Open-access “Mãe é só uma!”: violência institucional nas experiências de dupla maternidade na atenção à saúde

Resumo

Objetivou-se compreender as experiências de dupla maternidade na atenção à saúde durante o pré-natal, parto e puerpério a partir de um método qualitativo, utilizando entrevistas individuais on-line e grupo focal on-line assíncrono com mulheres cisgêneros, a maioria em relacionamentos homoafetivos. Os resultados revelaram a marginalização das vivências parentais dessas mulheres, destacando a violência institucional presente nos serviços de saúde brasileiros, sendo apresentados em dois eixos temáticos: 1) Cisheteronormatividade e seu impacto nas experiências de dupla maternidade e 2) Violência institucional nos serviços de saúde: da curiosidade à LGBTQIA+fobia. Conclui-se que a cisheteronormatividade prejudica a atenção à saúde para essas experiências, especialmente ao invisibilizar a mãe não gestante, destacando a urgência de capacitar profissionais de saúde, repensar e desafiar as normas cisgênero e heterossexuais e promover políticas inclusivas para garantir cuidados equitativos e combater a violência institucional.

Palavras-chave: Minorias Sexuais e de Gênero; Normas de gênero; Parentalidade; Saúde sexual e reprodutiva; Política de saúde

Abstract

The objective was to understand experiences of double motherhood during antenatal, childbirth and postpartum healthcare, using a qualitative method involving individual online interviews and asynchronous, online focus groups of cisgender women, mostly in same-sex relationships. The results revealed how these women’s experiences of parenting were marginalised, highlighting institutional violence in Brazilian healthcare services, which are presented here in two thematic dimensions: 1) Cisheteronormativity and its impact on experiences of double motherhood; and 2) Institutional violence in healthcare services: from curiosity to LGBTQIA+phobia. It was concluded that cisheteronormativity hinders healthcare for these experiences, especially by rendering the non-gestational mother invisible. This underscores the urgent need to train healthcare personnel, rethink and challenge cisgender and heterosexual norms and promote inclusive policies to ensure equitable care and combat institutional violence.

Key words: Sexual and Gender Minorities; Gender norms; Kinship; Sexual and reproductive health; Healthcare policy

Introdução

Apesar das leis que garantem a universalidade no acesso ao Sistema Único de Saúde (SUS) no Brasil1,2, a discriminação a alguns grupos populacionais impede o acesso igualitário à saúde. Grupos minoritários, como a população LGBTQIA+ que desafiam normas tradicionais de gênero e sexualidade, enfrentam barreiras como estigma e preconceito, levando à evasão dos serviços de saúde e resultando em desigualdades no acesso3-5.

No Brasil, o movimento LGBTQIA+ conquistou direitos ao longo dos anos mediante políticas públicas, destacando-se o Programa Brasil Sem Homofobia em 2004, que visava combater a violência e a discriminação3, a Política Nacional de Saúde da Mulher criada em 2004, que reconheceu as especificidades das mulheres lésbicas6 e em 2011, a Política Nacional de Saúde Integral de LGBT surgiu com o objetivo de combater a discriminação e a violência e garantir o acesso igualitário à saúde no SUS7.

As parentalidades não tradicionais enfrentam inúmeros desafios no cenário nacional e internacional, em uma constante oscilação entre a conquista e a perda de direitos. No Brasil, o Projeto de Lei nº 580/2007, proposto por Clodovil Hernandes, visava modificar a Lei nº 10.406/2002, que regula o casamento civil no país, para incluir a união civil homoafetiva. No entanto, em agosto de 2023, a ala conservadora se opôs a este projeto de lei, baseando-se na interpretação do artigo 226 da Constituição, que estipula que a sociedade conjugal ocorre entre homem e mulher. Paralelamente, o Projeto de Lei nº 5.167/2009, apoiado pela ala conservadora do Congresso Nacional8, busca impedir que relações entre pessoas do mesmo sexo sejam equiparadas ao casamento ou à entidade familiar. Além disso, há oito outros projetos de lei relacionados à união homoafetiva em discussão9.

