Open-access Uma abordagem qualitativa sobre o uso do cateter urinário de longo prazo no contexto ambulatorial

Resumo

O cateter vesical de longa permanência pode ser indicado em situações clínicas, como nas doenças crônicas do sistema genitourinário ou neurológico. Além dos riscos de infecção, traumas e sangramentos, a permanência do cateter pode afetar dimensões psicoemocionais e socioeconômicas. Objetivamos compreender como a necessidade de uso do cateter urinário por um longo prazo afeta a autopercepção, as interrelações e o autocuidado deste paciente. Realizamos um estudo qualitativo, descritivo, a partir da entrevista de 17 pacientes, e aplicamos a análise temática e o pensamento complexo. Os diferentes prognósticos e as expectativas em relação ao cateter influenciaram a autopercepção, a adaptação, sua aceitação ou negação. A presença do cateter, seja como medida curativa ou para conforto, pode afetar a autoimagem e a sexualidade, gerar inseguranças e incertezas, que requerem compreensão da multidimensionalidade das situações, que sofrem interferências do meio pessoal, familiar e social, bem como da capacidade dos sistemas de saúde para o seu enfrentamento. Apesar dos desafios, a maioria dos participantes relatou disposição favorável para o autocuidado, seja para viabilizar retirada do cateter, ou para prevenir agravos em indicações vitalícias.

Palavras-chave: Cateterismo Uretral; Cistostomia; Sintomas do Trato Urinário Inferior; Enfermagem no Consultório; Pesquisa Qualitativa

Abstract

A long-term indwelling catheter may be indicated in clinical situations, such as chronic diseases of the genitourinary or neurological systems. In addition to the risks of infection, trauma, and bleeding, a catheter’s permanence can affect psycho-emotional and socioeconomic dimensions. We aimed to understand how the need to use a long-term indwelling catheter affects this patient’s self-perception, interrelationships, and self-care. We carried out a qualitative, descriptive study based on interviews with 17 patients, and applied thematic analysis and complex thinking. The different prognoses and expectations regarding the catheter influenced self-perception, adaptation, acceptance, or denial. The presence of a catheter, whether as a curative measure or for comfort, can affect self-image and sexuality, and generate insecurities and uncertainties, which require understanding the multidimensionality of situations that suffer interference from the personal, family, and social environment, as well as health systems’ capacity to deal with it. Despite the challenges, the majority of participants reported a favorable disposition towards self-care, whether to enable catheter removal or to prevent injuries in lifelong indications.

Key words: Urinary Catheterization; Cystostomy; Lower Urinary Tract Symptoms; Office Nursing; Qualitative Research

Introdução

Doenças Crônicas Não Trasnmissíveis (DCNT) que afetam o sistema genitourinário ou neurológico, como o câncer, diabetes e as neuropatias, bem como as consequências de algumas infecções virais, como pelo HIV e HTLV, ou mesmo as doenças degenerativas associadas à idade avançada, como a demência e cuidados na terminalidade da vida, podem indicar o uso de cateter urinário de longo prazo1,2, definido como a passagem de um cateter até a bexiga através da uretra que irá permanecer por um período superior a 28 dias drenando a urina em bolsa coletora em sistema fechado1.

O cateter urinário é um dispositivo frequentemente utilizado no ambiente hospitalar, e quando indicado para tratar condições agudas, as melhores evidências científicas recomendam que seja retirado o mais breve possível, para evitar as infecções do trato urinário, o prolongamento do período de hospitalização, a pior qualidade de vida dos pacientes, e otimizar o uso dos recursos em saúde1.

Contudo, quando sua retirada imediata não é possível, a depender da indicação clínica, como no caso de pessoas com lesão medular, alternativas precisam ser avaliadas. A principal refere-se ao cateterismo uretral intermitente, ou seja, a intervalos necessários, sem que o cateter permaneça a todo tempo no circuito entre a uretra e a bexiga, o que facilita a entrada de microorganismos1,3,4.

Para potencializar o cuidado no ambiente domiciliar, o paciente pode ser treinado para o autocateterismo intermitente, quando o procedimento é realizado por ele próprio, com aplicação de técnica limpa, expondo-o a menor risco de infecção, promovendo autonomia, e melhorando a qualidade de vida4,5.

