Resumos
O presente artigo analisa os efeitos que podem ser coletados das múltiplas experiências cotidianas vivenciadas pelos tutores/as, preceptores/as e alunos/as participantes do Programa de Educação pelo Trabalho para Saúde (PET-Saúde) quando se trata de utilizá-las para se pensarem transformações na micropolítica da formação universitária e no trabalho em saúde. Tem como eixo uma pergunta: O Programa Pet-Saúde, nos seus processos cotidianos, é capaz de produzir efeitos que alargam a matriz de formação que tem como característica principal os processos de ensignação? Mais do que polarizar entre o sim e o não, temos como objetivo colocar em discussão as apostas na formação e atuação do campo da produção do cuidado em saúde, tentando pensar o que têm sido esses campos no âmbito da educação brasileira, e como é possível re-inventar processos de formação que tomam muito mais as desaprendizagens e as potencialidades dos diferentes atores envolvidos.
Educação em saúde; Programas nacionais de saúde; Serviços de integração docente-assistencial
This paper analyzes the effect of the daily experiences of tutors, preceptors, and students who participated in the Education by Work for Health Program (PET-Health) when using those to create transformations in the higher education micro-political dimension and in health work. Its guiding question was: Is the PET-Health with its daily processes capable of producing effects that extend the education matrix whose main characteristic is the teaching process? Rather than polarizing between yes or no, this paper attempt to discuss the existing stakes in education and healthcare production, the framework of the Brazilian education system, and the reinvention of education processes that adopt much more the unlearning and the potentialities of the different actors involved.
Health education; National health programs; Teaching care integration services
Este artículo analisa los efectos que pueden ser recogidos a partir de múltiples experiencias vividas por los participantes del Programa de Educación por el Trabajo para la Salud (PET-Salud), para pensar transformaciones en la micropolítica de la formación universitaria y el trabajo en la salud. Existe como hilo conductor una pregunta: El PET-Salud, en sus procesos diarios, puede producir efectos que amplían la matriz de formación que tiene como característica principal los procesos de ensignación? Más que polarizar entre el sí y el no, nuestro objetivo es poner en discusión las participaciones en la formación y actuación del campo de la producción en la atención de la salud; tratando de pensar en lo que han sido estos campos en el ámbito de la educación brasileña y cómo se pueden reinventar los procesos de formación que toman mucho más los desaprendizajes y las potencialidades de los distintos actores involucrados.
Educación en salud; Programas nacionales de salud; Servicios de integración docente assistencial
“Por que todos os alunos não têm a oportunidade de fazer o que estamos fazendo, só os alunos do PET?
Por que eu, que estou vivendo na experiência do PET, não vivo esta mesma experiência na sala de aula, quando estou no meu curso?”
(aluna bolsista do PET Saúde)
Em suma, tudo é político, mas toda política é ao mesmo tempo uma macropolítica e uma micropolítica.1(p.90)
Apresentação
O presente artigo tem como proposta discutir os efeitos que podem ser coletados das múltiplas experiências cotidianas vivenciadas pelos tutores/as, preceptores/as e alunos/as participantes do Programa de Educação pelo Trabalho para a Saúde (PET-Saúde)2 quando se trata de utilizá-las como material para pensar transformações na micropolítica da formação universitária e no trabalho em saúde. Tem como fio condutor uma pergunta: O Programa Pet-Saúde, nos seus processos cotidianos, é capaz de produzir efeitos que alargam a matriz de formação que tem como característica principal os processos de “ensignação”1? Mais do que produzir respostas que polarizem entre o sim e o não, este texto tem como objetivo colocar em discussão as apostas na formação e atuação do campo da produção do cuidado em saúde; tentando pensar o que tem sido o campo da formação em saúde no âmbito da educação brasileira, e como é possível reinventar processos que tomam muito mais as desaprendizagens e as potencialidades dos diferentes atores envolvidos.
