Resumo
Objetivou-se analisar os processos críticos, protetores e destrutivos do trabalho de 34 mulheres das águas nos municípios de Cabo de Santo de Agostinho e Ipojuca (PE), de fevereiro de 2021 a agosto de 2022. As etapas do processo de trabalho foram sistematizadas pelo fluxograma do trabalho e organizadas na matriz de processos críticos de Breilh. Os processos destrutivos, no domínio geral, foram: injustiça e vulnerabilização socioambiental como modelo de desenvolvimento econômico, o Complexo Industrial Portuário de Suape, o desastre-crime de petróleo ocorrido em 2019, a pandemia de COVID-19 e dificuldade de acesso às políticas públicas; no particular: jornadas e sobrecargas de trabalho, uso de equipamentos e ferramentas rudimentares e relações desiguais de gênero, classe e raça; no singular: adoecimentos físicos, mentais e mortes. Os processos protetores, no domínio geral: os objetivos de desenvolvimento sustentável, políticas públicas de saúde e assistência social; no particular: trabalho e beneficiamento em grupo, consumo para subsistência; no singular: a pesca como processo terapêutico, prazeroso e de partilha. O estudo destacou os problemas centrais das mulheres das águas e a necessidade do estabelecimento de políticas públicas voltadas ao seu cuidado.
Palavras-chave:
Determinação social da saúde; Pesca; Saúde do trabalhador; Poluição por petróleo; COVID-19
Abstract
This study aims to analyze the protective and destructive critical processes of 34 water women in the municipalities of Cabo de Santo de Agostinho and Ipojuca, Pernambuco, Brazil, from February/21 to August/22. The work process stages were systematized by the work flowchart, and we employed Breilh’s critical processes matrix to organize the data. The destructive processes identified in the general domain were injustice and socio-environmental vulnerability, such as the economic development model, the Suape Industrial Port Complex, the 2019 oil spill crime disaster, the COVID-19 pandemic, and the difficult access to public policies; in the particular domain: overloads and extended working hours, use of rudimentary equipment and tools, and unequal gender, class, and race relationships; in the singular domain: physical and mental illnesses and deaths. The protective processes identified in the general domain were sustainable development objectives, public health, and social assistance policies; in the particular domain, group work and processing, consumption for subsistence; in the singular domain, fishing as a therapeutic, pleasurable, and sharing process. The study highlighted the central issues of the water women and the need to establish public policies targeting their care.
Key words:
Social determination of health; Fishing; Occupational health; Oil pollution; COVID-19
Introdução
O trabalho, enquanto atividade social, é um processo entre as pessoas e a natureza, que, a fim de se apropriar da matéria natural de forma útil para sua própria vida, põem em movimento as forças naturais pertencentes à sua corporeidade: braços e pernas, cabeça e mãos. Agindo sobre a natureza externa, transformando-a por meio desse movimento, elas modificam, ao mesmo tempo, sua própria natureza11 Brasil. MinistérioMarx K. El capital - crítica de la economía política [Internet]. Buenos Aires: Siglo veintiuno; 1975. [acceso 2021 maio 1]. Disponible en: http://ecopol.sociales.uba.ar/wp-content/uploads/sites/202/2013/09/Marx_El-capital_Tomo-1_Vol-1.pdf. A pesca artesanal é um exemplo desse processo de trabalho, pois estabelece uma relação direta sociedade-natureza, que permeia as relações sociais e o reconhecimento enquanto sujeitos, afetando diretamente a qualidade de vida e os processos saúde-doença22 Pena PLG. Conflitos socioambientais e a saúde dos pescadores em tempos de pandemia. In: Barros S, Medeiros A, Gomes EB, organizadores. Conflitos socioambientais e violações de direitos humanos em comunidades tradicionais pesqueiras no Brasil. Olinda: CPP; 2021. p. 173-177.,33 Mota SE, Pena PGL. Pescador e pescadora artesanal: estudo sobre as condições de trabalho e saúde em Ilha de Maré, Bahia. In: Pena PGL, Martins VLA, organizadores. Sofrimento negligenciado doenças do trabalho em marisqueiras e pescadores artesanais. Salvador: EDUFBA; 2014. p. 31-51..
Os conhecimentos, saberes técnicos e culturais dessas(es) trabalhadoras(es) são adquiridos dos ancestrais, transmitidos de geração em geração, sendo elas(es) proprietárias(os) dos instrumentos e ferramentas de trabalho, por isso com garantia de autoemprego. A pescadora artesanal não vende a sua capacidade de trabalho em troca de salário e não está diretamente subordinada ao capital, pois vende o produto do seu trabalho: o peixe e/ou marisco. Assim, consegue manter a soberania alimentar de suas famílias e de quem consome os benefícios da pesca artesanal22 Pena PLG. Conflitos socioambientais e a saúde dos pescadores em tempos de pandemia. In: Barros S, Medeiros A, Gomes EB, organizadores. Conflitos socioambientais e violações de direitos humanos em comunidades tradicionais pesqueiras no Brasil. Olinda: CPP; 2021. p. 173-177.,33 Mota SE, Pena PGL. Pescador e pescadora artesanal: estudo sobre as condições de trabalho e saúde em Ilha de Maré, Bahia. In: Pena PGL, Martins VLA, organizadores. Sofrimento negligenciado doenças do trabalho em marisqueiras e pescadores artesanais. Salvador: EDUFBA; 2014. p. 31-51..
As relações de gênero permeiam o processo de trabalho da pesca artesanal e a divisão sexual do trabalho. Em algumas comunidades de pesca artesanal, os processos históricos e as construções sociais determinam papéis pré-definidos para homens e mulheres, o que leva à marginalização e à invisibilidade das trabalhadoras nas atividades da pesca44 Azevedo NDT. Conflitos socioambientais, gênero e pesca artesanal. In: Barros S, Medeiros A, Gomes EB, organizadores. Conflitos socioambientais e violações de direitos humanos em comunidades tradicionais pesqueiras no Brasil. Olinda: CPP; 2021. p. 178-183.. Em consequência das relações históricas e culturais do machismo, houve, em grande parte, uma inserção dessas mulheres de forma descontinuada na lavoura, devido às atividades reprodutivas do lar, o que, consequentemente, desestimulou a reivindicação de seu lugar no trabalho55 Maneschy MC. Mulheres na pesca artesanal: trajetórias, identidades e papéis em um porto pesqueiro no litoral do estado do Pará. In: Neves DP, Medeiros LS, organizadores. Mulheres camponesas: trabalho produtivo e engajamento político. Niterói: Alternativa; 2013. p. 41-64..