Entretanto, o cateterismo uretral intermitente não é uma indicação terapêutica acessível para todos os pacientes, uma vez que depende de algumas condições relacionadas à disponibilidade de recursos materiais, e à habilitação física, cognitiva e psicoemocional dos pacientes, ou da sua rede de apoio familiar. Além dos impeditivos logísticos e pessoais, há ainda contraindicações clínicas, como no caso de estenose de uretra, aumento do volume da próstata, risco de lesão do trato urinário, de desvios de trajeto do cateter, e de sangramentos4.

Em algumas situações particulares, que impedem a passagem do cateter pela uretra, como na estenose de uretra acentuada, obstrução do colo vesical, traumas vesicais ou uretrais, e mesmo o aumento do volume da próstata, pode ser necessário o cateterismo suprapúbico, também chamado de cistostomia, que compreende a inserção do cateter diretamente na bexiga por acesso pela parede abdominal anterior1.

Àqueles que precisam estar a espera de alguma intervenção curativa, ou como cuidado paliativo, e permanecem com o cateter urinário de longo prazo, é preciso atenção especial para a cronicidade da situação, demandas específicas de cuidado, inseguranças, incertezas e riscos associados ao procedimento2,5.

Salientamos que muitas cirscuntâncias alheias ao paciente podem alargar ainda mais o período de uso do cateter, como devido aos recursos dos hospitais para arranjos de cirurgias eletivas, e disponibilidade de leitos de terapia intensiva, ou mesmo, imprevisibilidades, como a que observamos durante a pandemia da COVID-19, que resultou em cancelamentos de consultas e de cirurgias eletivas6. O fato é que muitos pacientes, acompanhados no ambulatório, permanecem por longos períodos com o cateter urinário2.

O enfemeiro, durante a consulta de enfermagem no ambulatório ou no domicílio, é o profissional que mais estabelece a relação terapêutica com este paciente, por assumir a responsabilidade das trocas periódicas do cateter2. São pacientes com perfil clínico-patológico diferenciado e pouco abordado nos estudos publicados, os quais têm enfoque temático, principalmente, no cateterismo uretral intermitente e no cateter urinário de curto prazo no ambiente hospitalar7.

O uso do cateter urinário de longo prazo envolve uma série de sentimentos e mudanças que afetam a qualidade de vida dessas pessoas2. A presença deste cateter pode abalar a autoimagem e a autoestima, e trazer consequências que perturbam o autocuidado e a capacidade de enfrentamento do problema8. E com base na experiência empírica das autoras enfermeiras nesse contexto, delimitamos a seguinte pergunta: qual a percepção dos pacientes sobre a necessidade de uso do cateter urinário por um longo prazo? E assim, objetivamos compreender como a necessidade de uso do cateter urinário por um longo prazo afeta a autopercepção, as interrelações e o autocuidado deste paciente.

Métodos

Estudo qualitativo, descritivo, guiado pelo Consolidated Criteria for Reporting Qualitative Research (COREQ) para atendimento ao rigor metodológico. Realizado no ambulatório de especialidade destinado à troca do cateter urinário de um hospital universitário, localizado no município do Rio de Janeiro, Brasil. Neste ambulatório o enfermeiro realiza consulta de enfermagem e a troca do cateter urinário, com destaque para o perfil de pacientes com os seguintes diagnósticos médicos: câncer de próstata, hiperplasia prostática benigna e doenças infecciosas ou neurológicas que causam a bexiga neurogênica.

O ambulatório funciona de segunda a quinta-feira, pela manhã, com a atuação de um enfermeiro, além de ser cenário de prática de alunos de graduação em enfermagem, sob supervisão de professora enfermeira. Em média são atendidos de cinco a sete pacientes por manhã, contudo, há situações de atendimento fora da agenda, como os pacientes de primeira vez, ou por demandas espontâneas associadas às queixas de desconforto, danos no circuito da bolsa coletora, obstruções, extravasamento de urina ou sangramento.

Participaram do estudo 17 pacientes, que atenderam os seguintes critérios de inclusão: idade maior ou igual a 18 anos, matrícula na instituição, cadastro no programa de troca de cateter do ambulatório, em uso de cateter via uretral ou suprapúbica/cistostomia de longo prazo. Foram excluídos pacientes hospitalizados durante o período de coleta de dados, com comprometimento da capacidade cognitiva ou que estavam realizando o cateterismo uretral intermitente.

