Open-access A visita domiciliar na estratégia de saúde da família: os desafios de se mover no território

Home visits within the family health strategy (estratégia de saúde da familia - ESF): the challenges of moving into the territory

Las visitas a domicilio en la estrategia de salud de la familia (ESF): los desafíos de movimiento en el território

Resumos

Foram analisados os processos de trabalho de três equipes da ESF no município de Nova Iguaçu, Rio de Janeiro, Brasil, bem como a gerência do cuidado, tomando as visitas domiciliares como foco da análise. Optou-se pelo estudo de caso, selecionado em um contexto complexo, com pessoas em situação de fragilidade, incerteza e sofrimento. Resultados da pesquisa destacam o improviso dos profissionais frente à precariedade das condições de trabalho e aos desafios impostos cotidianamente para a realização das visitas e para lidar com demandas que emergem no território. Embora a visita domiciliar se apresente como instrumento potente para o planejamento das ações de saúde e a reorientação das práticas, ainda encontra importantes entraves para sua consolidação, especialmente por exigir grande disponibilidade interna do profissional de saúde para lidar com o inesperado e o diverso.

Cuidado em saúde; Prática profissional; Estratégia Saúde da Família; Visita domiciliar; Atenção primária à saúde


This study aimed to analyze the work processes of three family healthcare teams in the municipality of Nova Iguaçu, state of Rio de Janeiro, Brazil, along with healthcare management. Home visits were taken to be the focus of the analysis. The case study methodological approach was chosen, and this was selected within a complex context, with people in situations of fragility, uncertainty and distress. The main results from this study highlight healthcare professionals' improvisation when faced with precarious working conditions and the daily challenges involved in carrying out home visits and in dealing with demands that emerge from the territory. Although home visits may be presented as powerful tools for planning healthcare actions and for reorientation of practices, major obstacles preventing their consolidation can still be found. This is especially because of the great internal disposition required from healthcare professionals for dealing with diversity and the unexpected.

Healthcare; Healthcare work process; Family Health Strategy; Home visits; Primary healthcare


Este estudio se centró en los procesos de trabajo y la gestión de la atención de tres equipos de ESF en Nova Iguaçu, Rio de Janeiro, Brasil, tenendo las visitas domiciliarias como foco de análisis. Un estudio de caso fue elegido en un contexto complejo, con personas en situaciones de fragilidad, incertidumbre y sufrimiento. Los resultados apuntan a la improvisación de los profesionales cuando enfrentan precarias condiciones de trabajo y desafíos cotidianos para llevar a cabo visitas a domicilio y manejar las demandas que surgen en el territorio. Aunque las visitas se presentan como una poderosa herramienta para la planificación y reorientación de las prácticas de salud, todavia enfrentan grandes barreras, sobretodo porque requieren una disponibilidad interna de los profesionales para hacer frente a lo inesperado y a la diversidad.

Cuidado en salud; Práctica profesional; Estrategia de Salud de la Familia; Visita domiciliaria; Atención primária en salud


ARTIGOS

A visita domiciliar na estratégia de saúde da família: os desafios de se mover no território*

Home visits within the family health strategy (estratégia de saúde da familia - ESF): the challenges of moving into the territory

Las visitas a domicilio en la estrategia de salud de la familia (ESF): los desafíos de movimiento en el território

Marcela Silva da Cunha; Marilene de Castilho Sá

Departamento de Administração e Planejamento em Saúde, Ensp, Fiocruz. Rua Leopoldo Bulhões, 1480, Sala 716, Manguinhos. Rio de Janeiro, RJ, Brasil. 21.041-210. mcunha@ensp.fiocruz.br

RESUMO

Foram analisados os processos de trabalho de três equipes da ESF no município de Nova Iguaçu, Rio de Janeiro, Brasil, bem como a gerência do cuidado, tomando as visitas domiciliares como foco da análise. Optou-se pelo estudo de caso, selecionado em um contexto complexo, com pessoas em situação de fragilidade, incerteza e sofrimento. Resultados da pesquisa destacam o improviso dos profissionais frente à precariedade das condições de trabalho e aos desafios impostos cotidianamente para a realização das visitas e para lidar com demandas que emergem no território. Embora a visita domiciliar se apresente como instrumento potente para o planejamento das ações de saúde e a reorientação das práticas, ainda encontra importantes entraves para sua consolidação, especialmente por exigir grande disponibilidade interna do profissional de saúde para lidar com o inesperado e o diverso.

Palavras-chave: Cuidado em saúde. Prática profissional. Estratégia Saúde da Família. Visita domiciliar. Atenção primária à saúde.

ABSTRACT

This study aimed to analyze the work processes of three family healthcare teams in the municipality of Nova Iguaçu, state of Rio de Janeiro, Brazil, along with healthcare management. Home visits were taken to be the focus of the analysis. The case study methodological approach was chosen, and this was selected within a complex context, with people in situations of fragility, uncertainty and distress. The main results from this study highlight healthcare professionals' improvisation when faced with precarious working conditions and the daily challenges involved in carrying out home visits and in dealing with demands that emerge from the territory. Although home visits may be presented as powerful tools for planning healthcare actions and for reorientation of practices, major obstacles preventing their consolidation can still be found. This is especially because of the great internal disposition required from healthcare professionals for dealing with diversity and the unexpected.

Keywords: Healthcare. Healthcare work process. Family Health Strategy. Home visits. Primary healthcare.