A partir da narrativa em defesa das “famílias tradicionais”, desenvolvidas por governos de extrema direita e neoconservadores, a criminalização de pessoas que não se identificam com a heteronormatividade e a legitimação da LGBTQIA+fobia se alastrou ao cenário mundial. Em 2023, sob o governo ultraconservador de Giorgia Meloni na Itália, começou-se a remover o nome de mães não biológicas das certidões de nascimento de crianças concebidas por inseminação artificial no exterior, deixando apenas os nomes das mães biológicas nos documentos10.

Nos Estados Unidos, em 2022, foram aprovadas 16 leis estaduais contra a população LGBTQIA+, e em fevereiro de 2023, a participação de drag queens em eventos públicos com crianças foi proibida no estado do Tennessee. Na Flórida, a discussão nas escolas sobre temas relacionados à identidade de gênero e à orientação sexual foi proibida pelo governo11.

Apesar das fortes críticas das organizações e governos internacionais, na Uganda, em maio de 2023, a lei que estabelece uma pena de 20 anos de prisão para pessoas que “permitem” a homossexualidade e a pena de morte para alguns atos cometidos por pessoas do mesmo sexo foi aprovada. A lei está entre as mais severas do mundo no que tange aos retrocessos legais às conquistas de pessoas LGBTQIA+12.

Os eventos destacam o papel significativo da cisheteronormatividade nas esferas políticas, criando obstáculos para os direitos das pessoas LGBTQIA+, especialmente na saúde. Entende-se por cisheteronormatividade, um conjunto de normas político-sociais que impõe padrões relacionados à cisgeneridade e heterossexualidade, gerando barreiras no acesso à saúde5.

A cisheteronormatividade conflita com os princípios de universalidade e integralidade do SUS, excluindo aqueles que não se alinham aos padrões de gênero e sexualidade13. Propõe-se discutir a violência institucional nos serviços de saúde, expressa por normas e procedimentos que sustentam a ordem vigente. Essa violência, institucionalizada, se caracteriza pela negligência às necessidades individuais, impondo restrições injustas e frequentemente ignorando ou prejudicando os direitos e experiências das pessoas14.

As vivências de parentalidade entre mulheres cis lésbicas e bissexuais em relacionamentos homoafetivos, autodenominadas “dupla maternidade” nas redes sociais, são impactadas por diversas barreiras decorrentes da cisheteronormatividade. A “dupla maternidade” refere-se à experiência compartilhada de funções maternas e parentais por duas mulheres que decidem estabelecer uma filiação conjunta, seja por adoção, técnicas de reprodução assistida (TRA) ou quando uma ou ambas têm filhos de relacionamentos heterossexuais anteriores. No contexto jurídico, o termo representa o direito de ambas as mães constarem no registro de nascimento da criança. Esse reconhecimento resulta de reivindicações judiciais de casais que asseguraram esse direito, estabelecendo precedentes para outros casais15.

Juridicamente no Brasil, quando uma ou ambas as mulheres na dupla maternidade têm filhos de relacionamentos heterossexuais anteriores, não há automaticamente o reconhecimento do direito de ambas constarem no registro de nascimento. Essa complexidade legal se configura como uma barreira adicional para casais homoafetivos, frequentemente exigindo ações judiciais para oficializar a dupla maternidade. Este desafio destaca a necessidade de reformas legais e maior reconhecimento das diversas formas de parentalidade em conformidade com as realidades contemporâneas.

Nesta direção, o objetivo deste trabalho foi compreender as experiências de dupla maternidade na atenção à saúde durante o pré-natal, parto e puerpério. Este estudo oferece uma contribuição à saúde coletiva para pensar as violências institucionais nos serviços de saúde por meio da apresentação de dados de uma pesquisa de mestrado que investigou as experiências de parentalidades de mulheres cisgênero lésbicas e bissexuais que passaram pelo processo gravídico-puerperal.

