Open-access A FORMAÇÃO UNIVERSITÁRIA DO PROFESSOR DA ESCOLA BÁSICA: O PEC E A PSICOLOGIA

La formación universitaria del profesor de la escuela básica: el PEC y la Psicología

RESUMO

O artigo analisa o documento impresso do Programa de Formação Universitária de professores do ensino básico em São Paulo. Os referenciais teóricos se apoiam nas contribuições de uma perspectiva crítica em psicologia, filosofia e na história cultural das práticas escolares e suas metodologias. Os resultados apontam limites e visões insuficientes sobre as práticas pedagógicas que partem de abstrações sobre o trabalho escolar das instituições de ensino. Também as concepções de aprendizagem que marcaram os projetos formativos das últimas décadas, inspirados nas contribuições construtivistas ou sócio interacionistas são ressignificadas por uma noção instrumental da aprendizagem e definição das habilidades leitoras e escritoras.

Palavras-chave: formação docente; psicologia; alfabetização

RESUMEN

En el artículo se analiza el documento impreso del Programa de Formación Universitaria de profesores de la enseñanza primaria en São Paulo. Los referenciales teóricos se apoyan en las contribuciones de una perspectiva crítica en psicología, filosofía y en la historia cultural de las prácticas escolares y sus metodologías. Los resultados apuntan límites y visiones insuficientes sobre las prácticas pedagógicas que parten de abstracciones sobre el trabajo escolar de las instituciones de enseñanza. También las concepciones de aprendizaje que marcaron los proyectos formativos de las últimas décadas, inspirados en las contribuciones constructivistas o socio-interaccionistas son resignificadas por una noción instrumental del aprendizaje y definición de las habilidades lectoras y escritoras.

Palabras clave: formación docente; psicología; alfabetización

ABSTRACT

The article analyzes the printed document of the University Training Program of elementary school teachers in São Paulo. The theoretical references are based on the contributions of a critical perspective in psychology, philosophy and the cultural history of school practices and their methodologies. The results point to limits and insufficient views on the pedagogical practices that start from abstractions about the school work of educational institutions. In addition, the learning conceptions that marked the formative projects of the last decades, inspired by the constructivist or social interactionist contributions, give a new meaning by an instrumental notion of learning and definition of reading and writing skills.

Keywords: teacher education; psychology; literacy

INTRODUÇÃO

O artigo traz contribuições para o debate acerca da formação dos professores da escola básica, enfatizando a presença da psicologia como campo teórico. Analisará uma parte do material impresso do Programa de Formação Continuada (PEC), que ofereceu formação universitária em um curso de 18 meses em Pedagogia e Licenciatura Plena em Educação Infantil e para os anos iniciais do Ensino Fundamental em São Paulo. As atividades didáticas e os textos examinados foram coletados dos cadernos espirais, elaborados pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo; já a editoração do material ficou a cargo da Fundação Vanzolini.

Realizado por iniciativa das Secretarias de Estado da Educação e do Município, entre os anos de 2001 e 2008, o PEC diplomou 6.780 professores, tornando-se, no estado de São Paulo, uma das experiências que melhor expressam o quadro de mudanças, proposto na última década (Bueno, 2003). Sua tarefa é a mesma das Novas Bases Curriculares para a Formação Docente (Brasil, 2015) e dos Guias Curriculares do Município de São Paulo (Brasil, 2002): a constituição de um novo professor para atender as necessidades formativas na sociedade globalizada.

O Programa colocou no centro da formação “professores e alunos considerados como sujeitos do processo de construção do conhecimento quanto da prática pedagógica” (Brasil, 2002, p.3). Que lugar foi desenhado a esses protagonistas num projeto de mudanças da escola pública? O PEC já foi objeto de várias investigações que se detiveram sobre: o papel das mídias interativas na formação docente (Bueno, 2003); o impacto do projeto de formação em sala de aula (Horibe & Souza, 2015); os saberes que forjaram um novo professor (Porfirio, 2012); a circulação dos discursos acadêmicos entre os professores (Sarti & Bueno, 2007), dentre outros. Todavia, a retomada do material impresso do PEC ainda se justifica, tendo em vista que a formação do professor em serviço é a principal estratégia governamental para a transformação da escola. Acrescenta-se ainda, a ausência de pesquisas dedicadas às contribuições da psicologia e sua presença nas proposições formativas de “transformação do aluno em sujeito do seu próprio conhecimento”, com foco principal na sua transformação identitária.