As mulheres da pesca artesanal estão envolvidas na pesca de aratu, siri, peixe e extração de marisco. Adotaremos o termo “mulheres das águas”, para evidenciar suas lutas e resistências nos territórios, demonstrando as ancestralidades, o pertencimento e a identidade dos povos das águas, pois elas trazem memórias, histórias, saberes e a cultura dessa atividade milenar, produzem e reproduzem a vida, no mar, nos manguezais e nos rios44 Azevedo NDT. Conflitos socioambientais, gênero e pesca artesanal. In: Barros S, Medeiros A, Gomes EB, organizadores. Conflitos socioambientais e violações de direitos humanos em comunidades tradicionais pesqueiras no Brasil. Olinda: CPP; 2021. p. 178-183..
O termo “mulheres das águas” inclui as pescadoras no grupo “povos das águas”, como definido pela Política Nacional de Saúde da População do Campo, da Floresta e das Águas (PNSPCFA): pescadoras(es) artesanais e ribeirinhos que constituem relações com o meio ambiente66 Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Política nacional de Saúde Integral das Populaçãoes do campo, floresta e águas (PNSICFA) In: Fenner ALD, Machado JMH, Souza MS, Maioli OLG, organizadores. Saúde dos povos e populações do campo, da floresta e das águas. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2018. p. 41-46.. Ratifica a ancestralidade do envolvimento com as águas, onde as comunidades e famílias da pesca artesanal retiram as fontes de energia e força para sustento, trabalho, fé, cultura e identidade77 Sacramento EC. Da diáspora negra ao território das águas: ancestralidade e protagonismo de mulheres na comunidade pesqueira e quilombola Conceição de Salinas-BA [dissertação]. Brasília: Universidade de Brasília; 2019..
É imprescindível conhecer não apenas os processos de trabalho, mas os de determinação social da saúde nos territórios das comunidades da pesca artesanal. Nos últimos 20-30 anos, o modelo de desenvolvimento econômico adotado pelo Brasil é baseado na acumulação por espoliação, discriminação, adota matrizes energéticas insustentáveis, numa lógica de indústrias que vão do agronegócio ao turismo predatório e à especulação imobiliária. Esse modelo é permeado por conflitos e impactos socioambientais, que provocam destruição dos ecossistemas e danos à saúde que levam à violência e à violação de direitos, afetando principalmente o modo de vida das comunidades da pesca artesanal22 Pena PLG. Conflitos socioambientais e a saúde dos pescadores em tempos de pandemia. In: Barros S, Medeiros A, Gomes EB, organizadores. Conflitos socioambientais e violações de direitos humanos em comunidades tradicionais pesqueiras no Brasil. Olinda: CPP; 2021. p. 173-177..
As mulheres das águas, por suas resistências nos territórios, por suas ancestralidades e por reproduzirem socialmente suas vidas a partir do mar, dos manguezais e dos rios, e por sua marginalização e invisibilidade nas atividades da pesca, são ainda mais afetadas pelas modificações territoriais geradoras de impactos negativos e conflitos socioambientais. Nos últimos anos, esses têm sido cada vez mais impulsionados no litoral nordestino, em particular no litoral Pernambucano44 Azevedo NDT. Conflitos socioambientais, gênero e pesca artesanal. In: Barros S, Medeiros A, Gomes EB, organizadores. Conflitos socioambientais e violações de direitos humanos em comunidades tradicionais pesqueiras no Brasil. Olinda: CPP; 2021. p. 178-183..
Este artigo objetiva apresentar, à luz da determinação social da saúde, uma análise dos processos críticos, protetores e destrutivos presentes no trabalho das mulheres das águas do litoral sul do estado de Pernambuco.
Caminho metodológico
Trata-se de uma pesquisa qualitativa, ancorada teórica e metodologicamente na determinação social da saúde, entendida, no campo da epidemiologia crítica, como ferramenta de superação do causalismo na relação saúde-doença, reconhecendo a saúde em um processo dialético da reprodução social nas dimensões geral, particular e singular, bem como a concepção da relação social-natureza-biológico88 Breilh J. La determinación social de la salud como herramienta de transformación hacia una nueva salud pública (salud colectiva). Rev Fac Nac Sal Pub 2013; 31(1):13-27..
Os territórios de estudo foram os municípios de Cabo de Santo Agostinho e Ipojuca, localizados no litoral sul de Pernambuco, no Nordeste brasileiro. Esses municípios estão entre os três mais afetados pelo derramamento do petróleo de 201999 Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama). Manchas de óleo no litoral brasileiro [Internet]. 2020. [acessado 2022 fev 24]. Disponível em: http://www.ibama.gov.br/manchasdeoleo
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10 Santos MOS, Alves SG, Mertens FAG, Gurgel IDG, Augusto LGS. Excluídas pelo desenvolvimento: mulheres e o Complexo Industrial Portuário de Suape. Rev Geogr (Recife) 2016; 33(3):117-140.
11 Soares MO, Teixeira CEP, Bezerra LEA, Paiva SV, Tavares TCL, Garcia TM, Araújo JT, Campos CC, Ferreira SMC, Cascon HM, Frota A, Mont'Alverne TCF, Silva ST, Rabelo EF, Barroso CX, Freitas JEP, Melo Júnior M, Campelo RPS, Cavalcante RM, Santana CS, Carneiro PBM, Meirelles AJ, Santos BA, Oliveira AHB, Horta P. 2020a. Oil spill in South Atlantic (Brazil): Environmental and governmental disaster. Marine Policy 2020; 115:103879.-1212 Soares MO, Teixeira CEP, Bezerra LEA, Rossi S, Tavares T, Cavalcante RM. 2020b. Brazil oil spill response: time for coordination. Science 367(6474):155.. Além disso, sediam o Complexo Industrial Portuário de Suape (CIPS), responsável, nos últimos anos, por processos de vulnerabilizações e conflitos socioambientais com as comunidades da pesca artesanal1010 Santos MOS, Alves SG, Mertens FAG, Gurgel IDG, Augusto LGS. Excluídas pelo desenvolvimento: mulheres e o Complexo Industrial Portuário de Suape. Rev Geogr (Recife) 2016; 33(3):117-140.. O nível de ancoragem foi constituído pelas comunidades das praias de Gaibu/Cabo e Maracaípe/Ipojuca, escolhidas por apresentarem grupos de mulheres organizadas em movimentos sociais atuantes no território.
Foram incluídas 34 mulheres das águas, sendo 24 de Gaibu (Cabo) e 10 de Maracaípe (Ipojuca), maiores de 18 anos e moradoras dessas comunidades. Os dados foram coletados entre os meses de fevereiro de 2021 e agosto de 2022, por meio do diagnóstico rápido participativo (DRP), que permitiu identificar processos sociais construídos com as participantes1313 Souza MMO. A utilização de metodologias de diagnóstico e planejamento participativo em assentamentos rurais: o diagnóstico rural/rápido participativo (DRP). Rev Extensao 2009; 8(1):34-37.. Utilizou-se o fluxograma de trabalho para descrever as etapas do processo de trabalho na pesca artesanal, identificando instrumentos utilizados na pesca, da verificação das fases da maré e do momento propício para a pesca/extração até o tratamento dos produtos da pesca e sua comercialização.
