Resumo
Objetivou-se identificar fatores associados à atenção à saúde infantil na atenção primária à saúde (APS), na perspectiva das ações preconizadas pela Rede de Cuidados à Pessoa Deficiência (RCPCD), quanto à identificação precoce de deficiências e acompanhamento do desenvolvimento infantil. Trata-se de estudo transversal, multicêntrico, realizado em oito estados brasileiros. A coleta de dados envolveu a aplicação de questionário estruturado com profissionais de saúde de nível superior atuantes na APS, com amostra aleatória estratificada por estado e município. Foram realizadas regressões de Poisson com variância robusta para duas variáveis resposta. Entre os 1.488 trabalhadores que compuseram a amostra final, 63,6% realizam ações de identificação precoce de deficiências e 49% efetuam acompanhamento do desenvolvimento infantil. As equipes de Saúde da Família (eSF) identificam e acompanham mais do que as equipes do modelo tradicional, e os Núcleos Ampliados de Saúde da Família e Atenção Básica realizam mais ações de acompanhamento do que essas equipes. Conclui-se que os fatores mais associados com a identificação e o acompanhamento de crianças com deficiências na APS foram aqueles relativos à formação profissional, à eSF e ao conhecimento de normativas relativas à RCPCD.
Palavras-chave: Atenção primária à saúde; Criança com deficiência; Serviços de saúde para pessoas com deficiência
Abstract
The aim of this study was to identify factors associated with early identification of disabilities and developmental follow-up of children in primary health care (PHC) services under the Care Network for People with Disabilities (RCPCD). We conducted a cross-sectional study using data from a multicenter study undertaken in eight states. The data were collected using a structured questionnaire answered by PHC professionals with degree-level qualifications selected using random sampling and stratified by state and municipality. Poisson regression with robust variance was performed for the two outcomes. Of the 1,488 workers in the final sample, 63.6% performed early identification of disabilities and 49% provided developmental follow-up. Family health teams performed early identification of disabilities and follow-up more than traditional model teams, and expanded family health teams provided developmental follow-up more than both these teams. The factors that showed the strongest association with identification and developmental follow-up were profession, working in a family health team and knowledge of the RCPCD.
Key words: Primary health care; Disabled children; Health services for persons with disabilities
Introdução
A atenção à saúde da criança com deficiência no Brasil historicamente se inicia com a organização da sociedade em serviços filantrópicos na perspectiva moral e caritativa. Tal modelo prevaleceu até a Constituição Federal de 1988 e o advento do Sistema Único de Saúde, quando surgem leis complementares e ações, ainda que fragmentadas, para garantir o acesso à saúde de crianças e adolescentes1-3.
Visando superar a fragmentação do cuidado e com base nas discussões sobre modelos assistenciais, foram instituídas, pelo Ministério da Saúde, as redes prioritárias de atenção à saúde. Muitas das ações estratégicas para a saúde da criança foram atribuídas à Rede Cegonha, hoje denominada Rede de Atenção Materno Infantil, e, na especificidade do cuidado à criança com deficiência, à Rede de Cuidados à Pessoa com Deficiência (RCPCD)4,5.
As ações para identificação precoce de deficiências e intervenção precoce apresentada pela RCPCD são constituídas, entre outras atividades, pela triagem e o acompanhamento infantil de bebês e crianças na primeira infância, conforme preconizado pelas Diretrizes de Estimulação Precoce de 2016 e no instrutivo normativo sobre a RCPCD no âmbito do SUS de 2020. Tais documentos defendem que a identificação precoce e o acompanhamento da criança, no seu desenvolvimento pleno, são deveres do Estado e devem contemplar análises dos aspectos motor, cognitivo, sensorial, linguístico e socioemocional, o que permite encaminhamentos oportunos, independentemente da determinação de diagnóstico. Como componente da RCPCD, cabe à atenção primária à saúde (APS) a identificação precoce das deficiências, por meio da qualificação do pré-natal e da atenção na primeira infância, bem como o acompanhamento dos recém-nascidos de alto risco até os dois anos de vida4,6,7.
Nos últimos anos, tem-se encontrado apenas alguns estudos de abordagem qualitativa ou relatos de experiência sobre o acompanhamento e cuidado de crianças com deficiência na APS. Isso revela uma escassez de informações sobre as ações executadas, em especial aquelas voltadas às diferentes dimensões do desenvolvimento infantil, e acerca dos possíveis fatores associados à perspectiva do cuidado na rede de atenção8,9.
