Resumo
Trata-se de estudo sobre o racismo estrutural na formação e na ocupação de trabalhadoras e trabalhadores negros atuando na atenção primária à saúde (APS) no município do Rio de Janeiro, a partir da experiência de médicas negras. Realizou-se um estudo qualitativo, utilizando grupo focal, conduzido em novembro de 2022. Utilizou-se o interacionismo simbólico como referência para a interpretação relacionada às situações que compõem as experiências/vivências a partir do racismo. Os achados foram reunidos em dois eixos: manifestação do racismo estrutural e institucional no âmbito do SUS; e como o racismo atravessa os processos de trabalho em saúde e suas repercussões. Os resultados revelam uma continuidade das implicações do racismo desde a formação de médicas negras até o trabalho na APS, tornando-se um obstáculo na reorganização do processo de trabalho na perspectiva territorial de atenção à saúde. As participantes identificam o racismo institucional e estrutural na negligência da gestão, na violência do território e na vacância de médicos nas equipes desses territórios, limitando a oferta de um cuidado adequado. É necessário desvelar e aprofundar a compreensão do caráter estrutural do racismo da organização do trabalho em saúde, tendo como imagem-objetivo a saúde como direito.
Palavras-chave: Racismo sistêmico; Médicos; Atenção básica; Negros; Cuidado em saúde primária
Abstract
This study scrutinizes structural racism’s influence on the training and work of Black professionals in primary health care (PHC) in Rio de Janeiro, particularly focusing on the experiences of Black female physicians. Employing a qualitative approach via a Focus Group, conducted in November 2022, we adopted symbolic interactionism to interpret racism-related experiences. Our findings encompass two primary dimensions: the manifestation of structural and institutional racism within the Unified Health System (SUS), and how racism permeates health work processes and consequences. Results highlight enduring impacts, spanning education to PHC roles, hindering healthcare process recalibration. Participants identify institutional and structural racism, from managerial neglect to territorial violence and physician scarcity, constraining comprehensive care. It is crucial to unveil and grasp racism’s structural essence within healthcare, aligned with the vision of health as a fundamental right.
Key words: Systemic racism; Physicians; Primary care; Blacks; Primary health care
Introdução
Como debatido por Almeida1, “o racismo é sempre estrutural, ou seja, [...] ele é um elemento que integra a organização econômica e política da sociedade”. No Brasil, a maioria (56,1%) da população é negra - por definição do Instituto Brasileiro de Estatística (IBGE), são considerados negros aqueles que se autodeclaram pretos/as e pardos/as. No entanto, essa população vivencia as piores condições de vida, trabalho e de acesso aos direitos fundamentais.
Mesmo sendo a maior a força de trabalho, verificou-se no ano de 2018 que, enquanto 34,6% das pessoas ocupadas autodeclaradas brancas estavam em ocupações informais, entre pretos e pardos esse percentual era de 47,3%. Quando observado o quesito rendimento médio mensal, para pessoas ocupadas brancas ele foi de R$ 2.796,00, enquanto para pretos e pardos foi de R$ 1.608,00. Achados dessa natureza se reproduzem também nas taxas de analfabetismo predominante em negros e negras, nas iniquidades raciais nos resultados de saúde e no sistema prisional, que tem uma população carcerária majoritariamente negra, bem como em diversas outras esferas da sociabilidade2.
Sendo, portanto, o racismo produzido e reproduzido socialmente, ele está presente direta ou indiretamente no cotidiano das instituições, entre elas os serviços de saúde do Sistema Único de Saúde (SUS.) E, assim, está presente no desenvolvimento do trabalho em saúde e nos processos de formação dos profissionais de saúde. Werneck3 destaca como o racismo institucional se apresenta como um deslocamento da dimensão do indivíduo e se instala nas estruturas institucionais e organizativas de modo a realizar a subordinação dos sujeitos por sua raça/cor de pele.