A formação na pedagogia contemporânea e o lugar do aluno

A análise do documento focou nas ideias que construíram a representação do professor como aluno em formação e na investigação das práticas que visaram a sua constituição.

A pedagogia concebida hoje como um processo de ensino-aprendizagem e desenvolvimento humano está inspirada nas contribuições da psicologia do sujeito de base construtivista e sócio interacionista. A partir dessas referências, o professor e o aluno têm sido colocados como “sujeitos da ação”, na construção dos seus saberes e práticas (Brasil,1997). Assim, as reformas educacionais estão focadas na formação identitária do professor e do aluno com destaque para seus processos de aprendizagem e desenvolvimento individuais. Daí decorre a necessidade de compreender as razões que promoveram alunos e professores ao cerne do debate pedagógico, com ênfase em suas aprendizagens e não mais no ensino (Mello, 2004).

Os referenciais teóricos que orientam a análise são os de que a concepção do sujeito da educação responde a interesses econômicos, políticos e sociais mais amplos e que, portanto, se vê envolto em relações de poder, conflito e formas de resistência, em meio às demandas por autonomia, liberdade e desenvolvimento das capacidades e potencialidades de cada ser humano (Heller, 1972). Posições teóricas críticas da visão hegemônica - baseada na ideia de que o professor e as práticas pedagógicas são apenas “mediadoras, onde se dispõem os recursos para o desenvolvimento dos indivíduos”-, revelam o ocultamento das relações de força e sentido que se fazem presentes no projeto pedagógico em curso e nas suas propostas de reforma da educação (Larrosa, 2010, p.37). Mas é preciso revelar também a presença de formas de resistência que de maneira anódina constituem o campo da educação a partir dos sujeitos que anonimamente fazem a história (Rockwell, 2009; Patto, 2005).

Desse modo, compreender os discursos oficiais que configuram o campo da educação e da formação dos professores, mediante o debate das ideias e das proposições formativas do documento impresso de formação, é buscar os sentidos e os modos pelos quais vem se estruturando o projeto pedagógico voltado aos alunos que frequentam as escolas públicas no estado de São Paulo. Contudo, revelar as formas impositivas e os interesses em jogo nesse projeto, que elegeu a formação docente como a mais importante medida na implantação da reforma da educação para a formação do “novo cidadão do sec. XXI”, não dá conta de resgatar como atuam os agentes destinados a construir e implementar essas políticas no interior do campo (Bourdieu, 1983).

O material impresso do PEC como objeto de análise e a metodologia de pesquisa

Desde os trabalhos pioneiros de Chartier (1993), Certeau, (1994) e Petrucci (1999), é sabido que não apenas os conteúdos da escrita, como também a organização(a disposição das informações, a escolha dos conteúdos e as estratégias usadas) são parte do projeto formativo e, portanto, também expressam as intenções do escritor, do editor do texto, do emissor da mensagem. Nasce daí a necessidade de examinar, no documento impresso do PEC, a sua escrita e organização. A intenção é a de identificar quais leituras e quais modos de apropriação estão presentes no material e, ainda, constatar quais mecanismos de ensino dirigiram os sentidos e as práticas formativas. Petrucci (1999) revela que há decisões ideológicas e diversos protagonistas na produção dos objetos gráficos, tais como: livros, documentos normativos ou formativos. Sendo assim, torna-se relevante conhecer as várias escritas em circulação no documento formativo e como dão a ler aos alunos-professores, frente não apenas os conteúdos propostos, mas os dispositivos de ensino empregados.