Desse modo, o objetivo do presente estudo foi identificar quais fatores estão associados com a atenção à saúde infantil, dentro da APS, na perspectiva das ações preconizadas pela RCPCD, em relação à identificação precoce de deficiências e ao acompanhamento do desenvolvimento infantil.
O estudo pode contribuir para aprimorar as ações de vigilância das equipes de APS, visando identificar alterações no desenvolvimento neuropsicomotor e a necessidade de acompanhamento regular por profissionais especializados, minimizando os riscos de prejuízos na funcionalidade dessas crianças6.
Métodos
Trata-se de estudo observacional analítico transversal realizado com dados obtidos por meio do estudo multicêntrico “Avaliação da implantação da Rede de Cuidados Integral à Pessoa com Deficiência no SUS - Redecin-Brasil10.
O estudo Redecin-Brasil foi realizado em oito estados representantes das cinco regiões geográficas do Brasil: Paraíba (PB) e Bahia (BA) na região Nordeste; Amazonas (AM) na região Norte; Mato Grosso do Sul (MS) no Centro-Oeste; São Paulo (SP), Minas Gerais (MG) e Espírito Santo (ES) na região Sudeste; e Rio Grande do Sul (RS) na região Sul.
Para cada estado foram selecionadas três regiões/macrorregiões de saúde com graus distintos de implantação da RCPCD, segundo indicação da gestão estadual da RCPCD, isto é, implantação avançada, moderada e incipiente. Para cada região/macrorregião foi solicitada à gestão estadual a indicação de um município com maior número de equipamentos da RCPCD e um com menor número de equipamentos, totalizando 49 municípios10.
A população do estudo foi composta por profissionais de saúde de nível superior, atuantes na APS, com amostra aleatória estratificada por estado e município com partilha proporcional de número de profissionais médicos, enfermeiros, dentistas e do Núcleo Ampliado de Saúde da Família e Atenção Básica (NASF-AB)/Equipe Multiprofissional, considerando os tipos de modelos organizativos da APS. O número total de profissionais definido pelo cálculo amostral foi de 1.709, considerando a quantidade de profissionais e habitantes residentes em cada município participante, com margem de erro de 1,8% e 95% de nível de confiança.
Para responder ao objetivo foram consideradas duas variáveis dependentes: (1) realizar identificação precoce de deficiências no pré-natal e na primeira infância e (2) realizar acompanhamento em recém-nascidos de alto risco até os dois anos de vida. A partir de um questionário estruturado, os profissionais responderam sobre a atuação para identificação precoce de deficiências com a pergunta “você realiza a identificação precoce das deficiências, por meio de qualificação do pré-natal e da atenção na primeira infância?”. Para a segunda variável, sobre ações de acompanhamento do desenvolvimento infantil, foi feita a pergunta “você realiza acompanhamento dos recém-nascidos de alto risco até os dois anos de vida, tratamento adequado das crianças diagnosticadas e suporte às famílias conforme as necessidades?”. Considerou-se a não identificação ou o não acompanhamento, as respostas «nunca” e “raramente” e identificação e acompanhamento “na maioria das vezes” e “sempre”. Ressalta-se que o questionário descrito foi elaborado com base nas normativas da RCPCD pela Portaria do Ministério da Saúde nº 793/20124.
Foram variáveis independentes o perfil pessoal e profissional, educação permanente e estados brasileiros. Assim, informações sobre idade, sexo e tempo de atuação na APS (em anos) compuseram o estudo. As equipes de APS foram: 1) Tradicionais (englobando Equipe da Atenção Básica Modelo Tradicional, Equipe de Saúde Bucal, Estratégia de Agentes Comunitários de Saúde, Equipe de Consultório na Rua, Equipe Multidisciplinar de Saúde Indígena e outros); 2) Estratégia Saúde da Família (englobando Equipe de Saúde da Família, Equipe de Saúde da Família Ribeirinha e Equipes de Saúde da Família Fluviais); e 3) NASF-AB, contendo as equipes ampliadas. A formação profissional foi agrupada em: enfermagem/medicina; reabilitação (contemplando fisioterapia, fonoaudiologia, terapia ocupacional e psicologia), conforme Guia da Organização Mundial de Saúde para a Avaliação da Força de Trabalho em Reabilitação adaptado para a APS no Brasil11; e outros (incluindo: cirurgião dentista, nutricionista, assistente social, profissional de educação física e demais).