Aplicou-se a entrevista semiestruturada, no período entre novembro de 2020 e março de 2021, com base nas perguntas: o que significa para você estar com uma sonda vesical por um longo tempo? Como você faz para se cuidar estando com esta sonda? O que ajuda e o que atrapalha este cuidado? O que poderia ser feito para melhorar este cuidado? O termo cateter foi substituído por sonda, por ser assim como os pacientes comumente reconhecem este dipositivo.

As entrevistas foram realizadas pela segunda autora, que recebeu treinamento para aplicar esta técnica. Os pacientes foram entrevistados em sala reservada ou na sala de espera do ambulatório, a depender de suas preferências e garantia de manutenção da privacidade.

Previamente à realização das entrevistas, foi caracterizado o perfil sociodemográfico e clínico dos participantes. Foram consideradas as seguintes características: idade, sexo, tipo de cateter, tempo de uso do cateter, indicação de uso do cateter, e com quem reside. Quando o paciente não sabia responder alguma questão, procedeu-se com a consulta ao prontuário.

Aplicou-se o conceito de saturação dos dados; as inferências começaram a se repetir a partir da 10a entrevista9. As entrevistas perfizeram um tempo médio de 10 minutos de duração. Os dados foram transcritos na íntegra, organizados no Microsoft Word®, e analisados seguindo as etapas da análise de conteúdo na modalidade temática. Assim, após a transcrição, foi realizada a leitura das entrevistas, estabelecendo-se um primeiro contato com os textos, na tentativa de apreensão dos sentidos que os participantes deixaram transparecer em suas falas10.

Na segunda fase, foi feita a separação das ideias, frases e parágrafos que identificaram as convergências e divergências dos participantes em relação à temática do estudo. Na terceira e última etapa, foi feita a organização e o mapeamento das semelhanças e diferenças das falas, realizando releituras sucessivas dos textos, com o objetivo de delinear as principais inferências e selecionar as categorias que respondiam à pergunta de pesquisa10.

Todas as etapas de análise foram realizadas manualmente, com anotações nos textos analisados usando canetas e adesivos coloridos para identifcar os padrões em potenciais e os segmentos de dados. Para análise aplicamos o pensamento complexo, de Edgar Morin11-13, por reconhecer a dimensão subjetiva da pesquisa, a complexidade do objetivo, e a multidimensionalidade do fenômeno de interesse.

Face a importância da aplicação da abordagem qualitativa para compreensão do fenômeno investigado, os dados foram apresentados no 11º Congresso Ibero-Americano de Investigação Qualitativa (CIAIQ) na forma de resumo e de artigo completo2.

O projeto de pesquisa obteve aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa em novembro de 2019. Todos os participantes assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido, e os depoimentos foram identificados por códigos alfanuméricos para garantia do anonimato.

Resultados

Dos 17 pacientes entrevistados, 14 (82%) eram do sexo masculino e três (18%) do sexo feminino. A média de idade foi de 68 anos, tendo o paciente mais novo 33 anos e o mais velho 88 anos de idade. A concentração de pacientes deu-se na faixa etária entre 60-69 (35%). Sete (41%) pacientes residiam com a esposa, seis (35%) residiam sozinhos e quatro (26%) com outros membros da família (pai, filhos(as) ou em instituição de longa permanência).

Em relação à caracterização clínica, seis (35%) apresentavam hiperplasia prostática benigna, cinco (29%) bexiga neurogênica, três (18%) retenção urinária, dois (12%) câncer de próstata, e um (6%) estenose de uretra. A média de tempo de uso do cateter foi de dois anos e dois meses, sendo quatro meses o menor tempo e nove anos o maior tempo. A maioria dos pacientes fazia uso do cateter via uretral (88%), enquanto dois (12%) utilizavam a cistostomia. A análise dos dados das entrevistas resultou em duas categorias.

Categoria 1: (In)Certezas sobre a necessidade do uso do cateter urinário

A percepção sobre a necessidade do uso do cateter urinário de longo prazo esteve relacionada à qualidade de vida e à alteração na autoimagem devido a presença do cateter, que requer cuidados específicos e que pode limitar atividades de vida diárias. Associado ao desconhecido e, muitas vezes, ao inesperado, o período inicial de adaptação foi destacado como o mais difícil, prevalecendo, em alguns casos, mesmo após passado algum tempo, a depender do prognóstico e das expectativas com relação ao cateter e com a própria vida.

