Resumos
Embora o autismo não seja uma doença contagiosa, fala-se de uma “epidemia de autismo”, em alusão ao aumento vertiginoso do número de casos num período curto de tempo. O artigo traça um panorama das concepções socialmente partilhadas sobre o autismo no Brasil, a partir das narrativas que vêm conferindo visibilidade ao tema na mídia impressa brasileira no período de 2000 a 2012. Entendemos tais narrativas não como representações de uma realidade a priori, mas em sua função estruturante da experiência humana. Por um lado, essas narrativas dão forma e conteúdo às questões e às controvérsias ligadas ao autismo no Brasil, e, por outro, contribuem ativamente para esses debates, pois produzem determinados efeitos de sentido nos leitores.
Autismo; Narrativa; Mídia
Although autism is not a contagious disease, the term “autism epidemic” is used in allusion to the dramatic increase in the number of new cases in only a short period of time. This paper provides an overview of the socially shared conceptions surrounding autism in Brazil, through the narratives that have given visibility to this topic in the Brazilian press between 2000 and 2012. We regard these narratives not as representations of a reality a priori, but through their function of structuring human experience. On the one hand, such narratives shape and give content to the issues and controversies that surround autism in Brazil, while on the other hand, they also actively contribute to such debates, given that they affect the meaning that readers place on them.
Autism; Narrative; Media
Aunque el autismo no sea una enfermedad contagiosa, se habla de una “epidemia de autismo”, aludiendo al aumento vertiginoso del número de casos en un corto período de tiempo. El artículo esboza un panorama de las concepciones socialmente compartidas sobre el autismo en Brasil, a partir de las narrativas que otorgan visibilidad al tema en los medios impresos brasileños en el período de 2000 a 2012. Entendemos tales narrativas no como representaciones de una realidad a priori, sino en su función estructuradora de la experiencia humana. Por un lado, esas narrativas dan forma y contenido a las cuestiones y a las controversias vinculadas al autismo en Brasil y, por el otro, contribuyen activamente a esos debates, puesto que producen determinados efectos de sentido en los lectores.
Autismo; Narrativa; Medios
Introdução
Embora o autismo não seja uma doença contagiosa, fala-se de uma “epidemia de autismo”, em alusão ao aumento vertiginoso do número de casos num período curto de tempo. De uma forma geral, atribui-se esse aumento a uma mudança no modo como a psiquiatria passou a descrever e a classificar um conjunto de comportamentos e de características que já se apresentavam com determinada frequência na população anteriormente1, expandindo os casos classificados sob essa alcunha nosológica2. Especula-se, também, que a dita epidemia seja fruto de uma reconfiguração na rede de cuidados a essa população, que teve como marco inicial a desinstitucionalização do retardo mental no final dos anos 1960 nos Estados Unidos3. Tal argumento não aponta, exclusivamente, para uma substituição diagnóstica do retardo mental por autismo mas, sobretudo, para o efeito que a rede de cuidados que se formou em torno do autismo teve no sentido de conferir mais visibilidade a esse diagnóstico. Assim, segundo esses autores, “não foi a epidemia que fez o autismo visível, mas a visibilidade do autismo que fez a epidemia”3 (p. 2).
Exemplos dessa ebulição do tema do autismo proliferam tanto na mídia impressa quanto na audiovisual. No universo ficcional, autistas aparecem cada vez mais como personagens de livros, de filmes e de seriados televisivos4-7.
Ao longo da década de 2000, ganham espaço, também, as narrativas não ficcionais em primeira pessoa, sobretudo de origem anglo-saxã8-10. Além disso – e este é o principal foco deste artigo –, o autismo tem sido cada vez mais objeto de atenção e discussão na mídia, na forma de notícias e em matérias de caráter eminentemente jornalístico.