RESUMEN

Este estudio se centró en los procesos de trabajo y la gestión de la atención de tres equipos de ESF en Nova Iguaçu, Rio de Janeiro, Brasil, tenendo las visitas domiciliarias como foco de análisis. Un estudio de caso fue elegido en un contexto complejo, con personas en situaciones de fragilidad, incertidumbre y sufrimiento. Los resultados apuntan a la improvisación de los profesionales cuando enfrentan precarias condiciones de trabajo y desafíos cotidianos para llevar a cabo visitas a domicilio y manejar las demandas que surgen en el territorio. Aunque las visitas se presentan como una poderosa herramienta para la planificación y reorientación de las prácticas de salud, todavia enfrentan grandes barreras, sobretodo porque requieren una disponibilidad interna de los profesionales para hacer frente a lo inesperado y a la diversidad.

Palabras clave: Cuidado en salud. Práctica profesional. Estrategia de Salud de la Familia. Visita domiciliaria. Atención primária en salud.

Introdução

A atenção primária à saúde (APS) vem se afirmando como estratégia de organização do sistema de saúde e forma de resposta às necessidades de saúde da população. Neste contexto, as ações de saúde da família, anteriormente voltadas à cobertura de pequenos municípios, com foco em áreas de maior risco social, passam a adquirir centralidade na agenda do governo federal, a partir de meados da década de noventa, com a criação do Programa de Saúde da Família (PSF).

Como estratégia nacional para a atenção básica, denominada, a partir de 2006, Estratégia de Saúde da Família (ESF), suas diretrizes passam a se contrapor ao modelo de atenção vigente, baseado na lógica curativa e medicalizante, propondo uma atenção centrada na família e no território, baseando-se em ações de prevenção das doenças, promoção e assistência à saúde (Brasil, 2012; World Health Organization, 2008). Visando à produção de novos modos de cuidado, a ESF propõe a visita domiciliar (VD) como instrumento central no processo de trabalho das equipes (Borges, D'Oliveira, 2011; Filgueiras, Silva, 2011).

Contudo, a ampliação da estratégia tem encontrado limitações para a produção de mudança do modelo assistencial. Em sua formulação, deveria ter caráter substitutivo à rede tradicional de saúde, bem como atuar com base no território, definido de acordo com o planejamento e diagnóstico situacional. Entretanto, encontramos ainda, em muitos municípios, sobretudo nos grandes centros urbanos, a concomitância dos dois modelos (Giovanella et al., 2009; Conill, 2008; Escorel et al., 2007).

Em relação à organização do trabalho das equipes, embora a prática esteja direcionada para o exercício da equipe multiprofissional, não foram pensadas estratégias para orientar uma ruptura com a dinâmica médico-centrada. Esta política permanece sem promover mudanças nas práticas cotidianas dos profissionais de modo mais amplo (Franco, Merhy, 1999).

De acordo com Merhy e Queiroz (1993), há uma defasagem entre o discurso de mudança que impregna a ESF e as práticas assistenciais que implementa, evidenciando que não tem conseguido se cumprir enquanto promessa. A participação da população sob a forma de controle social ainda se mostra incipiente.

Para Abrahão e Lagrange (2007), a ESF prevê a atenção domiciliar à saúde como forma de assistência àqueles que precisam de cuidados contínuos, mas, sobretudo, como instrumento de diagnóstico local e programação das ações a partir da realidade. Vários estudos apontam o importante papel da VD no estabelecimento de vínculos com a população, bem como seu caráter estratégico para integralidade e humanização das ações, pois permite uma maior proximidade e, consequentemente, maior responsabilização dos profissionais com as necessidades de saúde da população, de sua vida social e familiar (Romanholi, Cyrino, 2012; Tesser, Poli Neto, Campos, 2010; Albuquerque, Bosi, 2009; Sakata et al., 2007).

A despeito de suas potencialidades, a atividade de VD enfrenta muitos desafios. O contexto de incertezas e surpresas em que se realiza, envolvendo relações complexas entre o público e o espaço privado do domicílio. Além das dificuldades inerentes à própria prática da VD: a mudança de famílias, endereços errados e recusas, entre outras situações adversas (Romanholi, Cyrino, 2012).

Borges e D'Oliveira (2011) apontam que os problemas com que os profissionais se deparam nas VDs envolvem não apenas o enfrentamento da doença em si, mas, também, situações relacionadas ao contexto social e cultural em que vive a família, para os quais a medicina tecnológica, em geral, tem pouco para ofertar, sendo necessário reconhecer os limites dos profissionais e admitir que as alternativas e encaminhamentos para os problemas passam, necessariamente, pela participação do usuário e sua família, bem como, por ações intersetoriais e de articulações com a sociedade civil.

O excesso de atribuições, associado à inadequação entre o volume populacional da área de abrangência e as equipes, também aparece como limitador para a participação dos profissionais nas atividades domiciliares, comunitárias e de educação em saúde (Trad, Rocha, 2011; Conill, 2008).

O presente artigo analisa o processo de trabalho das equipes de uma unidade de saúde da família durante as visitas domiciliares, e discute os desafios para que a VD possa vir a contribuir para a reorientação do trabalho em equipe e para a produção do cuidado em saúde.

Desenho do estudo e estratégias metodológicas

Este artigo tem origem na dissertação de mestrado "O processo de trabalho em equipe e a produção do cuidado em saúde: desafios para a estratégia de saúde da família em Nova Iguaçu/RJ" (Cunha, 2010). Traz um estudo de caso sobre o processo de trabalho produzido pelas equipes de SF, com foco nas VDs, analisadas a partir da micropolítica das relações e da Psicodidâmica do Trabalho (Dejours, 2008), em uma unidade de saúde situada no município de Nova Iguaçu, Baixada Fluminense do Estado do Rio de Janeiro.