Estou com a sonda há 17 anos, eu fiz uma cirurgia de hérnia de disco, e perdi os movimentos da cintura para baixo, não sinto urinar, nem evacuar. De início foi difícil, não faz parte do corpo, mas eu vou fazer risco cirúrgico hoje, para tirar e fazer cistostomia. Ela incomoda porque tem que ficar amarrando nas pernas para esconder. Eu não tenho vergonha, mas acho que não há necessidade das pessoas estarem vendo. É mais por causa das pessoas, às vezes elas estão almoçando, então fica constrangedor para as pessoas [...] (P2).

Uso sonda há nove meses, eu fazia maratona, era atleta, graças a Deus, aí prendeu a urina, e não conseguia urinar, ardia muito, vinha queimando. Não procurei o médico, fiquei uns quatro meses sentindo isso. Mas teve uma hora que não deu mais e fui para a UPA [Unidade de Pronto Atendimento - serviço de urgência], colocou a sonda de alívio, e foi quanto começamos a correr atrás, fazer os exames. [...] deu câncer de próstata. Tinha que ter ido no médico mas cedo, mas estava com medo antes. Aí um dia senti muita dor, voltei na UPA, mostrei os exames e me levaram para internar na mesma hora, fui direto para a sala da cirurgia, e colocoram a sonda no pênis. Não foi difícil me adaptar, porque eu estava na ansiedade de melhorar logo, então foi um alívio [...] (P10).

Percebemos nos depoimentos muitas outras necessidades, para além da relacionada à biológica de esvaziar a bexiga, uma vez que estamos lidando com fatores multifacetados, onde uma das intervenções para solucionar ou paliar, como o cateter, contribui para afetar todas as dimensões da pessoa. Entretanto, a característica da abordagem dos problemas de forma fragmentada no modelo biomédico, pode negligenciá-los. Destacamos aqui a questão da saúde sexual, psicoemocional, e do controle da dor.

Só tem uma parte que atrapalha que é o sexo, não tem como, eu sempre fui ativo, tenho esposa, ela entende, fica me zoando, falando para eu tirar [...]. Eu nunca tive nenhum problema, apesar de 74 anos, eu sempre fui ativo, e isso acaba atrapalhando, é a parte que mais atrapalha. E é uma coisa necessária (P17).

Sempre tomei diazepam, e parei de tomar e não consigo dormir de dia e de noite, então fico muito cansando, vou perguntar para o médico se posso voltar a tomar ou trocar de medicamento para conseguir descansar à noite, porque já tenho ansiedade, achando que vou morrer, tenho 75 anos (P10).

Vai fazer seis meses que uso a sonda. Não estou me acostumando de jeito nenhum, a pior parte é quando incha o pênis, aí aperta e começa a sair sangue. A sonda atrapalha quando eu durmo, e sair na rua também é desconfortável, é a pior coisa da minha vida. Tinha que parar de doer, porque dói muito (P9).

Categoria 2: Reorganizando recursos internos e externos em busca de apoio e resistência ao uso do cateter

Evidenciamos nos depoimentos que as redes de apoio familiar e social, quando presentes e fortes, interferem positivamente no processo de reabilitação ou cuidados paliativos da pessoa com o cateter. Contudo, a necessidade de cuidados continuados, não só pelo uso do cateter de longo prazo, mas pelas condições associadas a esta intervenção, pode estressar essas fontes de recursos. Destacamos ainda questões estruturais e habitacionais que interferem nesta dinâmica.

Dei sorte de vir para cá, mas o que dificulta é a distância, tem vezes que vinha todo dia por causa do tratamento e meu filho que me trazia. É cansativo, porque não consigo vir de ônibus. E estou sempre vindo ao médico aqui, é urologista, é oncologista [...] (P10).

Meu filho me trás de carro, mas é difícil, porque às vezes tenho que vir três vezes na semana, e moro no segundo andar, tenho que descer escada [...]. Meu filho e minha mulher me ajudam a cuidar da sonda, os outros filhos não me ajudam em nada, só visitam e vão embora, falam que tem nojo [...] (P8).

Ao tratar de recursos, levantamos também a questão dos recursos financeiros dos próprios pacientes. Neste caso, para aqueles que dependiam do uso de fraldas, e que precisavam comprá-las por meios próprios, a indicação do cateter significou reduzir este tipo de custo. Enquanto que para outros, o conjunto de medidas para o tratamento, incluindo o uso de medicações, pode ter sido um fardo maior.