Há, certamente, uma atenção crescente no campo das pesquisas neurocientíficas e das políticas públicas, mas o autismo ainda é um transtorno permeado por controvérsias. A principal delas é, sem dúvida, em relação à etiologia do transtorno. Por um lado, um número crescente de pesquisas em neurodesenvolvimento e genética vem sendo realizado em busca de um marcador biológico que contribua para a detecção precoce e o tratamento do autismo11,12. Por outro lado, não se pode afirmar que haja uma única causa orgânica para esse transtorno, nem que as descrições diagnósticas de manuais como o DSM e a CID sejam suficientes para esclarecer o amplo universo de suas manifestações clínicas13. Há, portanto, uma evidente complexidade e uma heterogeneidade nas manifestações do transtorno, além de debates e incertezas quanto a sua etiologia e seu tratamento – o que dificulta a generalização das características próprias de um autista para os demais.
Levando essas asserções em consideração, o filósofo Ian Hacking afirma que, se você conhece uma pessoa com autismo, você conhece uma pessoa com autismo5,14. Essa frase aparentemente tautológica pretende ressaltar quanto o autismo é um terreno de particularidades, em que biografias e experiências de pais e de pessoas acometidas por essa condição colocam-se sempre em tensão com uma definição mais ampla a respeito do que seja o autismo.
O presente artigo utiliza a noção de narrativa como principal categoria de análise, procurando, com isso, mapear os sentidos específicos que se constroem em torno desse universo complexo e heterogêneo que é o autismo. Desse modo, partimos da premissa de que as incertezas e os debates acerca do autismo ganham contorno no texto midiático ao se organizarem em narrativas, agregando, também, elementos de ordem cultural e sociopolítica. Segundo Motta, “as narrativas midiáticas não são apenas representações da realidade, mas uma forma de organizar nossas ações em função de estratégias culturais em contexto”15 (p. 3).
Dessa forma, o artigo tem como objetivo analisar notícias e matérias sobre autismo e autistas em quatro veículos da mídia impressa, aqui consideradas como “fragmentos desconexos de sentido”15 (p. 4). A partir disso, tentaremos recompor os enredos e as intrigas que estruturam tais fragmentos em narrativas, a fim de esboçar um panorama, ainda que parcial e mediado pela imprensa, das concepções socialmente partilhadas sobre autismo no Brasil. Entendemos tais narrativas não como representações de uma realidade a priori, mas em sua função estruturante da experiência humana. No caso do autismo, por um lado, essas narrativas dão forma e conteúdo às questões e controvérsias ligadas a essa condição no Brasil; e, por outro, contribuem ativamente para esses debates, produzindo determinados efeitos de sentido nos leitores.
É importante destacar ainda que, mesmo quando contestadas e debatidas por leitores na seção de cartas, muitas dessas notícias são reproduzidas em sua versão digital em blogs e nas redes sociais, gerando uma difusão que vai além dos leitores do veículo em que foram originalmente publicadas, pois, nesses casos, o texto jornalístico adquire, também, um caráter eminentemente político.
Tais grupos – compostos, em sua maioria, por familiares de autistas e, em menor número, por profissionais e pelos próprios autistas –, além de ajudarem a disseminar informações sobre o autismo e assuntos a ele relacionados, têm também um papel importante na luta por direitos e na constituição de políticas públicas16-20.
O texto jornalístico como narrativa
Segundo Garro e Mattingly21 (p. 1), a “narrativa é a forma fundamentalmente humana de dar sentido à experiência”. Dizer que a narrativa tem uma função estruturante na experiência humana não significa, entretanto, reduzi-la meramente à sua dimensão subjetiva. A produção e a compreensão de uma narrativa são processos que dependem: de recursos pessoais e culturais; do mundo interior dos pensamentos e sentimentos; e do mundo exterior de ações observáveis e dos sentidos socialmente compartilhados21.