A interlocução com o campo da Gestão das Práticas em Saúde e o debate sobre a especificidade do trabalho em saúde trouxeram importantes contribuições para o desenvolvimento teórico-metodológico desse estudo, destacando-se: a compreensão do trabalho em saúde como um trabalho vivo em ato, centrado em tecnologias leves (Merhy, 2007), a noção de clínica ampliada (Campos, 2007a), a compreensão do caráter intersubjetivo do trabalho em saúde, altamente exigente de trabalho psíquico (Sá, 2005), e centralidade da dimensão relacional do trabalho médico (Schraiber, 1993).

A pesquisa foi realizada por meio de entrevistas semiestruturadas com os profissionais de saúde e observação participante do cotidiano do trabalho. Ao todo foram realizadas 13 entrevistas, envolvendo médicos, enfermeiros, técnicos de enfermagem, dentistas e agentes comunitários de saúde (ACS) de três equipes. As observações foram realizadas ao longo de três meses e meio, em três turnos semanais, incluindo: o acompanhamento das VDs, a observação do processo de marcação de exames e consultas especializadas em outros serviços de atenção especializada da rede de saúde do município; a observação das consultas médicas e de enfermagem; a observação das reuniões de equipe e da circulação e interação de profissionais e usuários nos espaços coletivos da unidade, tais como sala de espera, farmácia, sala de curativos, sala dos ACS; as atividades da equipe de Saúde Bucal; conversas com a equipe de Saúde Mental; palestras internas; atividades externas, entre outros. As observações foram realizadas livremente, com a perspectiva de apreensão dos processos de trabalho, a partir da interação entre o pesquisador e os sujeitos da pesquisa.

O processo de análise tem como orientação a abordagem clínica psicossociológica de pesquisa (Barus-Michel, 2005). Após sucessivas leituras das entrevistas transcritas e dos registros de campo, identificamos e agrupamos os relatos: das situações concretas de trabalho, das concepções sobre o cuidado, dos modos de enfrentamento das situações e conflitos, bem como o processo de trabalho e o trabalho em equipe. Entre os principais analisadores, estão os sentidos e significados expressos pelos entrevistados, juntamente com o registro das observações diárias do campo. Assim, a análise pressupôs sempre um vaivém entre referências teóricas, prática acumulada, situações concretas e escuta sensível do outro, a partir da análise da própria implicação do pesquisador com os temas/objetos, problemas e sujeitos das pesquisas (Barus-Michel, 2005), num esforço para transitar nas mediações entre o histórico-social e o individual/subjetivo ou entre o institucional/cultural e o afetivo/psíquico, colocando o sujeito em posição de palavra, e o sofrimento e a questão do sentido no centro da análise.

Em Nova Iguaçu, a ESF abrange uma população em torno de cento e setenta mil habitantes, que corresponde a 22% da população do município. As unidades de Saúde da Família com equipes de Saúde Bucal abrangem apenas 7% da população (Nova Iguaçu, 2009).

A seleção da unidade de saúde pesquisada obedeceu aos seguintes critérios: deveriam ter seus profissionais trabalhando há pelo menos seis meses e estar completas, ou seja, com a equipe mínima preconizada pelo Ministério da Saúde (médico, enfermeiro, auxiliar de enfermagem, odontólogo, auxiliar de saúde bucal e ACSs); cada equipe deveria ser responsável por, no máximo, quatro mil habitantes cadastrados; a unidade deveria ser de fácil acesso aos usuários e apresentar características similares às demais unidades de SF existentes no município, quanto ao tipo de oferta de serviços, horários de funcionamento, entre outras características organizacionais.

A unidade de saúde escolhida era considerada um modelo pelos profissionais e pela Coordenação da Atenção Básica municipal. Contava com três equipes de Saúde da Família, incluindo Saúde Bucal. Possuía boa estrutura física e havia passado por obras há menos de um ano, para se adequar ao modelo de unidade de saúde preconizado pelo Município. Era uma das unidades mais antigas no município.

A fim de preservar a identidade dos sujeitos da pesquisa, convencionamos chamar as três equipes de azul, verde e amarela, nos referimos à unidade pela sigla NO, e utilizamos nomes fictícios para os entrevistados.

As visitas domiciliares: desafios de se mover no território

A pesquisa se realizou no contexto de uma rede municipal de saúde desarticulada, com serviços de média e alta complexidade desordenados, resultando em longas filas, com inúmeros obstáculos no acesso da população à marcação de consultas e exames especializados (Nova Iguaçu, 2009). O desabastecimento e a falta de manutenção da estrutura física e de equipamentos eram constantes.

Os profissionais que atuavam na rede assistencial, em sua maioria, tinham vínculo empregatício precário, levando à alta rotatividade e à baixa qualificação profissional. Os serviços de saúde funcionavam de forma quase sempre pouco resolutiva. Não havia protocolos assistenciais, nem mecanismos de referência e contrarreferência. Este quadro resultava em muitas barreiras de acesso aos serviços e aos medicamentos básicos, com o agravamento de problemas de saúde da população.