Os fluxogramas foram estruturados em duas oficinas, realizadas em um equipamento social da comunidade. Cada encontro, com duração de duas horas, foi guiado por roteiro semiestruturado, com questões relacionadas ao trabalho da pesca artesanal, como: etapas do processo de trabalho; duração; ferramentas e instrumentos; equipamentos de proteção individual; mecanismos e métodos de pesca e extração; melhor momento para pesca; forma de deslocamento; momento de descanso; refeição; beneficiamento do pescado; comercialização do produto; aspectos positivos no trabalho; renda obtida; aspectos de soberania alimentar; autonomia e dignidade; aspectos que promovem a vida1313 Souza MMO. A utilização de metodologias de diagnóstico e planejamento participativo em assentamentos rurais: o diagnóstico rural/rápido participativo (DRP). Rev Extensao 2009; 8(1):34-37..
Para melhor entendimento do processo de trabalho, a equipe de pesquisa participou de uma vivência no trabalho real das mulheres das águas, tomando como base estratégias da etnografia1414 Lima CMG, Dupas G, Oliveira I, Kakehashi S. Pesquisa etnográfica: iniciando sua compreensão. Rev Latino-Am Enferm 1996; 4(1):21-30.. Todos os dados foram registrados no diário de campo e por meio de recursos audiovisuais.
Os dados coletados foram organizados na matriz de processos críticos, com base na proposta de Breilh (2003). Trata-se de uma ferramenta esquemática de construção organizada para ações estratégicas, e requer a caracterização dos processos protetores e destrutivos da saúde, que se expressam no movimento dialético nos domínios geral, particular e singular, considerando a subsunção e a autonomia relativa de um sobre a outro1515 Breilh J. Epidemiologia crítica: ciência emancipadora e interculturalidade. Buenos Aires: Lugar Editorial; 2003.
16 García CH. Matriz de procesos cri´ticos de la determinacio´n social de la salud en la afectacio´n al sistema inmune por exposicio´n a agroto´xicos en La Paz, Bolivia. Rev Cienc Salud 2020; 180:134-151.-1717 Gomes WS, Gurgel, IGD, Fernandes SL. Determinação social da saúde numa comunidade quilombola: análise com a matriz de processos críticos. Serv Soc Soc 2022; 143:140-61..
A diversidade na unidade, o ordenamento e a hierarquização dos processos das relações da determinação da saúde são entendidos a partir do movimento dialético entre o domínio geral do sistema produtivo, o domínio particular dos modos de vida e o domínio singular do estilo de vida, e a contradição entre processos protetores e destrutivos, que têm direcionamentos diferentes frente à saúde, dependendo de condicionantes sociais em um momento e lugar. Assim, os processos protetores (saudáveis) trazem proteção, “equidade, manutenção e aperfeiçoamento”, favorecendo a defesa da vida dos indivíduos e/ou coletivos, e os processos destrutivos (adoecedores) trazem “iniquidades, privação e deterioração”1515 Breilh J. Epidemiologia crítica: ciência emancipadora e interculturalidade. Buenos Aires: Lugar Editorial; 2003.,1616 García CH. Matriz de procesos cri´ticos de la determinacio´n social de la salud en la afectacio´n al sistema inmune por exposicio´n a agroto´xicos en La Paz, Bolivia. Rev Cienc Salud 2020; 180:134-151.. Os dados foram sistematizados considerando os três domínios dos processos críticos: a) domínio geral, que corresponde à relação espaço-território, ao sistema produtivo e às políticas de estado, voltados à atividade da pesca; b) domínio particular, que inclui o processo de trabalho, os modos de vida e as interseccionalidades das comunidades da pesca artesanal; e c) o domínio singular, que se refere ao estilo de vida e ao processo saúde-doença dos indivíduos e famílias1515 Breilh J. Epidemiologia crítica: ciência emancipadora e interculturalidade. Buenos Aires: Lugar Editorial; 2003.
16 García CH. Matriz de procesos cri´ticos de la determinacio´n social de la salud en la afectacio´n al sistema inmune por exposicio´n a agroto´xicos en La Paz, Bolivia. Rev Cienc Salud 2020; 180:134-151.-1717 Gomes WS, Gurgel, IGD, Fernandes SL. Determinação social da saúde numa comunidade quilombola: análise com a matriz de processos críticos. Serv Soc Soc 2022; 143:140-61..
Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa, conforme os princípios de proteção devida aos participantes das pesquisas científicas envolvendo seres humanos.
Resultados e discussão
O Quadro 1 apresenta os aspectos relacionados ao domínio geral, em que os processos destrutivos da saúde estão atrelados às estruturas do sistema capitalista, marcado pelo desenvolvimento e crescimento econômico insustentável de acumulação do capital, que esgota os bens naturais finitos e que não mitiga danos nem desperdícios. Isso resulta em prejuízos aos ecossistemas e poluição do mar, dos rios e dos manguezais, espaços onde as mulheres das águas produzem e reproduzem a vida, interferindo negativamente nos processos de saúde dessas mulheres e de suas famílias, assim como agravando as vulnerabilidades socioeconômicas e ambientais dessas populações1818 Gurgel AM, Gurgel, IGD, Friedrich K, Augusto LGS. Uso do coque verde de petróleo como matriz energética e potenciais danos à saúde e ao ambiente. In: Santos MOS, Gurgel AM, Gurgel IGD. Conflitos e injustiças na instalação de refinarias: os caminhos sinuosos de Suape, Pernambuco. Recife: EdUFPE; 2019. p. 119-146..
Em Pernambuco, o CIPS, um alicerce nas estruturas de produção capitalista, impacta negativamente o território das comunidades tradicionais da pesca artesanal, com a operação e expansão de atividades produtivas (refinaria, termelétricas, estaleiros, dragagem do canal portuário). O Complexo gera desmatamento, aterro e destruição dos manguezais, desterritorialização e espoliação das famílias, poluição dos corpos hídricos e especulação imobiliária, fomentando um turismo predatório. Esse processo aumenta a violência, a exploração sexual e o tráfico de drogas1919 Santos MOS. Vulneração e injustiças ambientais na determinação social da saúde no território Suape, Pernambuco/Brasil [tese]. Recife: Instituto Aggeu Magalhães, Fundação Oswaldo Cruz; 2017.,2020 Perez SM. R-existências dos Camponeses/as do que hoje é Suape: justiça territorial, pós-desenvolvimentos e descolonialidade pela vida [dissertação]. Recife: Universidade Federal de Pernambuco; 2016.. As mulheres das águas são afetadas por esses processos e relataram seus impactos na pesca, na saúde da comunidade e no ambiente, com destaque para a refinaria de petróleo e o terminal de minério próximo ao local de mariscagem.