Há, na própria organização narrativa, um recorte parcial da realidade, dando-se maior ou menor ênfase e visibilidade a certos temas, perspectivas e atores sociais. Tal recorte gera efeitos de sentido em seus leitores, que podem, pelo menos em parte, ser inferidos a partir da própria estrutura de uma narrativa e do contexto sociocultural em que ela se desenrola. Segundo Motta15 (p. 2), “quando o narrador configura um discurso na sua forma narrativa, ele introduz necessariamente uma força ilocutiva responsável pelos efeitos que vai gerar no seu destinatário”. No contexto da narrativa midiática, isso implica pensar as notícias como algo mais do que simples relatos de uma realidade objetiva preestabelecida.
Outro elemento central na configuração de uma narrativa, o qual teve papel importante na análise dos dados aqui apresentados, é o que Motta chama de “conflito”, e que outros autores chamam, simplesmente, de “problema”. O problema é o elemento estruturador de qualquer relato, o que também equivale a dizer que todas as narrativas têm, em seu núcleo, algum tipo de problematização acerca da realidade22,23.
Um problema, tomado num sentido amplo, pode ser um evento específico que merece ganhar as páginas de um jornal simplesmente para informar os leitores, mas pode incluir, também, um julgamento de valor a respeito desse evento. É o problema que torna a narrativa necessária como forma de ordenação da realidade que merece ser relatada e compartilhada, e que, no caso da mídia impressa em especial, assume-se que vá interessar aos leitores.
Entretanto, nem todas as narrativas, nem mesmo as jornalísticas, apresentam um problema explicitamente articulado. Ochs e Taylor distinguem ‘narrativas orientadas para um problema’ de um simples relato, em que não há orientação explícita para problemas. No contexto deste artigo, entendemos por ‘narrativas orientadas para um problema’ aquelas que são associadas a um julgamento de valor a respeito de determinado assunto ou evento24. Tal julgamento funciona como um importante princípio organizador do relato, mobilizando, assim, ainda mais a atenção do leitor. Por exemplo: incluímos, nessa categoria, matérias nas quais há algum elogio ou alguma crítica a descobertas científicas, políticas públicas ou terapias; e/ou histórias de preconceito e de discriminação, superação individual de algum autista, ou luta por parte dos pais. Observamos que, além de apresentarem um problema mais facilmente identificável, tais narrativas frequentemente suscitavam outras narrativas a respeito do tema. Quando isso acontecia, passávamos a denominá-las narrativas-gatilho.
Metodologia
A pesquisa foi realizada a partir de uma base empírica de 476 matérias coletadas no arquivo digital de quatro veículos de mídia impressa de circulação nacional: Folha de S. Paulo, O Estado de S. Paulo, O Globo e Veja. Esses veículos têm linhas editoriais diferentes e trazem também notícias locais, configurando uma base de dados numerosa e satisfatória para um estudo exploratório. As palavras-chave de busca foram autista e autismo, e os textos coletados incluem: reportagens, editoriais, entrevistas, colunas, resenhas de livros ou filmes, artigos de opinião e cartas de leitores. Embora tais textos tenham formatos e tamanhos diferentes, serão referidos aqui pelo termo matérias. Foram excluídas da base de dados matérias nas quais esses termos apareciam em sentido metafórico e em contextos muito distantes do autismo como condição clínica, ou seja, aquelas em que o termo aparece como categoria de acusação no âmbito da política brasileira. Embora esses usos dos termos ‘autismo’ e ‘autista’ sejam passíveis de análise no contexto das percepções do público leigo sobre autismo, a inclusão de tais matérias em nossa base demandaria um tipo de análise específica e diferente da que nos propusemos a conduzir aqui.
O recorte temporal foi de janeiro de 2000 a outubro de 2012, de forma a contemplar marcos importantes na história do autismo no Brasil e no mundo. Entre esses marcos, estão: a III Conferência Nacional de Saúde Mental, ocorrida em dezembro de 2001, quando a questão do autismo alavancou a produção de uma política de saúde mental voltada especificamente para crianças25, e a promulgação da Convenção Internacional dos Direitos das Pessoas com Deficiência, pela Organização das Nações Unidas (ONU), em dezembro de 200626.
