No campo educacional brasileiro, o setor saúde tem se destacado pela amplitude e radicalidade das mudanças em relação aos processos pedagógicos voltados para a formação de seus profissionais, tanto no ensino técnico e universitário como nas ações educativas para os trabalhadores de suas políticas públicas.
Com a criação do Sistema Único de Saúde (SUS), em 1988, oportunizou-se uma grande expansão de serviços de atenção primária à saúde, cujos serviços estão muito inseridos na dinâmica da vida comunitária. Isso tem demandado novas necessidades de abordagem e ação profissional, bem como tem desvelado, de maneira mais contundente, pressões e demandas da população que a tradição teórica e prática das diversas profissões de saúde não está preparada para responder. Insatisfações, cobranças e insuficiências quanto aos modos de agir em saúde no cotidiano dos serviços e territórios criaram um clima cultural e político propício para a expansão de muitas iniciativas e propostas de mudança no ensino.
O Ministério da Saúde (MS) foi provocado, como nenhum outro setor das políticas sociais, a intervir diretamente nos currículos dos cursos universitários e técnicos, que antes eram orientados apenas pelas intervenções do Ministério da Educação. Nesse processo, houve incentivo para que secretarias estaduais e municipais de saúde passassem a investir amplamente em processos formativos, que passaram a se orientar pela Política Nacional de Educação Permanente em Saúde no SUS.
Tanto no ensino universitário e técnico, quanto nas ações formativas para os profissionais dos serviços, assistiu-se a uma ampla difusão de inovações metodológicas das práticas pedagógicas e formativas, com grande valorização do que se passou a denominar, de maneira genérica, como metodologias ativas e problematizadoras. Na maioria das vezes, as práticas educativas que utilizam essa denominação pouco valorizam uma leitura crítica da realidade concreta onde os educandos estão inseridos e nem priorizam o debate e a explicitação dos interesses e das intencionalidades políticas presentes nas questões discutidas. A desvalorização dessa discussão mais ampla é conveniente para grupos interessados em fazer mudanças apenas operacionais das práticas profissionais, buscando, sobretudo, o aumento da eficácia técnica às novas demandas sem questionar os contextos, objetivos e interesses institucionais.
Apesar da grande difusão das metodologias ativas e problematizadoras, é ainda dominante, nas práticas educativas concretas do SUS, uma pedagogia centrada na difusão autoritária de informações e condutas, realizada sem mesmo esta preocupação de renovação metodológica acrítica e que Paulo Freire denominaria de educação bancária. Nela, profissionais de saúde e gestores se veem como portadores de verdades que precisam ser inculcadas e generalizadas na população e nos profissionais subalternos. São práticas pedagógicas que se reproduzem a partir da falta de investimento no estudo crítico dos desafios pedagógicos presentes no trabalho em saúde.
Mas vêm crescendo o debate e a constituição de ações mais elaboradas de educação permanente no SUS, em que tem predominado a visão de autores articulados, sobretudo, pela linha de Pesquisa Micropolítica do Trabalho e do Cuidado em Saúde. Esse predomínio teórico e político tem gerado, muitas vezes, a noção de que há uma equivalência entre ela e o conceito de educação permanente. Internacionalmente, no entanto, o conceito de educação permanente é campo de disputa de várias correntes pedagógicas e políticas. A percepção dessa equivalência só existe na saúde pública brasileira.
O movimento de renovação do ensino universitário e técnico por meio de metodologias ativas e problematizadoras tem acontecido, sobretudo, por meio da concepção educativa denominada Pedagogia Baseada em Problemas (PBL). É uma corrente pedagógica centrada no ensino mais dinâmico de conhecimentos considerados importantes, mas que desvaloriza a discussão crítica dos contextos mais gerais implicados no ensino e no trabalho em saúde
Até recentemente, a Educação Popular (EP) vinha sendo pouco considerada no debate conceitual sobre educação permanente e reorientação curricular dos cursos de graduação e técnicos do setor saúde. Tal fato se deve, em parte, pelo predomínio da noção de que a EP se orienta apenas para ações educativas voltadas para o público popular. Contudo, o termo Popular não se refere ao público a que se destina a prática formativa, mas, sim, aos pressupostos éticos, à perspectiva política e às abordagens metodológicas que a orientam. Refere-se à valorização dos saberes e das iniciativas dos educandos nos processos educativos, sobretudo pela construção compartilhada do conhecimento, com o compromisso explícito de fortalecimento do protagonismo das classes populares para o enfrentamento das iniquidades e situações de exclusão social, para a construção de uma sociedade justa, solidária e democrática.