Os estados brasileiros foram os oito participantes do estudo Redecin-Brasil. Para educação permanente, considerou-se: conhecer a RCPCD do município de atuação profissional e conhecer as publicações do Ministério da Saúde que apoiam os profissionais de saúde na qualificação da atenção à pessoa com deficiência.
As variáveis categóricas foram apresentadas em frequência absoluta e relativa (%), e as variáveis contínuas como mediana e intervalo interquartil, conforme teste de normalidade de Kolmogorov-Smirnov. Foram calculados os percentuais e intervalos de confiança da identificação precoce de deficiências e o acompanhamento do desenvolvimento infantil. Foi também efetuada regressão de Poisson na base logarítmica com variância robusta para os desfechos: (1) identificação precoce de deficiências e (2) acompanhamento em recém-nascidos de alto risco até os dois anos de vida. Para tanto, foram feitas regressões bivariadas com as variáveis de interesse para cálculo das razões de prevalência (RP) brutas e seus intervalos de 95% de confiança. As variáveis com p < 0,20 na análise bivariada foram adicionadas ao modelo multivariado. Foi utilizado o método backward stepwise como método de entrada de variáveis, permanecendo no modelo final aquelas variáveis com significância estatística (p < 0,05) e melhor ajuste do modelo (medida AIC) em cada desfecho.
O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Centro de Ciências da Saúde da Universidade Federal da Paraíba, sob CAAE nº 13083519.3.1001.5188, e por outros comitês de ética das instituições coparticipantes dos estados.
Resultados
Devido às dificuldades na logística da coleta de dados, participaram da pesquisa 1.555 trabalhadores da APS. Houve perdas de informações para algumas variáveis, resultando em um total de 1.488 indivíduos para as análises finais deste estudo. A maioria dos participantes era do sexo feminino e apresentaram mediana de 38 anos de idade. A mediana do tempo de atuação na APS foi de seis anos. A Tabela 1 apresenta informações demográficas e de trabalho dos profissionais. A maioria deles fazia parte da equipe de saúde da família e predominantemente tinham formação profissional em enfermagem e medicina.
A Figura 1 mostra o percentual e seus intervalos de confiança para profissionais que reconhecem fazer ações para identificar precocemente deficiências e acompanhar o desenvolvimento infantil. Percebe-se que, de modo geral, a maioria dos trabalhadores não relatou realizar ações de acompanhamento infantil, assim como muitos (aproximadamente 36%) relataram não participar de ações de identificação. Nessa perspectiva, é possível observar que nem todos os profissionais que participam da identificação fazem também o acompanhamento.
Percentual e intervalo de confiança para ações de identificar precocemente as deficiências e acompanhar o desenvolvimento infantil.
A Tabela 2 mostra as informações sobre os fatores associados com a identificação precoce de deficiências na APS. Verificou-se que os profissionais que apresentaram associação positiva com a identificação precoce de deficiências foram aqueles das equipes de saúde da família (RP: 1,12; IC95%: 1,02-1,22), que acompanham o desenvolvimento de recém-nascidos de alto risco (RP: 1,79; 1,63-1,95) e conhecem a RCPCD do seu município (RP: 1,09; 1,02-1,16). Entretanto, os profissionais de reabilitação (RP: 0,77; 0,61-0,97) e outros da equipe multiprofissional (RP: 0,52; 0,45-0,60) tiveram associação inversa, em comparação aos profissionais da enfermagem e medicina. Não foi percebida influência da idade ou tempo de experiência do profissional no relato de identificação de deficiências.
No presente estudo não foi observada diferença significativa entre os estados participantes da pesquisa para o impacto direto no processo de identificação de deficiências e acompanhamento do desenvolvimento infantil, revelando que para tais fatores existe certa uniformidade no padrão de variáveis que afetam a identificação e o acompanhamento.