Dentro das perspectivas abertas pela análise do documento do PEC, o artigo se debruça sobre uma parte desse enorme e complexo documento impresso que serviu de orientação para o projeto de formação dos professores da rede pública. A formação proposta envolveu atividades e ações paralelas que não serão objeto da presente análise, sendo que essas foram objeto de outros estudos já referidos. Não nos detemos, portanto, sobre o projeto de formação docente na sua integralidade, mas sim nos Módulos I e II: o primeiro deles se propôs a promover o exame dos próprios alunos-professores como sujeitos da sua ação docente, promovendo a aprendizagem “dos aspectos singulares e dos contextos nos quais se dão as práticas profissionais dos alunos-professores, permitindo-lhes uma melhor compreensão do seu fazer diário, a partir do processo de formação que estarão desenvolvendo” (Brasil, 2002, p.3). O segundo Módulo se colocou como tarefa “apresentar referências oriundas de diferentes áreas do conhecimento, a fim de discutir o trabalho pedagógico no atual cenário político-educacional, propiciando que os alunos-professores possam compreender o processo de construção do conhecimento sob uma perspectiva sócio histórica e interacionista” (Brasil, 2002, p.30).

A globalização e o lugar da formação do aluno

É sabido que as alterações nas relações de trabalho nas sociedades neoliberais colocaram também a necessidade da sua produção e justificativa no plano formativo. Diante do acirramento das contradições sociais, como o aumento da riqueza e da pobreza, da exclusão social, do desemprego, da violência, mas também da consciência dos direitos e da desproteção social, surge a “necessidade do capital e do Estado de atender minimamente às demandas sociais e acomodar os ânimos para assegurar a governabilidade” (Shiroma, 2009, p.376), justificando por essa via as novas exigências à educação e aos profissionais responsáveis pela formação das crianças e dos jovens.

Já não basta a formação profissional do trabalhador. A demanda é a de repensar a formação do indivíduo, da sua subjetividade para enfrentar a flexibilização do mercado de trabalho, a precarização, o desemprego, o subemprego, como condição estrutural.Para tanto, um dos eixos centrais do projeto de formação foi a satisfação das necessidades básicas de aprendizagem de cada aluno em termos de competências individuais, mediante a organização curricular e as práticas educacionais. Para alcançar esses objetivos tornou-se premente a identificação e a avaliação das características de cada aluno. Assim, assistiu-se à retomada, com toda a sua força, das medidas de avaliação psíquica de cada aluno e o ressurgimento da categorização dos comportamentos humanos, em habilidades, capacidades e competências a partir da análise de seus processos cognitivos, linguísticos e suas formas de raciocínio. Mais do que transmitir conhecimento, trata-se de dotar o aluno da capacidade de administrar sua aprendizagem e de desenvolver uma racionalidade que torne possível estabelecer uma organização, um planejamento, que o conduza a uma apropriação intelectual, lógica de fatos e ideias (Chauí, 2016). Nesse processo, passou a ser necessário desenvolver no aluno-professor a sua competência para gerenciar sua própria formação, a formação do seu aluno, a partir do desenvolvimento da sua capacidade para diagnosticar, analisar e agir - isto redefiniu o trabalho do professor como avaliador, produtor do aluno e das situações destinadas à aprendizagem de comportamentos e atitudes voltadas à adaptação de uma vida social cada vez mais difícil.

O PEC e o aluno-professor: sujeitos na construção do conhecimento ou administradores da sua aprendizagem?

Consoante com esses ideais, o PEC transformou o professor em “aluno em formação” e em “sujeito da própria aprendizagem”, mediante a promoção da autoidentificação dos seus obstáculos pessoais e profissionais e da necessidade de superação dos seus limites e insuficiências a partir do desenvolvimento das competências necessárias ao exercício da profissão (Brasil, 2002, p.38). O ponto de partida da formação foi então “identificar e mapear os pressupostos” da sua atuação docente, que, segundo a proposta, estão baseados em uma “ação espontânea e de senso comum”, que necessitam de exame e reformulação para elevá-la a um patamar superior e científico, por intermédio da “reestruturação e superação dos seus limites e problemas” (Brasil, 2002, p. 19).