O racismo é uma tecnologia de poder, segundo Almeida4. Ele fornece o sentido, a lógica e a tecnologia para a reprodução das formas de desigualdade e violência que estruturam a vida social. Sobre a formação brasileira e o caráter estrutural do racismo, o autor elucida ainda:
O pano de fundo que se movimenta e se transmuta historicamente são as ideologias raciais que estruturam as relações sociais no Brasil, sobre as quais se reafirmam os preconceitos e as práticas discriminatórias que dão materialidade ao racismo à “brasileira”. Este racismo, cuja existência material é reconhecida pela população, dialeticamente nega a existência dos agentes, pois, no Brasil, “ninguém é racista”. Desconhecidos esses agentes, nutre-se a impunidade, a invisibilidade, o silêncio e, consequentemente, maiores são as dificuldades para seu enfrentamento através de políticas públicas (p. 132).
Na esteira do pensamento de Almeida4, destacamos o Estado brasileiro como um agente ativo na aniquilação da população negra5-7. Por meio de um Estado apoiado nos interesses das elites nacionais e internacionais, desenvolve-se um processo histórico e social profundo de negação do reconhecimento do homem, da mulher e da criança negra como sujeitos de direito, e de apagamento da história e cultura africana orientados pela naturalização do negro e negra como indivíduos subordinados, subalternizados e coisificados6-9.
No Brasil, o estudante de medicina é majoritariamente branco, tanto na graduação quanto na residência10, sendo essa uma expressão da divisão racial presente na força de trabalho médica no país. Trata-se de um reflexo da exclusão da população negra de funções de maior reconhecimento e prestígio social e melhores remunerações, bem como representa uma chave de análise importante para apreender a produção de saúde nos espaços de cuidado a partir da experiência de trabalhadores que rompem esse perfil historicamente construído da figura do estudante de medicina e do médico no Brasil.
A histórica luta de movimentos negros organizados ao longo do século XX produziu tensionamento e compareceu fortemente em disputas políticas com vista à superação do cenário citado. E, em particular no campo da saúde a partir dos anos 1990, foi capaz de traçar um caminho que resultou na elaboração da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN)11 em 2009, elevada à condição de lei no capítulo do Direito à Saúde do Estatuto da Igualdade Racial em 201012. Enquanto lei, tornou-se obrigatório em todo o território nacional, entre outras questões, “a inclusão do conteúdo da saúde da população negra nos processos de formação e educação permanente dos trabalhadores da saúde” (p. 15)12.
Desse modo, foram sendo criadas brechas para avançar na capacidade dos trabalhadores para aprofundar a análise da situação de saúde vivenciada pela população negra. Com as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCNs) para o curso de medicina em 2014, torna-se obrigatória uma abordagem transversal que considere “sempre as dimensões da diversidade biológica, subjetiva, étnico-racial, de gênero, orientação sexual, socioeconômica, política, ambiental, cultural, ética e demais aspectos que compõem o espectro da diversidade humana” (p. 1-2)13.
Apesar dos avanços normativos formais, constituindo um cenário propício para novos marcos curriculares, pouco se sabe sobre como os processos formativos na saúde vêm incorporando as diretrizes das políticas voltadas à promoção da igualdade racial. Verifica-se o desconhecimento da Lei 10.639/03, que institui as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana (DCN ERER), e da PNSIPN, bem como a incipiente oferta de cursos, disciplinas e atividades curriculares que contemplem a saúde da população negra e a educação das relações raciais, conforme Monteiro et al.14
Embora com uma estrutura racista explícita do Estado e da sociedade brasileira, predomina no país como ideologia “o mito da democracia racial”. A partir desta, a explicação das diferenças étnico-raciais no Brasil parte de uma suposta harmonia racial, oculta os antagonismos, assim como não revela os agentes, os determinantes e as consequências do racismo que, além de espoliar mulheres negras e homens negros, privilegia a branquitude15.
