O presente artigo discute a descentralização do Tratamento Diretamente Observado (TDO) da tuberculose (TB) em um município da região metropolitana de Porto Alegre, RS. Após a implementação da estratégia, as taxas de abandono do tratamento diminuíram, mas o município não alcançou a meta preconizada pela Organização Mundial de Saúde (OMS). Trata-se de uma pesquisa qualitativa que entrevistou profissionais da atenção primária e da vigilância em saúde. Os resultados apontaram que a descentralização apenas do procedimento pode significar somente o acréscimo de mais uma tarefa para a atenção primária e alimentar a compreensão de uma responsabilidade parcial, não coerente com esse nível de atenção. Como possibilidade para diminuir o abandono, sugere-se a descentralização completa do cuidado para atenção primária e a constituição de apoio matricial que envolva profissionais especializados e o núcleo de vigilância.
Tuberculose; Atenção primária em saúde; Vigilância em Saúde Pública; Atenção integral à saúde; Bioética
Abstract
This article addresses decentralization of Directly Observed Therapy (DOT) for treating tuberculosis (TB) in a Brazilian city in the metropolitan region of Porto Alegre, state of Rio Grande do Sul. After implementing the strategy, treatment dropout rates decreased, but the city has not achieved the goal recommended by the World Health Organization (WHO). This qualitative research was conducted through interviews with primary care and health surveillance professionals. The results showed that decentralizing the procedure can mean adding another task to primary care and can base the understanding of a partial responsibility that is not coherent with this level of care. As a possibility to reduce dropout, we suggest a complete decentralization of primary health care and the constitution of a matrix support involving specialized professionals and the surveillance center.
Tuberculosis; Primary health care; Public health surveillance; Comprehensive health care; Bioethics
Resumen
El artículo discute la descentralización del Tratamiento Directamente Observado (TDO) de la tuberculosis en un municipio de la región metropolitana de Porto Alegre/Estado de Rio Grande do Sul. Después de la implementación de la estrategia, las tasas de abandono del tratamiento disminuyeron, pero el municipio no alcanzó la meta determinada por la OMS. Encuesta cualitativa que entrevistó a profesionales de la atención primaria y de la vigilancia en salud. Los resultados señalaron que la descentralización únicamente del procedimiento puede significar tan solo añadir una tarea más a la atención primaria y alimentar la comprensión de una responsabilidad parcial no coherente con ese tipo de atención. Como una posibilidad de disminuir el abandono se sugiere la descentralización completa del cuidado para la atención primaria y la construcción de apoyo matricial que envuelva a profesionales especializados y el núcleo de vigilancia.
Tuberculosis; Atención Primaria de la Salud; Vigilancia en Salud Pública; Atención Integral de la Salud; Bioética
Introdução
A TB, embora com reconhecido agente causal e tratamentos estabelecidos de longa data, persiste como relevante problema de Saúde Pública, sobretudo em países em desenvolvimento. À vista disso, pelo aumento do número de casos e pela magnitude de suas implicações para os acometidos e as coletividades, a doença foi declarada em 1993 pela OMS como emergência global, figurando como prioridade nas agendas das políticas públicas. Em 2015, compreendeu uma das dez principais causas de óbito em todo o mundo, com a estimativa de 1,4 milhão de mortes e de 10,4 milhões de novos casos – o que, nessa perspectiva, contempla a redução de sua incidência e mortalidade como um dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (SDG) para 2030, como preconiza a Organização nas Nações Unidas (ONU)1, 2.
Nesse panorama, Brasil, Federação Russa, Índia, China e África do Sul conjuntamente representam 50% dos casos mundiais de TB. Em especial, o Brasil ocupa a 18ª colocação no ranking dos vinte países com maior carga da doença, com 81.137 casos notificados em 2015. Apesar do cumprimento das metas internacionais – com a redução dos coeficientes de mortalidade (38,9% – 3,6 para 2,2/100 mil habitantes) e de incidência (34,1% – 51,8 para 34,1/100 mil habitantes) de 1990 a 2014 –, o controle efetivo conforma um desafio. Alinhado às estratégias mundiais (como o “Plano Global pelo Fim da Tuberculose”, aprovado pela Assembleia Mundial da Saúde em 2014, em que se propõe a redução de 90% nas mortes por TB e a redução em 80% de sua incidência até 2030), o país segue implantando estratégias de vigilância e de atenção à saúde2, 3.