Em 2011, o tema ganhou destaque novamente, com o lançamento de um plano nacional de direitos das pessoas com deficiência, o “Viver sem limites”27. Embora nem a convenção da ONU nem o “Viver sem limites” lidem especificamente com o tema do autismo, seu impacto na luta pelos direitos dos autistas pode ser observado especialmente no debate sobre inclusão escolar. Mais recentemente, em dezembro de 2012, a inclusão do autismo na agenda dos direitos da pessoa com deficiência ganhou o estatuto de lei, com a aprovação da Lei no 12.764, em que os autistas são reconhecidos como pessoas com deficiência para todos os efeitos legais.
As matérias foram analisadas por meio de um questionário elaborado com o auxílio de uma ferramenta para análise de dados quantitativos e qualitativos. O questionário permitiu o registro e o cruzamento de informações previamente categorizadas como relevantes, tais como: o contexto ao qual a matéria se referia (nacional, internacional ou ambos), os temas abordados, os problemas que suscitavam as narrativas jornalísticas, e as principais esferas e os atores sociais envolvidos.
Além disso, o questionário foi formulado de maneira a identificar elementos que compunham as estratégias retóricas do texto, como, por exemplo, se a matéria continha relatos pessoais, opiniões de especialistas, informações sobre tratamento, diagnóstico etc. As matérias em que o autismo aparece como tema central ou secundário foram separadas daquelas em que há apenas uma simples menção do termo autismo ou autista, sem que nenhuma discussão ou aprofundamento seja feito a esse respeito. Por fim, o questionário continha também perguntas que visavam identificar as narrativas orientadas para um problema, mapeando as matérias que mostravam julgamentos de valor mais evidentes.
A análise das matérias consistiu, inicialmente, na quantificação de certos elementos narrativos, de forma a identificar continuidades e justaposições temáticas, recompondo, a partir daí, os enredos mais amplos que perpassam nossa base de dados. Em um segundo momento, estreitou-se ainda mais o foco para as chamadas narrativas-gatilho e para o modo como elas articulavam problemáticas diversas em torno do tema do autismo. Entendemos que essas narrativas pontuavam temas e discussões importantes no campo do autismo, suscitando, portanto, o interesse público e ganhando destaque nesses veículos de mídia impressa.
Na discussão dos resultados apresentada a seguir, procura-se traçar uma anatomia das principais narrativas que compõem o texto jornalístico sobre autismo, identificando seus elementos mais comuns, as estratégias retóricas utilizadas para sua composição e os principais problemas que as movem. Tal discussão não se pretende exaustiva, tendo em vista a amplitude da base, mas procura traçar os contornos gerais da construção narrativa da dita “epidemia de autismo” na mídia escrita brasileira, e apontar seu possível efeito no ativismo político dos pais de autistas.
Resultados e discussão
A análise geral dos resultados obtidos mostrou que houve um aumento significativo no número de matérias sobre autismo no conjunto dos veículos analisados entre 2000 e 2012, como demonstrado no Gráfico 1.
Entre as 297 matérias em que o tema central é o autismo, ou há alguma discussão a respeito, a ciência – e, mais especificamente, as neurociências – aparece como o contexto mais frequente no qual se desenrolam as narrativas jornalísticas da amostra analisada, com 32%, seguida da saúde, com 23,5%. Embora ciência e saúde sejam áreas bem próximas no que tange à questão do autismo, fez-se uma distinção entre esses dois campos, de forma a destacar as matérias que tratam, primordialmente, de pesquisas e de achados científicos relativos, direta ou indiretamente, ao autismo. Assim, as matérias ligadas à pesquisa científica de uma forma geral serão chamadas de relativas à ciência. Também serão denominados dessa forma: os achados relacionados ao funcionamento do cérebro de indivíduos autistas, além dos estudos sobre diagnóstico precoce e tratamento, as possíveis causas genéticas ou ambientais e, mais recentemente, a perspectiva de cura.