A Tabela 3 apresenta os modelos bivariado e multivariado que tiveram influência para o acompanhamento de recém-nascidos de alto risco até os dois anos de vida. Os profissionais que relatam acompanhar menos o desenvolvimento infantil até dois anos foram aqueles com 38 anos ou mais de idade (RP: 0,88; IC95%: 0,80-0,96), de reabilitação (RP: 0,71; 0,56-0,80) e outros (RP: 0,67; 0,56-0,93), em comparação aos de menor idade e os da enfermagem e medicina, respectivamente. Verificou-se associação positiva com o acompanhamento do desenvolvimento infantil até dois anos nos profissionais das equipes de saúde da família (RP: 1,47; 1,27-1,71), dos NASF-AB/Equipe Ampliada (RP: 1,61; 1,27-2,98), que identificam deficiências (RP: 3,36; 2,72-4,17) e conhecem a RCPCD do seu município (RP: 1,13; 1,03-1,24) e as publicações do Ministério da Saúde que apoiam os profissionais de saúde na qualificação da atenção à pessoa com deficiência (RP: 1,29; 1,09-1,32), em comparação com as equipes do modelo tradicional, que não identificam, que não conhecem a rede e as publicações, respectivamente.
Discussão
De modo geral, é possível observar que o quantitativo de respondentes que relataram realizar ações de identificação precoce de deficiências (63%) e de acompanhamento do desenvolvimento infantil (49%) está aquém do esperado, considerando que essas ações estão previstas no eixo Promoção e Acompanhamento do Crescimento e do Desenvolvimento Integral da criança, na Política Nacional de Atenção à Saúde da Criança12. Resultados do Programa de Melhoria do Acesso e da Qualidade da Atenção Básica (PMAQ-AB) apontaram que no Brasil as equipes da APS fizeram o acompanhamento das crianças em 77%, 76% e 87% dos casos nos anos de 2012, 2014 e 2017/18, respectivamente13. No entanto, esse dado do PMAQ-AB diz respeito a qualquer ação realizada na UBS para com a criança, e não ao acompanhamento específico de crianças com deficiências ou alterações no desenvolvimento infantil. Portanto, parece razoável as prevalências de identificação e acompanhamento infantil encontradas por este estudo. Tal achado vai de encontro ao preconizado pelas diretrizes de cuidados à atenção infantil na RCPCD, assim como ao instrutivo normativo e às diretrizes de estimulação precoce, que enfatizam que a APS tem como uma de suas atribuições o acompanhamento do desenvolvimento das crianças de seu território. Além disso, é de responsabilidade dos profissionais de saúde e das equipes da APS atentar-se à vigilância e ao cuidado infantil, envolvendo consultas de crescimento e desenvolvimento, e favorecendo o vínculo e a identificação precoce de situações que precisam ser acompanhadas de forma regular e sistemática4,6,7. Nesse sentido, esperava-se que, se não a totalidade, a grande maioria dos trabalhadores da APS estivesse habilitada e relatasse participar das ações de identificação e acompanhamento infantil.
No cenário internacional, diversos estudos relatam a importância da identificação precoce de deficiências e o acompanhamento do desenvolvimento infantil, sobretudo em bebês de risco, que apresentam histórico de prematuridade, internações neonatais ou hipóxia/anóxia neonatal, riscos de alterações genéticas ou neurológicas e consanguinidade dos pais, por exemplo. Para eles, a identificação precoce do atraso no desenvolvimento é crítica e deve ser aplicada a todos os bebês de risco, especialmente com utilização de escalas padronizadas de avaliação, como é o caso do exame neurológico infantil de Hammersmith (HINE) e das escalas de Desenvolvimento do Bebê e da Criança Pequena Bayley III. Os estudos recomendam uma avaliação criteriosa do desenvolvimento infantil, a fim de identificar potenciais alterações e possibilitar a intervenção precoce14-16.
Em relação às equipes da APS, é importante ponderar que o fluxo de cuidado na atenção infantil envolve o contato inicial com a equipe de Saúde da Família ou a equipe Tradicional e, caso seja identificada a necessidade de apoio multiprofissional, a criança é encaminhada para o acompanhamento com o NASF-AB9. Assim, revela-se pertinente encontrar o NASF-AB como a equipe que mais executa ações de acompanhamento do desenvolvimento infantil, alcançando 61% a mais do que a equipe de modelo tradicional, por exemplo. O NASF-AB tem um papel de extrema importância na APS, sendo formado por outros profissionais além da equipe mínima, como assistente social, fisioterapeuta, fonoaudiólogo, terapeuta ocupacional, entre outros. A atuação desses profissionais deve ocorrer prioritariamente por meio do apoio matricial, seja na sua dimensão técnico-pedagógica ou clínico-assistencial, para a condução de intervenções específicas, além de ações coletivas e de coordenação do cuidado. Eles promovem ações de reabilitação e prevenção de deficiências e acompanhamento do desenvolvimento infantil incluídas em suas diretrizes17.
