividades laborativas para assegurar o sustento da família, além de proporcionarem os meios para reprodução social via trabalho doméstico, cuidado com crianças e idosos. A frase de Malcolm X que afirma que “não há capitalismo sem racismo” é contundente e explicativa dos processos racializados que se desdobram no capitalismo15.
Moura17 trata da relação entre racismo e capitalismo e evidencia que a dominação econômica também revela sua face de dominação racial, já que a pobreza é um demarcador importante que coloca a população negra, em especial as mulheres, em lugar de imobilidade social e dependência econômica. Nesse sentido, não é difícil compreender como há a permanência de abusos e exploração do trabalho dessas mulheres. Na realidade capitalista não são percebidas como sujeitos, não são vistas como mulheres, são corpos descartáveis. Logo, estão passíveis de qualquer tipo de violência e de negação de direitos. O que elas verbalizam, suas necessidades são percebidas como problemas, discursos que apenas atraem “problemas”:
Ninguém jamais me ajudou a subir em carruagens, ou a saltar sobre poças de lama, e nunca me ofereceram melhor lugar algum! E não sou uma mulher? Olhem para mim? Olhem para meus braços! Eu arei e plantei, e juntei a colheita nos celeiros, e homem algum poderia estar à minha frente. E não sou uma mulher?18.
Esse discurso foi proferido como uma intervenção na Women’s Rights Convention em Akron, Ohio, Estados Unidos, em 1851. Em uma reunião de clérigos onde se discutiam os direitos da mulher, Sojourner levantou-se para falar após ouvir de pastores presentes que mulheres não deveriam ter os mesmos direitos que os homens, porque seriam frágeis, intelectualmente débeis, porque Jesus foi um homem e não uma mulher e porque, por fim, a primeira mulher fora uma pecadora.
hooks9, ao refletir em sua obra Eu não sou uma mulher?, nos alerta sobre as condições de vida pautadas em violências, as quais são estruturadas nas sociedades diaspóricas como dinâmicas naturalizadas. Todavia, as violências, expressas também na negação do direito à vida, impactam de forma mais nociva sobre mulheres negras, mantendo-as sem acesso a direitos como educação, alimentação, moradia e em especial a saúde.
Silva19 reforça essa perspectiva, a partir do debate do feminicídio, percebido pela autora como o ápice da violência de gênero. Contudo, segundo Silva19, o feminicídio é mediado por inúmeras formas de violência, as quais incluem a desassistência em saúde. Paralelamente, a política de morte naturalizada e o não acesso aos serviços, se colocam como expressão de uma necropolítica, da violência (re)produzida no capitalismo, as quais se exponenciam quando articulamos os temas racismo, sexismo e patriarcado. A análise dessas hierarquias, de forma crítica, somente é perceptível a partir de olhares interseccionais como sugeriu Crenshaw na década de 1980 no emblemático “Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero”.
Não é por acaso que a categoria pedagogia da crueldade, a qual denominamos como racista, se coloca como chave heurística importante para pensar as inúmeras formas de violências em saúde direcionadas às mulheres negras. Segundo Segato20 “a pedagogia da crueldade são todos os atos e práticas que ensinam, habituam e programam os sujeitos a transmutar o vivo e sua vitalidade em coisas”(p.13). Contudo, precisamos ressaltar que embora os corpos femininos de uma forma genérica sejam percebidos como objetos, são os corpos femininos negros que são objetificados, animalizados, manipulados, dominados a partir de interesses de outros desde muito cedo. São mulheres negras que não são percebidas como crianças, hooks9 ressaltou que mulheres negras sequer eram vistas como mulheres, realizando trabalhos nas lavouras como homens.
Nesse sentido, a pauta do Bem Viver, logo, se coloca como urgente, pois desvela que dentre as maiores necessidades das mulheres estão o direito à saúde de qualidade, a educação, ao trabalho, ao convívio familiar e comunitário, pois isso significa o acesso à vida.
Tratar de necessidades nos conduz a evidenciar a realidade violenta dessas mulheres. Não é por acaso que Werneck7 já nos mostrava em suas reflexões que a população negra, em especial, as mulheres negras, sofriam com os impactos das denominadas, à época, como iniquidades em saúde. O não acesso aos serviços de saúde, as altas taxas de mortalidade materno-infantil, negligência e maus tratos no decorrer dos atendimentos quando eles ocorrem e mais recente, os casos de erros médicos, como nos mostram a imprensa, não estão desconectados dessa realidade social que é forjada no racismo, sexismo e lógica patriarcal.