Métodos

Trata-se de um estudo qualitativo com campo de pesquisa on-line desde sua concepção, devido ao fato de facilitar o acesso às mulheres participantes do estudo. O recrutamento das participantes aconteceu a partir da utilização da hashtag #duplamaternidade no Instagram para a identificação de casais de lésbicas e/ou bissexuais. É conhecido que esta plataforma utiliza as hashtags como forma de visibilidade e a hashtag #duplamaternidade estava sendo amplamente utilizada por mulheres bissexuais e lésbicas para compartilhar experiências na maternidade com outra mulher, assim, mães que a usaram foram convidadas para a pesquisa.

A coleta de dados ocorreu de forma assíncrona de julho de 2019 a março de 2020, envolvendo nove mulheres com diversidade geográfica e sociodemográfica. O número de participantes seguiu a saturação teórica, conforme descrito por Fontanella et al.16. Esse método interrompe a inclusão de novos participantes quando há repetição significativa das informações, indicando a saturação teórica, atingida quando mais dados não proporcionam insights substancialmente diferentes. Este critério assegura representatividade adequada e profundidade na análise das experiências e perspectivas dos participantes.

A coleta de dados utilizou o WhatsApp, visando acomodar as responsabilidades parentais e profissionais das participantes, tornando a participação mais acessível. Durante a pandemia da COVID-19, as atividades escolares remotas sobrecarregaram as mulheres, levando à coleta assíncrona. A escolha desse método foi influenciada pela impossibilidade de realizar a primeira entrevista de forma síncrona devido a problemas de conexão e interrupções. O método assíncrono revelou-se eficaz, permitindo que as participantes contribuíssem nos horários convenientes, sem a presença simultânea do mediador.

A partir disso, os dados foram obtidos em dois momentos: 1) entrevistas individuais abertas on-line e assíncronas; e 2) grupo focal on-line assíncrono. No que se refere às entrevistas, estas foram realizadas a partir de uma pergunta disparadora, feita à todas as participantes: “comente sua trajetória de mulher lésbica/bissexual em seu processo de gestação e parto”. As respostas consistiram em experiências vividas pelas participantes e as demais perguntas foram formuladas de acordo com os temas trazidos por elas, abrangendo áreas como “família”, “saúde”, “trabalho” e “educação”.

Observou-se que, na maioria das vezes, as interlocutoras respondiam horas ou até mesmo dias depois, muitas vezes pedindo desculpas pela demora e destacando a limitação de tempo devido às demandas das atividades parentais e profissionais.

Como complemento às entrevistas, realizou-se um grupo focal on-line entre as participantes para explorar temas não abordados individualmente. A segunda fase de coleta de dados, em maio de 2020, consistiu em um grupo focal assíncrono no WhatsApp devido à indisponibilidade decorrente das demandas da maternidade, inviabilizando encontros síncronos. Embora todas as participantes tenham sido convidadas, apenas seis aceitaram participar, três informaram indisponibilidade.

O grupo focal on-line assíncrono envolveu duas perguntas-chave: “Comentem sobre a dupla maternidade” e “Na percepção de vocês, a sociedade assegura privilégios às mulheres que gestam em comparação com as que não gestam?”. Essas perguntas permitiram o compartilhamento espontâneo de informações, incluindo imagens, reações com emojis e interações por meio de mensagens.

É relevante observar que a opção pelo método assíncrono para este grupo reflete uma tendência contemporânea em pesquisas, proporcionando flexibilidade e superando desafios logísticos. Este formato foi adotado não apenas em nossa pesquisa, mas também em outras investigações com o mesmo público-alvo17,18, inclusive para grupos focais on-line. Todos os dados gerados, incluindo áudios e mensagens de texto, foram registrados e transcritos integralmente, assegurando uma análise abrangente dessas interações.

Destaca-se que a abordagem escolhida para as coletas de dados apresenta ineditismo, uma vez que foi elaborada a partir das responsabilidades e necessidades parentais e profissionais das participantes, considerando que fazem parte de um grupo que apresenta restrições de tempo - devido aos cuidados com os/as filhos/as - para participar de estudos na área. A partir de tais características, trata-se de grupo de difícil alcance no que tange aos métodos tradicionais de investigação, os quais, frequentemente, necessitam de deslocamento das interlocutoras ou participação síncrona, em casos de pesquisas na internet.