Quando tomamos os processos de formação e, consequentemente, o mundo do trabalho de uma perspectiva micropolítica, estamos assumindo que diferentes linhas de força compõem os processos sociais e suas dinâmicas. Ora essas linhas são mais endurecidas, segmentarizadas e molares, ora são mais moleculares. Como nos diria Deleuze e Guattari1:
[...] toda sociedade, mas todo indivíduo, são pois atravessados pelas duas segmentaridades ao mesmo tempo: uma molar e outra molecular. Se elas se distinguem, é porque não têm os mesmos termos, nem as mesmas correlações, nem a mesma natureza, nem o mesmo tipo de multiplicidade. Mas, se são inseparáveis, é porque coexistem, passam uma para a outra [...]. (p. 90)
Assim são os processos de formação em saúde e, também, o mundo do trabalho. Tomá-los, nesta perspectiva, é olhá-los a partir dos processos mais moleculares, micropolíticos, entendendo que “[...] cada um de nós passamos pelas mais variadas micropolíticas e, em cada uma delas, muda nossa maneira de pensar, sentir, perceber, agir – muda tudo. Além disso, cada momento de nossas vidas é feito, simultaneamente, de várias micropolíticas [...]”3(p. 55). A partir desta perspectiva, que traz a micropolítica desses arranjos, é possível perceber a presença de linhas mais duras e segmentarizadas que reforçam algumas dicotomias como, por exemplo, a separação entre a formação e o mundo do trabalho, bem como linhas de fuga, re-invenções que colocam ou que tentam colocar esses campos em diálogos, interações e interferências.
Assim, há uma certa “biologia”, a do corpo biológico, e seu imperativo no campo da saúde, conectada a um processo de formação, que trabalha fortemente a “ensignação” que separa o sujeito “sabedor” do “sujeito que não sabe”, que qualifica o conhecimento deste “sabedor” como o único válido, seja na relação entre professor/a e aluno/a, seja na relação profissional de saúde e sujeitos que demandam cuidados. Ao mesmo tempo, disputando esse sentido, outras possibilidades emergem nas mais diferentes práticas cotidianas que alargam o imperativo biológico na formação e na atuação no campo da saúde e apostam muito mais no encontro e em sua potência criativa, do que na ensignação e no distanciamento. Este texto é um esforço de fazer esses processos visíveis (possíveis de serem vistos, visibilizados) e dizíveis (possíveis de serem ditos, verbalizados).
Percorrendo os encontros nas experimentações PET
As falas que conduzem as discussões aqui levantadas vêm de várias experiências/experimentações: partem das experiências de tutorias em diferentes contextos e ofertas do PET (Saúde, Redes e Vigilância) onde, por meio de diferentes processos avaliativos com participantes do PET ou no cotidiano das atividades de tutoria do programa, podemos recolher falas como as que abrem nosso artigo tanto quanto as que aparecem ao longo do texto. Mas o que estas falas querem mesmo dizer? O que suas polifonias e polissemias revelam? O que estas questões posicionam e são capazes de ofertar para os debates nas escolas de formação em saúde?
Queremos trazer para o debate a variedade/multiplicidade destas experiências e o que elas repetem (reiteram) ou interrogam e produzem inventivamente tanto nas instituições de ensino quanto nos serviços de saúde; movimento que nos remete, muito mais, a uma dobra entre repetição e diferença, onde aquilo que é repetição, de tanto se repetir, produz em si mesma a diferença4.
Tanto alunos, como docentes e preceptores que atuam neste programa recolhem vivências muito interessantes. São relatos ricos, intensos, que não cansam de afirmar o quanto trabalhar junto com professores de outros cursos fazendo um trabalho comum é um grande aprendizado; que conhecer e trabalhar com os profissionais da rede permite ter outra visão de como é o mundo do trabalho nos serviços; que atuar como formador dos alunos traz um repensar da prática do profissional no serviço constantemente; que construir com os alunos atividades juntos aos serviços produz outro sentido em relação aos cenários de prática. Como nos diz Franco5 (p. 227): “[...] o processo de trabalho em saúde, na sua micropolítica, quando esta funciona sob uma certa hegemonia do trabalho vivo, vão-nos revelar um mundo extremamente rico, dinâmico e criativo, não estruturado e de alta possibilidade inventiva”.
