Open-access Laboratório Sensorial: uma proposta de ativação do corpo

Sensory laboratory: a proposal for activating the body

Laboratorio Sensorial: una propuesta de activación del cuerpo

Resumos

Este artigo apresenta um ensaio poético-fotográfico sobre o Laboratório Sensorial, um dispositivo do projeto de extensão universitária Expressão e Transformação, vinculado ao Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil (UFRJ). Inspirado na Fenomenologia e na Arte Contemporânea, o laboratório é uma proposta de sensibilização corporal que busca desnaturalizar a percepção e os modos cotidianos automatizados de estar no mundo. Os participantes são convidados a vendar os olhos e a serem conduzidos por um percurso de estimulações sensoriais no qual experimentam texturas, odores e sonoridades em temporalidades distintas das do cotidiano. Em seguida, registram suas experiências em mapas corporais. Nas diversas edições realizadas, percebemos que a experiência vivida expande a percepção de si e do outro, avivando uma potência poética de expressão e memória do corpo. Originada na Psicologia Clínica, esta proposta dialoga com outras disciplinas e linguagens, articulando as dimensões ética, estética e política da existência.

Corpo; Arte; Clínica; Fenomenologia; Gestalt -terapia


This article presents a poetic photo-essay about the Sensory Laboratory, a facility of the extension project Expression and Transformation attached to the Institute of Psychology at the Federal University of Rio de Janeiro, Brazil (UFRJ). Inspired by Phenomenology and Contemporary Art, the laboratory is a proposal for body awareness aimed at denaturalizing perception and automated everyday modes of being in the world. Participants are invited to wear a blindfold and conducted through a series of sensory stimulations where they experience different textures, odors, and sounds in temporalities that are different to those of everyday life. Their experiences are then depicted in body maps. The findings show that the participants’ experiences expand self and other-awareness, vivifying a poetic power of expression and body memories. Originating from Clinical Psychology, this proposal converges towards other disciplines and languages, articulating ethical, aesthetic, political, and existential dimensions.

Body; Art; Clinical; Phenomenology; Gestalt therapy


Este artículo presenta un ensayo poético-fotográfico sobre el Laboratorio Sensorial, un dispositivo del proyecto de extensión universitaria Expresión y Transformación, vinculado al Instituto de Psicología de la de la Universidad Federal de Rio de Janeiro, Brasil (UFRJ). Inspirado en la Fenomenología y en el Arte Contemporáneo, el laboratorio es una propuesta de sensibilización corporal que busca desnaturalizar la percepción y los modos cotidianos automatizados de estar en el mundo. Los participantes son invitados a vendar los ojos y a ser conducidos por un recorrido de estímulos sensoriales en el cual experimentan texturas, olores y sonidos en temporalidades diferentes de las del cotidiano. A continuación, registran sus experiencias en mapas corporales. En las diversas ediciones realizadas, percibimos que la experiencia vivida expande la percepción de sí mismo y del otro, avivando una potencia poética de expresión y memoria del cuerpo. Originada en la Psicología Clínica, esta propuesta dialoga con otras disciplinas y lenguajes, articulando las dimensiones ética, estética y política de la existencia.

Cuerpo; Arte; Clínica; Fenomenología; Gestalt -terapia


A proposta

O Laboratório Sensorial é um espaço de experimentação e sensibilização corporal elaborado pela equipe do projeto de extensão universitária “Expressão e Transformação: arte e subjetivação com crianças e adolescentes em comunidades”, vinculado ao Instituto de Psicologia da UFRJ. O projeto referencia-se nos pressupostos da Fenomenologia, da Gestalt -terapia e da Arte, promovendo um diálogo interdisciplinar em torno das noções de corporeidade e expressão, consideradas centrais nos processos de subjetivação. A Fenomenologia e a Gestalt -terapia consideram o corpo como sistema de suporte para a experiência no mundo. Merleau-Ponty1 considera que a existência é corporal: é com gesticulação e movimento que podemos nos comunicar com o outro, que está ao nosso lado como corpo vivo situado no mundo.