Tomando como objeto de estudo as características do adoecer e do morrer, os pesquisadores Batista et al.16 desenvolveram o estudo intitulado “A cor da morte: causas de óbito segundo características de raça no estado de São Paulo, 1999 a 2001”. Conforme os autores, “Há uma morte branca que tem como causa as doenças, as quais, embora de diferentes tipos, não são mais que doenças. Há uma morte negra que não tem causa em doenças: são as causas externas, complicações da gravidez e parto, os transtornos mentais e as causas mal definidas [...]” (p. 630).
Para além da central contribuição aos avanços normativos, os movimentos sociais negros têm encampado uma luta permanente na produção de projetos e experiências antirracistas que repercutam na superação das iniquidades raciais nas condições de nascimento, vida, adoecimento e morte. O Coletivo NegreX - composto por estudantes de medicina e médicas/os negras/os - dispara esse processo na área da medicina de família e comunidade (MFC), a partir do acúmulo de experiências e produção teórico-prática em perspectiva crítica e emancipatória acerca dos efeitos do racismo na saúde e das especificidades clínicas e sociais da população negra17.
Abordar criticamente o racismo e o antirracismo na política de saúde exige que sejam incorporados na análise elementos que transpassam o cotidiano dos serviços de saúde também na perspectiva de negras e negros a partir do lugar de trabalhadores. Portanto, partindo do reconhecimento do racismo como estrutural e estruturante das relações sociais na particularidade brasileira, nosso objetivo neste artigo é analisar a experiências de formação e trabalho em saúde de médicas negras que atuam no SUS, especialmente na atenção primária à saúde, a partir de dois eixos de análise: a manifestação do racismo estrutural e institucional no âmbito do SUS e como o racismo atravessa os processos de trabalho em saúde e suas repercussões.
Metodologia
Trata-se de um estudo qualitativo, utilizando grupo focal (GF) realizado com três médicas que se autodeclaram negras, todas na faixa entre 30 e 35 anos, atuantes na APS no município do Rio de Janeiro em novembro de 2022. O roteiro contou com perguntas abertas enfocando as experiências/vivências dessas trabalhadoras negras e a questão do racismo no trabalho em saúde. Em relação à interpretação dos dados, buscamos no interacionismo simbólico18 as referências para a interpretação relacionada às situações que compõem as experiências/vivências a partir do racismo. Na análise de Kanter19 e Hall20, o interacionismo simbólico é, potencialmente, uma das abordagens mais adequadas para analisar processos de trajetórias e vivências, sobretudo para o estudo de mobilização de mudanças de opiniões, comportamentos sociais, expectativas, opressões e exigências sociais.
Assim, no momento de pré-análise, os depoimentos foram transcritos na íntegra, permitindo a leitura flutuante do acervo, após a qual efetuou-se a leitura de todo o material transcrito e procedeu-se à organização do material empírico. A segunda fase de codificação consistiu na análise detalhada do material selecionado e na codificação dos dados com base nas unidades temáticas, possibilitando a descrição dos conteúdos manifestos e latentes. Em seguida foi realizado o agrupamento a partir do internacionalismo simbólico18-20, para a interpretação relacionada às situações que compõem as experiências do racismo estrutural na formação e no trabalho de trabalhadoras e trabalhadores negros atuando na APS. Estas foram reunidas em dois eixos: (1) manifestação do racismo estrutural e institucional no âmbito do SUS e (2) processos de trabalho e saúde, racismo e suas repercussões.
O estudo atendeu integralmente às exigências éticas das resoluções CNS 466/2012 e CNS 510/2016, sendo aprovado com o registro CAAE 57976322.0.0000.5241. As falas das participantes foram identificadas por nomes de personalidades negras indicadas pelas entrevistadas, a fim de preservar seus anonimatos.