Não se trata apenas de transmissão das concepções teóricas, apoiadas nas teses da psicologia do sujeito de base psicogenética, que têm feito parte dos cursos de formação docente desde os anos de 1980, mas de um novo tipo de investimento formativo: as mudanças identitárias do aluno-professor, por intermédio da identificação dos seus limites pré-determinados pelo material e pela condução da sua aprendizagem, mediante sua evolução conceitual rumo às mudanças almejadas.

Como primeira medida, tratou-se de ensinar o professor a ler textos científicos. O Módulo I, com o título O contexto da formação do professor e sua dimensão pessoal e com o subtítulo Considerações sobre a leitura crítica de textos, determinou a sua prática leitora,

Um trabalho como o que vamos desenvolver no curso PEC-Formação Universitária tem como exigência uma fundamentação teórica consistente, no sentido de esclarecer nossos pressupostos, dar significado às posições que assumimos, encaminhar de modo coerente a nossa ação. O processo de reflexão sobre nossa prática educativa só pode ser crítico se superar uma visão ingênua, tentar olhar além do óbvio, de modo abrangente e profundo... Vale colocar, então, inicialmente, algumas diretrizes para a leitura de textos científicos e/ou de opinião, baseadas no livro Metodologia do trabalho científico de Antônio Joaquim Severino. (Brasil, 2002, p.19, grifo nosso).

Os dispositivos técnicos ensinam o professor a ler textos científicos antes de propô-los como texto de leitura e reflexão. Um texto reescrito do autor, de modo a torná-lo instrutivo, dirige a leitura instrumentalizada do que se estabeleceu serem as competências leitoras,

Trata-se, num primeiro momento, de ouvir o autor , prestar atenção às ideias que ele apresenta. Assim, quando nos propomos a estudar um texto e/ou saber o que um autor pensa a respeito de um determinado assunto e o que ele tem a nos dizer, temos de ler cuidadosamente o texto inteiro, para ter uma visão do conjunto do trabalho. A seguir, devemos retomar a leitura, procurando identificar qual é a ideia central apresentada... Este é o percurso que devemos fazer em toda leitura desses tipos de texto. Vamos procurar fazê-lo, juntos, agora, com o texto que escolhemos para refletir sobre nosso ofício de professor. (Brasil, 2002, p.20, grifo no original).

Não se trata do relato da experiência leitora e escritora do professor e suas questões (que já é um leitor e um escritor), mas do seu direcionamento por meio da instrução dos modos de leitura e seus sentidos. O trabalho reflexivo das suas experiências como professor cede lugar à sua introdução às competências leitoras a serem adquiridas.

O passo seguinte foi levar os professores a identificar os seus “saberes docentes” e as necessidades de sua superação, tais como vêm sendo definidos pelos discursos acadêmicos. Assim, no Tema 2 A profissão do Professor no contexto das diferentes concepções de Educação, ao propor a leitura de “frases representativas de diferentes tendências pedagógicas”, solicitou aos professores “associações entre as concepções representativas de cada tendência e o cotidiano de suas escolas e de suas práticas docentes” (Brasil, 2002, p.45), como explicita a Síntese da Unidade (Mod.I)

Nessa Unidade, será apresentada uma visão abrangente dos marcos históricos da Educação brasileira a partir dos quais cada professor poderá contextualizar as suas próprias experiências de formação. Também será abordada a evolução dos modelos de formação e atuação docente com o objetivo de que o aluno-professor compreenda e analise a sua prática pedagógica e as ações da sua escola a partir dessas referências. (Brasil, 2002, p.45).