Ademais, as estratégias voltadas ao controle e ao tratamento da TB estão capilarizadas no Sistema Único de Saúde (SUS) e pautam as agendas do Pacto pela Saúde, e mais recentemente, no eixo estratégico da Secretaria de Vigilância em Saúde (SVS). No escopo dos serviços, elencam-se ações informativas, preventivas e assistenciais, a saber: imunização, identificação de sintomáticos respiratórios, oferta de cultura de escarro, testagens para o Vírus da Imudeficiência Humana (HIV), consultas de acompanhamento e oferta do TDO, o qual configura uma aposta na cogestão do cuidado, aproximando os adoecidos dos profissionais de saúde, a fim de minimizar as taxas de abandono do tratamento e de casos resistentes4.
O uso inadequado de medicamentos e o abandono por mais de trinta dias se revelam frequentes – principalmente com a constatação da melhora clínica – e constituem duas condições que acentuam as dificuldades na eliminação da doença. Ainda que o Ministério da Saúde (MS) tenha adotado, por proposição da OMS, o TDO – que consiste na observação, pelos profissionais de saúde, da tomada dos medicamentos pelo adoecido, preferencialmente todos os dias, na fase de ataque e no mínimo três vezes por semana na fase de manutenção do tratamento – e essa estratégia se diferencie por oportunizar uma abordagem singularizada e demonstre considerável progresso, os coeficientes de abandono ainda permanecem elevados4.
Além das situações de vulnerabilidade social, sabidamente associadas ao abandono do tratamento, como pobreza, uso de drogas e moradia na rua, fragilidades na implementação da estratégia TDO podem atuar nesse desfecho3, 5. Dados de 2015 revelam que 16,3% dos 75.526 casos de TB notificados no território brasileiro abrangeram o retratamento. Ainda nesse contexto, vale destacar que o risco de adoecimento por TB entre as unidades da Federação (UFs) se mostra heterogêneo. O Rio Grande do Sul é o sétimo estado brasileiro em coeficiente de incidência, registrando 45 casos por 100 mil habitantes, o que evidencia um número que vem se mantendo nos últimos cinco anos. A taxa de cura de TB pulmonar bacilífera representava, em 2015, uma das menores do país (65,9%) e, inversamente, o índice de abandono estava entre os maiores do país (16,1%), atingindo em algumas regiões do Estado valores acima de 27%3.
Entre os seus municípios, o Rio Grande do Sul contabiliza 15 como prioritários para o enfrentamento da doença. Situados, em grande parte, na região metropolitana de Porto Alegre, esses 15 municipios, em 2014, abarcaram 64% dos casos novos de TB e 80% dos abandonos de tratamento, e é nesse contexto que se situa o município em estudo6. Com uma população estimada de 138.933 habitantes, em 2005, o cenário estudado ocupava o décimo lugar entre os 24 municípios que concentravam 70% dos casos de TB do Rio Grande do Sul. Com vistas a transformar o cenário desfavorável, a gestão de saúde local apostou na descentralização das ações do programa da TB para a atenção primária com enfoque especial na estratégia do TDO7 - 9.
Um estudo transversal apontou que, a partir de estratégias implementadas, houve redução das prevalências de abandono do tratamento: de 12,7% em 2000-2004 para 7,0% no período de 2005-2008 no município. Os pesquisadores ainda identificaram que o abandono era mais frequente entre homens, entre vinte e 39 anos, entre aqueles que tinham reingressado no programa e que apresentavam resultado reagente para o HIV. Embora a prevalência de abandono do tratamento detectada em 7% (e em 2014, de 6,5%) esteja abaixo de outros municípios da região metropolitana – os quais denotam percentuais de alta por abandono, que variam entre 8,3% e 24,1% – ou de outros estudos, que exibiram taxas de 10,2% e de 27,3%, a prevalência de abandono esteve acima da meta de 5% indicada por órgãos internacionais1, 2, 7, 9 - 11.
Baseando-se nessa realidade concreta e nas informações geradas por entrevistas coletivas com os profissionais da vigilância e da atenção primária do município, este artigo visa discutir a estratégia de descentralização do TDO para a TB, tendo como referencial analítico a hermenêutica-dialética, buscando a apreensão pela relação entres os indivíduos, o cenário e a história12.