Os dados transcritos foram submetidos à análise de conteúdo temática, utilizada para levantar indicadores que possibilitam inferir como os dados foram produzidos e coletados19. A análise de conteúdo temática, conforme delineada por Minayo19, compreendeu neste estudo três fases distintas. Na primeira etapa, foram selecionados os conteúdos, revisados os objetivos e hipóteses iniciais da pesquisa e formulados indicadores para orientar a interpretação dos dados. A segunda fase envolveu a exploração do material, em que a equipe identificou categorias que consistiam em palavras ou expressões significativas. A terceira fase abrangeu o tratamento dos resultados e sua interpretação.

O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos, com o parecer número 3.853.350. O Termo de Consentimento Livre e Esclarecido foi assinado pelas participantes. Os nomes pessoais que aparecem nos excertos foram alterados por nomes fictícios, a fim de proteger as identidades das interlocutoras.

Resultados e discussão

Participaram deste estudo nove mulheres cisgêneros, sendo três autodeclaradas bissexuais e seis lésbicas. Oito das participantes estavam, no momento, em um relacionamento homoafetivo. Características sociodemográficas foram levantadas na pesquisa, conforme ilustra o Quadro 1.

Quadro 1
Características sociodemográficas e métodos de reprodução utilizados.

A partir da análise dos resultados, foram identificados dois eixos temáticos: 1) Cisheteronormatividade e seu impacto nas experiências de dupla maternidade e 2) Violência institucional nos serviços de saúde: da curiosidade à LGBTQIA+fobia.

Cisheteronormatividade e seu impacto nas experiências de dupla maternidade

A cisheteronormatividade regula as experiências de dupla maternidade nos serviços de saúde tanto públicos quanto privados, resultando em situações de exclusões e violências. Apesar do reconhecimento jurídico da dupla maternidade no Brasil, as mulheres que compartilham a maternidade enfrentam inúmeros desafios no desenvolvimento da parentalidade. As participantes da pesquisa relataram situações em que suas constituições familiares foram apagadas por parentes, profissionais de saúde e políticas públicas, destacando que o principal obstáculo é a invisibilidade da mãe que não gestou, uma vez que impera na sociedade a premissa de que “mãe é só uma”:

A sociedade vê como mãe quem gesta porque até nessas propagandas de margarina como dizem por aí eles falam, né, mãe é só uma. Quem engravidou? Quem carregou? Quem amamentou? Eu acho que a gente ainda tem um caminho dentro dessa militância aí um pouco extenso até chegarmos ao ponto em que as duas mães são reconhecidas como igual na criação da criança. É uma militância mesmo, é um movimento que precisa ter força, que precisa continuar para que as mães tenham direitos iguais, sejam reconhecidas igualmente pela sociedade (Grupo Focal On-line).

A premissa de que “mãe é só uma” reflete uma hierarquização da maternidade, na qual compreende que a mãe heterossexual casada é a figura mais apropriada para exercer a maternidade. Nesse contexto, mães lésbicas são vistas como menos apropriadas para exercerem a maternidade, menos que as mães solos e mães adolescentes, também hierarquicamente rebaixadas em relação àquelas casadas em um relacionamento heterossexual20. No que se refere ao exercício da maternidade lésbica, essa hierarquização contribui para o apagamento dessas mães, como apontado pelos resultados dessa pesquisa. Esse apagamento é justificado pelo estigma e preconceito que as mulheres lésbicas sofrem, como destaca uma revisão de literatura realizada em 2021, na qual constata que famílias LGB recebem menor suporte social, no que se refere à rede de apoio em questões da maternidade, no caso de mães lésbicas ou bissexuais, inclusive de membros de sua própria família21.