Nesse sentido, o encontro no PET-Saúde, ao trabalhar as questões que interessam ao SUS, produz outro sentido para pesquisa, onde desenvolver atividades com alunos/as, professores/as e preceptores/as de outros cursos é uma descoberta de encontros, porosidades e de troca. Em muitos casos, foi a organização do PET que produziu a entrada dos docentes na rede de saúde do município. Em outros, redesenhou os espaços de docência e do trabalho em saúde. Enfim, recolhemos vários aspectos potentes, que repercutem na formação e reconfiguração de todos os envolvidos. Docentes, estudantes e profissionais de saúde que atuam como preceptores relatam quanto este programa tem mudado cada um deles. Mas do que todos estes relatos estão falando? Quais os enunciados e seus agenciamentos coletivo de enunciação? E, mais ainda, que efeitos podemos recolher desses processos?
O PET se desenha como um fabricador de experiências e experimentações. Experiência “[...] como aquilo que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. Não o que se passa, não o que acontece, ou o que toca. A cada dia se passam muitas coisas, porém, ao mesmo tempo, quase nada nos acontece”6 (p. 22). A experiência é pessoal e grupal, intransferível, se dá no encontro, no entre, fala sobre como determinado acontecimento é enfrentado por aqueles que dele participam. Tutores, preceptores e alunos recolhem diferentes experiências de cada acontecimento vivido nos cenários do PET. Diz de um saber que não pode ser separado do indivíduo concreto em quem encarna.
O saber da experiência não está, como o conhecimento científico, fora de nós, e, só tem sentido, no modo como configura uma personalidade, um caráter, uma sensibilidade ou, em definitivo, uma forma humana singular que é por sua vez uma ética (um modo de conduzir-se) e uma estética (um estilo).7 (p. 11)
Assim, descortinam-se múltiplas narrativas para cada experiência recolhida. Em uma das narrativas que iluminam e transversalizam as questões aqui levantadas, sobre uma determinada situação que envolveu um “grupo PET” e uma equipe de trabalhadores num determinado território, recolhemos as seguintes falas: “Pensei que não ia suportar o nível de tensão da equipe. É visível que os alunos do PET colocam as relações e dinâmicas antigas da equipe em análise”, diz um preceptor de um serviço para o tutor.
“Não sei não, acho que eles não querem mais que a gente abra a boca. Quando vamos falar fica um silêncio danado. Antes do PET eu só tinha estagiado na clínica escola, nunca tinha participado de uma reunião de equipe e mesmo assim sempre tenho alguma coisa para falar, por que eles não têm? É só informe”. (Fala de aluno sobre o mesmo acontecimento)
Nestes contextos, os encontros que o PET-Saúde possibilita entre professores/as (tutores/as), preceptores/as e alunos/as constituem espaços aberto ao acontecimento onde, muitas vezes, os imponderáveis aparecem como matéria-prima rica em tensões, produtividade e, por vezes, estagnações e retrocessos. Assim, os espaços das reuniões de acompanhamento do PET desenham-se como espaços de educação permanente. Nesses encontros, o mundo do trabalho, em sua micropolítica, invade a cena. Experiências sobre o cuidado prestado, a relação das equipes, o trabalho cotidiano, a abertura ou o fechamento para o cuidado no território, as parcerias institucionais, as disputas dos planos de cuidado são tomadas em análise por todos: tutores, preceptores, alunos. Esses espaços produzem um deslocamento importante nos processos formativos e de produção de conhecimento. Deslocam a formação e a produção do conhecimento como solução de problemas para o exercício da problematização e invenção de si e do mundo, na medida em que cada um é partícipe ativo nesse processo. A experiência, a experimentação são os motores e o centro da aprendizagem.