Metodologia
O material empírico que se apresenta é fruto da pesquisa exploratória de cunho qualitativo “Modelos de atenção: integração entre a atenção primária à saúde e vigilância em saúde”, promovida nos serviços de saúde de um município que integra a região metropolitana de Porto Alegre, RS. Estudos qualitativos, de acordo com o que leciona Minayo12, envolvem a empiria e a sistematização progressiva do conhecimento em prol da compreensão da lógica interna do grupo. Para isso, compilam significados, motivos, aspirações, crenças, valores, atitudes e outras características subjetivas próprias do humano e do social. Diferentemente das abordagens quantitativas, o norte não abrange a mensuração e a quantificação, mas sim o “apreender” das singularidades.
Em termos operacionais, a pesquisa delineou-se em três etapas. O primeiro percurso correspondeu a um exercício teórico fundamentado em artigos qualitativos, publicados entre 2006 e 2016, que abordavam a doença e a estratégia de descentralização do tratamento. Essa etapa de compilação e leitura possibilitou a construção de um roteiro guiado para as interações em que constaram as singularidades da atenção primária e da vigilância em saúde; vínculo e acolhimento pelos profissionais; lacunas em educação permanente; e discriminação e estigma em torno da doença. A segunda etapa conformou-se por entrevistas individuais (EI) com a responsável pela descentralização do TDO no município (VS), com as responsáveis – no caso, enfermeiras – pelo TDO das duas Unidades Básicas de Saúde (UBS) com maior número de casos de tuberculose (enfermeira UBS) e com a encarregada pela Unidade de Referência (UR) da TB. Posteriormente, ocorreu a entrevista coletiva (EC) com profissionais do núcleo de vigilância epidemiológica, sanitária, ambiental e nutricional, representados por EC-VS (terceira etapa).
Em tempo, destaca-se que as entrevistas foram realizadas no primeiro semestre de 2017, em dias, horários e locais de escolha dos participantes. A pesquisa, conforme rege a Resolução 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde, foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) sob o número 013/2014 e os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). As informações foram analisadas pela perspectiva da hermenêutica-dialética, que propõe um caminho metodológico reflexivo em que a interpretação dos sentidos que as pessoas elaboram em suas falas é combinada com a compreensão das contradições que as constituem e com o cenário social e temporal em que foram produzidas12. As entrevistas foram transcritas, organizadas e delas foram extraídas e agrupadas falas que estavam diretamente ligadas ao objeto de estudo, em especial, as recorrentes, conformando um processo compreensivo e crítico, que foi subsidiado pelos registros dos pesquisadores e pela consideração dos contextos profissionais em um movimento hermenêutico-dialético.
Resultados e discussão
Desde 2005, o município acompanha os casos de TB por intermédio de um programa municipal, que entre seus objetivos consta a descentralização do TDO para todas as UBS, estabelecendo fluxos de referência na rede sob o monitoramento da vigilância:
[...] então, se hoje alguém pergunta por qualquer paciente, nós sabemos quem ele é, que dia ele foi diagnosticado, quantas doses de medicação ele já tomou, quantas doses faltam, se ele está sendo acompanhado na tomada de medicação [...]. (EI-VS)
Os profissionais da atenção primária executam o TDO, mas o acompanhamento e, por consequência, o controle é desempenhado pelo núcleo de vigilância em saúde, como evidencia a seguinte fala da responsável:
Eles fazem lá, mas nós aqui ficamos sabendo. Nós monitoramos mensalmente por escrito, a gente instituiu essa maneira de fazer vigilância, de ter fluxos escritos e viáveis de acompanhar [...] então quando está um “A” é o dia que ele próprio tomou a medicação, quando tem “S”, a tomada de medicação dele foi supervisionada, quando eu encontrar um “F”, nesse dia, ele não tomou a medicação. (EI-VS)