A partir da noção de hábito de Merleau-Ponty1 , que remete à noção de habitus proposta por Marcel Maus e Pierre Bourdieu, compreendemos que as formas sedimentadas das práticas sociais são encarnadas como hábitos corporais – essencialmente motrizes e não conscientes. Os hábitos são reproduzidos com gestos, que permitem comunicarmo-nos com os outros, sermos compreendidos e, assim, sentirmo-nos pertencentes ao mundo. O corpo habitual, no entanto, não é uma dimensão determinada ou um tipo de automatismo, mas uma dimensão do corpo próprio que se atualiza em cada experiência pelos movimentos do corpo atual que, a partir da própria situação, é instado ao movimento de expressão, reconfigurando sua existência e o mundo a partir daquela situação2 . A Gestalt -terapia considera a existência como movimento de devir e tem na noção de contato seu conceito central. Concebido como um processo de desdobramento temporal que se dá no campo sujeito-mundo, o contato envolve a experiência da diferença ou novidade do mundo e do outro que desequilibra o campo, exigindo movimento de criação para retomada do equilíbrio. Todo esse processo é vivido de modo pré-reflexivo como corporeidade que se afeta, percebe e se move, em um fluxo de forças e formas. A interrupção desse fluxo, perda da plasticidade desse movimento e o enrijecimento ou fixação de formas representa perda ou prejuízo da potência expressiva do corpo. Esse fenômeno está envolvido com a dessensibilização do corpo e com a exacerbação da racionalidade, fenômenos emergentes da situação e que devem ser compreendidos na complexidade das dimensões histórica, social, política e econômica que os constituem e atravessam. O adoecimento pode ser compreendido como perda da capacidade de atualização do hábito, que se torna uma forma fixada, uma espécie de automatismo que reproduz e não cria ou reinventa.

O laboratório tem ressonâncias com as propostas artísticas de Hélio Oiticica e Lygia Clark. Esses artistas brasileiros, ligados ao movimento neoconcreto, tiveram um lugar central na transformação do espaço da arte, que, em seus trabalhos, passa a ser um espaço no qual o espectador não só admira um objeto de arte pronto e acabado, mas é convidado a viver uma experiência que, como tal, provoque um despertar do corpo e do movimento expressivo, desnaturalizando a percepção e potencializando a criação3 .

Com base no referencial brevemente exposto acima, em diálogo com o campo das artes, desenvolvemos o método do projeto “Expressão e Transformação: arte e subjetivação com crianças e adolescentes em comunidades”, que consiste na proposição de experimentações artísticas que possibilitem a sensibilização do corpo e a ampliação da experiência, a qual compreendemos a partir da perspectiva merleaupontyana, que afirma que “ser uma experiência é comunicar interiormente com o mundo, com o corpo e com os outros, ser com eles, em lugar de estar ao lado deles”1 (p. 142). A experimentação busca ativar o corpo em sua potência instituinte e transgressora, em uma proposta que vincula filosofia, arte e clínica, e, portanto, articula as dimensões ética, estética e política da vida.

O Laboratório Sensorial surge como um dos desdobramentos desse método. Foi proposto pela equipe em 2015 para a Semana Nacional de Ciência e Tecnologia (SNCT), na UFRJ, tendo sido pensado como um dispositivo que oferecesse aos participantes do evento um espaço de abertura às intensidades e delicadezas da experiência de si-no-mundo. Um percurso sensorial foi elaborado de forma interdisciplinar pela equipe do projeto – composta por estudantes e profissionais do campo da psicologia e das artes –, que, a cada edição do trabalho, prepara o laboratório a partir dos recursos que tem disponíveis e de experimentações com o próprio corpo. No laboratório utilizam-se materiais ordinários, tais como: água, terra, folhas secas, algodão, sementes, tecidos, frutas, etc. O participante é convidado a vendar os olhos e entrar em uma sala onde experimenta diversos sons, texturas, cheiros e paladares. Ali é guiado por um facilitador, que propõe um encontro no qual os papéis de condutor e conduzido possam ser deslocados, proporcionando a ambos uma experiência de diálogo pautada no encontro sensível com o outro. Ao fim do percurso, já fora do laboratório, tira-se a venda do participante e entrega-se a este uma folha na qual há a silhueta de um corpo humano e pede-se que registre, por meio de desenho, as sensações vivenciadas no laboratório. Esse momento do registro tem sido conduzido de forma livre; eventualmente, surgiram, de modo espontâneo, alguns relatos escritos. De forma geral – com exceção de uma vez que o Laboratório Sensorial aconteceu no formato de oficina em um congresso de extensão e houve uma roda de conversa após a experimentação sensorial –, a proposta não abrangia a discussão posterior sobre a experiência, que acabou acontecendo informalmente, por conversas entre participantes e condutores.