A dupla maternidade desestabiliza o dispositivo que regula a sexualidade, conforme apontado por Foucault22, na sociedade a partir de normas tradicionais. Ela questiona valores que transcendem o binarismo de gênero feminino e masculino, da mãe e do pai, e, de forma ainda mais abrangente, questionam profundamente o processo de construção dos corpos, identidades de gênero e desejos, desencadeando uma desordem no mundo tradicionalmente estruturado em termos binários e generificados. Assim, o lugar da mulher lésbica ou bissexual e mãe é invisibilizado por uma hierarquia que versa sobre a legitimidade das mães. Mulheres heterossexuais são consideradas as únicas reconhecidas como mães legítimas, perpetuando um modelo que atinge um entendimento universal do que é ser mãe, compartilhado socialmente e, também, presente nos serviços de saúde, conforme observamos em nosso estudo.

A concepção universal de mulher e da cisheteronormatividade é observada nos instrumentos para acompanhamento sistemático da gestante e da criança na Estratégia Saúde da Família, como a “Caderneta da Gestante”, “Caderneta de Saúde da Criança” e até mesmo no “Cartão Nacional do SUS”, como revelado pelas interlocutoras:

A dificuldade é na questão do cartão da gestante que não tem a opção filiação e sim, mãe e pai. Como outras questões, é diferente do registro de nascimento, o registro de nascimento consta da filiação, nos nossos nomes, mas nesse de gestante não tem. Inclusive a gente já falou até sobre… como se diz, denunciar essa parte, né? (Entrevista 4).

Veio a carteirinha do hospital, a carteirinha de vacinação da nossa filha também não tem a opção de duas mães, tem mãe e pai. O certo seria filiação. Filiação 1, filiação 2 ou algo do tipo, mas a carteirinha de vacinação vem mãe e pai. Coisas que a gente pretende ainda que mude daqui para frente a esperança é que mude mesmo (Entrevista 6).

[...] Daí a gente foi fazer o cartão do SUS, foi uma novela. Que não tinha como fazer o cartão SUS com o nome de duas mães, porque tinha pai e mãe. A gente falava, então no lugar do pai coloca a Janaína, e eles falavam assim, não posso. Eu falei, então no lugar da mãe coloca primeiro Janaína e depois coloca Patrícia. Não posso. Daí chamaram um, chamaram dois, chamaram 10, e no final saiu de lá com o Luís, eu não sei exatamente como tá no sistema, se tá o nome no lugar do pai ou se tá as duas no lugar da mãe. Mas estão as duas lá (Entrevista 2).

As implicações da comunicação cisheteronormativa resultam em violências, constituindo-se como barreiras ao pleno exercício da cidadania para essas mulheres. Além disso, a submissão às regras e códigos estabelecidos pelos profissionais de saúde expõe a reprodução das estruturas sociais injustas, formais e informais, que violam as identidades que não se alinham com o modelo normativo.

As participantes também trouxeram à tona a temática da inseminação caseira (IC) como prática comum entre as mulheres não heterossexuais para a reprodução:

Eu sempre pesquisei métodos, porque sempre foi meu sonho e tal e eu já tinha estudado uma vez sobre IC, como era o procedimento e tal, mas deixei quieto, né? E quando nós decidimos, eu sempre soube que eu teria a Débora através de IC. Porque para pobre é muito difícil fazer uma FIV, sabe? É muito caro, é fora da realidade para a gente, né? (Entrevista 8).

Além das TRA, as mulheres estão recorrendo à IC como uma abordagem autônoma para alcançar a gestação, sem a necessidade de serviços de saúde. A IC envolve a coleta de esperma do doador e sua introdução próxima ao colo do útero da gestante. Instrumentos como espéculos, cateteres e seringas podem ser usados para otimizar a técnica, protegendo o esperma da exposição à luz23. A IC tem ganhado popularidade no país devido à sua acessibilidade financeira e duas participantes desta pesquisa a escolheram:

Fizemos duas tentativas em clínica de FIV e o Luís foi em uma única tentativa de Inseminação Caseira com um doador de Vitória. Já estávamos com uma viagem marcada por outro motivo e tínhamos acesso a esse doador que já tinha bastante positivos e agendamos! E assim foi potinho, seringa e minha companheira injetou, gargalhamos que aquilo era impossível de dar certo já que já tínhamos gasto muito em clínicas e depois de 15 dias tava lá o Luís (Grupo Focal On-line).