Somando-se a esses processos, ocorreu em 2019 o maior crime ambiental no litoral do Brasil: um derramamento de petróleo que acometeu mais de 3.400 quilômetros de costa dos nove estados do Nordeste, além do Espírito Santo e do Rio de Janeiro. Esse desastre-crime atingiu os locais onde as “mulheres das águas” vivem, e suas falas registraram não somente as ameaças ao ecossistema, mas a situação de vulnerabilidade enfrentada desde então. As comunidades pesqueiras e a população local foram afetadas pelo fechamento das praias, dificultando as atividades da pesca e a comercialização dos produtos e atividades do turismo, diminuindo a renda familiar, impactando o aumento do desemprego e a soberania alimentar das(os) pescadoras(es) artesanais da região99 Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama). Manchas de óleo no litoral brasileiro [Internet]. 2020. [acessado 2022 fev 24]. Disponível em: http://www.ibama.gov.br/manchasdeoleo
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10 Santos MOS, Alves SG, Mertens FAG, Gurgel IDG, Augusto LGS. Excluídas pelo desenvolvimento: mulheres e o Complexo Industrial Portuário de Suape. Rev Geogr (Recife) 2016; 33(3):117-140.
11 Soares MO, Teixeira CEP, Bezerra LEA, Paiva SV, Tavares TCL, Garcia TM, Araújo JT, Campos CC, Ferreira SMC, Cascon HM, Frota A, Mont'Alverne TCF, Silva ST, Rabelo EF, Barroso CX, Freitas JEP, Melo Júnior M, Campelo RPS, Cavalcante RM, Santana CS, Carneiro PBM, Meirelles AJ, Santos BA, Oliveira AHB, Horta P. 2020a. Oil spill in South Atlantic (Brazil): Environmental and governmental disaster. Marine Policy 2020; 115:103879.-1212 Soares MO, Teixeira CEP, Bezerra LEA, Rossi S, Tavares T, Cavalcante RM. 2020b. Brazil oil spill response: time for coordination. Science 367(6474):155.,2121 Santos MOSD, Nepomuceno M, Erivaldo J, Medeiros A, Machado R, Santos, C, Alves MJ, Gurgel AM, Gurgel IGD. Oil spill in Brazil - analysis of vulnerabilities and socio-environmental conflicts. BioChem 2022; 2(4):260-268.,2222 Araújo ME, Ramalho CWN, Melo PW. Pescadores artesanais, consumidores e meio ambiente: consequências imediatas do vazamento de petróleo no estado de Pernambuco, Nordeste do Brasil. Cad Saude Publica 2020; 36(1):e00230319..
Meses após o desastre-crime, teve início a sindemia 2323 Bispo JP, Santos DB. COVID-19 como sindemia: modelo teórico e fundamentos para a abordagem abrangente em saúde. Cad Saude Publica 2021; 37(10):e00119021. de COVID-19, que intensificou ainda mais os processos de vulnerabilização existentes no território, em processos mediados por relações de gênero, raça e classe, evidenciados pelo aumento de mortalidade nas regiões Norte e Nordeste e entre negros, demonstrando níveis mais baixos de desenvolvimento socioeconômico nesses territórios2323 Bispo JP, Santos DB. COVID-19 como sindemia: modelo teórico e fundamentos para a abordagem abrangente em saúde. Cad Saude Publica 2021; 37(10):e00119021.. Esses achados foram reforçados nos depoimentos das mulheres das águas sobre os impactos da COVID-19 em suas vidas, materializados nas dificuldades para pescar e comercializar os produtos no período do isolamento social, na sobrecarga de trabalho doméstico, do cuidado com os filhos pela ausência de escolas e creches, no cuidado de familiares doentes, no aumento da violência doméstica, na necessidade de conseguir renda para o sustento e no cansaço físico e mental.
Apesar de as mulheres das águas serem, em sua grande maioria, autônomas, pois vivem da obtenção dos produtos do mar, dos manguezais, dos estuários, lagos e lagoas, suas atividades são incluídas e vinculadas ao arcabouço legal dos segurados especiais para benefícios previdenciários, porém há dificuldade para elas acessarem os benefícios previdenciários como seguradas especiais, impactando negativamente em seus modos de vida e de trabalho2424 Bastos MLA, Carvalho T, Knierim GS, Machado JMH, Fenner ALD, Silva FCCM, Batista MH, Ferreira MJMF. Benefícios previdenciários de pescadores artesanais e marisqueiras em comunidade quilombola no Nordeste do Brasil. Rev Bras Saude Ocup 2023; 48:e9.. Percebeu-se que o Programa Chapéu de Palha da Pesca Artesanal (PCPPA)2525 Pernambuco. Secretaria Estadual de Planejamento e Gestão (SEPG). Chapéu de Palha inicia cadastramento de trabalhadores da pesca artesanal em 48 municípios a partir de segunda-feira [Internet]. 2022. [acessado 2023 fev 20]. Disponível em: https://www.seplag.pe.gov.br/noticias/381-chapeu-de-palha-inicia-cadastramento-de-trabalhadores-da-pesca-artesanal-em-48-municipios-a-partir-de-segunda-feira-20
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e o seguro defeso, que dispõe sobre o benefício de Seguro Desemprego do Pescador Artesanal (SDPA)2626 Brasil. Presidência da República. Lei nº 10.779, de 25 de novembro de 2003. Dispõe sobre a concessão do benefício de seguro-desemprego, durante o período de defeso, ao pescador profissional que exerce a atividade pesqueira de forma artesanal. Diário Oficial da União 2003; 26 nov., não foram garantidos para a maioria delas, pois elas não tinham o Registro Geral da Pesca (RGP) ou protocolo de registro necessários para que a concessão do benefício nem tinham vínculos formalizados com colônias de pescadoras(es), associação das(os) pescadoras(es) ou cooperativas.
Os achados deste estudo corroboram as informações da Secretaria Estadual de Planejamento e Gestão de Pernambuco2525 Pernambuco. Secretaria Estadual de Planejamento e Gestão (SEPG). Chapéu de Palha inicia cadastramento de trabalhadores da pesca artesanal em 48 municípios a partir de segunda-feira [Internet]. 2022. [acessado 2023 fev 20]. Disponível em: https://www.seplag.pe.gov.br/noticias/381-chapeu-de-palha-inicia-cadastramento-de-trabalhadores-da-pesca-artesanal-em-48-municipios-a-partir-de-segunda-feira-20
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, que aponta que, entre os 41.487 trabalhadoras(es) beneficiados em 2021, apenas 4.337 foram da pesca artesanal. Esse benefício favoreceu poucas(os) pescadoras(es) artesanais, já que, segundo dados da Secretaria de Meio Ambiente e Sustentabilidade (SEMAS) junto às entidades da pesca, durante o desastre-crime do petróleo de 2019 existiam 12.556 pescadoras(es) no litoral pernambucano2727 Pernambuco. Secretaria de Meio Ambiente e Sustentabilidade (Semas). Cadastro de Pescadores e Pescadoras Artesanais de Pernambuco [Internet]. 2020 [acessado 2021 jun 27]. Disponível em: http://www.portais.pe.gov.br/web/semas/exibir_noticia?groupId=709017&articleId=51658811&templateId=238686
http://www.portais.pe.gov.br/web/semas/e...