Conforme se observa no Gráfico 2, há um crescimento significativo no número de matérias que têm o campo científico como foco principal.
Por outro lado, há também um número significativo de matérias que falam do autismo como uma condição que exige cuidados em saúde. Tais matérias variam em formato e em objetivo, mas são, geralmente, informativas, descrevendo as características do autismo de uma forma mais ampla, informando sobre instituições e associações que oferecem tratamento e apoio para as famílias, ou divulgando um ou outro tratamento específico. Esse tipo de matéria foi classificado como pertencente ao campo da saúde.
Encontramos, ainda, outras formas de abordagem do assunto autismo, quais sejam: direito (10,2%), arte e entretenimento (8,8%), educação (7,5%), política (5,7%), entre outros (trabalho, vida pessoal, tecnologia etc.). Entre aquelas em que há uma simples menção ao termo autismo ou autista, as de ciência também lideram como tema principal (31,3%), seguidas pelas da saúde (14,5%). Se considerarmos o percentual de aparecimento desses dois assuntos juntos, chegamos a 45,8% do total das matérias.
Embora a divulgação de informações sobre o autismo de forma abstrata e generalizante seja comum na base de dados, observa-se, também, o uso frequente (21,64%) de relatos pessoais de autistas e familiares como estratégia retórica na confecção das matérias. Todavia, percebe-se uma escassez de relatos de autistas em primeira pessoa (6,1%) e um número ainda menor de relatos de autistas brasileiros (1,7%). A maioria dos autistas que aparecem falando em primeira pessoa é de estrangeiros, e conhecidos internacionalmente por terem escrito biografias famosas, militarem pela causa autista, aparecerem em documentários ou serem profissionais de destaque.
Entretanto, a maior parte dos relatos pessoais não trata de biografias extraordinárias, mas cumpre uma função ilustrativa, servindo como exemplo singular para algum tema tratado na matéria em questão. Tais relatos oscilam entre breves comentários pessoais e narrativas biográficas mais extensas. Neste último caso, o narrador principal acaba sendo o próprio jornalista, que cita trechos do relato original do ator social entrevistado para a matéria (em quase metade dos relatos, essas citações são de mães de autistas).
O papel meramente ilustrativo dos relatos pessoais é bastante evidente nas matérias que traçam um panorama sobre o autismo, ou que versam sobre os benefícios de determinado tratamento. Por exemplo, uma matéria publicada na revista Veja, com o título de “Olhos nos olhos”, traz uma visão geral sobre o autismo, tratando mais especificamente da importância do diagnóstico e do tratamento precoce. A matéria traz fotos, um pequeno quadro com estatísticas, e uma linha do tempo indicando sinais que podem estar associados ao autismo em cada etapa do desenvolvimento infantil. A história de um menino autista é o ponto de partida dessa matéria, que se inicia da seguinte forma:
Rafael tem 9 anos. Com dificuldade para se comunicar, só consegue cumprir as tarefas mais prosaicas do cotidiano se seguir um passo a passo ilustrado com figuras e frases curtas. É assim para tomar banho, pôr a roupa, escovar os dentes e arrumar a mochila para a escola – e até para brincar. Alegre e amoroso, está o tempo todo beijando e abraçando a irmã mais velha, Carolina. [...] Rafael tem autismo e, até pouco tempo atrás, seu comportamento seria inimaginável para uma criança portadora do distúrbio. As conquistas do menino devem-se ao diagnóstico precoce da doença.28 (p. 108)
O tema das políticas e dos serviços públicos no Brasil para o tratamento dos autistas apareceu com razoável frequência na base de dados (19,5%) e foi o que mais gerou as já mencionadas narrativas-gatilho. Além disso, em 79,6% dos casos em que uma matéria discute serviços e políticas públicas, observa-se uma apreciação claramente crítica desses aspectos.