Essa experiência, que alcançou cerca de duzentas pessoas na Semana Nacional de Ciência e Tecnologia, teve grande impacto sobre os participantes e a própria equipe do projeto. Foram intensos os afetos movimentados pelo encontro mudo entre corpos e dos corpos com os objetos. Tendo em vista alguns aspectos da subjetividade contemporânea, tais como a aceleração do tempo, o excesso de informação, o individualismo e distanciamento do outro, implicados em um estado de dessensibilização dos corpos, percebemos no trabalho uma grande potência para instituir outra temporalidade da experiência, distinta da cotidiana, abrindo espaço para a experimentação do corpo e do encontro com outro, a partir da dimensão sensível. Desde então, o laboratório já foi realizado por nossa equipe na ONG Arte de Educar, na favela da Mangueira, no Rio de Janeiro; no Seminário Internacional “Encuentros en Abril; Psicología y Subjectividad, diálogos y perspectivas en investigación y extensión”, realizado na Universidad de la República Uruguay (Udelar) em Montevidéu, no Uruguai; e no 7o Congresso Brasileiro de Extensão Universitária (CBEU), realizado na Universidade Federal de Ouro Preto, em Minas Gerais (todos os eventos ocorridos no ano de 2016), ocasiões que tiveram também grande impacto entre os participantes. Cada edição do laboratório contou com um percurso sensorial diferente, de acordo com as disponibilidades de cada espaço e as novas ideias que iam surgindo a cada nova experiência. As ações do Laboratório Sensorial foram sempre pontuais, em feiras científicas, seminários e congressos, tendo sido realizada apenas uma vez com um grupo no qual havia um trabalho mais contínuo envolvendo outras atividades, entre as quais o laboratório.

Neste artigo traremos um ensaio poético-fotográfico a partir de nossa vivência no laboratório e dos registros plásticos e verbais realizados pelos participantes (coletados após cada edição do laboratório e armazenados nos arquivos do referido projeto de extensão, na sala do Núcleo de Estudos Interdisciplinares em Fenomenologia e Clínica de Situações Contemporâneas – NEIFeCS). Os critérios para a escolha dos registros a serem utilizados foram estéticos. Não buscamos fazer uma exploração teórica mais aprofundada dos efeitos da experimentação – trazemos experiências de encantamento, acontecimentos sutis, afetos em movimento. Buscamos uma poética que abra espaço para a dimensão de silêncio e mistério intrínseca à experiência mundana, apresentando imagens-textos e textos-relatos que mesclam falas, experiências, registros e imagéticas reais e ficcionais. Queremos trazer, assim, uma dimensão narrativa e poética dessas experimentações corporais, que trazem consigo uma sutileza que exige de nós reinvenção das formas mais habituais como (d)escrevemos as experiências que ocorrem dentro da academia.

As ações de pesquisa do projeto de extensão Expressão e Transformação passaram por aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa do Centro de Filosofia e Ciências Humanas (CFCH) da UFRJ, número do parecer 1.359.063. As fotografias que compõem este registro foram tiradas por membros da própria equipe do projeto, com prévio consentimento dos participantes, que eram informados da presença de um fotógrafo no espaçoe .



Tecidos. Café, feijão, arroz. Terra, água, pedras. Balões, algodão.

Objetos simples, cotidianos, tirados das suas funções triviais.

Exercitar a didática da (des)invenção:

“Desinventar objetos. O pente, por exemplo. Dar ao pente funções de não pentear. Até que ele fique à disposição de ser uma begônia. Ou uma gravanha”4 . (p. 276)


(Des)inventar o corpo.

Acordar o corpo.


Quebrar a hegemonia da visão, desorganizar os sentidos, vibrar o corpo.



Narrativas poéticas

Friccionando levemente minha pele, sinto o contato da venda com o meu rosto. Incômodo. A impossibilidade de me situar com segurança no espaço também me traz medo. O que vou encontrar ali? Essas sensações e pensamentos são interrompidos por uma mão que me puxa. A passos curtos sou conduzida com cuidado e cautela. Vou tateando o chão com cuidado.

Passos curtos. Curtos. Curtos. Com cuidado. Entro em algum recinto que desconheço. Sinto a mão que me leva – seu tato, sua textura e temperatura. Ela me larga.