Resultados e discussão
Manifestação do racismo estrutural e institucional no âmbito do SUS
O racismo é (re)produtor de negação de direitos, do não acesso aos serviços de saúde, da produção da morte e da não efetivação do bem viver para os corpos negros, e isso vem sendo colocado através da produção e reprodução de uma dimensão tenebrosa, fúnebre, permeada por contextos de sofrimento, violência e racismo estrutural em suas mais diversas expressões na trajetória e experiência de profissionais e usuários negros na APS.
Por conseguinte, o reconhecimento do racismo como uma problemática de interesse público requer o envolvimento de toda a sociedade para reduzir a sua incidência em determinadas formas de existir. Nesse sentido, é a partir da organização política dos movimentos negros que será denunciado o racismo antinegro organizado e perpetrado pelo Estado e suas instituições21.
Para Almeida4, o racismo cotidiano se apresenta não apenas como a reatualização de um passado colonial, mas como uma realidade cruel, que se espraia no interior das relações sociais produzindo uma série de discriminações estruturadas, constituindo-se como um processo pelo qual as circunstâncias de privilégio se diferenciam entre os grupos raciais e se manifestam através dos espaços econômicos, políticos e institucionais.
Considerar o racismo como estrutural significa pensá-lo nas múltiplas dimensões que estruturam a sociedade e como ele se manifesta na sociabilidade, na naturalização das desigualdades e na violência como componente da vida social contemporânea4.
O racismo estrutural perpassa a concepção de mundo dos sujeitos e estrutura as relações institucionais, sendo reproduzido nos diversos espaços, inclusive nos serviços da APS e na formação profissional. Por isso, para garantirmos a saúde como um direito de todas as pessoas, sobretudo dos corpos negros, é premente que o SUS passe a considerar a questão racial por meio das ações de promoção, proteção e recuperação dos sujeitos.
O racismo é produzido e reproduzido socialmente, assim, está presente direta ou indiretamente no cotidiano das instituições, entre elas as instituições de cuidado e formação em saúde, expressando-se em distinções na atenção à saúde, iniquidades de acesso aos serviços e diferença nos cuidados em doenças prevalentes em pessoas negras. “Então o racismo ele existe no SUS, ele está na estrutura do SUS, e acaba que o nosso trabalho ele mantém muito dessa estrutura” (Tituba), assim como na formação dos profissionais de saúde, “eu acho que para além da gente não ter tido, a gente ainda teve que ser quem fez o conteúdo acontecer. Então, lá na universidade, juntamos inclusive as três aqui para fazer um espaço sobre a saúde da população negra” (Conceição).
Os relatos das participantes sugerem que a formação médica não tem contribuído efetivamente para a redução das iniquidades raciais em saúde. As instituições de ensino superior, além de não conhecerem nem incorporarem os objetivos da PNSIPN nas ementas das disciplinas, acabam por reproduzir o pensamento do usuário universal. Isso revela a (in)visibilidade histórica quanto à diversidade racial dos usuários do SUS, desconsiderando a equidade nos serviços, impossibilitando uma discussão sobre o cuidado amplo e integrado e dificultando a redução dos impactos do racismo em suas vidas. Aliado a isso, é necessário reforçar que o campo da saúde, a rigor, tem uma perspectiva formativa extremamente tecnicista e biologicista, caracterizada pela centralidade na doença e não no sujeito e sua interação com as estruturas sociais. Trata-se de uma contradição insustentável frente à concepção de saúde como expressão dos modos como as pessoas vivem e trabalham que é assumida no escopo político-sanitário do SUS.
Ao mesmo tempo, quando as participantes informam que foram as responsáveis por viabilizarem a discussão sobre a saúde da população negra, corroboram a necessidade de reflexão acerca da qualificação dos profissionais de saúde para uma atuação convergente com a saúde como expressão dos modos de vida e trabalho, sobre o acolhimento aos usuários negros e, mais particularmente, acerca da busca pela integralidade do cuidado. Os relatos trazem à tona o caráter de uma iniciativa de resistência e emancipatória, porém localizada e que responsabiliza um grupo de mulheres negras pela resposta a um problema social de elevada complexidade, em vez de comparecer como um movimento institucional de gestão da educação na saúde e de reforma curricular em perspectiva antirracista.