Em outras palavras o que importa para a vigilância é “criar fluxos que deem conta de monitorar. E assim a gente tem um livro de controle, onde estão todos os pacientes no livro [...]” (EI-VS). No relato acima compartilhado se descortina a lógica da vigilância, que consiste em monitorar e controlar agentes causadores de patologias. Em razão disso, a preocupação no que diz respeito à pessoa acometida por TB se concentra, sim, em sua cura, ainda que a finalidade primordial seja impedir a disseminação da doença para outros. Sob esse prisma, justifica-se em casos extremos a determinação de internações compulsórias, contexto no qual está em jogo o bem da coletividade – “Nós já tivemos uma internação compulsória para tratamento de tuberculose” (EI-enfermeira UBS 2) – ou então uma ação de monitoramento e de controle constante, como desvelam os diálogos dos profissionais atuantes no núcleo de vigilância ao reportarem o caso de uma mulher com TB que trabalhava na limpeza de banheiros de uma praça em que uma feira de peixe era realizada:
— Exatamente uma pessoa com tuberculose no centro, havendo uma feira de alimentos. Nós não conseguíamos tirar ela de lá por nada. (EC-VS 1)
— Você chegou a ter abordagem com ela? (EC-VS 2)
— Sim, a gente conversou, conversou muito, pelo menos no período da feira, quando tinha mais concentração de pessoas. Envolveu muitos setores da prefeitura. Levavam ela em casa de carro. Ela voltava. Ela estava fraca. (EC-VS 1)
— Tinham levado ela para o hospital e ela fugiu. (EC-VS 2)
O depoimento dos profissionais do núcleo de vigilância explicitou a preocupação para com o controle, o que, nesse sentido, demanda do setor um olhar voltado para o coletivo, cujo foco resida na prevenção de agravos à saúde. Para o processo de descentralização, o núcleo de vigilância em saúde municipal ofertou atividades formativas aos profissionais inseridos na atenção primária, com o intuito de orientar e de qualificar a execução da estratégia de TDO. Todavia, estudos13, 14 apontaram dificuldades cotidianas dos profissionais da atenção primária na realização do TDO que extrapolam a dimensão da educação permanente. Convém assinalar que essas ações precisam ser assentadas não apenas em conhecimentos técnicos sobre a doença, mas em formas de acolhimento, de fortalecimento de vínculo e de sensibilização diante de indícios de adesão inadequada, e para isso é essencial que sejam destinadas à equipe como um todo.
Outro setor implicado no município é a UR da TB do Serviço de Assistência Especializada que centraliza a primeira consulta, responsabilizando-se por aqueles territórios de invasões recentes e marcados pela vulnerabilidade social, em que os moradores vivem sem vinculação com a atenção primária e com maior índice de abandono do tratamento, visto que eles “têm baixo esclarecimento, não têm forças por causa da doença, não têm forças para caminhar, para fazer o TDO, ir até o posto, porque é fora de área ” (EI-UR). Ademais, a UR também direciona consultas para adoecidos por TB coinfectados que têm “HIV, e é mais difícil do paciente aderir” (EI-UR) ou para usuários de drogas que “têm uma vida desregrada, e é muito difícil ele aderir ao tratamento ” (EI-UR). Casos complicados são assumidos pela UR, posto que:
[...] ele precisa fazer uma fibrobroncoscopia, ele precisa fazer biópsia, ele precisa de mais recursos, aí ele vem até aqui. Até pela facilidade que o serviço oferece em conseguir uma consulta médica mais rápida, um exame de raio X mais fácil, uma tomografia. (EI-UR)
Pode-se notar que a UR se interpõe entre o núcleo de vigilância e a atenção primária, prestando serviço para ambas, por um lado, no controle da doença e, por outro, no acompanhamento e no cuidado. Em casos mais específicos como os citados, torna-se mais difícil a criação de vínculos. Logo, para assegurar a adesão ao tratamento, elaboram-se dispositivos como “ofereço a ele um café da manhã. Isso é uma motivação para ele vir, porque só para ele vir tomar o medicamento, talvez não seja o suficiente” (EI-UR). Isso mostra que o exercício do acolhimento e a construção do cuidado constituem práticas desafiadoras, já que se trata da abordagem mais sob o enfoque biomédico, centrado no controle da doença.
Justifica-se que o serviço de referência para TB em territórios sem vinculação de equipe de atenção primária consiste em uma estratégia de cuidado e de vigilância em saúde importante; no entanto, esse serviço pode reforçar o estigma para além de tuberculoso, podendo o usuário ser colocado na condição de indivíduo de difícil manejo. Em razão disso, a análise da descentralização do TDO lança dois desafios éticos: o primeiro contempla a elaboração de um modelo de atenção composto por cuidados primários e conhecimentos de vigilância em saúde. O segundo envolve a necessidade de ações intersetoriais, visto que estudos enfatizam que o êxito no combate e controle da doença vai além da identificação e do tratamento dos doentes, sendo essencial atuar nos determinantes que causam o surgimento dos riscos15, 16.