Por intermédio da autoidentificação do professor em alguma dessas tendências, o projeto de formação pré-definiu as inconsistências e limites de atuação docente a serem superados pelo trabalho formativo. Ao comparar os modelos descritos, determina-se e justifica-se, aos olhos do aluno-professor, a necessidade de reformulação de suas concepções e práticas e seus novos rumos. Assim, colocou-se em marcha o projeto do que se quer como práticas de leitura e escrita na escola, mediante a formação do professor para executá-lo.

Apesar de serem abstrações sobre a prática de sala de aula (Azanha, 2001), muitos documentos oficiais têm recorrido a esses modelos para descrever a “organização das escolas e das práticas pedagógicas” (p.57). O pressuposto é o de que as práticas pedagógicas, que ocorrem nas diversas escolas e salas de aula brasileiras, podem ser descritas por essa “tradição pedagógica”, orientada evolutivamente por “quatro grandes tendências: a tradicional, a renovada, a tecnicista e aquelas marcadas centralmente por preocupações sociais e políticas” (p.51). As razões para evocá-las no PEC, são as mesmas existentes no PCN, que reafirmavam a necessidade de superá-las, uma vez que apresentam insuficiências e equívocos, como mencionada por Azanha (2001). Por esse intermédio evidenciam-se os ganhos conceituais e pedagógicos das novas orientações teóricas e pedagógicas, obtidas a partir das contribuições da psicologia, mesmo ao custo de uma simplificação nas suas descrições.

Mas os modelos pré-definidos como “saberes da docência” não podem abarcar toda a complexidade das práticas no cotidiano das instituições escolares (Julia, 2001;Patto, 2005; Rockwell, 2009). Se a intenção do projeto era a de transformar as concepções e práticas pedagógicas e, se todos os determinantes das ações não estão em discussão e não são objeto de reformulações, como assegurar as mudanças necessárias? Nesse ponto, o risco está no efeito de levar o professor a aderir à nova proposta, pensando que somente a identificação dos limites dos modelos precedentes e sua evolução poderiam dar condições suficientes para as mudanças. Todavia, a própria reflexão do professor sobre o seu trabalho ficou comprometida já que não se colocou em discussão e análise a complexidade da produção das práticas pedagógicas que tem lugar nas escolas. O que torna ainda válida a pergunta proposta por Azanha (1995, p.202), “como modificar uma prática que não se conhece”?

É sabido que alterações conceituais, mesmo que elas venham acompanhadas de propostas práticas, não garantem as mudanças no ensino, nas práticas pedagógicas do professor, na função social da escola. Azanha (2001) alerta para os enganos que podem ser cometidos, quando se estabelece uma relação causal entre concepções teóricas e suas determinações práticas - como se as últimas fossem a execução em ato das primeiras. Na mesma direção Carvalho (2001) aponta problemas existentes na tese de que é o sujeito que constrói seu próprio conhecimento, a partir dos esquemas cognitivos de que dispõem na construção da sua compreensão e atuação. Ou seja, o pressuposto de que “as práticas se constituem a partir das concepções educativas e metodologias do próprio educador” (Brasil, 2002, p.51) é uma explicação insuficiente e produz limitações para se alcançar a mudança na compreensão docente e a reformulação das suas práticas. Mas como a noção de que é o sujeito que constrói seu conhecimento foi operacionalizada nas propostas formativas subsequentes?

A aprendizagem como aquisição de competências e o processo construtivo do sujeito da educação