, número esse subestimado.
Na identificação dos processos protetores da saúde, foram percebidas e estratégias estruturadas em contraponto ao modelo de produção capitalista, particularmente a instituição de algumas políticas públicas e estratégias governamentais. Destacam-se os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) como instrumento de “apelo global à ação para acabar com a pobreza, proteger o meio ambiente e o clima e garantir que as pessoas, em todos os lugares, possam desfrutar de paz e de prosperidade”2828 Nações Unidas. Os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável no Brasil: Objetivo de Desenvolvimento Sustentável 14 - Vida na Água. Conservar e usar de forma sustentável os oceanos, mares e os recursos marinhos para o desenvolvimento sustentável [Internet]. 2022. [acessado 2022 set 25]. Disponível em: https://brasil.un.org/pt-br/sdgs/14
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. É de relevância para este estudo o objetivo 14 dos ODS: “Vida na água, que propõe, conservação e uso sustentável dos oceanos, dos recursos marinhos, para o desenvolvimento sustentável”2828 Nações Unidas. Os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável no Brasil: Objetivo de Desenvolvimento Sustentável 14 - Vida na Água. Conservar e usar de forma sustentável os oceanos, mares e os recursos marinhos para o desenvolvimento sustentável [Internet]. 2022. [acessado 2022 set 25]. Disponível em: https://brasil.un.org/pt-br/sdgs/14
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, pelas conexões diretas e pela urgência de pensarmos a saúde dos ecossistemas.
O Estado brasileiro, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), fundamenta a “saúde como direito de todos e dever do Estado”, na perspectiva de garantir os direitos às políticas públicas, para alcançar a pluralidade social, cultural, de línguas, étnicas e raciais no país. Como processo protetor da saúde das mulheres das águas no âmbito do SUS, tem-se a PNSIPCFA, estruturada com base nas desigualdades e necessidades de saúde, visando estratégias de promoção e prevenção à saúde das populações do campo, das florestas e das águas e ações de vigilância88 Breilh J. La determinación social de la salud como herramienta de transformación hacia una nueva salud pública (salud colectiva). Rev Fac Nac Sal Pub 2013; 31(1):13-27..
Entre as comunidades tradicionais, as quilombolas e as indígenas já são asseguradas pela Constituição brasileira. Para maior amplitude de proteção, surge a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável de Povos e Comunidades Tradicionais (PNPCT), que objetiva o “reconhecimento, fortalecimento e garantia dos seus direitos territoriais, sociais, ambientais, econômicos e culturais, com valorização e respeito a sua identidade, suas formas de organização e suas instituições”. Para estabelecer as estratégias de ação dessa política, foi necessária a construção da definição de comunidade tradicional, enquanto pondera as características identitárias dos povos, o acesso à terra, a utilização dos recursos do território e seu modelo de produção2929 Brasil. Presidência da República. Decreto nº 6.040, de 7 de fevereiro de 2007. Institui Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais - PNPCT. Diário Oficial da União 2007; 8 fev.,3030 Silva MO. Saindo da invisibilidade: a política nacional de povos e comunidades tradicionais. Inclusão Soc 2007; 2(2):7-9..
Nas comunidades de pesca artesanal, as mulheres das águas são fundamentais para manter vivos a tradição e os saberes tradicionais. Nessa perspectiva, são processos protetores a Política Nacional dos Direitos Sexuais e dos Direitos Reprodutivos (PNDSDR) e a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher (PNAISM). Essas políticas objetivam cuidado, promoção e prevenção à saúde, destacando as questões de gênero, por entenderem que as relações sociais entre homens e mulheres são construídas socialmente, sobre as atribuições e os papéis sociais estabelecidos, eixo das desigualdades na maioria das sociedades3131 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Saúde sexual e saúde reprodutiva. Brasília: MS; 2013.,3232 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Política nacional de atenção integral à saúde da mulher: princípios e diretrizes. Brasília: MS; 2004..
Outro aspecto protetor é a Lei da Pesca do Brasil, que institui a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável da Aquicultura e da Pesca (PNSAP), ampliando o caráter dos profissionais do setor da pesca artesanal, incluindo como atividade pesqueira artesanal os “trabalhos de confecção e de reparos de artes e apetrechos de pesca e o processamento do produto da pesca artesanal”, em sua maioria executados pelas mulheres, incluindo-as na cadeia produtiva da pesca3333 Brasil. Lei no 11.959, de 29 de junho de 2009. Dispõe sobre a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável da Aquicultura e Pesca, regula as atividades pesqueira revoga a Lei nº 7.679, de 23 de novembro de 1988, e dispositivos do Decreto-Lei no 221, de 28 de fevereiro de 1967, e dá outras providências. Diário Oficial da União 2009; 30 jun.. A partir de então, tem-se observado um maior número de mulheres envolvidas na atividade, devido à maior visibilidade e ao reconhecimento social e político55 Maneschy MC. Mulheres na pesca artesanal: trajetórias, identidades e papéis em um porto pesqueiro no litoral do estado do Pará. In: Neves DP, Medeiros LS, organizadores. Mulheres camponesas: trabalho produtivo e engajamento político. Niterói: Alternativa; 2013. p. 41-64..
As estruturas do sistema capitalista de desenvolvimento econômico são insustentáveis, pois destroem os bens naturais e intensificam impactos nas comunidades das mulheres das águas, principalmente quando associados à pouca capilaridade das políticas públicas de assistência social, no entanto importantíssimas, que deveriam garantir condições dignas de vida. Assim, comprometem aspectos da dimensão particular relacionados à soberania das comunidades tradicionais da pesca artesanal (modos de vida e trabalho), e do domínio singular, no que diz respeito ao ser saudável e ao estilo de vida e saúde-doença das mulheres das águas, demonstrando a relação de subsunção entre eles. Esse dado se alinha à revisão crítica de Arendt sobre Marx, que relacionou o metabolismo dos indivíduos ao do trabalho sobre a natureza em si, apontando que o próprio trabalho se incorpora ao sujeito em um ciclo de reprodução finita dos meios de subsistência, levando à destruição3434 Arendt H. A condição humana. São Paulo: Forense Universitária; 2014..