As duas principais áreas em que o autismo é discutido no âmbito das políticas públicas são: saúde e educação dos indivíduos diagnosticados com transtorno do espectro autista. Entre as menções a políticas públicas, 44,8% dizem respeito à área de saúde; 37,3%, à área de educação; e o restante se divide em menções sobre políticas de investimento em pesquisa sobre o autismo, inclusão no mercado de trabalho, entre outras.
Nas reportagens relacionadas à área da saúde, as críticas focam, sobretudo, no descumprimento, por parte do governo, de leis e portarias que garantem o atendimento a autistas. Nesse caso, as narrativas jornalísticas são inicialmente motivadas por batalhas jurídicas para que o Estado cumpra seu dever de proporcionar atendimento universal, mas acabam misturando queixas em torno da insuficiência de serviços de saúde de uma forma geral e a respeito da inadequação dos serviços já oferecidos; ou seja, a percepção de que falta tratamento para os autistas mistura-se à observação de que os tratamentos oferecidos pelo Estado estão longe de serem adequados.
Uma matéria publicada pelo jornal O Globo, com o título “Os meninos do porão”29, é um bom exemplo desse tipo de enredo narrativo. Ela funciona também como uma narrativa-gatilho, motivando várias outras reportagens e cartas de leitores ao longo de algumas semanas. O problema que acionou a narrativa original foi a história de uma empregada doméstica em São Paulo e sua luta na Justiça para garantir o tratamento de seu filho, que, nesse caso, necessitava ser internado. Mesmo ganhando uma liminar que obrigava o governo a custear a internação do menino, o governo se negou a cumprir a lei, o que gerou ainda mais desdobramentos no caso. Na chamada que o jornal publicou para a matéria principal, lê-se que a repórter “investigou esse mundo subterrâneo e conheceu o drama de pelo menos trinta meninos autistas sem tratamento e de suas famílias aterrorizadas e esquecidas pelo poder público”30 (p. 2). Seguindo esse mesmo tom, as matérias subsequentes trouxeram não apenas o relato da luta dessa mãe para fazer valer seus direitos como cidadã, mas as histórias de várias outras mães de autistas de baixa renda e suas dificuldades cotidianas.
O retrato dos autistas descritos nessas matérias difere bastante da matéria da revista Veja anteriormente citada, e serve para ilustrar outra face da questão do autismo no Brasil – a falta de atendimento e o descaso do poder público para com os autistas. O texto jornalístico também se inicia com um breve relato biográfico, não somente de um, mas de alguns autistas:
Rafael, de 25 anos, finge que é passarinho, mas passou a vida trancado. André, 20 anos, reza dias inteiros e grita o tempo todo. Leandro, 29, engole esponjas de aço e cremes de cabelo. João Guilherme, 11, come compulsivamente. Eles se automutilam e agridem até suas mães. Apesar de adultos, serão sempre meninos. Eles têm autismo, transtorno que atinge até 1,8 milhão de brasileiros, segundo estimativas médicas.29 (p. 19)
Há também, nessas matérias, uma breve descrição da estrutura de atendimento para autistas na rede pública, sem que haja, no entanto, uma discussão mais profunda a esse respeito. Nas matérias publicadas nos dias seguintes, aparecem os pontos de vista de juristas, representantes do Ministério da Saúde e de outros pais de autistas não incluídos na matéria original. Em todas as matérias, há apenas uma breve menção a controvérsias quanto ao tipo de tratamento a ser oferecido na rede pública. De acordo com um deputado, essa discussão ainda estava sendo feita pela rede pública na época, “são metodologias estrangeiras e há divergências sobre sua aplicação”31 (p. 12).