Ambos os desafios suscitam reflexões e carecem de aprofundamento; todavia, nesta produção a discussão se deterá no primeiro. Contudo, não se pode deixar de assinalar a complexidade que reside no segundo desafio, uma vez que sua superação depende de políticas públicas longitudinais e ampliadas capazes de alterar modos de vida desfavoráveis. Embora o primeiro desafio também requeira ações robustas, seu alcance em menor tempo parece mais concreto, uma vez que está diretamente relacionado às questões de gestão de cuidado. Desse pilar, partem as análises e reflexões compartilhadas.
Destaca-se que a atenção primária se diferencia por uma lógica de trabalho ampliada: o cuidado de um indivíduo não pode ser reduzido a uma patologia, mas abrange a necessidade de apreendê-lo em sua totalidade existencial. Nesse cenário, a pessoa não pode ser identificada pela TB, haja vista que há muitos elementos que tecem os itinerários de cuidado – como os modos de levar a vida e as sociabilidades –, que não podem ser esquecidos pelo profissional que o acompanha. Assim, a TB não significa um puro evento biológico a ser tratado com procedimentos padronizados. Essa perspectiva aparece nas falas das enfermeiras da atenção primária:
Ele não é só tuberculoso, ele tem outras coisas que perpassam tudo isso, e isso falta. É uma coisa que eu vou discutir sempre, porque eu não consigo olhar para o paciente vendo só a TB. Tem muitas questões sociais. (EI-Enfermeira UBS 2)
A adesão – ou não – ao tratamento extrapola o simples ato de ingerir – ou não – a medicação, pois está fortemente relacionada à construção de subjetividades, ou seja, como o adoecido entende a doença e como lida com os serviços de saúde. Tais fatores acabam por determinar condições favoráveis ou limitantes para a terapêutica. O ideário buscado pelo TDO engloba a formação e o fortalecimento de vínculos, e nesse escopo reside sua importância na redução do abandono, pois envolve a corresponsabilidade do processo de cuidado17, 18.
O olhar reducionista deve ser distanciado pelos profissionais de saúde, ao ponto que este produz a sensação de discriminação e alimenta o estigma, o que pode acarretar o abandono do tratamento, demandando do profissional atenção e alternativas de superação de sentimentos, uma vez que:
Não querem usar a máscara no atendimento, no corredor, têm receio porque vão falar, porque têm alguma doença contagiosa, não querem contar para ao vizinho, para a vizinha que toma chimarrão. Ainda tem muito essa estigmatização. (EI-Enfermeira UBS 1)
Um estigma tem há anos a questão da TB. Esse estigma, preconceito, principalmente tratando-se de adolescente, ele se sente envergonhado de vir aqui, pegar a medicação. (EI-Enfermeira UBS 2)
A doença gera sofrimento não só pelas manifestações clínicas, mas especialmente pela ideia de contágio, o qual predispõe ao isolamento social. Com isso, o adoecimento por TB compreende sofrimento físico, psíquico e existencial. Em alguns casos, a rejeição do TDO pode decorrer do temor à discriminação, do entendimento de submissão ao serviço ou de forma de punição, balizada pela construção da incapacidade de cuidar-se. Tais acontecimentos, muitas vezes, podem colaborar para a construção da identidade permeável à autoestigmatização13, 18, 19.
Pesquisas que abordam o estigma atinente à TB sinalizam a necessidade de atenção, de compromisso e de responsabilidade dos profissionais, salientando a importância da aproximação com vistas a abrir um campo de escuta da singularidade do sofrimento, além de viabilizar o compartilhamento de informações acerca da doença e do tratamento para a superação dos preconceitos. Além de reconhecer o vínculo como fundamental no processo, reforça-se o papel das visitas domiciliares e da inclusão da família e de pessoas próximas no processo de cuidado como estratégia de suporte18, 20.
Nesse ponto de vista, a Estratégia Saúde da Família (ESF) constitui uma aposta importante no tratamento da TB, sobretudo pela íntima relação que estabelece com o território e pela potencialidade de desempenhar ações capilarizadas e longitudinais que transcendem o caráter curativo13, 21 - 23. Cabe, no êxito do tratamento, o acesso para além da entrada propriamente dita nos serviços, com a combinação de múltiplos fatores – social, econômico, geográfico, sociocultural e organizacional – para a obtenção de cuidado, em uma proposta que conforma a acessibilidade e o vínculo, marcado por profícuas relações, entre quem oferta e quem precisa de cuidado, centradas na responsabilização, na integralidade e na humanização. Portanto, a aceitação do TDO passa por essa construção de sentido para o cuidado, o qual se intensifica pela interação13, 20, 24.
