Resumo
Este artigo discute as percepções de homens jovens moradores do Complexo da Maré, no Rio de Janeiro, sobre a pandemia de COVID-19 e as práticas de prevenção adotadas. Os dados foram coletados a partir de entrevistas semiestruturadas com homens entre 18 e 29 anos, obtidas no final de 2022, analisadas a partir da análise de conteúdo temática. Os resultados apontam adesão parcial dos jovens às práticas de prevenção preconizadas, com pouco distanciamento social, mas um alto índice de vacinação e resistência a discursos negacionistas, apesar de descreverem a favela como um ambiente pouco atento à pandemia. Fatores como escolaridade e fragilidade dos contratos de trabalho foram preponderantes nas estratégias de prevenção. A internet se destaca como a principal fonte de informação acessada por essa população e pode ser estratégica para a comunicação e educação em saúde de homens jovens no futuro.
Palavras-chave:
Saúde do homem; Masculinidade; Juventude; COVID-19
Abstract
This article discusses the perceptions of young men living in Complexo da Maré, Rio de Janeiro, Brazil, regarding the COVID-19 pandemic and the adoption of prevention techniques. Data were collected from semi-structured interviews with men between 18 and 29 years of age, conducted at the end of 2022, and analyzed using thematic content analysis. The results point to a partial adherence of young people to recommended prevention practices, with low social distancing, but a high vaccination rate and a resistance to negationist discourses, despite describing the favela as an environment that paid little attention to the pandemic. Factors, such as education and the fragility of employment contracts, were predominant in prevention strategies. The internet is the primary source of information accessed by this population and can be strategic for future health communication and education with young men.
Key words:
Men’s health; Masculinity; Youth; COVID-19
Introdução
O artigo busca refletir sobre as práticas de cuidado e prevenção de saúde adotadas durante a pandemia de COVID-19 por homens jovens (18 a 29 anos) moradores de favelas no Rio de Janeiro e as percepções desse público acerca da experiência da pandemia na favela. A pandemia do novo coronavírus foi definida como a maior emergência sanitária dessa geração, na qual se identificou uma maior vulnerabilidade em termos de morbidades e de mortalidade de homens frente às mulheres11 Dana PM, Sadoughi F, Hallajzadeh J, Asemi Z, Mansournia MA, Yousefi B, Momen-Heravi M. An insight into the sex differences in COVID-19 patients: what are the possible causes? Prehosp Disaster Med 2020; 35(4):438-441.. Ainda que possam existir fatores biológicos para a diferença, mesmo a literatura biomédica destacou que valores culturais de masculinidade devem ser considerados na compreensão deste quadro epidemiológico22 Ruxton S, Burrell S. Masculinities and COVID-19: making the connections. Washington: Promundo-US; 2020.. A noção de invulnerabilidade, assim como a resistência a práticas de prevenção em saúde, características do modelo hegemônico de masculinidade, seriam uma possível explicação para a diferença33 Madrid S, Valdés T, Celedón R, organizadores. Masculinidades en América Latina: veinte años de estudios y políticas para la igualdad de género. Santiago: Ed. Universidad Academia de Humanismo Cristão; 2020.
4 Sousa AR, Santana TS, Carvalho ESS, Mendes IAC, Santos MB, Reis JL, Silva AV, Sousa, AFL. Vulnerabilidades percebidas por homens no enquadramento da pandemia da Covid-19. Rev Rene 2021; 22:e60296.-55 Medrado B, Lyra J, Nascimento M, Beiras A, Corrêa ACP, Alvarenga EC, Lima MLC. Homens e masculinidades e o novo coronavírus: compartilhando questões de gênero na primeira fase da pandemia. Cien Saude Colet 2021; 26(1):179-183.. A pesquisa de campo trouxe resultados que corroboram essa percepção, seja na relação dos sujeitos de pesquisa com seus próprios estados de saúde, seja por meio da fala de outros homens de seu entorno, que minimizam e até ridicularizam a busca por cuidados médicos.
A juventude configura outro recorte populacional desigualmente afetado pela pandemia, devido à interrupção das aulas, à migração forçosa para o ensino remoto, à fragilidade das relações trabalhistas e à necessidade de cuidar dos mais velhos66 Silva Sobrinho AL, Abramo HW, Villi, MC, organizadores. Jovens e saúde: revelações da pandemia no Brasil 2020-2022. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2022.. Somado a isso, o binarismo de gênero tradicionalmente reserva o espaço público aos homens, que sofreram maiores impactos com as políticas de distanciamento social impostas na pandemia11 Dana PM, Sadoughi F, Hallajzadeh J, Asemi Z, Mansournia MA, Yousefi B, Momen-Heravi M. An insight into the sex differences in COVID-19 patients: what are the possible causes? Prehosp Disaster Med 2020; 35(4):438-441.,55 Medrado B, Lyra J, Nascimento M, Beiras A, Corrêa ACP, Alvarenga EC, Lima MLC. Homens e masculinidades e o novo coronavírus: compartilhando questões de gênero na primeira fase da pandemia. Cien Saude Colet 2021; 26(1):179-183.. As comunidades cariocas também foram apontadas como ambientes mais vulneráveis à COVID-19, em função da densidade populacional, da falta de saneamento básico, da baixa qualidade do acesso à internet e da impossibilidade de migração para o trabalho remoto, conforme aponta o Radar COVID-19 Favelas77 Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Radar COVID-19, Favela 11ª edição [Internet]. 2021. [acessado 2022 out 13]. Disponível em: https://portal.fiocruz.br/documento/radar-covid-19-favela-11a-edicao
https://portal.fiocruz.br/documento/rada...