A experiência como elemento dinamizador da formação implica colocar-se à disposição do exercício de apreender com e no mundo do trabalho, enquanto um campo essencialmente micropolítico. A formação nos convoca a experimentar durante o cuidar, durante o ato do trabalho; despertar sensações e afetos produzindo-se no cuidado.8(p. 317)
O PET quando se produz como dispositivo facilitador da experiência e experimentação não reduz o processo formativo à função de potencializar a cognição e\ou solução de problemas. Ele é tomado como ação política, ativa e em produção, construída coletivamente e por cada um, e, por isso, capaz de fazer emergir o sujeito e o mundo.
As narrativas recolhidas dos diversos integrantes do PET indicam que ensinar, aprender, produzir conhecimento deixa de ser entendido como transmissão e aquisição de competências, mas como viver uma experiência. Trata-se, muitas vezes, de certo exercício de estranhamento daquilo que se imaginava já sabido e, como efeito, do encontro com o próprio processo de desaprendizagem. É uma experiência composta por desaprendizagens que nos convoca a desautomatizar, muitas vezes, a nossa percepção das coisas e de nós mesmos. Assim, toda espécie de automatismo – do saber, do dizer, do pensar e do cuidar –, aos poucos, passa a ser questionada.
As falas a seguir, de dois estudantes do PET- Redes Saúde Mental Crack, Álcool e outras Drogas, ilustram com propriedade esses processos de desaprendizagens:
“[...] Nossa, são os seis meses mais intensos da minha vida! Um monte de coisas que eu pensava sobre o que era tratar foram por água abaixo. Essas coisas não se aprendem em sala de aula”. (estudante de psicologia)
“[...] Eu sempre quis conhecer o tratamento com dependentes químicos. Agora eu vejo que eu tinha a ideia de que a droga era uma doença que era como se tomasse conta das pessoas. Agora eu vejo que é justamente o contrário, cada sujeito tem uma forma diferente de se relacionar com a droga. Perceber isso é muito importante no tratamento. Não tem livro que explica isso”. (estudante de enfermagem)
As narrativas acima trazem a potência das vidas, dos sujeitos e suas produções. Produz um deslocamento na lógica que perfaz grande parte das formações acadêmicas que coloca a ensignação como característica principal, sempre reforçando uma hierarquização entre quem sabee quem não sabe e tem que aprender e, mais do que isso, produz, no campo da formação em saúde um deslocamento da centralidade no biológico e na anatomofisiologia como espaço que responde pela vida dos sujeitos. Isso só é possível porque o PET-Saúde ativa-se nos encontros e na produção constante de si e do outro ou de si no outro. Como nos diz Abrahão e Merhy8, formar é produção, é produzir-se.
[...] Tal afirmação implica processos que se tornem imanentes e referentes às multiplicidades do encontro. Ou seja, a partir do encontro, estamos em produção, produção de diferentes formas de ser no mundo, diferentes formas de cuidar de si e do outro.
[...] O ato da formação convoca vários meios, não só o conhecimento racional e lógico. Convida também aquilo que está no entre os sujeitos que participam do processo. Elementos que passam a ser produzidos durante o encontro e que não existam, e incidem no processo pedagógico ou de cuidado e, muitas vezes, não encontram linguagem falada capaz de expressar o seu significado, mas que conferem sentido ao ato. Porém, quando se expressam como ideias, adquirem sempre uma dimensão polissêmica, habitadas por sentidos diferentes. É comum ouvir, durante estes encontros, alguém dizer: “Nossa! Nunca havia pensado desta forma. Ah! Agora entendi”. Ou seja, durante o ato, estabeleceu-se um processo único e singular que promoveu a produção de algo que passou a fazer sentido e que não havia antes. (p. 318)
Todos interrogam um cotidiano que experimentam em seus cursos, vivendo como alunos, como docentes ou como aqueles que os recebem nos serviços. A experiência do PET se dá em um mergulho na micropolítica e nas tensões produtivas do mundo do trabalho em saúde. Afirma a experiência na radicalidade do processo formativo, fabrica outros tipos de saberes e conhecimentos capazes de desenhar uma caixa de ferramentas facilitadoras da produção de práticas de saúde. O PET-Saúde é uma prática de formação que toma o encontro entre aquele que demanda um cuidado e aquele que cuida como o centro do agir em saúde. Inverte a lógica comum de produzir uma formação em série na qual o profissional age como teórico do outro, ele é que sabe o que o outro tem e quais são suas reais necessidades, pois o conhecimento é dado como a priori. O PET é uma fábrica de experimentação e de produção de conhecimento porque, nele, o conhecimento se produz ali, a cada vez, em ato, com base nas perguntas e reflexões que faço a partir das experiências que estou vivendo e dos significados que dou a elas.