A EP é uma proposta teórica e prática de condução de processos pedagógicos, consolidada na América Latina a partir da década de 1960, que foi muito importante para a formação de lideranças do movimento político que tomou a frente do processo de criação do SUS e da luta por seu aprimoramento. Vem orientando inúmeras práticas de atenção em saúde e ações de movimentos sociais que se relacionam com os serviços, buscando sua ampliação, seu aperfeiçoamento e sua construção cotidiana de modo integrado à dinâmica comunitária, de modo valorativo dos saberes, das práticas e das prioridades das pessoas em seus contextos territoriais. Recentemente, passou a se ocupar, também, com o repensar da formação dos profissionais de saúde.
No movimento nacional de educadores populares da saúde, especialmente na Rede de Educação Popular e Saúde (http://www.redepopsaude.com.br/), têm sido crescentemente divulgadas e refletidas experiências educativas voltadas para formar doutores e técnicos do setor saúde, como as publicadas em livros1-3, e em vários artigos, alguns dos quais publicados pela Interface, em especial, no suplemento sobre educação popular em saúdea.
Nas universidades, iniciativas de extensão orientadas pela EP têm se fortalecido e já constituíram um movimento próprio, a Articulação Nacional de Extensão Popular – ANEPOP (http://www.extensaopopular.blogspot.com) com importantes publicações4-6. Disciplinas dos cursos de graduação começam a buscar na EP inspiração para se organizarem.
Construída a partir de reivindicações e propostas dos vários movimentos nacionais de Educação Popular em Saúde, por meio do Comitê Nacional de Educação Popular em Saúde, a Política Nacional de Educação Popular em Saúde (PNEPS-SUS) foi oficializada em 20137, e tem gerado muitas iniciativas de educação permanente no SUS, como o Programa de Qualificação em Educação Popular em Saúde EdpopSUS (http://www.edpopsus.epsjv.fiocruz.br/) e o Projeto de Pesquisa e Extensão VEPOP-SUS: Vivências de Extensão em Educação Popular e Saúde no SUS (www.vepopsus.blogspot.com), cuja ação é nacional, com equipe executiva ancorada na UFPB. Por meio da PNEPS-SUS, o MS tem também produzido publicações para fortalecer a concepção de EP no SUS, como os Cadernos de Educação Popular em Saúde (http://pesquisa.bvsalud.org/bvsms/resource/pt/mis-36844). Em vários estados brasileiros estão se formando comitês estaduais de EP para incentivar que secretarias de saúde valorizem a EP em suas políticas de educação permanente.
Mas em que a EP contribui para a formação profissional?
Para avançar nesta questão, foi organizado em João Pessoa, no mês de novembro de 2014, o I Seminário Nacional de Educação Popular na Formação em Saúde (http://seminarioepsformacao.blogspot.com.br/). Desde então, o tema passou a ser mais enfatizado nas iniciativas do movimento da EP em saúde, com organização de mesas-redondas, cursos, oficinas e palestras em vários congressos da saúde coletiva brasileira.
Para a EP, a problematização deixa de ser apenas uma estratégia didática, ou, mesmo, um jeito dinâmico de ensinar, para ser um desafio de pesquisa compartilhada entre os educadores e educandos, comprometida com problemas concretos vividos no trabalho e na sociedade. Não é um recurso metodológico para facilitar o ensino de conteúdos predefinidos, mas um comprometimento com os desafios trazidos pela dinâmica de adoecimento e luta pela saúde das pessoas e da sociedade, em um contínuo processo de reflexão, ação, reflexão. Uma problematização aberta para o novo, o ainda não pensado, e que enfatiza o diálogo autêntico, ou seja, aquele que parte do reconhecimento, pelo educador, dos limites de seus conhecimentos diante dos desafios apresentados por educandos e pela realidade. Busca não apenas o aprendizado mais intenso de conhecimentos considerados previamente como significativos, mas o fortalecimento do protagonismo dos educandos visando à formação de uma sociedade participativa e democrática. A democracia é, também, construída pelo protagonismo cognitivo dos trabalhadores nas instituições e dos cidadãos.