. Além disso, pessoas negras, maioria nas favelas cariocas, foram apontadas como a população que mais morreu de COVID-1966 Silva Sobrinho AL, Abramo HW, Villi, MC, organizadores. Jovens e saúde: revelações da pandemia no Brasil 2020-2022. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2022..
Entre as diversas respostas dadas pela população brasileira e mundial à pandemia, uma das mais marcantes e criticadas foi a postura negacionista, que variou desde a descrença na própria existência do vírus até uma desconfiança generalizada nas respostas da ciência à doença e em seu tratamento88 Camargo Jr KR. Trying to make sense out of chaos: science, politics and the COVID-19 pandemic. Cad Saude Publica 2020; 36(5):e00088120.. As posturas negacionistas não se restringem à pandemia ou às ciências da saúde, compondo um amplo olhar baseado em teorias conspiracionistas e recusas acríticas de parcelas do pensamento científico que não se adequam a posições político-ideológicas de determinados grupos sociais99 Morel APM. Negacionismo da Covid-19 e educação popular em saúde: para além da necropolítica. Trab Educ Saude 2021; 19:e00315147.. Além disso, identifica-se uma articulação entre a masculinidade hegemônica1010 Connell R, Messerschmidt, JW. Hegemonic Masculinity: rethinking the concept. Gend Soc 2005; 19(6):829-859. e o chamado negacionismo científico1111 Miguel LF. O mito da "ideologia de gênero" no discurso da extrema direita brasileira. Cad Pagu 2021; 62:e216216., com consequências dramáticas nos casos de COVID-1911 Dana PM, Sadoughi F, Hallajzadeh J, Asemi Z, Mansournia MA, Yousefi B, Momen-Heravi M. An insight into the sex differences in COVID-19 patients: what are the possible causes? Prehosp Disaster Med 2020; 35(4):438-441.. A intensa interação dos jovens nas redes sociais da internet é frequentemente apontada como um fator de vulnerabilidade a teorias conspiratórias e negacionistas66 Silva Sobrinho AL, Abramo HW, Villi, MC, organizadores. Jovens e saúde: revelações da pandemia no Brasil 2020-2022. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2022..
Nesse contexto, torna-se estratégico ouvir os próprios jovens acerca de suas concepções sobre processos de saúde-doença e sobre fontes de informação em saúde acessadas e legitimadas por eles, de forma a compreender melhor suas escolhas e perceber a adesão a discursos negacionistas. Com esse olhar, pretendemos colaborar com perspectivas contemporâneas do setor saúde, assim como refletir acerca de questões históricas dos campos de estudos de homens e masculinidade e de gênero e saúde. Usando as respostas dos jovens à pandemia de COVID-19 como um retrato agudo de uma resistência crônica dos homens a práticas preventivas de cuidado33 Madrid S, Valdés T, Celedón R, organizadores. Masculinidades en América Latina: veinte años de estudios y políticas para la igualdad de género. Santiago: Ed. Universidad Academia de Humanismo Cristão; 2020.,1212 Ragonese C, Shand T, Barker G. Masculine norms and men's health: making the connections: executive summary. Washington: Promundo-US; 2018., torna-se possível produzir dados atualizados de rupturas e permanências nas decisões que os homens tomam frente a problemas de saúde e desenhar ações e campanhas mais eficazes de educação, comunicação e informação em saúde para um público estratégico e vulnerável a desigualdades sociais em saúde.
Método
Os resultados aqui apresentados são um recorte de uma pesquisa mais ampla de pós-doutorado em saúde coletiva financiada pelo Programa Inova Fiocruz. Trata-se de uma pesquisa qualitativa, de abordagem socioantropológica e cunho exploratório, por meio de dez entrevistas semiestruturadas realizadas presencialmente com homens jovens (entre 18 e 29 anos) moradores do Complexo da Maré, na cidade do Rio de Janeiro. Desde a concepção da pesquisa, definimos que jovens de outras comunidades poderiam ser incluídos na amostra, o que aconteceu em único caso, com um morador da Providência. O acervo foi analisado a partir da análise de conteúdo temática1313 Cavalcante RB, Calixto P, Pinheiro MMK. Análise de conteúdo: considerações gerais, relações com a pergunta de pesquisa, possibilidades e limitações do método. Inf Soc Est 2014; 24(1):13-18..
O roteiro de entrevistas foi dividido em seis blocos de perguntas: (1) perfil sociodemográfico; (2) sociabilidade e internet; (3) estado de saúde e uso de medicamentos; (4) acesso a serviços e políticas de saúde; (5) concepções sobre gênero, masculinidades e saúde; e (6) pandemia e prevenção ao novo coronavírus. Com isso, pudemos organizar um quadro que revelou as possibilidades reais de adesão e o nível de participação dos jovens em ações existentes no sistema de saúde para explorarmos se e como posturas negacionistas se relacionavam com diferentes marcadores sociais e comportamentos sanitários entre esse grupo social.
Após a aprovação pelo Comitê de Ética em Pesquisa, deu-se início ao trabalho de campo, que se concentrou no último trimestre de 2022. O WhatsApp foi o meio prioritário de comunicação com os sujeitos selecionados. Os critérios de inclusão na pesquisa eram a autoidentificação como homem e ser residente de comunidade. O Quadro 1 apresenta algumas características do perfil sociodemográfico dos sujeitos entrevistados. As definições de raça/cor e orientação sexual foram obtidas por autoidentificação. Todos os participantes se identificaram como homens cis. Neste artigo, utilizaremos uma indicação numérica (E1, E2, E3...) para nos referirmos aos entrevistados.