Por vezes, somam-se às experiências PET, que consideramos com muita potência, outras que têm reproduzido lógicas não tão produtivas assim, tanto no âmbito da formação como no âmbito dos serviços de saúde, como uma dobra em constante movimento (devir) que possui seus entraves, suas repetições, seus endurecimentos, suas molaridades. Entre estas, podemos citar:
1) Diferente da perspectiva de criar um espaço de Educação Permanente, os grupos multiprofissionais investem seu desejo e sua energia na produção de capacitações para os profissionais que atuam nos serviços de saúde, partindo do princípio de que, se existem problemas de qualidade nos serviços de saúde, isso é devido a uma falta na formação da equipe que está atuando. Toda a energia é utilizada para montar os manuais, os materiais e realizar as capacitações das equipes de saúde. E isso se repete com os mais variados temas, como: doenças crônicas, transmissíveis, rede Cegonha, dentre tantas outras frentes que atuam nas equipes de todos os PET’s. Também temos encontrado, nestas experiências, uma posição semelhante em relação aos usuários, e também os grupos PET, com toda a sua equipe, desenvolve ações para educar os usuários paraaprenderem a cuidar de suas doenças, e se repetem as atividades onde os encontros acontecem de forma diferente das narrativas anteriores, onde tem um que está falando e sabe do assunto que está sendo tratado, e de outros que estão ali para “aprender e tirar dúvidas”, sendo esta a sua atuação mais ativa na atividade, identificar quais dúvidas devem ser abordadas.
2) Ainda neste grande leque de experiências, encontramos grupos que, apesar de trabalharem no mesmo espaço físico, de pertencerem aos mesmos grupos tutoriais, mas de profissões diferentes, se organizam conforme suas corporações estão acostumadas, e fazem uma agenda de trabalho com os mesmos usuários, fragmentando a ação em uma escala de horário para a realização de procedimentos.
3) Outros grupos ainda têm um posicionamento ainda mais diferente, se organizam como grupos de pesquisa, que investem o tempo inicial para se apropriarem das teorias em relação ao objeto que querem pesquisar, desenvolvem os instrumentos, e aí sim, vão para os serviços realizarem a atividade prática do PET, que está centralmente focada na aplicação dos instrumentos de pesquisa. Algumas pesquisas fazem, inclusive, parte de projetos dos docentes, e muitos expressam queprecisam destes bolsistas para serem realizados o projeto x ou y, muitas vezes relacionados à pesquisa de mestrado ou doutorado do próprio professor.
Identificamos, nestes últimos três arranjos de PET, operando fortemente em uma outra face destas experimentações, que vem também por um caminho de experimentações, reproduzindo o que já é descrito por Ceccim e Feuerwerker9sobre o que são os cursos da saúde hoje:
[…] a abordagem biologicista, medicalizante e procedimento-centrada; […] O modelo pedagógico hegemônico de ensino é centrado em conteúdos, organizado de maneira compartimentada e isolada, fragmentando os indivíduos em especialidades da clínica, dissociando conhecimentos das áreas básicas e conhecimentos da área clínica, centrando as oportunidades de aprendizagem da clínica no hospital universitário, adotando sistemas de avaliação cognitiva por acumulação de informação técnico-científica padronizada, incentivando a precoce especialização, perpetuando modelos tradicionais de prática em saúde. Na abordagem clássica da formação em saúde, o ensino é tecnicista e preocupado com a sofisticação dos procedimentos e do conhecimento dos equipamentos auxiliares do diagnóstico, tratamento e cuidado, planejado segundo o referencial técnico-científico acumulado pelos docentes em suas respectivas áreas de especialidade ou dedicação profissional. (p. 1402)
Assim, um dos grandes enfrentamentos que os PETs é o fato de lidarem com este preponderante na formação no campo da saúde: um modelo centrado na doença, no biológico e, consequentemente, muitas vezes, não tomando o cuidado em saúde e a integralidade como elementos imprescindíveis. Por outro lado, este modelo reforça o modelo que separa a formação acadêmica e o mundo do trabalho e, ainda, no âmbito da formação acadêmica, a separação entre professores/as e alunos/as. Essa matriz de formação encontra-se ancorada na emergência e consolidação: da medicina moderna, do processo de medicalização da sociedade, da modernização das universidades e, sobretudo, da criação e consolidação dos diferentes campos de formação na saúde.