Na dimensão particular (Quadro 1), que expressa os modos de produção e reprodução da vida das mulheres das águas e das comunidades tradicionais de pesca artesanal, um dos aspectos destrutivos está relacionado à variação da maré. Sua variação diária não possibilita uma jornada fixa ou a delimitação da jornada em horas “convencionais”, pois o tempo é determinado pela natureza, pelos ciclos das marés e da lua3535 Pena PGL, Freitas MCS. Condições de trabalho da pesca artesanal de mariscos e riscos para LER/DORT em uma comunidade pesqueira da Ilha de Maré, BA. In: Pena PGL, Martins VLA, organizadores. Sofrimento negligenciado doenças do trabalho em marisqueiras e pescadores artesanais. Salvador: EDUFBA; 2014. p. 53-92.. Conhecer as complexas variações do tempo é fundamental em comunidades pesqueiras3636 Gomes TMD, Lima MAG, Freitas MCS. Marisqueiras da Ilha das Fontes: descrição do trabalho e da tradição incorporadas na pesca artesanal. In: Fernandes RCP, Lima MAG, Araújo TM, organizadores. Tópicos em saúde, ambiente e trabalho: um olhar ampliado. Salvador: EDUFBA; 2014. p. 129-152.. A “maré grande”, termo utilizado pelas mulheres das águas para se referir à maré cheia, aumenta a área de trabalho no lugar que elas escolhem para pescar, aumentando assim as horas de trabalho na extração dos mariscos e/ou pesca de siri e aratu, e consequentemente provocando mais esforço, mais movimentos repetitivos, maior tempo de exposição ao sol e contato com a água.
Outros aspectos destrutivos da pesca são as etapas de extrativismo e manipulação, com diversos riscos ocupacionais e ambientais às trabalhadoras3535 Pena PGL, Freitas MCS. Condições de trabalho da pesca artesanal de mariscos e riscos para LER/DORT em uma comunidade pesqueira da Ilha de Maré, BA. In: Pena PGL, Martins VLA, organizadores. Sofrimento negligenciado doenças do trabalho em marisqueiras e pescadores artesanais. Salvador: EDUFBA; 2014. p. 53-92.,3636 Gomes TMD, Lima MAG, Freitas MCS. Marisqueiras da Ilha das Fontes: descrição do trabalho e da tradição incorporadas na pesca artesanal. In: Fernandes RCP, Lima MAG, Araújo TM, organizadores. Tópicos em saúde, ambiente e trabalho: um olhar ampliado. Salvador: EDUFBA; 2014. p. 129-152., o que se observou em outros estudos3535 Pena PGL, Freitas MCS. Condições de trabalho da pesca artesanal de mariscos e riscos para LER/DORT em uma comunidade pesqueira da Ilha de Maré, BA. In: Pena PGL, Martins VLA, organizadores. Sofrimento negligenciado doenças do trabalho em marisqueiras e pescadores artesanais. Salvador: EDUFBA; 2014. p. 53-92.
36 Gomes TMD, Lima MAG, Freitas MCS. Marisqueiras da Ilha das Fontes: descrição do trabalho e da tradição incorporadas na pesca artesanal. In: Fernandes RCP, Lima MAG, Araújo TM, organizadores. Tópicos em saúde, ambiente e trabalho: um olhar ampliado. Salvador: EDUFBA; 2014. p. 129-152.
37 Pena PGL, Freitas MCS, Cardim A. Trabalho artesanal, cadências infernais e lesões por esforços repetitivos: estudo de caso em uma comunidade de mariscadeiras na Ilha de Maré, Bahia. Cien Saude Colet 2011; 16(8):3383-3392.
38 Pena PGL, Gomes CM. Saúde dos pescadores artesanais e desafios para a VIGILÂNCIA EM SAÚDE do trabalhador. Cien Saude Colet 2014; 19(12):4689-4698.-3939 Lopes IBS, Bezerra MGV, Silva LRC, Andrade NSM, Carneiro FF, Pessoa VM. Saúde das trabalhadoras da pesca artesanal: cenários desconhecidos do Sistema Único de Saúde (SUS). Rev Bras Saude Ocup 2021; 46:e5. e no fluxograma do trabalho detalhado em outro artigo desta pesquisa4040 Flores MG, Medeiros ACLV, Arantes RFM, Lira TKS, Nepomuceno MM, Peixinho BC, Gurgele IGD, Santos MOS. O mar que habita em mim: vozes do trabalho das mulheres das águas na pesca artesanal. RECIIS 2024; 8(no prelo).. Na etapa do “deslocamento” até o local da “pesca/mariscagem”, que se dá caminhando e/ou de jangada sem motor; na “mariscagem”, quando ficam em pé na água, com flexão de tronco, enquanto realizam movimentos repetitivos de membros superiores, com uso do puçá; na “pesca de aratu”, em que mantêm a postura em pé, com o tronco ereto e o corpo na lama, ou sentada nas gaiteiras.
Além disso, elas precisam de flexibilidade nos horários de trabalho, e muitas vezes de uma renda complementar decorrente de trabalho secundário ou sazonal para garantir condições socioeconômicas para a família e para a execução de seu trabalho. A tripla jornada de trabalho e a sobrecarga impactam diretamente no domínio singular, nos processos saúde-enfermidade, com adoecimento físico (osteomusculares, cardiovasculares) e mental (depressão, ansiedade), com automedicação recorrente. Nessa longa jornada de trabalho, os relatos de dor, adoecimento e acidentes desvendam estratégias, mitos, interpretações do corpo, identidade e pertencimento3636 Gomes TMD, Lima MAG, Freitas MCS. Marisqueiras da Ilha das Fontes: descrição do trabalho e da tradição incorporadas na pesca artesanal. In: Fernandes RCP, Lima MAG, Araújo TM, organizadores. Tópicos em saúde, ambiente e trabalho: um olhar ampliado. Salvador: EDUFBA; 2014. p. 129-152..
Outro aspecto destrutivo diz respeito às relações desiguais de gênero, raça e classe. As opressões de gênero se evidenciam na invisibilidade e na marginalização no processo produtivo da pesca artesanal, uma vez que o trabalho da/na pesca é reconhecido pela sociedade como uma tarefa exclusivamente masculina. Aos homens são atribuídos os papeis da força física, de provedor, da coragem; para as mulheres, cabem as tarefas reprodutivas, o cuidado com a casa, com os filhos e o companheiro, demarcando a tripla jornada de trabalho4141 Veiga MCM, Leitão MRFA. Gênero e política pública: Programa Chapéu de Palha da Pesca Artesanal em São Jose da Coroa Grande-PE. Rev Feminismos 2017; 5(1):53-66.. As mulheres das águas relatam que, na divisão do trabalho da pesca, a atividade em alto mar é ocupada majoritariamente pelos homens, e os trabalhos de extração e “catagem” são executados pelas mulheres.