Ao longo de toda a pesquisa, o pesquisador manteve um diário de campo, relatando a rotina das incursões no território. Também foram feitos relatos específicos de cada entrevista, amplamente utilizados na análise para captar impressões sobre o contexto, o ambiente e reações não-verbais dos entrevistados.
O recorte proposto neste artigo foca a última categoria, sobre COVID-19. Para a discussão, organizamos as respostas em dois grupos: o primeiro sobre respostas e impactos individuais da experiência com o coronavírus; e o segundo, voltado para um olhar coletivo sobre COVID-19 na favela.
Respostas à pandemia
Esse bloco nas entrevistas começava perguntando se o entrevistado teve COVID-19: seis jovens afirmaram não ter tido, enquanto quatro tiveram. Entre estes, dois tiveram ainda no início de 2020, um (E4) apenas com sintomas leves e outro (E3) com sintomas moderados, com destaque para a dificuldade respiratória. O E2 teve já em 2021, ainda antes da se vacinar, mas também foi leve. Apenas um (E9) teve mais de uma vez, em momentos diferentes da pandemia: duas vezes em 2020, muito próximas, mas com sintomas leves; e uma terceira vez em 2021, na qual perdeu olfato e paladar, teve febre e cansaço, mas não precisou de internação. Não houve relatos de pessoas próximas que faleceram, apenas parentes distantes e vizinhos.
Quando perguntados sobre o contágio em sua vizinhança, houve percepções distintas; seis consideraram que poucas pessoas na vizinhança pegaram a doença e quatro descreveram o oposto. Mesmo entrevistados que moravam muito próximos deram respostas díspares, o que destaca que a percepção de muito ou pouco contágio é pessoal e não se reduz a um olhar quantitativo. Essa questão trouxe uma associação entre a idade e a gravidade da doença: não houve relatos de falecimentos no círculo de amizades mais próximo, o que levou E1 a elucubrar que o motivo seria por se tratar de pessoas mais jovens. Opostamente, quando relataram mortes de vizinhos ou parentes, frequentemente explicavam que a vítima era uma pessoa idosa.
Poucos continuaram trabalhando durante a pandemia, mas foi comum a resposta de que os pais não puderam parar de trabalhar em momento algum, muitas vezes contraindo a doença. Apenas um entrevistado (E1), que trabalhava na Fiocruz, pôde migrar para o trabalho remoto. Dois jovens, um trabalhando como entregador (E3) e outro como barbeiro (E9) acabaram ficando sem trabalho, não por uma interrupção do serviço, mas pela redução do movimento na cidade. No caso do entregador, uma das lojas para a qual ele presta serviço seguiu pagando um auxílio e alimentação para os entregadores. Um jovem (E10) que trabalha com eventos comentou que os bailes funk não pararam, e afirmou: “Eu achava errado, mas era o meu trabalho, tinha que me sustentar!” A necessidade de sobrevivência econômica foi um dos fatores de exposição à COVID-19 entre os jovens brasileiros66 Silva Sobrinho AL, Abramo HW, Villi, MC, organizadores. Jovens e saúde: revelações da pandemia no Brasil 2020-2022. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2022..
Já a experiência de ensino remoto foi mais presente, considerada “péssima” pela maioria, principalmente devido à dificuldade de se concentrar para assistir às aulas online, a problemas de conexão e à ausência do ambiente escolar, como também observado por Vazquez et al.1414 Vazquez DA, Caetano SC, Schlegel R, Lourenço E, Nemi A, Slemian A, Sanchez ZM. Vida sem escola e saúde mental dos estudantes de escolas públicas na pandemia de Covid-19. Saude Debate 2022; 46(133):304-317. Apenas E4 considerou positivo: “Mais tranquilo, né, podendo pensar e tendo tempo para fazer as coisas.” Já E9 ponderou que, apesar dos problemas, tem a vantagem da flexibilidade de horário de estudo. E2 considera que “perde muito” a qualidade do ensino, e rapidamente emenda, “mas foi necessário”. Por outro lado, E8 adiou os planos de começar uma graduação justamente para evitar iniciar no período remoto e porque “quando veio a pandemia, fiquei meio desanimado, assim naquela questão, ‘ah, tem uma coisa acontecendo no mundo’, aí fiquei meio desanimado”.