Em contrapartida, verificou-se menor atuação do NASF-AB na identificação de deficiências em comparação com as equipes de Saúde da Família (eSF). Tal resultado é compreensível, uma vez que as consultas de puericultura na APS costumam ficar a encargo dos profissionais da equipe mínima, sobretudo de enfermagem. Na pesquisa de Figueiras et al. foi observado que, em geral, o nível de conhecimento dos médicos e enfermeiros das eSF sobre desenvolvimento infantil era insatisfatório e que eles não utilizavam métodos de avaliação para averiguar as aquisições neuropsicomotoras18. Na mesma linha, os estudos de Van Schaik et al.19 e Gubert et al.20 apontaram que normalmente os profissionais ou se detêm a observar características estaturais das crianças ou buscam por casos clássicos de alterações no desenvolvimento, geralmente graves, deixando passar os moderados e leves, que poderiam, mediante identificação precoce e oportuna, ter altas taxas de sucesso nas intervenções. Gubert et al.20 ainda acrescentam que somente medidas antropométricas e o preenchimento de gráficos não são práticas suficientemente adequadas para o monitoramento infantil, uma vez que, além da necessidade do olhar ampliado ao processo de desenvolvimento, existe também o caráter educativo da consulta e a comunicação com a família, que demandam múltiplos saberes, inclusos em equipes ampliadas (multiprofissionais), e caracterizam-se como fatores essenciais para a promoção da saúde.
Quando observado o fator formação profissional, foi identificado que a equipe de reabilitação, formada por fisioterapeuta, fonoaudiólogo, terapeuta ocupacional e psicólogo executa 23% menos as ações de identificação de deficiências e acompanha 29% menos do que médicos e enfermeiros. Tal achado pode estar associado à prática tradicional, vinculada ao modelo biomédico na atenção à saúde, em que o processo de identificação e acompanhamento infantil está vinculado a ações de puericultura básicas que privilegiam, de modo muito pragmático, apenas o acompanhamento do crescimento em detrimento à observação do desenvolvimento em seus vários domínios, incluindo os regimentais, segundo as diretrizes de cuidado na atenção à saúde infantil, como: desenvolvimento motor, cognitivo, sensorial, linguístico e socioemocional21.
Segundo a Organização Mundial de Saúde11, os profissionais de reabilitação assistem as pessoas com deficiência para melhorar a funcionalidade, modificando o ambiente para acomodar suas necessidades, usando produtos assistivos ou em terapia de reabilitação física, psicológica, cognitiva e sensorial. Assim, esperava-se que tais profissionais tivessem competências específicas ao proporcionar olhar conveniente às necessidades22 para identificação precoce de deficiências e acompanhamento de bebês de risco, em comparação com outros profissionais, com exceção de médicos e enfermeiros (equipe mínima).
É consenso que negligenciar os domínios diversos do desenvolvimento infantil envolvidos com o cuidado multidisciplinar pode gerar déficits na identificação de inúmeras atipicidades que levam a alterações neuromotoras e/ou neurocomportamentais23. Na mesma linha, o cuidado do pré-natal é um dos serviços oferecidos pelo SUS que representa um importante papel do acompanhamento na saúde infantil e materna, devendo ser conduzido e realizado também por equipe multidisciplinar. Esse acompanhamento é feito para prevenir ou detectar precocemente comprometimentos neonatais e maternos, alterações no desenvolvimento fetal, reduzir partos prematuros, facilitar intervenções ainda intraútero e intervenções oportunas24.
Além da questão primordial associada diretamente à saúde infantil, déficits na identificação precoce de deficiência e, consequentemente, na detecção de alterações do crescimento e desenvolvimento infantil prejudicam a informação e geração de dados, que são balizadores para a elaboração e o fortalecimento de políticas públicas voltadas a minorar comprometimentos e problemas associados à saúde infantil. Nesse sentido, a não identificação e monitoramento de deficiências comprometem a formulação de políticas públicas, impactando a funcionalidade dessas pessoas e gerando custos diretos e indiretos indesejados relacionados à deficiência25,26.