No contexto das Técnicas de Reprodução Assistida (TRA) é importante observar que há anos estas possibilitam a concepção sem a necessidade de relações sexuais. Inicialmente desenvolvidas para tratar a infertilidade em casais heterossexuais, as TRA têm sido utilizadas por mulheres lésbicas e bissexuais há algum tempo24,25. No entanto, seu uso só foi “regulamentado” em 2010, por meio da Resolução nº 1.957 do Conselho Federal de Medicina26. Essa resolução foi considerada inovadora por incluir pessoas solteiras e casais homoafetivos como elegíveis para as TRA27. Ressalta-se que ainda não existe uma legislação específica que normatize a realização das técnicas de reprodução em território brasileiro, mesmo com a tramitação, há alguns anos, de Projetos de Leis referentes à questão. Assim, percebemos uma exclusão das mães lésbicas e bissexuais nas políticas públicas de saúde, não atendendo às suas necessidades quando procuram os serviços de saúde. Isso se traduz em uma eficácia limitada e na persistência de estereótipos enraizados que muitos profissionais mantêm e perpetuam, sem uma revisão adequada28.

No entanto, ao analisar a utilização da IC como um dispositivo tecnológico, a partir das leituras foucaultianas22, de Paul Preciado29 e Donna Haraway30, essa prática se configura como subversão às normas impostas pelo dispositivo da cisheteronormatividade. Essa conclusão é possível uma vez que o dispositivo, como produtor de discurso a partir de repetições, permite subversões discursivas e, consequentemente, das normas, possibilitando o surgimento de novos discursos. É nesse contexto que a dupla maternidade surge como um discurso no dispositivo da sexualidade, presente nas redes sociais e no âmbito jurídico.

Violência institucional nos serviços de saúde: da curiosidade à LGBTQIA+fobia

A violência institucional foi identificada na experiência das mulheres mães através de situações vivenciadas nos serviços de saúde, traduzidas como normas, discursos e condutas institucionais. Desta forma, o que torna central nesta categoria é identificar normas, discursos e práticas existentes nos serviços de saúde responsáveis por “apagamentos” e “deslegitimidades”, baseadas na reificação dos modelos e do congelamento das identidades como homem e mulher, masculino e feminino, pai e mãe31.

Os relatos das entrevistas e do grupo focal demonstram situações em que as interlocutoras observaram olhares e comentários de estranhamento frente às suas constituições parentais pelos profissionais de saúde, configurando-se como episódios de violências, como no seguinte excerto: “ficavam perplexos, mas não falavam nada. ‘Essa aqui é a minha namorada, tô grávida!’ [...] Olhavam assim, né? Meio um pouco sem entender” (Entrevista 1), em outras situações os estranhamentos eram abertamente manifestados por meio de comentários:

Em todas as minhas consultas de pré-natal feitas pelo SUS eu fui sozinha porque minha esposa trabalhava e quando acontecia dela ir, sempre existia aquela pergunta: “Você é o que? Você é irmã? Você é tia?” E não, ela é a mãe também do neném. “como assim?” Às vezes era um momento que a gente não queria falar sobre, né. A gente estava empolgada com a consulta, com o ultrassom e não queria falar sobre. Mas acabava tendo que explicar a situação (Entrevista 3).

A experiência revela barreiras que afastam essas mulheres dos cuidados em saúde, já que suas experiências são marcadas por preconceito, negligência e violências institucionais, por vezes resultantes de uma conduta inadequada por parte dos profissionais de saúde32.

A falta de reconhecimento da mãe não gestante como mãe, bem como a exclusão dela dos exames e consultas de pré-natal, destaca a urgência de incorporar as novas configurações familiares como tema central na formação profissional33. Sabemos que a exclusão de mães lésbicas ou bissexuais não é especificidade desta pesquisa, uma vez que vemos relatos semelhantes no contexto internacional. Um estudo aponta que, na Austrália, mulheres lésbicas evidenciam questões semelhantes às observadas em nosso estudo. Essa pesquisa, conduzida com 20 famílias de mulheres lésbicas, aponta que elas têm maior tendência a postergar cuidados de saúde por receio de sofrerem algum tipo de preconceito32.