Uma pergunta que costumava levá-los à reflexão envolvia possíveis impactos na saúde que a COVID-19 tenha causado. Para cinco jovens, não houve mudança alguma nesse sentido, porém, outros perceberam efeitos em si ou nos outros. O mais mencionado foi a piora na saúde mental: “Eu acho que [...] foi mais mental porque, assim, você [...] ser uma pessoa que tem uma depressão, e os teus colegas te ajudarem nessa questão e você não poder ver por causa da pandemia... afetou um pouquinho” (E8). No mesmo sentido, E7 afirmou que “teve gente que teve pânico dessa doença”, apesar de não ter acontecido com ele. Por outro lado, houve um relato (E4) de que a pandemia aumentou muito o consumo de cigarro e maconha, que era esporádico e se tornou diário. E10 contou que sentiu muito “medo de pegar COVID e morrer”, mas tinha de lidar com isso para seguir trabalhando, o que fez sem suporte profissional. Quem sentiu maior impacto foi E2, que considera que a pandemia afetou muito sua saúde mental, levando a um consumo abusivo de álcool que afetou seu relacionamento (estava casado na época) e o levou a sair do isolamento antes do que pretendia. Além disso, uma parente da ex-esposa ficou em pânico com a pandemia e precisou de apoio, de forma que ele compreende que houve um impacto generalizado na saúde mental da população. Vale ressaltar que os impactos na saúde mental vêm sendo apontados por diferentes pesquisas como um dos maiores agravantes da COVID-19 entre jovens66 Silva Sobrinho AL, Abramo HW, Villi, MC, organizadores. Jovens e saúde: revelações da pandemia no Brasil 2020-2022. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2022.,1414 Vazquez DA, Caetano SC, Schlegel R, Lourenço E, Nemi A, Slemian A, Sanchez ZM. Vida sem escola e saúde mental dos estudantes de escolas públicas na pandemia de Covid-19. Saude Debate 2022; 46(133):304-317.,1515 Abramovay M, Feffermann M, Luz LCX, Cenitagoya V, Rivera UZ, Leiva AIP, organizadoras. Trajetórias/práticas juvenis em tempos de pandemia da covid-19. Brasília: Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais; 2022..
Uma fala bastante peculiar veio do relato do E9: “Não, eu fiquei tranquilo. Como a gente cresceu aqui, como eu cresci aqui, sempre fiz de tudo, pulava lá, aqui no valão, fazia um monte de coisa, então assim a gente fica acostumado a criar anticorpos [risos]. Já desde criança. Então isso é confortável.” Nesse trecho, duas questões se destacam: primeiro, é notável a repetição do argumento utilizado pelo ex-presidente Jair Bolsonaro no final de março de 2020, quando afirmou que o Brasil não teria números tão graves de COVID-19 justamente porque o brasileiro estaria acostumado a “pular no esgoto”. Nesse ponto, cabe destacar o “racismo ambiental” e a exclusão histórica da população negra do saneamento ambiental, conforme aponta Victor de Jesus1616 Jesus V. Racializando o olhar (sociológico) sobre a saúde ambiental em saneamento da população negra: um continuum colonial chamado racismo ambiental. Saude Soc 2020; 29(2):e180519.. Além disso, uma ideia de invulnerabilidade e resistência a riscos e possíveis danos é frequentemente associada à masculinidade, e é uma justificativa para os piores índices de saúde e mortalidade por causas externas entre homens1212 Ragonese C, Shand T, Barker G. Masculine norms and men's health: making the connections: executive summary. Washington: Promundo-US; 2018.. Felizmente, essa foi a única menção a essa suposta vantagem imunológica.
Todos fizeram algum nível de isolamento social durante a pandemia, porém, por um período muito abaixo do preconizado. A exceção foi E8, que considerou que não esteve de fato em isolamento em momento algum, porque, apesar de ele próprio ficar em casa, os pais não puderam parar de trabalhar presencialmente em momento algum. Ainda assim, a maioria esteve de fato isolado por cerca de quatro meses. Entre os fatores mais mencionados para a saída estavam a necessidade do trabalho e a saudade dos amigos. De fato, o único entrevistado (E1) que pôde adotar o trabalho remoto ficou mais tempo isolado, voltando a sair normalmente apenas “em meados de 2021”, já com duas doses da vacina. Assim, dele foi também o relato mais positivo sobre a experiência do isolamento:
Eu acho que foi razoável. Não foi nem mais fácil e nem mais difícil, mas foi um momento, um contexto que poderia ser adaptado agora a essa realidade que a gente vive [...] de trabalhar todos os dias da semana. Acho que a pandemia serviu pra isso, pra mostrar que é possível, sei lá, ter um trabalho mais flexível, a gente ir, sei lá, para um formato híbrido talvez, eu acho que [...] algumas aulas, que algumas atividades podem sim ser remotas.
Para os outros, o isolamento foi impossível ou insuportável. Ainda assim, muitos afirmaram evitar ao máximo sair de casa, indo apenas comprar itens essenciais. Independentemente do tempo isolados, a saída invariavelmente envolvia encontrar pequenos grupos de amigos: “Menos gente. Quatro ou cinco cabeças era muito” (E4). Novamente, aqui identificamos diferenças de percepção entre os entrevistados. Pessoas que afirmaram ter ficado muito tempo isoladas o fizeram durante um mês apenas, ao passo que outros que ficaram meses em casa consideram que fizeram pouco tempo de isolamento. De toda forma, a internet e as redes sociais foram essenciais para manter contatos e garantir o mínimo de distanciamento social, como resume E1:
Eu continuei mantendo contato com algumas pessoas por redes sociais, né, então amigos frequentavam, iam lá em casa, dentro dessas condições de passar álcool, tirar o chinelo, enfim. E as relações sexuais eram o aplicativo. Nessa época eu usava o aplicativo e conseguia assim, rapidamente, tipo assim, algum contato com algum vizinho, sempre alguém muito próximo para eu não ter que me deslocar tanto.