Ao longo do documento impresso, a própria noção de aprendizagem sofre uma transformação. Associada à “aquisição de competências, ou à aprendizagem por competências” - algo que já havia aparecido anteriormente em documento do MEC de formação de professores (Brasil, 2000, p. 37) - a noção que considera o conhecimento como um processo construtivo do sujeito, na medida em que este deve refazer, de forma internalizada, o percurso intelectual e lógico que levou à produção daquele conhecimento (Piaget, 1969), deu lugar a uma concepção instrumental da aprendizagem, a partir do que o material definiu como sendo as habilidades leitoras e escritoras a serem desenvolvidas nos alunos-professores. Assim, recorrendo às “novas necessidades de aprendizagem propostas pela UNESCO em 1996” (Brasil, 2002, p.21) o material impresso passou a estabelecer que as “aprendizagens fundamentais” a serem desenvolvidas pelos alunos-professores são aquelas descritas pelos “quatro pilares do conhecimento”: “aprender a conhecer, isto é, adquirir os instrumentos da compreensão...; aprender a aprender; aprender a fazer; aprender a viver em comum, aprender a ser” (idem, p.22). Como esclarece o texto, é preciso desenvolver no aluno-professor e, por conseguinte, em seus alunos as “habilidades de comunicação escrita e oral”; a “habilidade de resolução de problemas, envolvendo raciocínio e pensamento crítico a ser obtido através de recursos tanto da Matemática quanto da própria capacidade de pesquisar, de organizar o pensamento de forma lógica”; os “conhecimentos necessários, como os fundamentos do conhecimento científico”; as “atitudes desejáveis que deveriam ser trabalhadas pela educação: autodisciplina, responsabilidade, princípios éticos, adaptabilidade e flexibilidade, plano de vida, estabelecimento de metas para o aprendizado permanente, valorização do trabalho e do esforço pessoal” (Brasil, 2002 , p.23) entre outras. O caminho proposto remete então à questão individual: desenvolver as capacidades e talentos pessoais para que cada um encontre seu próprio caminho, porém, para que isso ocorra, como o documento adverte, é preciso que

...a escola passe por um processo de desconstrução, semelhante ao que aconteceu nas empresas e que está acontecendo nas instituições governamentais e estatais pois as mudanças deverão ser profundas, atingindo desde a sua estrutura geral, a organização do trabalho escolar, a distribuição do tempo e do espaço, até a forma de conhecer e definir o currículo, a ação docente e a participação dos alunos. Mudar a educação significa mudar o modo de concebê-la e de entender o ensino, é reconhecer todo o processo educativo, redefinindo a função social da escola à luz das transformações atuais por que passa a sociedade e as exigências decorrentes... ao invés de passar informações desatualizadas e descontextualizadas, ela terá de se ocupar do aprender a aprender, levar o aluno a construir seu próprio conhecimento... nessa escola o professor não é mais autoridade que decide o que deve ser aprendido e ensinado; ao contrário, ele é muito mais parceiro, muitas vezes o aprendiz que, juntamente com seus alunos, pesquisa, debate. (Brasil, 2002, p.25).

A aprendizagem como processo construtivo do sujeito - que está presente em alguns dos excertos do documento impresso - é substituída nas atividades pedagógicas pela produção de um sujeito para aprender, mediante dispositivos pedagógicos que levem o professor a aprender as ferramentas e técnicas para “aprender a ser e a fazer”. Ademais, esses dispositivos servem para enfrentar a resistência em introduzir mudanças “na organização do ensino, na configuração do trabalho escolar ou mesmo na maneira de conceber sua missão e suas responsabilidades no contexto sócio-econômico-político atual” (Brasil, 2002, p.25). Essa resistência foi apontada inúmeras vezes como a causa do insucesso das sucessivas reformas do ensino. Sendo assim, o projeto exigiu maior participação do professor e a construção de um “ambiente facilitador”, de “um clima favorável” e de um voltar-se para “o aluno” e suas necessidades. Mais uma vez, surge a necessidade de convencer o professor a “vestir a camisa”, evocando o apelo moral do compromisso com os alunos e com o trabalho.

Mas, longe de uma construção do próprio aluno-professor frente ao reconhecimento do seu trabalho e seus limites, o que está em jogo é um projeto claro do que se definiu serem as competências leitoras, escritoras, as atitudes para pesquisar, buscar informação, saber processá-las e utilizá-las. Nesse sentido, as práticas pedagógicas não são uma decorrência da evolução conceitual inelutável, mas de determinações sociais bem delimitadas por posições políticas e interesses econômicos. Os ensinamentos do clássico livro de Emília Ferreiro e Ana Teberosky, a Psicogênese da língua escrita, que servem como uma das referências no material, aos poucos cedem lugar a uma instrumentalização desses conhecimentos e conceitos. É o que procuraremos demonstrar.