Percorrendo as grades nas suas fissuras
Percorrendo o cotidiano da docência, encontramos, quando se produzem encontros para falar sobre as vivências dos alunos no cotidiano das disciplinas curriculares, relatos que aprofundam a discussão acima sobre os processos de produção de conhecimento. É possível perceber, nas falas de dois alunos de 1º período, com que os demais presentes concordaram, aspectos das questões levantadas sobre a ensignação:
“[...] Estudamos muito para prova, até fui bem, e a minha turma foi mais ou menos […] mas eu tenho certeza que amanhã não me lembrarei de mais nada.. É isso que é se formar? O que a gente vai fazer quando precisar de tudo isso? Ou a gente não vai precisar, por isso que é dado assim?”.
“[...] Não sei o que acontece, estudo todos os dias, leio os livros, mas não vou bem nas provas, não sei mais o que fazer”.
Por outro lado, os docentes, quando falam do desempenho dos discentes, julgam que “os alunos estão muito desinteressados, faltam aulas para estudar para as provas, e, depois, reclamam que vão mal” (docente do 1º período). Quando avançamos nos períodos adiante, continuamos recolhendo, dos estudantes, os efeitos que vão se multiplicando em relação as suas dúvidas sobre sua formação e atuação. “[...] Na teoria fazer uma história completa parece importante, mas na prática já vi que não dá tempo... Tem mesmo que saber isso tudo da história?” (aluno do 5º período).
E quando conversamos com os profissionais de saúde sobre a relação com as atividades da universidade em serviços de saúde, frequentemente recolhemos falas como a da preceptora, quando analisa a diferença entre o PET e as outras entradas da universidade no serviço onde trabalha; se referindo às atividades das disciplinas, nos diz: “Todos vem pra cá, os alunos e os professores, ficam aí fazendo suas coisas e depois se vão e a gente nunca sabe direito o que fizeram e o que deixaram...”.
Nos processos avaliativos do PET também recolhemos outros relatos que dão visibilidade aos processos micropolíticos das atividades formais das grades curriculares dos cursos da saúde, aos relatos anteriores, como as duas questões levantadas por estas duas alunas bolsistas do PET-Saúde, como: “- Por que todos os alunos não têm a oportunidade de fazer o que estamos fazendo, só os alunos do PET? - Por que o que eu estou vivendo na experiência do PET não vivo na sala de aula quando estou no meu curso?” Do que tratam estas questões? O que elas posicionam em relação às atividades desenvolvidas nas disciplinas obrigatórias dos cursos da graduação? O que fazemos diante desta questão levantada pelos alunos que interrogam “por que o meu curso não é como o PET?”. Esta questão é reiterada por alunos que vivem os vários tipos de experiências PET.
Os processos de formação em Saúde: limites e desafios
No que se refere aos enfrentamentos dos processos de formação – seja na saúde ou extrapolando suas fronteiras, nas Universidades, por meio de suas diferentes instâncias e representações –, são perceptíveis duas linhas molares de produção preponderantes: prolongados processos de mudanças nas grades curriculares no âmbito dos cursos de graduação, e a introdução de metodologias ativas de ensino-aprendizagem, acrescidas de diversificação dos cenários de práticas.