Além do distanciamento, outra prática de prevenção unânime nas entrevistas foi o uso de máscaras, ainda que sempre considerada incômoda, corroborando outros estudos sobre o tema66 Silva Sobrinho AL, Abramo HW, Villi, MC, organizadores. Jovens e saúde: revelações da pandemia no Brasil 2020-2022. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2022.,1717 Jacques N, Silveira MF, Hallal PC, Menezes AMB, Horta BL, Mesenburg MA, Hartwig FP, Barros AJD. Uso de máscara durante a pandemia de COVID-19 no Brasil: resultados do estudo EPICOVID19-BR. Cad Saude Publica 2022; 38(6):e00271921.. É interessante que o relato mais intenso nesse sentido foi o do E1, que afirmou: “Me sufocava bastante. Eu não conseguia falar muito, uma dificuldade para me comunicar.” Talvez o maior incômodo desse jovem se devesse ao fato de que ele passou mais tempo em casa, o que pode ter levado a uma dificuldade maior de adaptação justamente por usar menos. O comum era usar a máscara ao sair de casa e tirar assim que chegavam em algum lugar, a não ser que fossem obrigados a mantê-la, como E5, que ainda frequentou a escola usando máscara em 2021. Para E7, a prevenção mais “correta” era “lavar as mãos com sabonete” várias vezes ao dia. O uso de álcool em gel foi lembrado por menos entrevistados, mas principalmente associado ao transporte público.
Aliás, os jovens relataram que eles e as pessoas em geral usavam máscaras em transportes públicos, ainda que metade deles não tenha utilizado o serviço durante a pandemia. Nesse sentido, E2, que é comerciante, afirmou ter passado a usar mais carros de aplicativos justamente para evitar o ônibus, que ele julgava ter um alto risco de contágio. Essa questão nos permite refletir sobre outra especificidade desse público. Muitos dos entrevistados raramente saem da favela, tendo toda a sua vida dentro do Complexo da Maré, sobretudo os mais jovens. Como diziam frequentemente, eles são “nascidos e criados” na Maré. A escola, o trabalho, a família, as amizades, os namoros, o lazer e o serviço de saúde são todos na própria favela, de forma que há poucos motivos para sair. Por vezes, percebe-se um desconhecimento de outras regiões da cidade; um dos entrevistados mais jovens não conseguiu se lembrar dos nomes das principais avenidas do centro da cidade, por exemplo. Isso aumenta a sensação de que o Complexo é uma cidade dentro da cidade, de certa forma isolada dela. Essa pouca mobilidade urbana não é uma peculiaridade da Maré, mas uma realidade de muitas favelas cariocas 1818 Gonçalves MV, Malfitano APS. Jovens brasileiros em situação de pobreza: o cotidiano na favela. J Occup Sci 2022; 29(2):263-278..
Essa característica deve ser considerada ao pensarmos como os relatos de contágio são baixos apesar dos métodos de prevenção estarem aquém do indicado. Ainda que tenha havido circulação desses jovens mesmo durante períodos mais intensos da pandemia, a área na qual se circula é reduzida. Essa hipótese foi colocada em reação a uma fala corrente entre eles de que o dia a dia não mudou tanto na vizinhança. Por exemplo, falando sobre por que parou de usar máscaras, E2 explicou: “Aqui na favela quando eu entrava de máscara, eu era um alienígena. Aí depois eu acabei não usando mais aqui dentro. Eu tirava aqui dentro.” Já E4 descreveu o uso de máscara na vizinhança como tendo “fases”: “Uma hora usava, uma hora não usava, o distanciamento social também não era respeitado.” Vale relembrar que E10 se queixou por não ter tido a chance de se prevenir como ele achava necessário devido ao trabalho, que é com organização de eventos dentro da própria favela. Diversas vezes os entrevistados, durante ou depois das entrevistas, diziam que muito do cotidiano permaneceu inalterado durante todo o período. A fala mais crítica nesse sentido, que utilizamos no título desse artigo, vem de E3, quando perguntado sobre a prevenção ao seu redor, ele sintetiza: “Aqui na favela nada parou!”
A pandemia na favela
Essa percepção do ambiente foi muito explorada durante a entrevista e o que mais se repetiu foi a ideia de que as pessoas deveriam ter se protegido mais. Dois entrevistados (E6 e E7) consideraram que as pessoas agiram adequadamente; todos os outros traziam ao menos uma crítica, marcando muito a ausência das máscaras (E8). Por outro lado, E10 disse que seus vizinhos até usavam máscaras e pareciam se preocupar com a doença, mas continuaram circulando normalmente quando poderiam ficar em casa. Ao que parece, não havia uma resposta homogênea, ficando a cargo de cada um como lidar com a pandemia. “Elas fizeram o que era possível, normalmente. Alguns ficaram em casa, alguns não ligaram tanto, alguns usaram máscara, outros não...” (E5). Para E9, que é um profissional de saúde e defendia a importância da prevenção, apesar de admitir que as pessoas poderiam ter se cuidado mais, o resultado final foi “suficiente, porque, se fosse descuidado, o índice poderia ter sido maior”.
Algo que se repetiu foi a saída para espaços de lazer dentro da própria favela: “Aqui na Maré tem um espaço que o pessoal se reúne para ter uma rodinha de rap, aí a gente ia nesses espaços. A gente ia pra lá e cada um levava uma bebida, a gente ficava conversando, ouvindo uma música” (E4). Outra opção era encontrar amigos em casa e fazer festas: “Eu tive muitos vizinhos fazendo festa, assim, aproveitando esse momento que estava em casa pra lazer” (E1). Contudo, como vimos com E10, os bailes não pararam. Para E3, pai de um filho pequeno, isso era uma grande fonte de preocupação. Ele descreveu as pessoas da vizinhança como “muito relaxadas”, que “não pensavam nada sobre a pandemia”, agindo normalmente quando tudo estava “anormal”. “Aqui a gente não conseguia nem dormir. Tinha baile no meu lado [...] perto da Linha Amarela, tinha baile ali. Pra dormir era brabo” (E3).