Esses aspectos denunciam as lacunas na formação médica e para um processo de ensino-aprendizado integral, conforme preconizado pelas Diretrizes Curriculares Nacionais13, principalmente no que concerne às discussões teóricas e ao desenvolvimento de habilidades e competências do profissional médico para a assistência integral à promoção, à proteção e à recuperação da saúde da população negra22.
Esse contexto de apagamento das questões étnico-raciais da formação em saúde compõe um mosaico histórico mais amplo, com pontos de contato e intersecções entre teorias raciais e intervenções em saúde, uma vez que políticas de eugenia tendem a buscar apoio em teorias racistas embasadas em saberes médico-científicos. Foi assim, por exemplo, que a medicina teve contribuição importante na construção do racismo científico como portador de discurso capaz de influenciar as mais diversas esferas da sociabilidade3.
Apesar da ausência de componentes curriculares no curso de medicina que abordem diretamente a temática de saúde da população negra, as entrevistadas informaram a iniciativa de criação do Coletivo NegreX, de base nacional, fundado em 2017. Uma de suas principais intervenções educativas é a realização de Seminários sobre Saúde da População Negra, nos quais são promovidas oficinas em parceria com os docentes do eixo de medicina de família e comunidade e discussões sobre a saúde da população negra.
As oficinas são oferecidas por estudantes do coletivo de diferentes períodos da graduação para estudantes de medicina que cursam as disciplinas de Assistência Integral à Saúde (3º período), Psicologia Médica (6º período) e Internato Integrado de Medicina de Família e Comunidade e Saúde Mental (9º período). Há um momento de realização em cada um desses períodos com conteúdos programáticos e dinâmicas diferenciadas entre si. Busca-se, com essa iniciativa, dialogar com os conteúdos da disciplina e com os desafios específicos do que significaria uma prática clínica com olhar racializado no contexto daquele período de formação23.
Eurico24 sinaliza que a democratização do acesso da população negra às políticas públicas exige uma reflexão sobre o conceito de racismo institucional, pois quando ele perpassa o cotidiano das instituições, a situação torna-se ainda mais complexa e cristalizada. Para a autora, ele se expressa no acesso à educação, ao mercado de trabalho, na criação e implantação de políticas públicas que desconsideram as especificidades raciais e na reprodução de práticas discriminatórias arraigadas nas instituições. Werneck3 aponta que o racismo institucional se apresenta como um deslocamento da dimensão do indivíduo e se instala nas estruturas institucionais e organizativas de modo a realizar a subordinação dos sujeitos por sua raça/cor de pele.
Para identificar as expressões do racismo institucional, optamos por utilizar as análises desenvolvidas por Eurico24 para qualificação das duas dimensões interdependentes e correlacionadas do racismo institucional: “a político-programática, e a das relações interpessoais” (p. 299). Em relação à dimensão político-programática, a autora informa que ela compreende as ações que impedem a formulação, implementação e avaliação de políticas públicas eficientes, eficazes e efetivas no enfrentamento ao racismo, bem como a visibilidade do racismo nas práticas cotidianas e nas rotinas administrativas. Por sua vez, a dimensão das relações interpessoais abrange as relações estabelecidas entre gestores/as e trabalhadores/as, entre trabalhadoras e trabalhadores e entre trabalhador/a e usuário/a, sempre pautadas em atitudes discriminatórias. “É aquilo que a gente vê aí nas entrelinhas, né? Está nas equipes das áreas mais vulneráveis, com maior vacância de médico, com menores recursos para estimular a fixação de médico naquelas unidades” (Conceição). Esse comportamento é resultado do racismo institucional.
A violência obstétrica relatada por uma das participantes do GF também qualifica o racismo institucional vivenciado no âmbito da APS.