Uma das enfermeiras vinculadas à atenção primária ressalta que, para assegurar a adesão, cabe estar atento desde o primeiro contato para perceber que “tipo é o paciente, se ele vai aderir, como é que ele está, como é que ele reage à questão de ter que fazer o tratamento, do tempo de tratamento, das medicações” (EI-Enfermeira UBS 1). Logo, o primeiro contato se revela essencial: “[...] a questão da tuberculose, do tratamento, da medicação, as reações, em que é preenchida a ficha de notificação, a carteirinha do TDO, é explicado sobre o tratamento e já é marcada a próxima consulta” (EI-Enfermeira UBS 2). Na perspectiva das enfermeiras, quando a atenção primária fica responsável apenas pela execução do TDO, o cuidado e o acompanhamento perdem potência.
A construção do vínculo é o principal, mas a questão do vínculo se perde se eu não acompanho o paciente tão próximo, só vejo esse paciente no TDO. Eu não tenho aquele acompanhamento contínuo, aquele cuidado continuado, segundo as diretrizes da atenção básica. A questão de acompanhar o paciente desde a primeira consulta na UR e voltar para nós com algum retorno e que acompanhe aqui na atenção primária. Isso eu sinto falta de ser acompanhado aqui, de ter essa continuidade do cuidado, porque daí ele acha que é só o comprimido que ele tem que vir aqui e mais nada, e isso se perde no meio do caminho. (EI-Enfermeira UBS 2)
Na direção para a descentralização de fato do TDO, a construção de Projetos Terapêuticos Singulares (PTS) surge como dispositivo estratégico para acolhimento, vínculo e continuidade do cuidado e ao mesmo tempo capaz de fortalecer e estimular a autonomia e o cuidado de si como ação cotidiana. Embora já existam diversas produções que expressam as potencialidades dos PTS, sabe-se que ainda são pouco utilizados no cotidiano das equipes de atenção primária. Nisso, importa frisar que, para o êxito dos PTS, é crucial o apoio da gestão no sentido de repensar os fluxos e o aporte ofertado às equipes – como assevera Hanh25 ao discorrer que a existência de vulnerabilidades individuais e sociais, ao serem tomadas como problemas, podem reiterar vulnerabilidades programáticas.
Na análise, observou-se que o TDO, na atenção primária muitas vezes fica reduzido à aplicação do procedimento, sendo uma atividade da qual o encarregado é o enfermeiro, “não tendo o envolvimento dos demais profissionais na TB. Eles acham que a TB é do enfermeiro” (EI-Enfermeira UBS 2). De certo modo, esse direcionamento oferta risco de descompromisso pela equipe para com o usuário, na medida em que o enfermeiro, por alguma razão, tenha que se ausentar da unidade. É preciso, pois, não perder de vista que acolher o adoecido por TB e que responsabilizar-se precisam ser posturas de equipe. Para além, esse profissional sente a cobrança do núcleo de vigilância que envia o medicamento e tem que ficar pendente das consultas, centralizadas na UR, tornando-se uma correia de transmissão entre os dois serviços.
Ao abordar profissionais que trabalham com TDO, pesquisadores averiguaram que alguns profissionais na atenção primária se isolam em funções específicas, indicando uma postura que articula a distribuição de poder nos espaços de trabalho. Outro aspecto sintetizou a compreensão perante a necessidade do tratamento, em que notam que nem sempre se faz necessário para os casos indicados, evocando certa descrença no método. Evidenciou-se, também, a defasagem de profissionais para as exigências preconizadas. Nesse sentido, o diálogo com os gestores em saúde se faz indispensável para o êxito das ações, uma vez que estes nem sempre se demonstram seguros frente às políticas de controle da TB e muitas vezes silenciam ou trazem contradições em seus discursos13, 14, 26.