Na unidade estudada, a maioria dos profissionais trabalhava há mais de quatro anos e possuía um bom entrosamento e domínio do trabalho. No entanto, observamos baixa frequência de reuniões de equipe, de todo modo pouco focadas na discussão dos processos de trabalho e no planejamento das ações, bem como a ausência de atividades de educação permanente. O contrato de trabalho da equipe era por cooperativa, exceto o dos ACSs, que eram concursados. Os baixos salários eram mencionados como justificativa para o não-cumprimento da carga horária, com a adoção, pelos enfermeiros e técnicos de enfermagem, de um "dia de folga" e a restrição da jornada médica a quatro turnos por semana. Os únicos que não possuíam dias de folga eram os agentes, com a justificativa de que eram concursados. "O salário deve ser melhorado. Ele força um acordo velado de não cumprimento de carga horária estipulada. Essa é uma afirmação honesta. É muito difícil para o profissional. A gente sabe que esse salário não atende à perspectiva de vida" (Médico da equipe amarela).

A precariedade das condições de trabalho e do funcionamento dos serviços de saúde do município estudado contribuíam para que o trabalhador vivenciasse situações de impasse e imprevistos no desenvolvimento de sua prática cotidiana, demandando ações não planejadas e impondo muitas exigências, não só físicas, mas cognitivas e psíquicas, para a realização do trabalho. No caso específico do trabalho em saúde, alguns autores (Merhy, 2007; Sá, 2005; Schraiber, 1993) destacam o aspecto relacional da prática em saúde que o diferencia de outros tipos de trabalho, se trata de um "trabalho de intervenção de um homem sobre outro [...] se está diante de uma 'invasão', ainda que permitida, do outro: interferência sobre as vidas, as privacidades e as paixões das pessoas" (Schraiber, 1993, p.150). Para Schraiber (1993), o trabalho em saúde é um processo produtivo e interativo, com relações intersubjetivas, reflexões e partilhas de decisões. Este caráter relacional, intersubjetivo e de intervenção na vida, sofrimento e adoecimento do corpo e da alma dos sujeitos, impõe ao trabalhador muitas exigências e sentimentos por vezes contraditórios: ansiedade, desamparo, impotência, angústia, entre outros (Sá, 2009; 2005).

Dessa maneira, o trabalhador cria estratégias defensivas individuais ou coletivas para lutar contra o sofrimento gerado por esse confronto (Dejours, 2008), produzindo efeitos para o bem ou para o mal na produção do cuidado em saúde.

Especificamente no que se refere à VD, deve-se considerar ainda a complexidade das situações com as quais os profissionais têm de lidar no território, cujos problemas se manifestam em todas as suas dimensões – não apenas biológicas, mas sociais, familiares, humanas etc. – fugindo à governabilidade do setor saúde. Assim, se, por um lado, a realização das VDs seria, em tese, uma oportunidade privilegiada para o desenvolvimento de um trabalho multiprofissional mais integrado, um espaço para ampliar as possibilidades deste trabalho coletivo, bem como do desenvolvimento de uma relação mais horizontal e cooperativa entre trabalhadores de categorias profissionais diversas, por outro lado, observamos uma dificuldade de inserção dos profissionais da equipe nesta atividade, que parece ainda estar concentrada nos ACS. As visitas dos médicos são raras, descontínuas e demandam, em geral, uma mediação das enfermeiras para que ocorram.

As VDs dos profissionais de nível superior – médicos e enfermeiros – eram marcadas de acordo com as agendas de trabalho das equipes. Contudo, a consulta do médico nas residências não era uma prática tão regular. Era feita somente em casos em que o enfermeiro não conseguisse dar encaminhamento, ou precisasse de uma opinião médica, e quando o cadastrado não tinha meios de se locomover até a unidade. Em geral, era marcada VD em uma casa por semana para cada médico. Somente a médica da equipe azul fazia, esporadicamente, um roteiro de visitas às casas de uma região bastante pobre e com muita dificuldade de acesso a recursos médicos, materiais ou transporte para garantia de sua saúde. Nota-se que não havia um turno inteiro reservado para as VDs e, sim, pequenos períodos dentro de um turno semanal.

Na equipe verde, as visitas do médico ocorriam todas as segundas-feiras. O ACS identificava a necessidade de visita durante o seu trabalho de campo, agendava e esperava o médico confirmar. O ACS avisava ao usuário que agendou a visita, mas enfatizava que não poderia dar certeza da vinda do médico. Durante as entrevistas, os ACS justificavam esta conduta como forma de evitar que o usuário ficasse ansioso com a perspectiva da visita e se frustrasse com a ausência do médico. Os ACS relatavam ainda que quando não conseguiam a visita do médico, procuravam a enfermeira e pediam sua intervenção, e, geralmente, a enfermeira conseguia agendar a VD. Nota-se aqui a situação de incerteza vivenciada pelo ACS e descontrole sobre o trabalho dos demais profissionais da equipe.

Os enfermeiros marcavam um turno da semana para VD, onde a rota era elaborada pelo ACS em conjunto com o enfermeiro da sua área, mas sempre se mostraram muito disponíveis para realizarem visitas não programadas em caso de necessidade. "Se precisar, eu saio com eles à hora que for, se eu não estiver fazendo nenhum agendamento" (enfermeira Maria Ângela).

Entre os possíveis condicionantes das dificuldades de se entrar no território, apontamos: os desafios de estar diante de uma demanda não diagnosticada, com necessidades desconhecidas, entrar em contato direto com o imprevisível, com o estranhamento, com um outro que pode ser totalmente diverso, entrar na casa das pessoas, prescrever estilos de vida e invadir intimidades sem a mediação do consultório médico e seus instrumentos tecnológicos. Trata-se de uma tarefa difícil, não apenas pelo desgaste físico, mas, sobretudo, por ser altamente exigente de trabalho psíquico (Sá, 2009, 2005), em função das angústias, fantasias e sentimentos por vezes contraditórios que pode mobilizar nos profissionais.