Enxergo apenas a escuridão, pontos de luz, imagens distorcidas, ruídos, borrões. Imagens em movimento. A escuridão não é completamente opaca e negra como imaginava. Percebo que a falta de visão me faz sentir mais o meu corpo e meus outros sentidos. Sinto mais o chão, a água, os sons, os cheiros, MEU CHEIRO, as texturas dos objetos que toco e que me tocam.

Escuto corpo,

escuto planta,

escuto pedra.

Pedra lisa, pedra rugosa.

Habito floresta.

Habito útero.

{........................} Atmosfera de mata e de universo.

* * *

Acabo de conduzir um homem. O encontro foi forte.

Agora conduzo outra pessoa. No início sinto sua insegurança de vendar-se. Resolvo não andar rápido. Acompanho-o lentamente até que se sinta entregue ao novo estado.

Sua mão está um pouco fria, trêmula, firme. Aperta um pouco as minhas mãos. Aos poucos ela se torna mais leve, tranquila e aquecida com o contato. Atravessamos a parte dos cheiros.

Enquanto ele explora o vaso com grãos, aproximo de seu nariz uma folha de lavanda, em seguida, um pouco de café. Ele esboça um sorriso. Seguimos, agora dançando um pouco, para a “cama dos algodões”.

* * *

Mergulhada nas sensações, me vêm memórias antigas. A cortina que eu brincava quando era criança na casa de minha avó, o toque maternal de uma mãe que cuida de seu bebê ao dar o banho.

É assustador como esquecemos das sensações, do toque, no dia a dia. No meu trabalho, preciso estar sempre firme. É preciso ter um corpo endurecido para lutar e resistir. O laboratório foi uma experiência de desarmar. Ali pude ser frágil.

NÃO É FÁCIL SENTIR!

Quando saí, tive a sensação de que perdi algo.

O manejo: facilitar é ser com o outro


Diálogo de mãos, mistura de peles.

Sinto o mundo com as minhas mãos.

Apalpar. Acariciar. Manejar. Dar forma. Transformar.


Facilitar é caminhar junto

Intenso movimento de corposição.


São coreografias compartilhadas.

Ao passo de um ritmo comum que vamos encontrando, sintonizando, abrem-se linhas, desenham-se caminhos.

Caminhar junto é cuidar,

abrir os poros, escutar com o corpo.

Com-partilhar.

Narrativas imagéticas


Mãos que vibram. Amarelas, radiantes.

Espirais giram por todos os lugares do corpo.


Conexões, caminhos intermináveis, pontos de passagem, retorno para os mesmos-e-outros lugares. Anéis de saturno. Movimento.

Linhas que se expandem de um ponto.

Vibração, expansão, abertura.

Movimento. Espectros.

Integração, céu e terra, coração e mente.




Fechamos o corpo

como quem fecha um livro

por já sabê-lo de cor.

Fechando o corpo

como quem fecha um livro

em língua desconhecida

e desconhecido o corpo

desconhecemos tudo.

Paulo Leminski5

Agradecimentos

Agradecemos à Pró-Reitoria de Extensão da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PR-5) pelo financiamento da pesquisa e pelas bolsas concedidas ao longo da vigência do projeto de extensão “Expressão e Transformação: arte e subjetivação com adolescentes em comunidades”.

Referências

  • 1 Merleau-Ponty M. Fenomenologia da percepção. 4a ed. São Paulo: Martins Fontes; 2011.
  • 2 Alvim MB, Castro FG. O que define uma clínica de situações contemporâneas? Apontamentos a partir de J.P. Sartre e M. Merleau-Ponty. In: Alvim MB, Castro FG, organizadores. Clínica de situações contemporâneas: fenomenologia e interdisciplinaridade. Curitiba: Juruá; 2015. p. 15-47.
  • 3 Alvim MB. A poética da experiência: Gestalt-terapia, fenomenologia e arte. Rio de Janeiro: Garamond; 2014.
  • 4 Barros M. Poesia completa. São Paulo: LeYa; 2013.
  • 5 Leminski P. Toda poesia. São Paulo: Companhia das Letras; 2013.
  • e
    Créditos das imagens: As imagens pertencem ao acervo do projeto Expressão e Transformação, sendo a ele destinados os créditos.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Set 2019
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    24 Jun 2018
  • Aceito
    17 Dez 2018
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