Outros entrevistados concordaram, destacando esse como o principal motivo da doença se alastrar. “Muita gente agiu mal e [...] pegou a doença e veio a óbito. Eu conheço muita gente que chegou a falecer não respeitando as regras” (E4). Mais de uma vez, essa postura foi considerada um egoísmo, uma falta de solidariedade com a comunidade:
As pessoas saberem que tá tendo um problema, uma doença que alastrou [pelo] mundo, que levou muitas pessoas à morte e ter algumas que... não se importam muito, assim, “ah pra quê que eu vou usar máscara se eu tô aqui”, “pra que que eu vou usar máscara se eu vou só ali”. Tem que ter aquela empatia porque [...] teve muita gente que morreu! (E8)
Essa percepção foi repetida por E1, que considera que, caso as pessoas tivessem “seguido as recomendações [...] teria menos pessoas mortas hoje”. Falando sobre a variabilidade na resposta à doença, ele traz um outro elemento, bastante presente na resposta brasileira à pandemia: “Alguns usando [máscaras] e outros não, mas dentro desse entendimento que algumas pessoas não estavam ainda acreditando [...], achando que fosse uma gripezinha, e outras já tinham a consciência de que era algo sério”.
Com frequência fazia-se menção à ideia da “gripezinha”, sempre num tom crítico. Nesse sentido, E2 traz o relato mais contundente:
Eu perguntava pros meus amigos que estavam aqui, “como é que tá?”, “pô, a gente parou” [de trabalhar e circular pelas ruas]. Mas quando chegou Bolsonaro, em rede nacional, em horário de pico, chegou e falou que era só uma gripezinha, cara, sem brincadeira, na mesma semana já tinha barraquinha. Então, foi um negócio que marcou muito! Aí começou, “gripezinha”, “não, isso aí é cloroquina!”, “pô, então vou tomar cloroquina, vamos fazer isso porque a gente tá seguro. Vamos voltar aqui à nossa vida” [Então] teve muito a ver como a gente tava gerindo a coisa, né? Você tem um representante que tá ali, o tempo todo, falando que não é nada, isso acaba refletindo nas pessoas. É uma representatividade...
Apesar da fala de E2, que relatou conhecer muita gente que usou cloroquina e/ou ivermectina, o suposto “kit-COVID” não foi muito utilizado pelos entrevistados (apenas E3 afirmou ter tomado ivermectina, mas não sabe dizer por que ou quem o indicou). Na verdade, a maioria dos jovens sequer sabia do que se tratava e afirmava não ter ouvido falar dos medicamentos sem eficácia comprovada. A mesma blindagem a discursos negacionistas sobre a doença se estendeu às vacinas, já que todos tomaram ao menos duas doses (alguns entrevistados, mais ao final do campo, já tinham tomado as quatro doses).
Ao contrário do “kit-COVID”, os jovens sabiam que havia dúvidas pairando sobre as vacinas, mas eles mesmos não tiveram grandes questões em relação à segurança ou à eficácia dos imunizantes. E3, por exemplo, achou “uma bobeira” desconfiar das vacinas. E8 não conseguia entender o motivo da dúvida: “eu fui tranquilo, porque se a vacina tava ajudando muita gente, por que que eu não [tomaria]? Ainda mais numa questão de uma doença que era muito fácil de você pegar, e se tá tendo uma coisa que possa ajudar contra, por que que não vai fazer?”. Em alguns casos, nem se chegava a ter uma reflexão sobre tomar ou não, simplesmente seguindo a indicação de parentes, como E5: “Todo mundo tava tomando, e aí minha mãe falou, ‘toma pra poder se prevenir caso pegue’”, o que ele fez sem questionar.
Outros jovens tiveram dúvidas, mas se resolveram ao perceber que nada de ruim acontecia com as pessoas que tomavam. “No começo, eu tive medo porque... no caso da reação. Tinha gente falando que dava isso e aquilo, eu fiquei meio com o pé atrás de tomar, mas tomei” (E4). No mesmo sentido, E10 ficou inseguro, mas tomou porque “todo mundo tá tomando” e não aconteceu nada; o trabalho exigiu a vacina, mas ele afirmou veementemente que tomaria de toda forma, independentemente da obrigatoriedade.
A entrevista com E9 foi a que mais destoou nesse ponto. Vale ressaltar que o jovem trabalha em uma unidade de saúde, faz graduação em um curso da saúde e não relatou dúvidas pessoais sobre a vacina. Da mesma forma, conhecia, mas não usou, o “kit-COVID” e considerava que as informações mais confiáveis acerca da doença vêm de profissionais e órgãos ligados à saúde. Porém, era sempre reticente a criticar as pessoas que agiam fora desses parâmetros e ficava desconfortável de falar de posturas negacionistas. Ao ser perguntado sobre a cloroquina, afirmou secamente: “Não tenho uma opinião formalizada sobre isso”, interrompendo o assunto. Quanto às dúvidas acerca da vacinação, disse:
Bom, acredito que cada um sabe o que faz. Então, se ele não se sentiu confortável com a opção dele, uma escolha dele, mas... poderia gerar uma consequência. Pode ser que sim, pode ser que não, pode ser que tenha gerado uma consequência, pode ser que não tenha tido a consequência (E9).