No município em estudo, o enfermeiro da atenção primária, responsável na equipe pelo TDO, não tem envolvimento próximo no acompanhamento dos casos mais complicados ou com maior risco de abandono, o que exige continuidade e proximidade no cuidado, pois se tratam de casos acompanhados por consultas pela UR, a qual está sob a incumbência do núcleo de vigilância. O enfermeiro fica apenas responsável pela execução da certificação da tomada do comprimido e aqui, talvez, encontre-se o nó da questão quanto ao êxito do TDO e a resposta ao abandono do tratamento: não basta a descentralização do procedimento se não existe a responsabilização plena pelo acompanhamento e pelo cuidado por parte da atenção primária, na qual se dão as condições essenciais para a criação do vínculo.
A vigilância que descentraliza o tratamento caracteriza-se pela lógica de controle, de cobrança e de criação de fluxos de acompanhamento da doença para que ela não se dissemine para outros; ela tem a perspectiva biopolítica no controle do coletivo e, com esse fito, pode sacrificar a autonomia dos indivíduos para proteger a população. Posto isso, pode-se dizer que vigilância é a tecnologia biopolítica de gestão da população que engloba ao mesmo tempo seu controle e a visibilidade da observação, da classificação e da investigação dos riscos para os vigiados, porque o seu foco é o controle, e sua função é a proteção da população contra riscos27, 28.
O problema exsurge quando a vigilância descentraliza um dos seus encargos – no caso, o TDO – para outra instância – no caso, a atenção primária - que compreende outra lógica: o cuidado na singularidade. O objetivo da descentralização do TDO para a atenção primária é que esta apresenta maior resolutividade pela criação do vínculo e pelo exercício do cuidado personalizado. Essa perspectiva ética do acompanhamento contribui para a continuidade e o êxito da terapêutica29. Porém, para que isso aconteça, impera que o tratamento seja verdadeiramente descentralizado, delegando a plena corresponsabilidade para a equipe.
Se a descentralização for reduzida a puros protocolos, os profissionais da atenção primária não sentirão corresponsabilidade ética pelo êxito da cura. Por isso, uma das enfermeiras mencionou “que tinha que ter uma linha de cuidado específica para a tuberculose” (EI-Enfermeira UBS 2) nesse nível de atenção. Na visão de Barreto e colaboradores30, a falta de uma linha de cuidado causa fragmentação na gestão do cuidado da TB. No processo de descentralização analisado, reparou-se certa tensão dialética entre a perspectiva do controle da TB e a abordagem do cuidado da pessoa por ela acometida. As duas lógicas – da vigilância e da atenção primária – se descortinam como oportunas no acompanhamento da doença, contudo não podem sobrepor-se, mas sim respeitar-se mutuamente. Na descentralização da TB para a atenção primária, cumpre respeitar sua lógica, possibilitando a criação de uma linha de cuidado que organize o acompanhamento, posto que é garantia do sucesso. Em suma, a vigilância deverá mensurar como promover o controle da doença, sem atrapalhar o cuidado singularizado – que é típico da atenção primária.
Considerações finais
O TDO simboliza uma potente aposta das políticas públicas que visam ao enfrentamento da TB, cuja descentralização para a atenção primária, por parte do núcleo de vigilância, viabiliza maiores chances de resolutividade da doença. Nos locais de sua aplicação, evidencia-se a diminuição da ocorrência, embora ainda assim ocorra o abandono. No cenário estudado, identificou-se que na descentralização do TDO acontece uma tensão dialética entre a lógica da vigilância caracterizada pelo controle da doença e a lógica da atenção primária centrada no cuidado singularizado, realçando a necessidade de discussão dos fluxos locais e conciliação dos objetivos.
Entre as reflexões suscitadas encontra-se: seria o abandono do TDO menor se a atenção primária se responsabilizasse pelo usuário como um todo? Identifica-se que a descentralização apenas da ação (conferência da tomada do comprimido) para atenção primária pode gerar a percepção de mais uma tarefa a ser executada, podendo não despertar a corresponsabilidade do cuidado. Talvez o caminho seja a construção de uma responsabilidade compartilhada entre os serviços e usuários que conjugue aspectos individuais e coletivos. Nessa direção, entende-se como uma estratégia que pode diminuir o abandono do tratamento a descentralização completa do cuidado para atenção primária a partir de uma lógica de apoio matricial que envolva profissionais especializados e o núcleo de vigilância, conformando um continuum de processos implicados na descentralização.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
24 Out 2019 -
Data do Fascículo
2020
Histórico
-
Recebido
15 Mar 2019 -
Aceito
19 Ago 2019