A chave para compreender esses processos complexos e perpassados por violência física e psíquica está assentada no desvelamento do racismo, do sexismo e do patriarcado. Esses sistemas de hierarquização que se estruturam no âmbito da produção e reprodução das relações sociais no Brasil e em outros países que vivenciaram a dinâmica de colonização e escravismo, e nos auxilia a compreender o porquê corpos negros são considerados descartáveis, passíveis de manipulação, experimentos e intensa violência. No caso de mulheres negras, a situação se agrava, já que o sexismo intensifica essa violência, naturaliza o controle dos corpos incidindo nos direitos sexuais e reprodutivos. Não é por qualquer circunstância que Lélia Gonzalez21 sinaliza que a população negra se encontra em um não lugar na estrutura social, sendo equiparada e estereotipada de forma negativa, assim a frase “o lixo vai falar e numa boa”(p.69), evidencia que mulheres negras não são ouvidas, assistidas, percebidas como sujeitos, tampouco conseguem ter acesso aos cuidados em saúde.
O Estado nessa perspectiva, possui função fundamental e funcional a essa lógica de desumanização da população negra, já que este integra a estrutura de hierarquização racial e de gênero. É a partir do Estado que funções institucionais e organizacionais são acionadas, é no âmbito do funcionamento dessas instituições que sujeitos socializados nessa dinâmica racista e sexista reproduzem ações, discursos e ofertam serviços pautados sob essa lógica que nega direitos, que nega a vida. Ao analisarmos os casos de invasão policial nas favelas cariocas, as quais ocorrem a partir de uma justificativa de manter a ordem e garantir a segurança pública, inferimos que há a produção da morte de forma massiva e negação de direitos, pois são os sujeitos negros, moradores de favelas que permanecem sem acesso a vida, escolarização, saúde. É visível aos olhos que é o Estado racista e sexista22 que tem o poder de controle sobre os corpos negros e sobre a vida de mulheres negras e seus filhos. Assim, viver ou morrer não é opção, mas sim uma imposição.
Nessa direção não há como naturalizar os casos de mutilação de membros, episiotomia sem prévio comunicado, não realização de partos cirúrgicos em caso de necessidades, não administração de anestesia, a violência obstétrica, tendo como pressuposto a lógica extremamente racista e sexista, a qual dissemina falsamente a ideia de que “mulher negra é forte, mulher negra é parideira!”21 (p. 92).
As reflexões do filósofo Mbembe sobre necropoder e os impactos na vida de indivíduos sob influência de marcadores raciais, nos mostra que o Estado é uma peça importante na engrenagem da sociabilidade racista, mas também nos evidencia que além do poder sobre a vida ou a morte, o sistema racista, possui a capacidade de mutilar esses corpos negros, de provocar intenso sofrimento e de manter as bases dessa dominação sobre a dinâmica de denegação dessa realidade21.
É o mito democrático racial que ocorreu especialmente no Brasil, sendo imposto pela branquitude e seus pactos narcísicos23, faz com que barbárie e violência seja naturalizada, além desta não ser percebida por aqueles que a sofrem. Não há identificação com as pautas que tratam da negritude, não há identificação com o sofrimento, sobretudo de pretos retintos, não há aglutinação para as lutas coletivas. Parafraseando Munanga24 o racismo deu certo no Brasil!
Considerações finais
O presente ensaio procurou retratar a partir de duas reportagens e dados estatísticos como o racismo e sexismo tecem uma rede de complexidades que têm na negação da maternidade às mulheres negras uma dinâmica cheia de conflitos. A análise interseccionalizada revela a (in)visibilidade histórica quanto à diversidade racial dos usuários do SUS, desconsiderando a equidade nos serviços, impossibilitando uma discussão sobre o cuidado amplo e integrado na cena do parto e dificultando a redução dos impactos do racismo na experiência do maternar. Paralelamente, essa reflexão vem ao encontro da discussão que envolve o entrelaçamento das categorias ser mulher negra, equidade no SUS, racismo e ações dos serviços de saúde.
Nessa direção, para trazer à tona esse debate, é indispensável colocar na ordem do dia a análise crítica sobre o princípio da equidade do SUS, que tem o objetivo de guiar as ações de saúde em direção à justiça social considerando as diferenças e necessidades dos distintos grupos sociais, tratando-os desigualmente conforme a atenção requerida com o objetivo de enfrentar as iniquidades na saúde.
Referências
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
04 Set 2023 -
Data do Fascículo
Set 2023
Histórico
-
Recebido
10 Abr 2023 -
Aceito
27 Maio 2023 -
Publicado
29 Maio 2023