Nesta perspectiva, cabe mencionar o recente trabalho de Romanholi e Cyrino (2012) que, analisando a VD como estratégia pedagógica de formação de médicos, aponta a angústia e o sentimento de impotência e frustração que a VD desencadeia diante de situações que põem em cheque o seu saber, uma realidade adversa que não podem mudar, como a pobreza extrema e a violência que marcam a vida de muitas famílias. Neste contexto,

[...] cada VD, por mais orientada que estivesse, poderia levar a uma série de imprevistos que, não controlados ou antevistos no seu planejamento, tornava necessária a permanente sensibilização e capacitação dos professores e dos estudantes para lidarem com o inusitado. (Romanholi, Cyrino, 2012, p.698, grifo nosso)

O trabalho da ESF, e particularmente as VDs, são especialmente tecnologia leve e relação com o outro. O trabalho do ACS, sobretudo, é puramente relação com os outros (Merhy, 2007). O médico desenvolve seu trabalho, relacional, mediado pelo "setting" terapêutico, que é conformado pelo espaço físico, pelos instrumentos tecnológicos para diagnóstico e terapia, pelas regras ou normas que regulam a atividade, bem como pela valorização social de seu papel no imaginário comum, o que lhe confere mais conforto ao realizar o atendimento. O ACS entra sozinho na casa do usuário sem ter ideia do que pode esperar. São muitas situações de contato direto com a diversidade de possibilidades de vida, intensidades, violência, sofrimento, doença, enfim, é uma imersão direta e sem mediação no desconhecido. As VDs demandam exigências maiores de trabalho, pois mobilizam ações de todo o tipo, não só físicas, mas, sobretudo, psíquicas. Desse modo, se o ACS percebe que não está bem para lidar com as pessoas da melhor forma possível, ele se reserva o direito de não ir fazer a VD.

"Tem dias que eu chego aqui na unidade to muito fraca pra ir à rua fazer visita [...] outro dia que eu não estava me sentindo bem e disse: '- Eu não estou apta a sair na casa de ninguém' Porque às vezes você vai levar uma orientação, uma palavra ou um conforto e você não vai [conseguir] levar. E aí eu prefiro não ir. Fico aqui, organizo meus prontuários, coloco as coisas em ordem, a gente tem ficha pra preencher, ajudo as meninas aqui, lá dentro, mas não vou. Não adianta você oferecer uma coisa que você não tem. Como você vai falar em saúde se você não tá bem?". (ACS Silvia Regina)

Aqui se destaca a problemática psicanalítica dos processos identificatórios, base para a produção do cuidado com o outro e do vínculo (Sá, 2009; 2005), mas, ao mesmo tempo, podendo representar importantes desafios para o trabalho em saúde.

Nesta perspectiva, Jardim e Lancman (2009), ao discutirem o trabalho do ACS, chamam a atenção para os limites e possibilidades que a dupla inserção do ACS na comunidade – como profissional de saúde e membro da comunidade – pode representar, facilitando a criação de vínculos e a compreensão dos problemas, mas, também, produzindo sofrimento pelo envolvimento e identificação com os problemas das famílias.

Agente Comunitário de Saúde: os olhos da equipe no território

De acordo com a Política Nacional de Atenção Básica (Brasil, 2012), cada ACS deve realizar visitas a cada família, na sua área de abrangência, uma vez por mês. Na unidade estudada, observam-se diferentes critérios adotados pelos ACS para o desenvolvimento de seu trabalho. Uns começam pelos grupos de risco ou prioritários, outros estabelecem uma rua para iniciar e continuam por ela até terminar e passar para outra, outros vão por um lado da rua (casas pares) e, depois, passam para as casas ímpares, e há quem comece pelas áreas que apresentam maior risco social. Para o ACS Marcos,

"primeiro hipertensos, depois as crianças e aí partimos pra aquelas doenças que são poucas, como tuberculose, hanseníase. Depois vou pro geral. Costumo fazer por seguimentos, começo na rua do maior pro menor [número da casa] até chegar o final da rua. Tem famílias que nunca têm nada. Mesmo que não tenha, aprendi que tenho que escrever aquilo que me dizem. Essas pessoas eu passo no final de tudo".

Assim, observa-se que o ACS define seus próprios critérios para organizar as visitas, com isso, alguns estabelecem prioridades em relação aos problemas mais relevantes, outros fazem de maneira a facilitar seu processo de trabalho, sem considerar, necessariamente, os grupos de risco. Tal fato pode demonstrar certa falta de coordenação geral do trabalho dos ACS, levando a produção de diferenças no acesso da população no mesmo território. Dependendo do ACS que faz a cobertura de determinada área, os grupos de risco terão acesso prioritário ou não. A criação de vínculos entre os ACS e o usuário cadastrado pode, do mesmo modo, influenciar o maior tempo despendido entre as VDs e a dedicação de maior atenção a determinadas famílias mais que outras. O desenvolvimento do trabalho se dá de forma isolada, sem se apoiar em uma coordenação geral, talvez necessária para que as iniquidades sejam evitadas e para a garantia da integralidade e do acesso equitativo.

Merhy (2007) discute as relações entre o trabalho vivo em ato, trabalho morto e seus processos de captura. Dessa forma, levanta a problemática da tensão entre a autonomia do profissional da saúde versus o controle exercido pelas práticas gerenciais. Contudo, a dimensão relacional, presente no real do trabalho (Dejours, 2008), sempre escapa às estratégias de controle gerencial. O trabalho vivo em ato é apenas parcialmente capturável pelo trabalho morto.