Pela EP, as dinâmicas ativas de ensino passam a ter o sentido de ajudar a explicitar conhecimentos prévios, sentimentos, perplexidades e dúvidas sutis e ainda pouco elaboradas, numa perspectiva de valorização dos saberes e interesses dos educandos e da população, e não uma estratégia para tornar o ensino mais interessante e alegre. Enfatiza não apenas o diálogo entre professor e aluno, pois inclui, no processo de problematização, os saberes e reivindicações dos grupos sociais menos favorecidos e com menor oportunidade de formulação clara e firme de seus interesses e perspectivas. As discussões precisam buscar respostas não apenas internamente entre os envolvidos na prática profissional local, pois elas estão correlacionadas às dinâmicas políticas, econômicas e culturais mais gerais da sociedade, que necessitam ser valorizadas.
Esta concepção valoriza o processo de construção conjunta do conhecimento e das ações de saúde, respeitando a presença de elementos imprevisíveis de emoção e afeto, presentes no encontro humano que se dá no cuidado em saúde. Abre-se para a construção de novos caminhos e processos de cuidado por parte dos trabalhadores a partir de suas próprias iniciativas, capacidades e de seus anseios, de maneira autônoma e compartilhada com os usuários. Inclui, ainda, a possibilidade de questionamento dos arranjos organizacionais dos sistemas de saúde, negando-se a ser concebida como técnica ou tecnologia e, tampouco, almejando ser, obrigatoriamente, seguida como algo imposto ao profissional de saúde para o eficiente funcionamento do sistema.
O aperfeiçoamento das ações de educação permanente não pode ficar restrito ao debate de autores, correntes teóricas e experiências internas ao setor saúde. Trata-se de um debate que atravessa os vários setores das políticas públicas e os diversos continentes do planeta. É importante trazer, para o setor saúde, a experiência e os autores desses outros camposb.
Nos espaços de debates e reflexões ocorridos durante o I Seminário Nacional de Educação Popular na Formação em Saúde, priorizou-se o acolhimento e explicitação das diferentes concepções e perspectivas para a reorientação da formação profissional em saúde, em lugar de somente se enfatizar o pensamento próprio da EP. Abriu-se oportunidade para apresentação de pensadores de outras tradições pedagógicas, inclusive, representantes de órgãos governamentais, revelando a insistência do movimento de EP em propiciar debate crítico e reflexão conjunta e dialógica, sobre os vários caminhos de mudanças na formação profissional em saúde.
Desse modo, acreditamos que a inclusão do movimento da EP em saúde no debate sobre formação profissional está ajudando a explicitar essas diferentes concepções teóricas e políticas presentes no campo.
Este debate está apenas começando. A continuidade na realização de espaços conjuntos de reflexão entre os diferentes, assim como a sistematização de experiências com explicitação de seus aprendizados, limites e desafios, são passos fundamentais e atuais.
Referências
- 1 Vasconcelos EM, Cruz PJ, organizadores. Educação popular na formação universitária; reflexões com base em uma experiência. São Paulo: Hucitec; 2011.
- 2 Vasconcelos EM, Frota LH, Simon E, organizadores. Perplexidade na universidade; vivências nos cursos de saúde. São Paulo: Hucitec; 2006.
- 3 Mano MA, Prado EV, organizadores. Vivências de educação popular na atenção primária à saúde: a realidade e a utopia. São Carlos: EdUFSCar; 2010.
- 4 Melo Neto JF. Extensão Popular. João Pessoa: Editora UFPB; 2014.
- 5 Falcão EF. Vivência em comunidades: outra forma de ensino. João Pessoa: Editora UFPB; 2014.
- 6 Cruz PJSC, Vasconcelos MOD, Sarmento FIG, Marcos ML, Vasconcelos EM, organizadores. Educação Popular na Universidade; reflexões e vivências da Articulação Nacional de Extensão Popular (ANEPOP). São Paulo: Hucitec; 2013.
- 7 Portaria nº 2.761/2013. Política Nacional de Educação Popular em Saúde no SUS (PNEPS-SUS). Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa. Brasília (DF): Ministério da Saúde; 2013.
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a
Interface (Botucatu). 2014; 18 Supl 2, disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-32832014000601155&lng=pt& nrm=iso&tlng=pt
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b
Nesse sentido, ressaltamos os textos de Pedro Demo, Moacir Gadotti e Licínio Lima, disponíveis em: http://unesdoc.unesco.org/images/0024/002446/244672POR.pdf
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
Oct-Dec 2016