No sistema capitalista e patriarcal, o homem explora e domina a mulher, provocando-lhe opressões históricas. A herança da colonização constitui modos específicos de exploração de gênero, de raça e de territórios, pois “a subordinação das mulheres, da natureza e das colônias como lema da ‘civilização’ inaugura a acumulação capitalista e assenta nas bases da divisão sexual e colonial do trabalho”4242 Gago V. A potência feminista ou o desejo de trasnfromar tudo. São Paulo: Elefante; 2020..
Esses elementos ganham força dentro do debate da racialização retomado na América Latina desde os anos 1980, durante o ressurgimento do movimento negro no Brasil, que trouxe questões como diáspora, racialização e gênero4343 Miñoso YE, Ziroldo, NL. Superando a análise fragmentada da dominação: uma revisão feminista decolonial da perspectiva da interseccionalidade. Revista X 2022; 17(1):425-446.. As resistências das mulheres em defesa de suas condições de existência corroboram a “ideia-força de corpo-território”, enfrentando a “exploração dos territórios sob modalidades neoextrativistas” e as reconfigurações contemporâneas da exploração do trabalho, “mapeando as consequências geradas pela espoliação dos bens comuns na vida cotidiana”4242 Gago V. A potência feminista ou o desejo de trasnfromar tudo. São Paulo: Elefante; 2020..
Quanto aos aspectos relativos às condições socioeconômicas, observa-se a dificuldade de acesso das mulheres das águas aos equipamentos de proteção individual (EPI), como protetor solar e vestimentas adequadas para executar o trabalho. As extensas jornadas de trabalho com longa exposição ao sol e o uso de repelentes inadequados, como óleo de cozinha e querosene, impactam diretamente no domínio singular, ocasionando adoecimento físico, como hipertermia, insolação, desidratação, síncope, distúrbios visuais (cataratas, queratites, conjuntivites), cãibras, doenças de pele (envelhecimento precoce da pele, câncer de pele, dermatites, micoses e outras dermatofitoses e onicomicoses4444 Brasil. Ministério da Saúde (MS). A saúde das pescadoras artesanais - atividades da pesca: mariscagem e pesca em mar aberto. Brasília: Ministério da Saúde; 2018..
Observa-se o uso de equipamentos e ferramentas para a coleta de crustáceos e moluscos, muitas vezes, artesanais e rudimentares3737 Pena PGL, Freitas MCS, Cardim A. Trabalho artesanal, cadências infernais e lesões por esforços repetitivos: estudo de caso em uma comunidade de mariscadeiras na Ilha de Maré, Bahia. Cien Saude Colet 2011; 16(8):3383-3392.. Há também a pouca utilização de máquinas, pois a maioria das embarcações são jangadas de remos e velas, que dependem da força do corpo, levando a problemas como lesões osteomusculares, impactando no domínio singular (Quadro 1).
Além disso, são utilizados meios não adequados de armazenamento e beneficiamento do produto, levando a uma comercialização com baixo custo e estimulando ainda mais a necessidade de uma renda complementar para garantir a segurança alimentar da família. Com insuficiência de produção e sem condições de conservação e armazenagem, o produto precisa circular com maior rapidez, levando essas mulheres à busca de alternativas de venda mais rápidas e, consequentemente, à dependência do comerciante ou atravessador e limitando, de certa forma, sua autonomia no processo produtivo3737 Pena PGL, Freitas MCS, Cardim A. Trabalho artesanal, cadências infernais e lesões por esforços repetitivos: estudo de caso em uma comunidade de mariscadeiras na Ilha de Maré, Bahia. Cien Saude Colet 2011; 16(8):3383-3392..
Outro aspecto importante e que impacta diretamente no domínio singular (Quadro 1) é a permanência na água. Imersas em água até a cintura, na croa, elas permanecem até encher todos os baldes ou até a maré começar a subir. Quando estão no mangue, comumente se infiltram na lama até a cintura para coleta de caranguejo, aratu e ostras, o que pode resultar em distúrbios geniturinários e respiratórios, exposição a agentes químicos e acidentes de trabalho, como afogamento, acidentes com animais peçonhentos e urticantes, podendo resultar em morte3636 Gomes TMD, Lima MAG, Freitas MCS. Marisqueiras da Ilha das Fontes: descrição do trabalho e da tradição incorporadas na pesca artesanal. In: Fernandes RCP, Lima MAG, Araújo TM, organizadores. Tópicos em saúde, ambiente e trabalho: um olhar ampliado. Salvador: EDUFBA; 2014. p. 129-152.,3838 Pena PGL, Gomes CM. Saúde dos pescadores artesanais e desafios para a VIGILÂNCIA EM SAÚDE do trabalhador. Cien Saude Colet 2014; 19(12):4689-4698..
Neste estudo, as mulheres destacaram problemas relacionados ao sistema urinário e genital, comprometimento da pele e distúrbios osteoarticulares, também evidenciados por outros estudos3737 Pena PGL, Freitas MCS, Cardim A. Trabalho artesanal, cadências infernais e lesões por esforços repetitivos: estudo de caso em uma comunidade de mariscadeiras na Ilha de Maré, Bahia. Cien Saude Colet 2011; 16(8):3383-3392.,4444 Brasil. Ministério da Saúde (MS). A saúde das pescadoras artesanais - atividades da pesca: mariscagem e pesca em mar aberto. Brasília: Ministério da Saúde; 2018..
Esses elementos evidenciam a discrepância na relação entre a ocupação e os danos à saúde, indicando a percepção restrita da saúde da mulher à questão reprodutiva, desconectada do modo de vida das mulheres das águas. Apesar de elas relatarem a ida aos serviços de saúde como aspecto protetor no domínio singular, a existência desses adoecimentos deixa clara a dificuldade de acesso à rede de atenção e a necessidade de se direcionar um olhar da vigilância em saúde do trabalhador para essas trabalhadoras3838 Pena PGL, Gomes CM. Saúde dos pescadores artesanais e desafios para a VIGILÂNCIA EM SAÚDE do trabalhador. Cien Saude Colet 2014; 19(12):4689-4698.,3939 Lopes IBS, Bezerra MGV, Silva LRC, Andrade NSM, Carneiro FF, Pessoa VM. Saúde das trabalhadoras da pesca artesanal: cenários desconhecidos do Sistema Único de Saúde (SUS). Rev Bras Saude Ocup 2021; 46:e5..