Onocko Campos e Campos (2006) afirmam a coconstrução de autonomia como uma das finalidades do trabalho em saúde, com importantes implicações políticas, epistemológicas, organizacionais e para a gestão do trabalho. Desse ponto de vista, a autonomia não é absoluta, e sim será sempre mediada pela relação com os outros. Encontrar um equilíbrio entre a autonomia dos profissionais de saúde e a construção de autonomia dos usuários em seus modos de andar a vida faz-se um desafio cotidiano.

Como foi visto, se, por um lado, os ACS têm baixa capacidade de influenciar o trabalho dos demais profissionais da equipe, por outro lado, é no território, na realização das visitas, que encontram maior espaço de exercício de sua autonomia. Além disso, é também no deslocamento no território que seu trabalho ganha centralidade sobre o trabalho dos demais, ao contrário do trabalho intramuros, concentrado na atuação do médico. Assim, os ACS tornam-se os "olhos" da equipe no território.

Há um reconhecimento, por parte das equipes, de que os ACS conhecem melhor a área e a necessidade das pessoas que vivem ali (Abrahão, Lagrange, 2007), por isso, determinam as casas que serão visitadas. "Eu vou sempre com o ACS e o médico vai também sempre com o ACS. Porque a gente nunca sabe andar muito, aqui é muito grande e eles moram aqui, eles são quem sabem" (enfermeira Maria Ângela). Ou ainda, "Porque o ACS conhece a área, eles trabalham aqui há muito mais tempo que a gente. Os meus olhos são os deles" (odontóloga Andréia).

Observamos assim que, no território desconhecido para a maioria dos profissionais de nível superior, a dependência entre as categorias profissionais inverte-se. Durante as VDs, ao percorrerem os espaços da comunidade, os ACS tornam-se os atores principais do processo, e não o médico, enfermeiro ou o odontólogo. Esse deslocamento da equipe de saúde até o território, na casa das pessoas, pode representar um dispositivo potente para as práticas de cooperação entre categorias diversas e para o reconhecimento de uma experiência prática construída no trânsito pela comunidade. Traz à tona o debate sobre a formação e a importância do papel do ACS na integração entre território e unidade de saúde (Bornstein, 2007; Morosini, Corbo, Guimarães, 2007).

Rotinas versus prioridades: o lugar da visita domiciliar no planejamento das ações da equipe de saúde da família

As VDs permitem conhecer: as condições de vida e habitação das famílias, as relações que estabelecem no ambiente doméstico, as condições de adoecimento daquela família, e, consequentemente, podem facilitar o planejamento e o direcionamento das ações visando a promoção da saúde e o fortalecimento do autocuidado.

As enfermeiras realizavam as visitas intercalando uma microárea por semana. No entanto, essa disposição passou a não dar certo, pois, em algumas áreas, havia mais casos graves do que em outras, e o imperativo da realidade passou a determinar um novo tipo de arranjo, não programado: "então a gente agora ficou trabalhando só em cima da demanda, independente de ser um ou outro agente. Assim que a gente tem trabalhado até o momento" (enfermeira Manuela). A enfermeira ainda se lamenta: "[...] queria muito fazer um acompanhamento domiciliar mais planejado, mais programado, mas é um pouco complicado pela demanda que a gente tem aqui na unidade".

As prioridades do atendimento médico realizado nos domicílios são determinadas pelos ACS durante as visitas diárias, mas não foi instituída uma classificação de risco na unidade, ficando a critério de cada ACS e do que eles consideram prioritário. Organização similar ocorre em relação às VDs dos profissionais de nível superior, ou seja, quando algum cadastrado solicita atendimento no posto ou consulta domiciliar, o ACS identifica os casos com maior urgência, agenda as consultas médicas de acordo com a prioridade e seleciona os casos de VD. A enfermeira faz uma visita aos usuários, avalia e define quais serão os usuários que precisam de uma consulta médica domiciliar.

O médico da equipe amarela faz uma crítica a essa maneira de organização da unidade: "Essas visitas são feitas conforme o agendamento dos próprios ACSs. Eles que nos levam às visitas. Mas infelizmente o que a gente percebe é que fazemos sempre às mesmas pessoas. Eu não sei, mas creio que a população seja infinitamente maior do que aquilo que a gente conhece"(Dr. Vicente).

Este médico queixa-se, assim, da qualidade do olhar do ACS, que apresentaria alguma "cegueira" sobre a realidade da população de sua área de cobertura, mas, ao mesmo tempo, não propõe uma outra rota de visita aos ACS e enfermeiros e, muito menos, reserva mais tempo durante a semana para se dedicar a conhecer as pessoas e as potencialidades do território. Não se propõe a ir ver com seus próprios olhos.

As VDs da odontologia são orientadas para a realização de levantamento do perfil epidemiológico, base para identificação das prioridades e agendamento das primeiras consultas. A odontóloga da ESB verde relata que, no início, foi difícil, pois a VD da ESB criava uma grande expectativa no cadastrado. Do mesmo modo que as equipes de SF, cada ESB determina a rota das VDs a seu modo - com a ajuda dos ACSs. Em geral, fazem um rodízio entre os ACS e começam pelas áreas que estão em maior risco social. "Eu peço para o Otávio (ACS) pra ir só nas famílias mais carentes" (Odontóloga Dinorah).

O conjunto de normas e regulamentações da ESF formulado pelo Ministério da Saúde tem sido criticado por ser excessivo e por homogeneizar as atividades das ESF em todo o território nacional sem considerar as necessidades e especificidades locais, ainda que alguns padrões se façam necessários.