[...] eu atendi uma paciente essa semana, sofreu violência obstétrica e de gênero. Aí liga para a ouvidoria, mas, assim, se ela engravidar de novo, a maternidade de referência dela continua a mesma, aí, onde que eu estou mudando alguma estrutura com relação a isso? E aí eu quero saber o quê que vai acontecer com a reclamação que ela fez, vão mandar para mim para dar continuidade a alguma investigação, alguma coisa? Não, não vão (Luana Tereza).
Diante do exposto, é possível supor a existência do viés racial na atenção às mulheres negras em período gravídico puerperal, sendo necessário reconhecer o valor do quesito raça/cor de pele para a análise dos encaminhamentos prestados às denúncias feitas pelas mulheres negras sobre violência obstétrica na APS.
Nesses termos, para Assis25, a violência obstétrica precisa ser entendida como a apropriação do corpo e dos processos reprodutivos das mulheres por profissionais de saúde, e se expressa por relações desumanizadas, por abuso de medicalização e pela patologização dos processos naturais, limitando a autonomia das mulheres e sua capacidade de decidir. A autora é enfática ao explicar que os efeitos da violência obstétrica com viés racial tendem a apresentar contornos mais intensos.
O SUS, em seu caráter universal, orientado pela APS como primeira instância de contato preferencial, ordenadora da rede de atenção e coordenadora do cuidado, tem a população negra como a maioria dos seus usuários. Configura-se aí um espaço privilegiado para o exercício e a construção de consciência racial como instrumento crítico reflexivo para a produção de saúde. Este podendo atuar sobre as determinações e implicações dos processos de trabalho em saúde, tendo, portanto, potencial capacidade de qualificação em sentido crítico das práticas compartilhadas entre usuários, trabalhadores em função assistencial e trabalhadores em função gestora; mas também podendo inflexionar os processos de formação para/no trabalho no SUS, mais precisamente na relação entre estudantes, trabalhadores, usuários e projetos político-sanitário-pedagógicos das organizações de ensino e serviços de saúde.
Processos de trabalho e saúde, racismo e suas repercussões
Partimos também do pressuposto de que o trabalho em saúde é uma atividade essencial à vida de homens e mulheres e inscreve-se na esfera de produção não material26. Entendemos que a finalidade do trabalho em saúde realizado no SUS é o atendimento às necessidades de saúde, entendidas como necessidades que se constituem social e historicamente e se manifestam nas dimensões individual e/ou coletiva.
Nessa lógica, pensar o trabalho em saúde em uma perspectiva social, história e crítica requer refletir sobre os movimentos desse processo, entre eles o racismo em todas as suas dimensões, e as experiências de trabalhadoras e trabalhadores negros no SUS, como abordado em um dos trechos “[...] mesmo que a gente seja a mão que cuida, né, a estrutura está dada para as coisas não funcionarem, tem que ser um esforço absurdo de você conseguir dar mais atenção a uma criança negra [...]” (Tituba).
Em termos de totalidade, a saúde é integrante de processos sociais mais amplos que se correlacionam. Isso significa que a política de saúde brasileira, e no seu interior o trabalho e a formação em saúde, é atravessada por interesses, construções históricas, sociais e subjetivas que operam no cotidiano das instituições, sejam elas de formação ou de trabalho em saúde. Em nossa concepção, pensar o racismo, a formação e o trabalho em saúde implica a compreensão de que essas dimensões - históricas, sociais e subjetivas - se entrecruzam e se apresentam no cotidiano da política de saúde, sendo assim irrealizável a análise do tema sem entendê-lo em movimento dialético. Na esteira das elaborações de Kosik27, “a dialética é o pensamento crítico que se propõe a compreender a ‘coisa em si’ e sistematicamente se pergunta como é possível chegar à compreensão da realidade. Por isso é o oposto da sistematização doutrinária ou da romantização das representações comuns” (p. 20).