Uma questão interessante é que os relatos confirmam o impacto positivo de uma campanha de vacinação coletiva. Jovens que estavam inseguros se decidiram ao ver que as vacinas não produziram os terríveis efeitos adversos divulgados pelos negacionistas. Perceberam também que pessoas que se contaminaram já com a imunização tiveram quadros mais leves. E algo que foi apresentado como prova definitiva da eficácia da vacinação foi a queda nos índices de mortalidade. Inclusive, isso era dito com um ar de obviedade.
Pensados em conjunto, os dados sobre a hesitação com a vacina e o uso do “kit-COVID” são muito positivos e nos levam a pensar as fontes de informação em saúde acessadas pelos jovens com outros olhos. Todos consideraram suficientes as informações às quais tiveram acesso, sentindo-se confiantes para tomar decisões frente à doença. Ainda que todos façam buscas ocasionais na internet ou nas redes sociais sobre questões de saúde, poucos o fazem de forma sistemática, e o mesmo hábito se manteve durante a pandemia. Especialmente sobre pesquisar sintomas na internet, vários jovens relataram evitar o “Dr. Google” (E2), pois “às vezes a gente escreve uma coisa e aparece outra. Dá muita preocupação” (E5); ou “você fala assim ‘ah, tô com dor de barriga’, lá no Google vai dizer que tô com câncer” (E8). Assim, as informações vindas dessas pesquisas aleatórias não geram muita confiança, o que se aplicava também às questões da pandemia. Porém, ainda que filtrando as respostas, a internet aparece como a principal fonte de informação sobre saúde nas entrevistas. Mas não a única.
Como a COVID-19 era um tema onipresente nos noticiários, muitos jovens relataram simplesmente assistir à televisão e aos noticiários para se informar. Por duas vezes, a família foi destacada como fonte para confirmar informações (os pais, no caso de E8) ou como as pessoas mais informadas em seus círculos sobre a doença (uma tia próxima, no caso de E10). E9 destacou ainda o papel do movimento social no combate à COVID-19: “O pessoal da ONG Redes [da Maré]. Teve a distribuição de cesta básica, álcool, itens de higiene, pra poder diminuir o índice.” Nesse processo, havia uma educação da população pela ONG. Instituições oficiais, como universidades e a Fiocruz, também foram citadas como forma de garantir a veracidade das informações:
Instituições que são reconhecidas, sabe, pelo Ministério da Saúde. A própria Fiocruz, né? As universidades estavam nessa época compartilhando muita informação. Então, eu sigo as páginas da UERJ, da UFRJ. Sempre lançavam alguma nota de... de quantidade de pessoas que estavam morrendo, sendo infectadas, então essas fontes assim... primárias de instituições. Eu acho que as informações que eram institucionais, eu dava uma certa credibilidade, né, e as que não, eu buscava para confirmar (E1).
Opiniões próximas a essas foram dadas também por E9, que enfatizou que profissionais de saúde são as pessoas com mais autoridade para falar sobre a doença; por E2, que mencionou o Ministério da Saúde e a Organização Mundial da Saúde como fontes de informação, além de afirmar que acompanhava profissionais da saúde que se destacaram nas redes sociais informando sobre a doença, como Átila Iamarino; e por E7, que acompanhava o médico Dráuzio Varella e afirmou seguir suas recomendações.
O que mais chama a atenção nessas percepções sobre a pandemia em sua vizinhança é como os jovens trouxeram um olhar crítico frente às atitudes dos outros, mas também às suas; por exemplo, E5 afirmou que “eu podia ter feito diferente. Podia ter ficado mais em casa, mas aí às vezes eu saía”. Os relatos de “furar” o isolamento eram envergonhados ou justificados como forma de evitar problemas mais graves, como E2 e o abuso de álcool ou E4 e a maconha. Por outro lado, eles se mostraram pouco vulneráveis aos discursos negacionistas. Mesmo com um uso massivo de redes sociais (citaram principalmente o Instagram, o WhatsApp e o YouTube), nas quais essas falas proliferaram, os jovens as desconhecem ou exibiram competência suficiente para diferenciar os discursos verdadeiros dos falsos.
Nas entrevistas, uma última pergunta era feita: “Na sua opinião, tem algo que mudou definitivamente com a pandemia?” Para metade dos entrevistados (E3, E5, E6, E9 e E10), nada mudou de forma definitiva, seja em si mesmo ou no mundo. Por outro lado, E4 considera que as opções de lazer e comércio foram muito afetadas, já que vários lugares fecharam e não reabriram nem foram substituídos. Já E8 acredita que houve um ganho nos hábitos sanitários da população que vai perdurar com o fim da pandemia: “Antigamente, se alguém espirrava ou tossia, era só “ah, tranquilo”, agora, se tá com máscara, já volta, pega o álcool, lava a mão, lava o braço... ou até dá um pulo pra trás assim pra falar com a pessoa [risos]”. E2 apontou outra consequência positiva:
Eu acho que a ciência ganhou muita força nesse período. Eu acho que se tem algo que desencadeou, acho que a ciência ganhou muita força porque mostrou, “não, olha, esse caminho não é assim. Não soluciona com cloroquina, soluciona com vacina”, e as pessoas viram a mudança acontecendo depois da vacina [...], acho que a ciência saiu muito valorizada, Fiocruz também saiu muito fortalecida e é importante isso!