Observamos que o plano de visitas é elaborado apenas pelo ACS, sem o estabelecimento de objetivos pactuados em equipe. Os procedimentos da VD também não são padronizados, ficando a critério de cada profissional. Verificamos a reprodução burocrática das VDs: preenchimento de fichas e atualizações rotineiras que dificultam a construção de novas relações entre os usuários e a equipe.

Observamos que a dificuldade das equipes em lidar com a demanda espontânea e a programada também se reflete na organização e decisão entre prioridades das VDs (crônicos ou demandas agudas/ urgentes). O debate sobre a organização dos processos de trabalho nas unidades de SF e a construção de um protocolo de classificação de risco vem se intensificando em muitos municípios do país (Minas Gerais, 2010). Há um reconhecimento da necessária composição de critérios para organização da demanda e programação das ações de saúde com estabelecimento de prioridades (Mendes, 2010).

O caminho das equipes no território: produzindo encontros ou ditando modos de andar a vida?

A visita é uma atuação terapêutica em domicílio a pacientes acamados, mas, também, a maneira pela qual a equipe realiza a busca ativa aos faltosos, identificação da demanda reprimida, ações de promoção, prevenção e de educação em saúde de maneira mais singularizada (Abrahão, Lagrange, 2007).

A atenção à saúde no domicilio pode construir novas formas de cuidado que considere a realidade de vida das pessoas, suas necessidades e limites, bem como a integração do olhar da equipe multiprofissional, dessa forma, vai na contramão de uma prática puramente médica ou medicalizante hegemônica. Merhy e Feuerwerker (2007, p.2) apontam para uma "tensão constitutiva básica: de um lado, a medicalização, em sentido lato; de um outro, a sua substituição". Há sempre um processo de disputa pelo cuidado. No dia a dia do serviço de saúde, o profissional, sob várias formas, costuma prescrever estilos de vida, hábitos, alimentação, exercícios, medicamentos que provocam reações diversas. Nem sempre o profissional está preparado para escutar o usuário, seus valores, seus desejos, suas formas de andar a vida, muitas vezes incompatíveis com algumas prescrições. Este processo ainda é mais complexo nos casos de doenças crônicas ou acamados que precisam de múltiplos cuidados.

equipes que constroem o plano de cuidado em conjunto com os cuidadores, havendo a possibilidade de singularização do cuidado de acordo com necessidades identificadas e recursos disponibilizados pela família até equipes que procuram simplesmente transferir o hospital para dentro da casa, tentando enquadrar o cuidador como um simples executor de um plano terapêutico construído exclusivamente de acordo com a racionalidade técnico-científica. (Merhy, Feuerwerker, 2007, p.5)

A construção compartilhada do projeto terapêutico e a possibilidade de renovar coletivamente a prática dos profissionais que atuam neste processo, transformando suas ações de acordo com a realidade que se apresenta e envolvendo sujeitos em relação, constitui a potencialidade da VD. Possibilita a ampliação da autonomia na produção de sua própria saúde e do autocuidado, caminha no sentido da integralidade e da continuidade da atenção, numa perspectiva mais intercessora do cuidado (Merhy, 2007).

Durante uma visita da ESB, fomos à casa de uma senhora com dificuldade de locomoção que havia feito uma extração que inflamou. A casa era muito pobre e a senhora foi atendida no chão. O técnico em SB achou estranho porque ela relatou ter seguido as orientações de não fazer esforço e tomar corretamente a medicação. Ele insistiu e ela confidenciou que o filho a havia agredido, batendo justamente no curativo em seu rosto. Veio a descobrir que o rapaz era usuário de drogas, mas ela não queria denunciar, nem que o filho saísse da casa dela, numa tentativa desesperada de protegê-lo. A ESB procurou a enfermeira e o ACS, que já haviam tentado contato com assistência social, em vão, pois não havia disponibilidade de tratamento psicológico e acompanhamento social próximo a sua residência.

Neste caso, não cabe simplesmente a perspectiva de cura. A complexidade desta problemática exemplifica a dura realidade de se operar sobre esse território vivo e a difícil tarefa de apoiar o usuário na construção de uma forma de administrar melhor o seu próprio sofrimento e sua própria vida. Esse tipo de ação de saúde não se esgota na clínica ou na epidemiologia, mas envolve outros campos de conhecimentos que precisam ser mobilizados, implica processos relacionais com o usuário, escutas qualificadas e, mesmo, a responsabilização e compromisso só possíveis mediante os vínculos sociais que operam. Vale aqui refletir sobre os possíveis condicionantes das práticas das equipes atuando sobre uma demanda para além da saúde, e o que ela pode provocar no profissional que a experimenta (Campos, 2007b).

Segundo Bondía (2002), experiência não é aquilo que adquirimos com o tempo, com a informação, algo que acontece fora de nós; pelo contrário, experiência é o que passa em nós e, ao passar, nos transforma. Muitas coisas acontecem, mas experiência deixa algum vestígio e, portanto, necessariamente singular. Esse acontecimento requer uma ruptura, que nos faz desacelerar, refletir e escutar, dando sentido ao que nos atravessa. Nessa perspectiva, a experiência e o saber que dela deriva permitem apropriarmo-nos e agir sobre a nossa própria vida. No caso especial da saúde, acrescentamos que a experiência nos instrumentaliza também a operar na relação com os outros.

Fomos à casa de um senhor bastante resistente em aceitar a VD. Perguntava pelos médicos da unidade e disse que só queria a visita médica. O ACS relatou que ele não deixava ninguém aferir sua pressão, incluindo a filha que era técnica de enfermagem. A enfermeira foi, com cuidado, conquistando a confiança do usuário, aferiu sua pressão e, ao final, ele afirmou que gostou muito da nossa presença e garantiu que procuraria a unidade com mais frequência.