Assim, mesmo diante de médicas negras conscientes de sua responsabilidade racial, o caráter estrutural do racismo é capaz de desmobilizar iniciativas individuais, colocando em risco a saúde dessas próprias trabalhadoras, forçando-as a querer abandonar esses espaços.
A dialética aqui comparece quando localizamos o trabalho em saúde como trabalho coletivo em saúde, pois se explicita na construção e nos sentidos da política de saúde, e também na interação de grandes grupos de trabalhadoras e trabalhadores, como os que representam as chamadas profissões da área da saúde (conforme Resolução nº 287/1998 do CNS, são elas: biomedicina, ciências biológicas, educação física, enfermagem, farmácia, fisioterapia, fonoaudiologia, medicina, medicina veterinária, nutrição, odontologia, psicologia, serviço social e terapia ocupacional), assim como, entre muitos outros, os trabalhadores e trabalhadoras com formação técnica e os que executam atividades predominantemente administrativas e que não necessariamente interagem com os usuários. Desse modo, as entrevistadas contrapõem o esforço individual chamando atenção para a responsabilização da gestão: “Eu penso que, assim, é muito importante a gente ter essas falas vindo da gestão, porque senão fica uma fala só da nossa luta individual” (Conceição).
Assim, importa destacar que o trabalho em saúde se realiza em atividades no âmbito do planejamento e da gestão, na educação em saúde e na assistência propriamente dita. Podemos, ainda, escrutinar o trabalho em saúde pela via da articulação dos diferentes níveis de atenção, a partir, por exemplo, das particularidades da atuação no âmbito da atenção primária em saúde e das chamada média ou alta complexidade do SUS. Essas articulações e tantas outras estão postas no cotidiano do trabalho em saúde28.
As profissões e as ocupações que atuam na saúde estão inseridas na divisão social e técnica do trabalho, constituindo-se como práticas socialmente úteis que contribuem para o processo de reprodução social. O campo da saúde se apresenta como o lócus onde essas práticas se desenvolvem a partir das mediações estabelecidas com a sociedade, com a noção de direitos sociais, com a política de saúde, com as instituições e serviços, com as demais trabalhadoras e trabalhadores e com os usuários e usuárias. Dessa forma, os próprios trabalhos da saúde compõem uma totalidade complexa formada por diversos elementos, entre eles o racismo estrutural, que se reflete em particularidades nas experiências de profissionais de saúde negros e negras a respeito dos processos de trabalho.
Como é que a gestão consegue fazer uma equipe funcionar, que tem que dar conta de absolutamente qualquer coisa. Só que a gente está diante de uma situação que não conta, a conta não fecha, então assim: eu sei que os indicadores são piores na mulher negra, e não faz nada de diferente (Tituba).
Apesar dos avanços de ordem jurídico legal no campo da saúde, como a instituição da PNSIPN/2009, que tem como objetivo geral “promover a saúde integral da população negra, priorizando a redução das desigualdades étnico-raciais, o combate ao racismo e à discriminação nas instituições e serviços do SUS”, o que se observa são avanços pequenos frente à realidade social e às necessidades de saúde da população negra.
Ao observarmos os indicadores sociais brasileiros, em qualquer campo, relacionados às condições de vida, trabalho e acesso a direitos sociais, há expressão da desigualdade racial no país.
A gente sabe que as crianças negras também morrem mais, inclusive de causa de doenças infecto parasitárias, diarreia. Mas o quê que a gente faz de diferente em relação a essas crianças? Não tem. E no fim das contas cai no colo também de quem tá ali da equipe, pontuando: a vigilância tá de olho nisso também? É só atenção primária que tem que ficar ali resolvendo? Acho que a gente pode sinalizar, mas a vigilância tem que estar atenta a isso (Tituba).