Consideradas em seu conjunto, essas matérias se organizam em uma estrutura narrativa de indignação com o descaso do poder público, em que o autismo não tratado configura uma crise de saúde pública, o tratamento oferecido pela rede pública é inexistente ou inadequado e, além de tudo, o governo recusa-se a cumprir a lei.
Embora esse conjunto de matérias tenha sido publicado em 2006, e o debate público sobre o atendimento às pessoas com autismo tenha avançado desde então, a mesma controvérsia continua a aparecer em outras matérias. Por exemplo, em 2012, um incidente na Grande São Paulo chegou aos jornais e levantou, novamente, a discussão sobre o atendimento a pessoas com autismo na rede pública. A notícia fala de um adolescente autista que foi esquecido em um centro de reabilitação social. Um problema de comunicação entre o centro e os pais do adolescente fez com que ele fosse dado por desaparecido até as 23h do mesmo dia, quando foi encontrado em uma sala escura dentro do centro. A notícia, que tem como manchete, no topo da página, “Aluno autista é esquecido em sala escura”, divide-se em matérias32. Logo abaixo da notícia principal, o leitor é informado sobre “o outro lado” em uma matéria com o título “Secretaria de Assistência Social diz que instaurou sindicância”32. Ao lado, um pequeno infográfico, com o título “Entenda o autismo e suas formas – apesar de elementos comuns, efeitos do problema variam muito”32 (p. C5), esclarece ao leitor o que é o autismo. Alguns desenhos e tópicos com pequenos textos explicativos fornecem estatísticas, sintomas e possíveis causas. Em outro pequeno quadro, onde se lê “Saiba mais”, outra matéria, com o título de “Em SP, governo tem que garantir atendimento”, faz críticas ao governo e ao atendimento da rede pública:
Em São Paulo, o governo estadual é responsável por garantir atendimento de saúde, escolar e assistencial aos autistas, segundo uma decisão da Justiça de 2006. Mas, na prática, o tema ainda é alvo de ações administrativas e judiciais. São mães que reclamam que os filhos não recebem as terapias necessárias, que pedem inclusão em escolas adequadas ou o fornecimento de transporte.32 (p. C5)
Logo abaixo, há uma nota sobre o projeto que define o autista como deficiente. A deputada federal Mara Gabrilli (PSDB), relatora do projeto, é citada nessa nota, dizendo que “o Brasil nunca teve nenhum tipo de política pública voltada para o autismo e eles não eram incluídos na legislação para deficientes”32 (p. C5). Embora o fato que motivou a matéria central não dissesse respeito à falta de atendimento nem às brigas judiciais para garantir acesso ao tratamento e à educação, a narrativa jornalística construída em torno dessa notícia é bastante semelhante àquela estruturada a partir da matéria “Meninos do porão”.
No campo da educação, o tema geral das narrativas é o impacto das políticas ligadas à inclusão escolar, e prevalece, também, um tom fortemente crítico. Nesse caso, as narrativas a respeito de um Estado faltoso em fazer cumprir decisões judiciais e em criar condições de implementação das políticas públicas na área de educação se entrecruzam com uma discussão sobre a própria validade das políticas de inclusão escolar. A maior parte das reportagens fala do despreparo das escolas públicas para receber alunos com necessidades especiais, assim como da dificuldade dos pais de encontrar vaga na rede privada, e trazem relatos de mães sobre o preconceito sofrido por seus filhos no contexto escolar.