A primeira fórmula, como seu problema, uma inadequação da grade curricular, e investe sua energia na reformulação dos currículos, que, para serem formulados e implantados, requerem um intenso trabalho coletivo e uma ampla negociação dentro de suas várias instâncias de governo. Encontram, no seu caminho, espaços colegiados engessados, por vezes burocratizados, por vezes colonizados por disputas autofágicas, que pouco contribuem ou pouco se interessam pelo conteúdo do que está tramitando, operando, na maioria das vezes, como força conservadora. Perdem potência e não conseguem manter ativados os coletivos interessados, bem como não conseguem ampliá-los o suficiente para enfrentar o instituído. São também fortemente atravessados pelo conservadorismo que organiza e segmenta os trabalhadores em diferentes profissões, reproduzindo, dentro das IES, as disputas por fatias de mercado que mitigam os esforços de produção de coletivos e o desenvolvimento de projetos integrados entre os cursos.
A outra elabora, como seu problema, uma inadequação das metodologias de ensino-aprendizagem utilizadas pelos docentes; e propõe, como ponto de partida, a capacitação de todos os docentes em metodologias chamadas ativas. Para pensar como isto significa, vamos olhar como a universidade atua para fora de seus muros, na relação com outras instituições que a consomem. Por exemplo, no encontro entre a universidade e secretarias de saúde, observamos que a principal ação em termos de formação se dá por meio da multiplicação das capacitações realizadas pelos docentes e/ou estudantes para os profissionais de saúde. Mas de que problemas estão falando com esta ação?
Merhy10identifica que o problema é enunciado como uma “falta de competência dos trabalhadores”, e que, por consequência, deva ser suprida por “cursos compensatórios” que preencham esta falta. Posiciona, ainda, esta formulação dentro de uma matriz gerencialista de organização, que desencadeia suas ações por meio de uma política baseada em “cursinhos à exaustão, que consomem recursos imensos e que não vêm gerando efeitos positivos e mudancistas nas práticas destes profissionais” (p. 172).
Seria a falta de competência o problema, tanto dos trabalhadores em saúde como dos docentes das universidades? Ou seria o tipo de competência que se tem? O problema não seria exatamente o contrário? Porque se tomam como jásabidos, por serem empreendedores de si, os profissionais de saúde e docentes aprenderam muito bem, em seus cursos de graduação, a desempenharem suas funções como competentes interditores das vidas que se apresentam, para si10. Há excelência nesta atuação, especialistas que já sabem a priori o que o outro tem, ou o que o outro precisa saber para atuar, e que desqualificam a informação circunstanciada sobre os modos como se vive e se aprende, bem como separam a experimentação da vida, da produção do conhecimento.
Nesta competência, a atuação no encontro com o paciente está centrada no recorte do problema do outro em termos de anormalidades/disfunções/inconformidades/ inadequações, que requerem intervenções específicas, no caso dos profissionais de saúde, sob a forma de procedimentos: exames, medicamentos, cirurgias, técnicas de correção de várias ordens do corpo, dos hábitos, do cotidiano.
Desenhos que se centram no saber que a prática em saúde é resultado da lógica cientificista, classificatória, protocolar, circunscrita em uma produção única do sofrimento como doença, em que os distintos modos de sofrimento e de existir estão ausentes, juntamente com a produção de territórios identitários do usuário.8 (p.315).
Ou seja, uma infinidade de bens e serviços amplamente comercializados no mercado da saúde, tomando o ter saúde como um ato de consumo e bem privado.
No caso dos docentes, o encontro com o estudante, por um lado, está centrado na aplicação de
[...] tecnologias pedagógicas aos alunos, sob um ponto de vista que opera a partir de um saber cientificamente comprovado. Um produto pronto para ser consumido e reproduzido. Um aprendizado que estimula muito pouco o exercício de autonomia e de crítica, pois parte do princípio de que expor o aluno ao conteúdo é suficiente para a formação. Uma ciência aplicada que, fracionadamente, vai sendo exposta e é assumida como centro do aprendizado, com pouca margem para outros tipos de conexões existenciais e de produção de conhecimento, durante o processo de formação.8 (p. 314)
E, por outro, está voltado para ensignar como ser empreendedor de si e tirar o máximo de proveito privado do mercado da saúde. Não seria isso que estamos produzindo em nossas universidades?