A VD da médica (equipe azul) foi a um usuário diabético com um dos pés amputado e o outro com sérios problemas de cicatrização. Esta visita foi acompanhada, também, por uma ACS. A consulta foi atenciosa. A médica conversou bastante com o usuário e com sua mulher sobre os cuidados que deveria tomar, indicando alimentos que deveriam ser ingeridos em abundância e outros que deveriam ser evitados, orientando sobre a limpeza e curativos necessários, e prescrevendo alguns medicamentos. Após a saída da casa, a mulher nos acompanhou e a médica conversou com ela sobre a sua saúde, valorizando o trabalho que desempenhava cuidando da casa e do marido e a importância de cuidar de si para dar conta de tarefas tão árduas. Ela exerceu escuta qualificada e muito sensível às questões vivenciadas no cotidiano de cuidado de um membro doente na família.

A VD implica certa exposição dos hábitos e rotinas privativas do usuário no espaço domiciliar. Assuntos particulares se tornam visíveis, alvo de avaliação dos profissionais de saúde e do seu saber-poder sanitário, legitimado pela ciência. O vínculo e a confiança se colocam em linha tênue nessa relação de compartilhamento e de encontro com o outro e devem ser protegidos como parte do ato de cuidar.

Considerações finais

O adequado atendimento à demanda espontânea é fator preponderante para o estabelecimento da SF como serviço de procura regular para assistência e prevenção. A VD também pode se constituir como dispositivo potente para a criação de vínculos, possibilitando um olhar diferenciado da equipe de saúde para alterações na forma de atuação neste processo. Contudo, acreditamos não ser possível generalizar tal compreensão ou adotar a VD como instrumento aplicável a todos os usuários, ou utilizá-la igualmente para toda a diversidade de situações que se apresentam no cotidiano.

Castiel, Sanz-Valero e Vasconcellos-Silva (2011) trazem a discussão sobre a perspectiva contemporânea de hipervalorização de estratégias de controle dos comportamentos, hábitos ou estilos de vidas com vistas à prevenção de doenças e diminuição de possíveis riscos. Segundo os autores, o terreno da saúde pública e seu ideário de risco estão modelando a subjetividade atual, propagando discursos morais, de medo, incerteza e culpa que assediam a vida cotidiana. Considerando essa discussão, acreditamos que a presença dos profissionais de saúde na residência e na vida privada das pessoas não pode ser mais um instrumento de controle, hiperprevenção e imposição. Ao contrário, deve poder ser um dispositivo que possibilite ampliar o olhar sobre as necessidades dos sujeitos e coletividades, bem como valorizar as possibilidades de escolha e autonomia dos sujeitos. Este é um dos principais desafios a serem enfrentados na consolidação das VDs como prática estruturante na Saúde da Família.

O fato de o cuidado em saúde ser produzido num território não institucional - o domicílio - pode produzir desconforto, angústia, desafios diante de uma demanda ainda não nomeada, não classificada, mas, por outro lado, pode compor alternativas complementares à organização do cuidado, implicando os atores ao se colocarem de outro modo em cena. Estabelecer rotinas diferenciadas de visita conforme risco/estrato social, presença de agravos crônicos etc., e instituir distintas prioridades como forma de aprimorar os serviços prestados pela ESF são instrumentos que podem vir a facilitar a organização das VDs, sem, contudo, se transformarem em regras rígidas que aprisionem esse processo de trabalho vivo em ato.

Elo entre o serviço e população, o ACS é ator importante da ação comunitária. É um facilitador para a identificação de problemas e possibilidades de auxílio ao usuário em seus modos de levar a vida. Contudo, Jardim e Lancman (2009) afirmam que é preciso considerar a complexidade e os desafios possivelmente implicados na dupla inserção dos ACS, simultaneamente agente e sujeito. Tal relação cria uma porosidade entre o trabalhar e o viver na comunidade, diminuindo ou eliminando o distanciamento do ato de trabalhar e de morar, visto que ambos acontecem nos mesmos espaços físicos e na relação com a mesma comunidade.

O território é base das iniciativas de articulação intersetorial e as equipes atuam na identificação de situações de risco social, potencializam a consolidação das redes locais, de modo que o acesso ao SF facilita o acesso a outros serviços sociais. No entanto, para que tal perspectiva seja efetiva, é preciso que se compreenda o território não só como um espaço geográfico e material/econômico, mas social, cultural, com suas dimensões simbólica e imaginária (Sá, 2009), que condicionam igualmente os problemas de saúde e a possibilidade de enfrentá-los.

Nesta perspectiva, a VD tem potencialidade de apreensão da realidade, permitindo expressar condições de vida e trabalho dos sujeitos, subsidiar o planejamento das ações para atender, de forma adequada, às necessidades de saúde da população em sua dimensão singular. São muitos os desafios diante da necessidade de se produzirem novas tecnologias de cuidado; entre eles, está o de estabelecer um novo equilíbrio no encontro entre usuário e profissional de saúde, a construção de um plano de saúde em ato para cada sujeito e sua vida.

Colaboradores

Os autores trabalharam juntos em todas as etapas de produção do manuscrito.

Recebido em 19/07/12.

Aprovado em 29/01/13.

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    Elaborado com base em Cunha (2010); pesquisa aprovada pelo Comitê de Ética da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz (Ensp/Fiocruz).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      21 Maio 2013
    • Data do Fascículo
      Mar 2013

    Histórico

    • Recebido
      19 Jul 2012
    • Aceito
      29 Jan 2013
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