Foi bem fácil me adaptar com ela [sonda], eu ficava gastando muito dinheiro com fralda, não conseguia ter controle, ficava esperando cirurgia. Então foi uma beleza quando a urina começou a sair pela sonda (P14).

[...] os remédios também que eles passam, são muito caros (P9).

Apesar das adversidades, a maioria dos participantes relatou disposição favorável para o autocuidado, seja entre os que mantém a esperança de uma dia não precisar mais do cateter, ou entre aqueles conscientes da necessidade deste dispositivo permanentemente. E, apesar deste tipo de certeza poder gerar instabilidades emocionais, percebemos nos participantes atitudes positivas para prevenção de novos agravos.

Eu cuido sozinho da sonda, só não fico andando, fazendo esforço, que aí parei mesmo. Eu tenho que ficar o resto da vida com a sonda, não posso fazer nada, então tenho que cuidar ao máximo e fazer a higiene correta dela (P7).

Uso a sonda há dois anos, eu tenho hiperplasia da próstata, eu já vinha tratando há um tempo e começou a me dar febre e infecção, porque eu tinha incotinência urinária, comecei a fazer cateterismo intermitente, e não me adaptei [...]. Eu bebo muita água para não infeccionar. Cuido sozinho, tomo banho, abro, depois fecho, nisso já são dois anos. A maior dificuldade é para dormir mesmo, de ter que dormir de um lado só para não tracionar a sonda. Fora isso, não tem outra dificuldade, e vou esperando [...]. Fiz todos os meus exames e já estou com o risco cirúrgico para ver como vai ser. No começo foi difícil, até hoje ela me incomoda, quero logo operar para tirar ela daqui, mas eu já me adaptei (P8).

Destacamos que as medidas de distanciamento social pela COVID-19 trouxeram repercurssões negativas na participação de familiares neste plano de cuidados, bem como, prolongaram incertezas relacionadas ao desfecho para solução do problema.

Estou usando a sonda desde agosto do ano passado, fui extrair a urina, e deu hemorragia e fiquei internado por oito dias. Tenho a próstata grande, e fiquei lá internado, me colocaram lá na ala de corona [coronavírus], e não me deixaram ver minha esposa, porque ela é diabética (P1).

Discussão

A indicação clínica do cateter urinário para esses pacientes acontece, principalmente, em momentos de incertezas, seja em busca de um diagnóstico médico mediante o desenvolvimento de sinais e sintomas, seja por consequência de uma ocorrência aguda, mas capaz de alterar a função do sistema biológico envolvido - o genitourinário, ou mesmo por evolução de uma doença que ameaça a continuidade da vida2.

Tais situações são imbricadas por uma série de fatores que as tornam ainda mais complexas, principalmente quando há falta de clareza sobre o plano terapêutico e dificuldade de entendimento por parte dos pacientes das informações em saúde12,13. Muitos pacientes relataram ansiedade pela espera da retirada do cateter, e incertezas sobre a condição clínica atual e o que esperar para a sua solução ou paliação14,15.

A dialogia entre certeza e incerteza11 já pode ser percebida quando pensamos no tempo, porque partimos de uma definição que considera o longo prazo um período superior a 28 dias. Entrentato, não estamos falando apenas de dias, e sim lidando com pacientes que usam o cateter por um tempo médio de dois anos e dois meses, sendo período marcado por notícias e fatos que os fizeram manter a dependência deste dispositivo, assim como, melhorar ou piorar a sua autopercepção, interrelações e autocuidado em relação à esta condição2.

Em alguns casos, o plano inicial de tratar um quadro aparentemente agudo, geralmente em abordagens nos serviços de urgência e emergência, pôde implicar em maior dificuldade de aceitação do cateter, não reconhecido como parte do corpo, mas que por outro lado, foi a solução para aquele desconforto intenso. Aceitar ou negar o cateter revela também a linha tênue entre a percepção do que pode ser bom ou mau para si próprio. Percebe-se aqui a contradição, pautada sobretudo num raciocínio lógico, o que na visão complexa, significa atingir estratos mais profundos da realidade11.

Neste tópico, destacamos particularidades da saúde do homem; nossa amostra não intencional foi majoritariamente masculina (82%). Por natureza e autoconceito de ser no mundo, os homens retardam a busca por ajuda médica. Alguns nos revelaram que este retardo foi devido ao medo da verdade, de uma confirmação diagnóstica que comprometesse a sua masculinidade16. Quando a busca por ajuda se torna inevitável, novos riscos podem ser associados, como vulnerabilidade às infecções, capacidade desajustada de enfrentamento, diagnóstico tardio, e opções terapêuticas mais limitadas, como a própria indicação do cateter urinário nesses casos17.