Entre os processos protetores na dimensão particular está a organização coletiva. A maioria das etapas do processo de trabalho na pesca artesanal são compartilhadas, podendo agregar membros de uma mesma família e vizinhos. Ao atuarem conjuntamente, compartilham conhecimentos dos saberes ancestrais da natureza e mantêm a tradicionalidade da pesca. O nascer e o crescer na maré permitem a prática e o desenvolvimento de habilidades no ofício de mariscagem3636 Gomes TMD, Lima MAG, Freitas MCS. Marisqueiras da Ilha das Fontes: descrição do trabalho e da tradição incorporadas na pesca artesanal. In: Fernandes RCP, Lima MAG, Araújo TM, organizadores. Tópicos em saúde, ambiente e trabalho: um olhar ampliado. Salvador: EDUFBA; 2014. p. 129-152.. A pesca artesanal se baseia na organização familiar como um sistema produtivo inscrito em práticas culturais tradicionais, sendo uma rede local e durável, com tarefas e divisões do trabalho, estabelecendo modos de solidariedade e cooperação. Ele organiza e mobiliza a força de trabalho contida nas relações familiares, e a solidariedade governa simultaneamente a organização da família e dos processos de trabalho tradicionais3636 Gomes TMD, Lima MAG, Freitas MCS. Marisqueiras da Ilha das Fontes: descrição do trabalho e da tradição incorporadas na pesca artesanal. In: Fernandes RCP, Lima MAG, Araújo TM, organizadores. Tópicos em saúde, ambiente e trabalho: um olhar ampliado. Salvador: EDUFBA; 2014. p. 129-152.,3838 Pena PGL, Gomes CM. Saúde dos pescadores artesanais e desafios para a VIGILÂNCIA EM SAÚDE do trabalhador. Cien Saude Colet 2014; 19(12):4689-4698..
Esses aspectos impactam diretamente a dimensão particular, sendo apontado o prazer de compartilhar o trabalho com as amigas, de estar pescando e o orgulho de ser uma mulher das águas. Essa questão pode ser entendida a partir da concepção de que as mulheres da pesca artesanal têm um saber próprio de ofício que se expressa no universo simbólico de crenças, valores e mitos apreendidos por meio de uma herança cultural secular inscrita em tradições de um modo de pensar e fazer o trabalho. Isso contribui para o processo de reprodução social e impacta positivamente a saúde dessas mulheres e estimula o uso de práticas de cuidado também tradicionais, como as plantas medicinais3737 Pena PGL, Freitas MCS, Cardim A. Trabalho artesanal, cadências infernais e lesões por esforços repetitivos: estudo de caso em uma comunidade de mariscadeiras na Ilha de Maré, Bahia. Cien Saude Colet 2011; 16(8):3383-3392..
Outro importante processo protetor na dimensão particular é a participação, ainda baixa, das mulheres das águas em associação de classe. Por exemplo, em movimentos como a Articulação Nacional das Mulheres Pescadoras (ANP), criada em 2005 pelas pescadoras artesanais de todo o Brasil, que, ao contrapor-se ao machismo e ao racismo, dá visibilidade ao trabalho dessas mulheres, atuando na defesa dos territórios tradicionais e estimulando os direitos trabalhistas, previdenciários e as demais políticas públicas77 Sacramento EC. Da diáspora negra ao território das águas: ancestralidade e protagonismo de mulheres na comunidade pesqueira e quilombola Conceição de Salinas-BA [dissertação]. Brasília: Universidade de Brasília; 2019.. Um elemento importante a considerar na dimensão singular, em que se manifesta a saúde-doença, é a compreensão de que o indivíduo corresponde a um grupo social, conectado a estruturas do sistema. Nesse sentido, não é possível deixar de olhar para as relações de subsunção entre as três dimensões, geral, particular e singular, ao mesmo tempo em que se considera a autonomia relativa de cada uma, sabendo que elas influenciam fortemente1515 Breilh J. Epidemiologia crítica: ciência emancipadora e interculturalidade. Buenos Aires: Lugar Editorial; 2003.,1616 García CH. Matriz de procesos cri´ticos de la determinacio´n social de la salud en la afectacio´n al sistema inmune por exposicio´n a agroto´xicos en La Paz, Bolivia. Rev Cienc Salud 2020; 180:134-151..
Considerações finais
A determinação social da saúde das mulheres das águas, suas famílias e as comunidades onde produzem e reproduzem a vida não podem ser vistas como o somatório de processos críticos, mas sim como o movimento dialético que acontece entre esses processos. Isso permite a compreensão do processo saúde-doença e a busca de soluções concretas para os problemas que permeiam esses territórios. Para uma transformação profunda, de uma vida digna, saudável e com direitos garantidos, é necessário reconhecer as mulheres das águas como pescadoras e como coletivo, como comunidade tradicional da pesca artesanal, com direito ao território, à soberania alimentar e com garantia de acesso às políticas públicas.
A pesquisa evidenciou o modo de vida das mulheres das águas, suas famílias e comunidades, desvendando os processos críticos da determinação social da saúde. Identificaram-se as vulnerabilidades sociais e ambientais, injustiças e conflitos que elas enfrentam, decorrentes dos megaprojetos, como o CIPS, o desastre-crime do petróleo em 2019 e a sindemia de COVID-19, assim como os mecanismos destrutivos existentes no processo de trabalho da pesca artesanal, como a sobrejornada, o esforço, a sobrecarga de trabalho e as dificuldades de um trabalho digno que conserve a tradicionalidade da pesca.
Buscou-se contribuir para a inserção da determinação social da saúde das mulheres das águas no debate sobre a complexa inter-relação entre gênero, raça e classe, ao inserir uma abordagem que privilegia, desde a nomenclatura utilizada, a dimensão interseccional na análise dos dados. O próprio sistema de gênero parte da racialização e da desumanização das mulheres, principalmente sobre aquelas em que perdura a opressão econômica e a ameaça a seus territórios, sendo necessário enfrentar esses determinantes em busca do ideal do acesso a uma saúde integral e a condições de vida dignas.
Referências
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3Mota SE, Pena PGL. Pescador e pescadora artesanal: estudo sobre as condições de trabalho e saúde em Ilha de Maré, Bahia. In: Pena PGL, Martins VLA, organizadores. Sofrimento negligenciado doenças do trabalho em marisqueiras e pescadores artesanais. Salvador: EDUFBA; 2014. p. 31-51.
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5Maneschy MC. Mulheres na pesca artesanal: trajetórias, identidades e papéis em um porto pesqueiro no litoral do estado do Pará. In: Neves DP, Medeiros LS, organizadores. Mulheres camponesas: trabalho produtivo e engajamento político. Niterói: Alternativa; 2013. p. 41-64.
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7Sacramento EC. Da diáspora negra ao território das águas: ancestralidade e protagonismo de mulheres na comunidade pesqueira e quilombola Conceição de Salinas-BA [dissertação]. Brasília: Universidade de Brasília; 2019.
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Financiamento
Fundação de Amparo à Ciência e Tecnologia de PE (FACEPE), Edital Territórios Sustentáveis e Saudáveis do Programa Inova e do Programa Institucional de Territórios Sustentáveis e Saudáveis (PITSS), da Fundação Oswaldo Cruz, e Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) - Código de Financiamento 001.
Editores-chefes:
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
01 Jul 2024 -
Data do Fascículo
Jul 2024
Histórico
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Recebido
05 Maio 2023 -
Aceito
01 Fev 2024 -
Publicado
04 Mar 2024