O trabalho formativo, o sujeito obediente e suas questões

A proposta inicial, de que as mudanças operadas na compreensão do professor em decorrência da identificação dos seus limites e inconsistências, levariam à sua evolução conceitual, à sua reequilibração cognitiva, em termos piagetianos e, por consequência, às mudanças das suas práticas, é redirecionada para o desenvolvimento de práticas pedagógicas cujas finalidades formativas passaram a ser o “aprender a ser”, “aprender a fazer” e “aprender a usar”. Trata-se de um modelo de formação centrada no aprendiz, mas não no sentido de “acolher e fomentar a singularidade do sujeito” (Carvalho, 2016, p. 70). Já não se trata de uma visão construtivista do sujeito, mas da internalização de cada um de modelos de ser, de consumir e de usar em uma sociedade de consumo, guiada pelas leis do mercado. Nelas, como esclarece o documento impresso, é preciso “aprender a conhecer”, isto é, “adquirir os instrumentos da compreensão... dominar os instrumentos do conhecimento: aprender a aprender” (Carvalho, 2016, p. 20). E Chauí acrescenta ao debate,

Há, portanto, um discurso do poder que se pronuncia sobre a educação, definindo seu sentido, finalidade, forma e conteúdo. Quem, portanto, está excluído do discurso educacional? Justamente aqueles que poderiam falar da educação enquanto experiência que é sua: os professores e os estudantes. Resta saber por que se tornou impossível o discurso da educação. (Chauí, 2016, p.249).

Em outra atividade didática, o documento esclarece que para compreender e produzir textos orais e escritos é preciso dominar determinados conhecimentos de ordem linguística, cognitiva e discursiva. Mas, novamente, não se trata de promover a reflexão da experiência dos alunos-professores, como leitores e escritos que já são, cujas teorias linguísticas poderiam iluminar, pelo trabalho formativo/reflexivo, suas ações, suas questões e contradições, abrindo possibilidades para que construíssem novas práticas. Contrariamente, o proposto foi um uso funcional dos conhecimentos linguísticos, mediante a determinação das competências,

O processo de compreensão e produção de textos orais e escritos - assim como a análise e reflexão sobre a língua e a linguagem - é um processo muito complexo que envolve uma multiplicidade de aspectos de ordem cognitiva, linguística e discursiva, os quais supõem o desenvolvimento de diferentes habilidades e competências. Tematizar essas habilidades e competências e as modalidades didáticas que organizam as práticas de compreensão e produção de textos orais e escritos é fundamental para que o professor possa analisar sua prática pedagógica - avaliando sua adequação em relação ao projeto educativo da escola no que se refere aos objetivos para a formação do aluno no geral e, no que se refere à Língua Portuguesa - e reorganizá-la, caso seja necessário. (Brasil, 2002, p. 939).

Assim, as concepções linguísticas, apresentadas por intermédio de excertos, do uso de recortes, de entrevistas e de textos adaptados à uma linguagem considerada mais acessível, tiveram por objetivo levar ao desenvolvimento das competências. O excerto de um artigo de Geraldi (Brasil, 2002, p. 65) propõe o contato com uma das contribuições teóricas da pesquisa linguística, dentre outras existentes, para que se sirva dela com fins práticos na medida em que ela oferece “três contribuições para o ensino da língua materna: a forma de conceber a linguagem e, em consequência, a forma como definir seu objeto específico, a língua; o enfoque diferenciado da questão das variedades linguísticas e a questão do discurso, materializado em diferentes configurações textuais” (Brasil, 2002, p.941). Aí se delineia o trabalho com gêneros textuais presente na produção didática dos guias curriculares dos anos subsequentes, ou seja, nos termos do documento, - como a apropriação da linguagem escrita é não só o domínio de uma tecnologia mas a internalização de práticas sociais -, essa escolha das práticas como eixo organizador do currículo deve-se ao desenvolvimento de competências relativas à compreensão e à produção de textos orais e escritos (Brasil, 2002).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Conclui-se, portanto, que o que se propôs foi um modelo de ensino da leitura e da escrita baseado na determinação dos seus usos frente ao desenvolvimento de certas atitudes leitoras e escritoras e a identificação e a adequação discursiva escrita e oral, sustentadas por gêneros textuais. Não tendo sido as experiências docentes o centro do trabalho formativo, o objetivo parece ter sido implementar os modelos de ensino que já estavam presentes nas propostas pedagógicas dos PCN desde 1997.