Necessitamos avariar a máquina de formar os profissionais da saúde, que operamos desde os tempos da ditadura. Não é possível mudar a formação em saúde sem se discutirem e produzirem vários dispositivos que sejam capazes de questionar toda espécie de automatismo do saber, do dizer, do pensar e do cuidar, criando um processo de estranhamento daquilo que se imaginava já sabido, e, como efeito, do encontro com o próprio processo dedesaprendizagem. É uma experiência composta pordesaprendizagens que nos convoca adesautomatizar, muitas vezes, a nossa percepção das coisas e de nós mesmos.
É necessário interferir nos processos produtivos, criando dispositivos vários que atuam diretamente no que é produzido nos encontros entre docentes/alunos/profissionais de saúde/usuários, de forma a criar uma dinâmica na micropolítica que se abra à disputa por outros processos produtivos, na formação e no modo de cuidar. Para construir uma nova universidade, é necessário ir para dentro da natureza dos processos produtivos, e não ficar apenas na agenda ideológica geral de grupos políticos, intensamente molarizados, fixados no horizonte das condições trabalhistas, como o central do processo de mudança nas organizações.
Por fim, diríamos que o programa PET-Saúde sinaliza, tensiona, atua nas fissuras; mas necessitam-se de outros dispositivos e transformações para se pensar o que o PET muda e se muda os processos produtivos, na formação em saúde.
Referências
- 1 Deleuze G, Guattari F. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. 12a ed. Rio de Janeiro: Editora 34; 2002. Vol. 3.
- 2 Ministério da Saúde. Portaria Interministerial nº 1.802, de 26 de agosto de 2008. Institui o Programa de Educação pelo Trabalho para a Saúde - PET-Saúde. Diário Oficial União. 25 jun 2007.
- 3 Rolnik S. Cartografia sentimental: transformações contemporâneas do desejo. 2a ed. Porto Alegre: Sulina; 2011.
- 4 Merhy EE, Feuerweker LCM, Gomes MPC. Da repetição à diferença: construindo sentidos com o outro no mundo do cuidado. In: Franco TB; Ramos VC, organizadores. Semiótica, afecção e cuidado em saúde. São Paulo: Hucitec; 2010. p. 60-75.
- 5 Franco TB. As redes na micropolítica do processo de trabalho em saúde. In: Franco TB, Merhy EE, organizadores. Trabalho, produção do cuidado e subjetividade. São Paulo: Hucitec; 2013. p 226-42.
-
6 Bondía JL. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Rev Bras Educ. 2002;19(2):20-8. http://dx.doi.org/10.1590/S1413-24782002000100003
» http://dx.doi.org/10.1590/S1413-24782002000100003 - 7 Bondía JL. Experiência e alteridade em educação. Reflex Acao. 2011;19(2):4-27.
-
8 Abrahão AL, Merhy EE. Formação em saúde e micropolítica: sobre conceitos-ferramentas na prática de ensinar. Interface (Botucatu). 2014;18(49):313-24. http://dx.doi.org/10.1590/1807-57622013.0166
» http://dx.doi.org/10.1590/1807-57622013.0166 -
9 Ceccim RB, Feuerwerker LCM. Mudança na graduação das profissões de saúde sob o eixo da integralidade. Cad Saude Publica. 2004;20(5):1400-10. http://dx.doi.org/10.1590/S0102-311X2004000500036
» http://dx.doi.org/10.1590/S0102-311X2004000500036 -
10 Merhy EE. O desafio que a Educação Permanente tem em si: a pedagogia da implicação. Interface (Botucatu). 2005;9(16):161-77. http://dx.doi.org/10.1590/S1414-32832005000100015
» http://dx.doi.org/10.1590/S1414-32832005000100015
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
Ago 2015
Histórico
-
Recebido
01 Out 2014 -
Aceito
31 Jan 2015