A pressuposição cisheteronormativa nas pacientes dos serviços de saúde contribui para a dificuldade de acesso à saúde das mulheres lésbicas e bissexuais, conforme confirmado pela pesquisa realizada por Rodrigues e Falcão31 no âmbito da saúde ginecológica dessas pessoas. Mulheres lésbicas e bissexuais são frequentemente consideradas por profissionais de saúde como mulheres heterossexuais, sendo encaminhadas para protocolos de cuidados destinados a esse grupo, o que não condiz com a realidade das mulheres em questão. Não raro, quando esses profissionais se deparam com uma realidade diferente da cisheteronormativa, acabam excluindo e perpetuando violências contra essas populações. Isso se reflete em decisões tanto de saúde quanto burocráticas que não questionam a cisheteronormatividade.

Assim, acontecimentos não desejados, como a privação do acompanhamento de um exame de ultrassom, configuram-se como uma forma de violência, pois privam a mãe da aproximação afetiva do seu filho que está sendo gestado pela parceira. A violência institucional perpetrada nos serviços de saúde e direcionada a essas mulheres representa a forma direta da violência estrutural34, pois além de refletir a hierarquização da sociedade, é responsável pela reprodução de um modelo ideal de sexualidade e de família20.

O desconhecimento sobre o cuidado de saúde para as mulheres lésbicas e bissexuais reflete também no contexto da maternidade. A concepção independente de atos sexuais não é uma possibilidade para estes profissionais, o que resulta na obrigatoriedade de as próprias mulheres atendidas relatarem como se deu o alcance da gestação. Tal situação foi exposta neste relato: “[...] a gente tinha que sempre contar a história, né, de como era, que era duas mães, e que o óvulo era meu, tudo era meu” (Entrevista 2).

Além das barreiras de comunicação, foram relatadas situações em que as mães enfrentaram dificuldades relacionadas às burocracias hospitalares, pautadas nas relações cisheteronormativas. Isso resultou na impossibilidade da mãe não gestante de visitar sua bebê, que estava internada na unidade de terapia intensiva neonatal, como evidenciado no trecho:

Ela não podia entrar nos horários de visita, porque eram das 16 horas às 16:30, mas a mãe tem direito de entrar quatro vezes durante o dia, que são os horários de amamentação, apenas para as mães. A [nome da mãe não gestante] não foi reconhecida como mãe. E ela não pode entrar em nenhum desses horários (Entrevista 8).

A violência institucional também se apresenta na falta de acolhimento durante o parto, conforme relatado a seguir. Devido ao fato de no relatório hospitalar do pré-natal constar que o bebê era fruto de inseminação, aparentemente, percebeu-se a curiosidade dos profissionais e estudantes da área da saúde. De acordo com a interlocutora, a situação instigante vai além do fato da inseminação:

No dia do parto, os acadêmicos queriam assistir, como se fosse diferente [...] Porque as pessoas queriam ver aqui um bebê de inseminação artificial [...]. eu não sei se as pessoas queriam ver só um bebê de inseminação ou um bebê de um casal lésbico. [...] Alegaram que não tinha roupa suficiente no centro cirúrgico para eu usar, porque tinham dois obstetras, a enfermeira, o anestesista, e quatro residentes pra assistir. [...] (Entrevista 5).

Ao revisitar a situação, a interlocutora aponta a possibilidade de a situação que mais possa ter chamado a atenção da equipe, seria o fato de o bebê ter duas mães, em vez do seu método de concepção.

Nesta conjuntura, é possível identificar uma ação triplamente configurada como violência institucional, a primeira em que a mãe gestante é interpretada como um experimento a ser se analisado com curiosidade pelo grupo, sendo, inclusive, privada de ter a sua acompanhante durante o parto; a segunda direcionada ao bebê apresentado como um fruto materializado de uma configuração familiar não normativa; e a terceira em que a mãe não gestante que “pela indisponibilidade de roupas especiais no centro cirúrgico” foi privada de acompanhar o nascimento de seu filho. Este fato apresenta um cenário respaldado por uma série de normas legitimadas institucionalmente - desde em nome da ciência acompanhar o nascimento “do diferente” como relevante para a formação, até a obrigatoriedade da utilização de roupas específicas no setor - que assumem um único compromisso: o de reproduzir as violências estruturais e, portanto, perpetuar a violência institucional de privação do exercício da função parental no contexto do cuidado em saúde35.