O recurso reiterado aos documentos oficiais revela que foram eles que definiram a seleção de temas, dos conteúdos e também o direcionamento das leituras e das formas de compreensão. E para que assegurasse a sua internalização pelos alunos-professores se recorreu aos recursos textuais, tais como, os gráficos, as pequenas técnicas de notação e registro, o arranjo em colunas e tabelas, cruzando habilidades, competências e as práticas de leitura e escrita. Tratou-se de um conjunto organizado de micro-operações destinado a produzir o professor através do estabelecimento dos seus modos de agir e pensar, ou do seu “autogoverno”. Nessa mesma direção, profissionais da mídia, especialistas em comunicação, dentre outros profissionais incumbidos da organização e da escrita final do material impresso definiram os sentidos e o ambiente discursivo que conduziram as formas de interpretação e o uso do material, na tentativa de assegurar a sua correta internalização pelos alunos-professores dos conceitos e das práticas propostas.

A leitura do texto impresso aponta, porém, o enorme esforço de melhor qualificar o aluno-professor, como aposta na superação de modelos pedagógicos, considerados tradicionais e ultrapassados, mediante a oferta de outros modelos e suas justificativas. Todavia, as contradições decorrentes desta aposta e o emprego de procedimentos técnicos voltados para forjar o novo professor, colocaram em confronto concepções nem sempre convergentes e modelos formativos cuja eficácia ainda precisa ser posta à prova.

Por fim, o que se verificou foi um direcionamento das atividades didáticas rumo às determinações estabelecidas do que se deve e como se deve pensar, agir e sentir. Ou seja, ao se estabelecer a priori a experiência docente e o que nela deve ser redefinido pela formação, a aposta é a de que é possível, como ressalta Chauí (2016, p. 247), “pré-formar os atos de pensar, agir e querer ou sentir”, mas nega-se a experiência dos professores,que permanece desconhecida, e os problemas a serem enfrentados pelo trabalho de reflexão, da crítica, da análise coletiva com os pares nas situações reais vividas nas instituições educacionais. Ademais, a aposta formativa de dirigir os saberes e desenvolver uma racionalidade da ação docente, por intermédio do estabelecimento de certos modos de organização do seu pensamento e dos sentidos das próprias experiências, parte da visão restrita de que os problemas da prática docente decorrem de uma suposta ausência de racionalidade, planejamento e competência, a qual o trabalho formativo proposto viria resolver por meio da proposição de ações, orientadas por objetivos, fins específicos, modos de pensamento e ação predeterminados para alcançá-los.

O que pressupõe uma visão limitada da formação que não a de promover o “pensamento, que é um trabalho de reflexão que se esforça para elevar uma experiência... à sua inteligibilidade, acolhendo a experiência como indeterminada, como não-saber (e não como ignorância) que pede para ser determinado e pensado, isto é, compreendido” (Chauí, 2016, p.248). Assim, no lugar da formação docente como promoção do entendimento, do exame e da tomada de decisões coletivas na redefinição do sentido e das finalidades da educação, a aposta foi a de que o aluno-professor aderisse à proposta de administrar, organizar e planejar suas práticas como leitores e escritores por meio da internalização de instrumentos e técnicas destinados a essas finalidades.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Maio 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    05 Dez 2018
  • Aceito
    03 Jun 2019
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