Esse é um fato que pressiona e questiona a finalidade do trabalho em saúde ao colocar a produção de saúde como imagem-objetivo que organiza todo o processo de trabalho:
Como que você fala que vai caminhar, vai andar, vai fazer uma yoga, vai fazer um relaxamento, aonde? Na boca de fumo? Ela vai sair, e o campo que ela tem ali para poder fazer uma atividade física é o campo em que várias pessoas já foram assassinadas, é na entrada onde a polícia vai entrar (Conceição).
Relatório do Centro de Estudos Segurança e Cidadania intitulado “Saúde na linha de tiro: impactos da guerra às drogas sobre a saúde no Rio de Janeiro”29, publicado em 2023, aponta que as operações policiais em favelas, sob a justificativa de “guerra as drogas”, é um obstáculo para o acesso regular a serviços de saúde de moradores dessas localidades, devido aos sucessivos fechamentos dos estabelecimentos de saúde em função de tiroteios. Tal problema, inserido num arco de limitações de circulação de moradores e trabalhadores de saúde para trabalho, estudos, lazer e outros fazeres da vida cotidiana, tem como consequência o aumento do risco e da prevalência de hipertensão arterial, insônia prolongada, depressão e ansiedade. Além disso, o aumento dos custos monetários individuais, com perda de renda dos moradores e no nível dos serviços de saúde, com a interrupção dos serviços e dos tratamentos em saúde, e das medicações para tratamento e insônia, por exemplo.
Assim, nesses territórios de maioria negra, marcados pela violência racial, sob forma predominante de conflitos bélicos, a falta de condições de trabalho e, portanto, a extrema dificuldade de ofertar cuidado adequado, bem como o adoecimento dessas profissionais, são elementos indicadores do racismo estrutural e fazem parte da experiência laboral cotidiana destas médicas negras.
Ou seja, não são eventos excepcionais, e, somados à falta de ações de enfrentamento da gestão em saúde, acabam por estabelecer limites ao trabalho. Assim, estrutura-se a reorganização do processo de trabalho em saúde na APS, favorecendo a troca da lógica territorial do cuidado para a lógica de demandas, baseadas em queixas-condutas, cada vez mais restrita ao interior dos estabelecimentos de saúde.
Considerações finais
O estudo demonstrou como o racismo atravessa a experiência de trabalho em saúde de mulheres negras, médicas e trabalhadoras de equipes de saúde da família na atenção primária à saúde do município do Rio de Janeiro em áreas de favela, territórios majoritariamente negros. Desde a negação de conteúdos antirracistas na saúde em seus respectivos processos formativos, passando pela organização dos fluxos assistenciais, até as péssimas condições de desenvolvimento do trabalho, foram elementos identificados pelas participantes como resultado do racismo institucional e estrutural atuando no SUS. Também ficaram evidentes os limites da ação individual isolada na tentativa de atuar frente às consequências do racismo no cuidado em saúde, uma vez que a complexidade dessas questões demanda ações compromissadas, intersetoriais e em todos os níveis de gestão da saúde para enfrentá-las.
Como limite, a investigação não se deteve em uma análise profunda dos efeitos da interseccionalidade de gênero e raça nas experiências trabalho; nem discutiu a percepção das participantes sobre as relações entre profissionais, entre usuários e entre usuários e profissionais negros e brancos, ou seja, nas expressões interpessoais do racismo em suas vivências.
Entretanto, ficou evidenciado que as experiências aqui tratadas, ainda que não possam ser generalizadas, revelam sentidos produzidos pelo racismo para o desenvolvimento do trabalho em saúde na relação com os sujeitos envolvidos.
Assim, é preciso considerar que o racismo - como elemento promotor de adoecimento, combinando momentos explícitos e implícitos, enraizado nas estruturas de gestão, na cultura institucional e na naturalização da violência racial - se torna o principal obstáculo na reorganização do processo de trabalho em saúde, sobretudo na APS em territórios racializados.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
04 Mar 2024 -
Data do Fascículo
Mar 2024
Histórico
-
Recebido
17 Maio 2023 -
Aceito
30 Out 2023 -
Publicado
01 Nov 2023