Um achado importante da análise é que a fronteira entre serviços de saúde e de educação nem sempre é clara no caso do autismo, seja nas reportagens sobre autismo de uma forma mais geral, seja nas reivindicações dos pais por atenção especializada para autistas. As matérias que criticam a falta de atendimento no sistema público, geralmente, fazem referência à saúde e à educação de forma conjunta quando mencionam tratamentos: “Não há unidades especializadas para o tratamento nas redes públicas de saúde e educação”33 (p. A26). Ou, como se vê adiante, ainda na mesma matéria: “Por trás da falta de programas voltados para o autismo está a desinformação, até mesmo de autoridades e profissionais de saúde e educação, sobre uma síndrome que não é tão rara”33 (p. A26). Além disso, há uma tendência dos pais em ver a escola como parte de uma “terapêutica” para autistas. Por exemplo, ao descrever sua saga em busca da melhor escola para seu filho, uma mãe fala sobre sua decisão de tentar matriculá-lo numa escola regular: “Como os psicólogos e médicos de meu filho sugerem que ele tenha um referencial de relacionamentos sociais normais, procurei outras escolas”34 (p. A3). Nessa perspectiva, a escola é vista menos como um espaço de desconstrução do preconceito em relação ao autista e como local de possível afirmação da diferença, conforme propõe a perspectiva da educação inclusiva, e mais como espaço de uma terapêutica focada na adequação do autista às expectativas sociais mais amplas.
Considerações finais
Observamos que o autismo se tornou objeto de crescente atenção na mídia de duas formas distintas, porém relacionadas. A primeira acontece em função de uma ênfase, cada vez maior, em sua dimensão neurobiológica, observada no aumento de matérias a respeito de pesquisas científicas sobre o autismo, especialmente no campo da genética e das neurociências. As matérias que falam do autismo como uma condição que exige cuidados de saúde também dialogam de perto com a visão neurobiológica. Por sua vez, esses dois tipos de matéria acabam por reforçar certa narrativa sobre o autismo em que este é concebido como “uma entidade objetiva independente da sua incorporação em indivíduos particulares”35 (p. 411). Os relatos sobre autistas que aparecem nesse contexto cumprem uma função ilustrativa, mantendo uma relação próxima com descrições psiquiátricas e neurocientíficas a respeito do transtorno. Por outro lado, esses relatos facilitam a identificação do leitor com o texto jornalístico, apresentando respostas e desfechos narrativos possíveis para os desafios que esses leitores possam estar vivendo em relação a seus filhos.
A segunda forma de visibilidade alcançada pelo autismo, ao longo desse período, destaca-se pelo efeito dramático que produz nos leitores. As matérias que fazem críticas às políticas públicas, especialmente nas áreas de saúde e de educação, trazem casos limites de pais desesperados e de autistas desassistidos pelo poder público. Os relatos sobre autistas que aparecem nesse contexto abordam o autismo como uma condição extrema que necessita de atenção específica e intensiva.
Tomando-se essas duas formas de visibilidade no contexto de uma discussão mais ampla sobre as estratégias em saúde e educação para o autismo no Brasil, é possível notar como a percepção de que há uma epidemia de autismo em curso torna-se ainda mais premente. Diante da abundância de matérias que falam de pesquisas e tratamento estrangeiros, agrava-se a percepção da escassez de recursos para lidar com o autismo no Brasil. A mobilização política dos pais e familiares no Brasil vem se construindo justamente em torno desses dois pilares – a denúncia da falta de serviços especializados e a divulgação de estudos e metodologias estrangeiras.
Naturalmente, não se pode afirmar que a mídia impressa seja a única responsável por essa configuração. As redes sociais também têm desempenhado um papel importante nesse sentido16. Mas o uso da narrativa como categoria de análise nos permite afirmar que a mídia impressa assume um papel importante nas concepções socialmente partilhadas sobre o autismo no Brasil, não apenas por veicular informações de cunho científico sobre o tema. Em sua dimensão mais dramática, a narrativa midiática também sensibiliza o leitor para causas políticas. Tal efeito é especialmente evidente entre familiares que militam pela causa dos autistas, que não raramente recorrem a clippings de jornais e revistas para legitimarem e autorizarem suas reivindicações políticas36.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
27 Fev 2015 -
Data do Fascículo
Apr-Jun 2015
Histórico
-
Recebido
26 Maio 2014 -
Aceito
28 Ago 2014