O uso do cateter urinário, face o seu prognóstico para um longo prazo, gera desequilíbrios que requerem relação de ajuda profissional e familiar para (re)organização da vida de forma diferente2,10. Os participantes destacaram ansiedade, carências, insuficiências, resistência e desejo de retirar o cateter e resolver a situação18. Trata-se um desejo interno, que pode não ter força suficiente para causar a mudança diante de um sistema maior e que trabalha com uma lógica desequilibrada entre pouca oferta e muita demanda.

Implica dizer que, além da fraca representatividade desse desejo diante do todo, outras partes influenciam neste desfecho11, tal como a própria dinâmica dos hospitais públicos, com intervalos alargados entre consultas, déficit de profissionais de saúde, e dificuldade na gestão dos seus recursos. Além da resposta clínica da própria pessoa, que se espera que seja favorável às demais intervenções farmacológicas e não farmacológicas, e assim, condicionar uma abordagem de maior densidade tecnológica, como nos casos de cirurgias para tratar afecções da próstata.

Até que se tenha delineada a melhor conduta para cada caso, incluindo os paliativos e com indicação de uso vitalício do cateter, outros problemas passam a ganhar relevância, como a idade avançada, a evolução do nível dependência para os cuidados, os desgastes emocionais e financeiros, e a falta de estrutura habitacional.

Destacamos que, em alinhamento com as indicações clínicas de uso do cateter em nossa amostra, 35% eram idosos, sendo a média de idade do grupo de 68 anos. E no caso dos idosos, os discursos foram equacionados e complacentes com suas experiências de vida, assim como pela morte que se aproxima, em mais uma importante dialogia entre a vida e a morte que precisa ser valorizada no cuidado a essas pessoas2,11.

Contudo, o aumento da expectativa de vida é percebido como melhoria do estado de saúde da população, muitas vezes desconsiderando as mudanças nos níveis de morbidade, incapacidades, ou outros indicadores de condições de saúde do idoso19. É fundamental atentar para as particularidades da população idosa, que com o passar dos anos sofre com a ampliação dos estados de morbidade, resultando na multimorbidade20. Esta condição, associada às limitações físicas do processo natural de evelhecimento, pode requerer apoio para os cuidados diários com o cateter, uma vez que a sua presença pode afetar a segurança, elevando, por exemplo, o risco de queda.

Apesar dos nossos dados terem sido coletados no ambulatório, o aumento da expectativa de vida e da maior vulnerabilidade dos idosos à retenção urinária, por exemplo, ainda é uma preocupação latente, e que pode ampliar o número de idosos residentes em instituição de longa permanência, onde prevalece o uso do cateter urinário com a indicação para longa duração21. Como extensão do ambiente domiciliar, nas instituições de longa permanência o uso do cateter urinário de longo prazo também requer cuidados diários, muitas vezes ainda mais intensificados, profissionalizados, e proporcionais ao nível de depedência dos idosos que precisam deste tipo de institucionalização.

Revisão sistemática sobre a prevalência de cateteres urinários de longo prazo nas residências de longa permanência para idosos apontou que mais estudos precisam ser desenvolvidos para avaliar a indicação deste dispositivo, e analisar a pertinência da sua indicação clínica, face às consequências negativas do uso crônico21.

Embora numa parte do cuidado diário a indicação do cateter urinário de longo prazo possa transparacer uma facilidade instrínseca em meio às tarefas do dia a dia quando comparado à troca periódica de fraldas e aos cuidados de higiene, na perspectiva do todo inerente à gestão dos recursos em saúde, e às suas complicações, especialmente no idoso, o cateter urinário de longo prazo pode representar aumento dos custos e pior qualidade de vida21.

Assim, avaliar a real necessidade do cateter ou se ele pode ser removido, ou mesmo substituído por alternativas alinhadas às necessidades e preferências dos pacientes, embora não haja evidência se a diferença entre os cateteres uretrais ou suprapúbicos reflitam invariavelmente necessidades diferentes, implica na lógica do cuidado centrado na pessoa, o que ainda não acontece em muitos contextos que orientam suas práticas no cuidado centrado na doença11,21.