A atenuação desses agravos ou deficiências identificadas em tempo oportuno favorece a inclusão, desde o momento escolar até o profissional, impactando diretamente na qualidade de vida dos indivíduos envolvidos nas ações e na sociedade em geral, pois geram impacto econômico e contribuição social. Ahmed Shahat et al.27 assinalam que “esse ônus econômico é compartilhado pela família da criança com deficiência, pelos serviços públicos de saúde e pela sociedade”.
Ao analisar o conhecimento sobre publicações do Ministério da Saúde e RCPCD foi observado que tanto para as ações de identificação de deficiências quanto para o acompanhamento infantil, conhecer a RCPCD teve relevância significativa. Isso pode ser explicado partindo do pressuposto que, quando se conhecem as normativas e as ações envolvidas com a RCPCD, há mais informações sobre fluxos de cuidados, procedimentos assistenciais, articulação, matriciamento e ações de prevenção e identificação de deficiências. Tais informações podem subsidiar os processos de trabalho, otimizando as ações vinculadas à atenção infantil, segundo as normas e portarias vigentes, o que potencialmente está associado a capacitações obtidas por esforço profissional individual ou por equipe21. Foi encontrado também que profissionais com idade inferior a 38 anos desenvolvem mais ações de acompanhamento de crianças com atipicidades. Partindo do pressuposto de que profissionais mais jovens têm formação mais recente, incluindo capacitações e acesso às diretrizes clínicas atuais de atenção infantil, espera-se que esses profissionais executem mais as ações de acompanhamento do desenvolvimento infantil, conforme evidenciado por Santos et al.28, que defendem a educação permanente e continuada como fator essencial para a qualidade do serviço prestado na APS.
Uma possível limitação deste trabalho seria a falta de alinhamento conceitual entre pesquisadores e alguns respondentes. No entanto, a fim de suavizar esse possível efeito, seguiu-se como padrão o uso de termos presentes nas normativas da RCPCD do Ministério da Saúde. Além disso, houve a apresentação dos principais conceitos nos enunciados das questões. Reconhecemos que informações dos usuários poderiam ser incorporadas, para uma visão mais ampla do problema. Entretanto, este é um estudo de abrangência nas cinco regiões brasileiras, com amostra representativa para cada município coletado e relato direto dos profissionais que trabalham com a assistência infantil. Além disso, é o primeiro estudo desta natureza e que leva em consideração aspectos relacionados à identificação de deficiências e ao acompanhamento do desenvolvimento infantil na APS.
De modo geral, os resultados destacam a necessidade de que as equipes de APS ampliem as estratégias de identificação de deficiências e o acompanhamento do desenvolvimento infantil, considerando a relevância da intervenção oportuna nas situações que requerem medidas de estimulação precoce e reabilitação. Os médicos e enfermeiros vinculados às eSF e que conhecem as normativas se sobressaíram na realização dessas ações em comparação aos outros profissionais em uma equipe multiprofissional. O conhecimento das publicações do Ministério da Saúde destinadas a qualificar o cuidado à saúde das pessoas com deficiência também teve impacto positivo sobre essa identificação e acompanhamento. Nesse sentido, ressalta-se o papel do NASF-AB e das equipes multiprofissionais na APS para garantir o cuidado integral à saúde infantil. Por fim, novos estudos que levem em consideração detalhes sobre o processo de trabalho envolvido nas ações relacionadas à saúde da criança na APS, junto à RCPCD, devem ser realizados, visando identificar possibilidades, ações e estratégias que ampliem a identificação precoce de deficiências e o acompanhamento do desenvolvimento infantil, bem como possibilidades de intervenção oportuna.
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Financiamento
Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico Tecnológico (CNPq), por meio da Chamada CNPq/MS/SCTIE/DECIT/SAS/DAPES/CGSPD nº 35/2018, processo nº 442788/2018-5. Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001. Suporte da Universidade Federal do Amazonas. Suporte da Universidade Federal do Amazonas.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
09 Ago 2024 -
Data do Fascículo
Ago 2024
Histórico
-
Recebido
07 Maio 2023 -
Aceito
22 Ago 2023 -
Publicado
24 Ago 2023