Mudanças pessoais também foram destacadas, e vale refletir sobre duas posições antagônicas no campo. Para E1, a pandemia foi um momento de olhar para si e repensar a maneira como se vê no mundo e a relação com a própria saúde, de forma mais introspectiva: “Mudou essa vontade de estar só, do autocuidado, dessa coisa individualizada, sabe, mais pessoal, sua, eu acho que isso mudou bastante comigo”. Opostamente, E2 é muito crítico a esse discurso:
Na minha vida pessoal? Foi um período muito, muito ruim, muito, muito difícil, muito cruel! Então, eu não tenho nada de bom pra falar. “Ah, eu mudei. Foi bom pra caramba, eu fiz uma autoanálise”. [Podia] fazer uma autoanálise em outro período, enfim, não necessariamente numa pandemia que matou uma porrada de gente. Eu não gosto desse discurso romantizado [...], meu irmão, como é que tu vai falar isso? Tem seiscentas mil mortes! Nada! Só foi ruim!
Por fim, as percepções acerca do fim da pandemia também divergiram. No período do trabalho de campo, ainda estávamos oficialmente na pandemia, porém a COVID-19 estava relativamente controlada com a adesão à vacinação, de forma que, para muitas pessoas, a pandemia já tinha acabado na prática. Os jovens entrevistados, contudo, não corroboraram esse ponto de vista, considerando que o coronavírus ainda era um problema, apesar de fazerem um cálculo de que o risco diminuiu muito, principalmente em relação às mortes. Embora a maioria pensasse dessa forma, três jovens foram mais pessimistas: E6 considerou que a pandemia ainda iria durar por muito mais tempo, sem conseguir fazer uma previsão do fim; já para E5 e E7, o problema estava no surgimento de novas variantes, tido como inevitável. É interessante que ambos se referiram a essas possíveis novas variantes como “outra doença” (E7), afirmando que “toda hora [se] descobre uma doença nova”, que manteria o coronavírus presente no cotidiano. Apesar disso, se consideram mais aptos a lidar com esse risco renovado.
Considerações finais
Olhando os relatos em conjunto, é possível afirmar que as práticas de prevenção não foram as mais rígidas entre esses homens jovens. As máscaras eram usadas apenas ao se deslocar de um lugar para outro, o uso de álcool em gel era tido como opcional ou como uma camada extra de proteção (não essencial), as atividades cotidianas seguiram sem grandes alterações e o período de distanciamento social foi curto (quatro meses em média, no meio de 2020). Vale ressaltar que a realidade socioeconômica da favela não permitiu um isolamento maior, já que a maioria das pessoas na vizinhança não pôde parar de trabalhar ou migrar para modelos remotos. Nesse sentido, melhores condições de moradia e trabalho, associadas a uma maior escolaridade, trouxeram uma conscientização maior sobre a doença e levaram a períodos mais longos de isolamento. Por outro lado, tais fatores também produziram sentimentos mais pessimistas e afetaram a saúde mental dos entrevistados, o que, por sua vez, os levou a reduzir o distanciamento.
Quando pensamos sobre o cotidiano na favela durante os períodos mais graves da pandemia, o quadro é um pouco mais preocupante. Foram frequentes os relatos de que a vida continuou quase inalterada, que não houve um ganho coletivo de melhores hábitos sanitários e que as pessoas agiram de forma irresponsável durante todo o processo. Apesar disso, os entrevistados afirmaram não compactuar com essas atitudes, descrevendo a si próprios como mais atentos e mais responsáveis. Ainda que consideremos que os jovens possam ter adotado um discurso politicamente correto, apenas reproduzindo o que sabiam ser a “resposta certa” para as questões colocadas, muitas atitudes descritas confirmavam as práticas de cuidado e prevenção relatadas. O contágio entre a amostra, a pouca hesitação em relação à vacinação e a não adesão ao suposto “kit-COVID” são exemplos práticos do discurso feito nas entrevistas.
A sociabilidade muito focada na própria comunidade funcionou como um fator protetivo, diminuindo a área de circulação. Os trabalhos informais na favela, desempenhados por muitos dos entrevistados, acabaram cumprindo o mesmo papel, apesar da fragilidade desses contratos, levando alguns jovens a passar períodos sem nenhuma fonte de renda fixa. Por outro lado, não foram mencionados canais, perfis ou influenciadores famosos por discursos negacionistas entre os jovens entrevistados. Pelo contrário, quando provocados, esses discursos eram criticados ou ridicularizados, à exceção de E9, que, mesmo tendo outra prática, não ficou à vontade de trazer essa crítica. Isso nos leva a pensar que, ao contrário de um certo senso comum, esses homens jovens periféricos não são assim tão vulneráveis ao negacionismo nas redes, ainda tendo instituições oficiais, ONGs locais e profissionais de saúde como referências.
Por fim, destacamos que não basta apenas comemorarmos que os jovens souberam identificar fake news durante a pandemia. É preciso aproveitar um canal que funciona como a principal fonte de informações, não apenas sobre saúde, mas acerca de diversas dimensões da vida desses jovens. Utilizar as redes sociais da internet para ampliar o diálogo com esse público, por meio da divulgação científica e de uma comunicação mais contemporânea, é um imperativo para a educação em saúde deste público. Esta deve, portanto, ser a prioridade nas ações e práticas de informação e educação em saúde futuras.
Referências
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Financiamento Programa Inova Fiocruz.
Editores-chefes:
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
01 Dez 2023 -
Data do Fascículo
Dez 2023
Histórico
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Recebido
19 Jul 2023 -
Aceito
01 Ago 2023 -
Publicado
03 Ago 2023