Essa lógica dos sistemas de saúde, pautada no modelo biomédico e centrada no hospital, foi ainda mais perturbada pela pandemia da COVID-19. Além de ter resultado em medidas que alteraram os planos terapêuticos para esses pacientes, devido ao adiamento de consultas, exames, e cirurgias eletivas, provocou ainda mais incertezas e contradições.

Sendo maioria idosos, com doenças crônicas ou que afetam a imunidade, a contradição entre a necessidade de sair de casa, se expor à COVID-19, e de certa maneira, ter que realizar a troca períodica do cateter no hospital pôde intensificar sentimentos de insegurança e medo, além do isolamento, especialmente durante internações22,23. Sem dúvidas, os pacientes em uso de cateter urinário de longo prazo também foram afetados pelo estresse desta pandemia, devido à mudança da rotina diária, adaptação do novo cenário, distanciamento comunitário, familiar e laboral22.

As dificuldades manifestadas pelos participantes, em relação à gestão dos cuidados com a dor e outras necessidades psicoemocionais, alertam para o cuidado emocional e capacitação do cuidador/familiar, para garantir a continuidade de cuidados e suportar o uso de estratégias de enfrentamento efetivo que permitam lidar com a doença, gerir o apoio emocional e os sentimentos despertados pela prestação de cuidados23.

Em algumas situações a necessidade de uso do cateter urinário de longo prazo está associada a uma doença recente, que implica a transição para o papel de cuidador, para que sejam garantidas as necessidades de autocuidado e saúde de pessoas com situações clínicas complexas.

Desse modo, os dados nos levam à discussão sobre os cuidados paliativos, na contra-mão do modelo de saúde ainda fragmentado, e incapaz de relacionar o todo e as partes, seja no âmbito da própria rede de atenção, do contexto social e de individualidade da pessoa assistida11. No campo da individualidade percebemos nos relatos situações paralelas, que extrapolam a presença do cateter. Realidades que causam dor, vergonha, constrangimento e limitações nas atividades de vida diária. A multidimensionalidade, considerada na perspectiva filosófica dos cuidados paliativos, e muitas vezes esquecida no modelo biomédico cartesiano e hegemônico, é um fenômeno complexo que, assim como um tecido, é formado por elementos diferentes mas inseparáveis11.

O descuido relacionado às diferentes dimensões que envolvem o paciente no processo saúde-doença configura o “desafio cultural”13, onde existe uma separação entre a cultura humanística e a cultura científica; esta última ainda separa as áreas do conhecimento, fortalecendo também o “desafio cívico”13, onde diante do enfraquecimento de uma percepção global, cada um tende a ser responsável apenas por uma parte, uma especialidade, gerando prejuízos para todos os envolvidos.

Considerações finais

Nossos dados revelaram que as mudanças ocasionadas pela presença do cateter urinário de longo prazo, somadas às incertezas da condição clínica, da capacidade de atendimento dos serviços e seus ajustamentos em decorrência da COVID-19, refletem a autopercepção de dependência do cateter para realizar a função biológica de esvaziar a bexiga e aliviar o desconforto, mas também da sua presença física alterando a autoimagem, a autoestima e as interrelações sociais.

Os diferentes prognósticos e as expectativas em relação ao cateter influenciam essa autopercepção, bem como a capacidade de enfretamento e adaptação ao cateter, para sua aceitação ou negação. Entretanto, apesar das limitações provocadas pelo cateter, os pacientes referiram disposição favorável para o autocuidado, seja para viabilizar a sua retirada o mais precoce possível, ou para prevenir agravos em indicações vitalícias.

Destacamos como limitações deste estudo a aplicação de apenas uma técnica de coleta de dados, por considerarmos que a triangulação com a observação, por exemplo, poderia enriquecer a compreensão do fenômeno, salvaguardando a abordagem qualitativa, fundamental para o alcance do objetivo e respeito à subjetividade do tema. Consideramos ainda a necessidade de inclusão de familiares/cuidadores e ampliação para outros cenários.

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  • Editores-chefes:
    Maria Cecília de Souza Minayo, Romeu Gomes, Antônio Augusto Moura da Silva

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Ago 2024
  • Data do Fascículo
    Ago 2024

Histórico

  • Recebido
    10 Out 2023
  • Aceito
    03 Abr 2024
  • Publicado
    05 Abr 2024
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