Assim, os elementos debatidos diante do compartilhamento das experiências de dupla maternidade apresentam múltiplas situações de estigma, preconceitos e exclusões, que nos serviços de saúde, materializam-se em barreiras de acesso resultantes das violências institucionais que assumem uma vasta escala de interpretações, tendo como polos “da curiosidade à LGBTQIA+fobia”. O preconceito relacionado às mulheres lésbicas por parte de profissionais da saúde foi amplamente debatido no trabalho de Chaves36 que aponta, em entrevistas com profissionais de saúde, que estes não compreendiam as necessidades de saúde das mulheres lésbicas. A autora advoga sobre a importância de capacitação e discussão acerca de estigmas e preconceitos referente à homossexualidade. Neste sentido, problematizar a formação dos profissionais de saúde bem como a elaboração de políticas públicas que questionam a cisheteronormatividade se torna imperativo. Isso resultará na criação de um ambiente acolhedor que promova a construção de laços e uma relação profissional-paciente capaz de proporcionar cuidado equânime.

Considerações finais

A partir da compreensão acerca das experiências de dupla maternidade na atenção à saúde durante o pré-natal, parto e puerpério, verificou-se que a cisheteronormatividade regula as relações nos serviços de saúde tanto públicos quanto privados, resultando em situações de exclusões. Dentre elas, a invisibilidade da mãe que não gestou apresenta-se como dominante.

A dupla maternidade é vista como uma prática que desafia normas tradicionais de identidade, questionando o binarismo de gênero e de papéis maternos e paternos. Além disso, as técnicas de reprodução assistida e a inseminação caseira representam estratégias de autonomia de concepção para mulheres não heterossexuais, apresentando-se como rupturas das normas sociais. As experiências de dupla maternidade na atenção à saúde revelam que as práticas de saúde sexual e reprodutiva no Brasil priorizam a reprodução heterossexual e negligenciam os direitos sexuais e reprodutivos, resultando na perpetuação de estereótipos.

A negligência dos direitos dessas mulheres que não se enquadram nos padrões tradicionais de parentalidade heterossexual materializa-se em situações de violência institucional em que são perpetuadas por meio de normas, discursos e práticas que apagam e deslegitimam suas experiências, resultando em barreiras ao acesso dessas mulheres aos cuidados de saúde. Neste sentido, a falta de acolhimento baseada na exclusão das diversas configurações familiares apresenta-se como violência institucional, especialmente durante o pré-natal, parto e puerpério.

Capacitar os profissionais de saúde - ao longo da formação e por meio de processos institucionais permanentes - para compreender e acolher as necessidades das diversas configurações familiares, ocupa a centralidade nesta temática, apresentando-se como essencial para combater a violência institucional nas experiências de dupla maternidade. Esse estudo não aponta questões sobre a maternidade lésbica e bissexual que envolvam mulheres trans e reconhecemos esse fator como uma limitação desta pesquisa.

Agradecimentos

Gostaríamos de expressar nossa gratidão ao Ministério da Educação, por meio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, pelo financiamento desta pesquisa. Além disso, somos especialmente gratos ao Departamento de Saúde Pública da Universidade Federal de Santa Catarina, que, por meio do Programa de Pós-Graduação em Saúde Pública, desempenha um papel fundamental na realização de pesquisas semelhantes.

Referências

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  • Editores-chefes:
    Romeu Gomes, Antônio Augusto Moura da Silva

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Abr 2024
  • Data do Fascículo
    Abr 2024

Histórico

  • Recebido
    21 Nov 2023
  • Aceito
    21 Dez 2023
  • Publicado
    21 Dez 2023
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