Resumos
Notou-se o uso crescente de observatórios para acompanhamento e monitoramento de sistemas e políticas de saúde. À luz da Teoria Ator-Rede (TAR), foi proposta uma descrição e análise das associações e controvérsias que compõem os observatórios de saúde enquanto redes sociotécnicas em contextos de políticas e análises de sistemas de saúde. Trata-se de um trabalho com abordagem qualitativa, envolvendo um estudo de casos múltiplos e representações gráficas de diagramas de cartografia. Os resultados indicam que o referencial teórico da TAR e sua Cartografia de Controvérsias favoreceram a compreensão da formação de redes de forma ampla e plural, bem como ratificaram a complexidade de associações nesses espaços de natureza política. Concluiu-se com uma reflexão sobre a opção metodológica de repensar o social que reconsidera as redes e relações em políticas de saúde, propiciadas por mudanças tecnológicas e mediadas pelas tecnologias de informação e comunicação.
Políticas de saúde; Sistemas de saúde; Observatórios de saúde; Teoria ator-rede; Cartografia de controvérsias
Se observó el uso creciente de observatorios para acompañamiento y monitoreo de sistemas y políticas de salud. A la luz de la Teoría Actor-Red (TAR), el objetivo es describir y analizar las asociaciones y controversias que componen los observatorios de salud, como redes sociotécnicas, en contextos de políticas y análisis de sistemas de salud. Mediante un abordaje cualitativo, presenta un estudio de casos múltiples y se proponen representaciones gráficas de diagramas de cartografía. Se comprendió que el referencial teórico de la TAR y su Cartografía de Controversias favorecieron la comprensión de la formación de redes de forma amplia y plural, así como se ratificó la complejidad de asociaciones en esos espacios de naturaleza política. Se concluye con una reflexión sobre la opción metodológica de repensar lo social que reconsidera las redes y relaciones en políticas de salud, propiciadas por cambios tecnológicos y mediadas por las tecnologías de información y comunicación.
Políticas de salud; Sistemas de salud; Observatorios de salud; Teoría actor-red; Cartografía de controversias
The use of observatories to follow and monitor health systems and policies is steadily growing. We aimed to describe and review, using Actor-Network Theory (ANT), the connections and controversies that arise from observatories as socio-technical networks, in the context of health systems and policies analysis. Using a qualitative approach we present a study of multiple cases and graphic representations of cartography diagrams. The use of ANT and its Mapping of Controversies may help to understand in a broad and diverse way, how these complex networks are formed in the political scenarios. We conclude reflecting about the methodological option of rethinking the social aspects, reconsidering networks and personal connections in the health policy context, affected by technology changes in the way they are used to mediate communications and for information sharing.
Health policies; Health systems; Health observatories; Actor-network theory; Mapping of controversies
Introdução
O campo da pesquisa em políticas de saúde se constitui em uma área de produção de conhecimentos que toma como objeto a resposta social a problemas e necessidades de saúde utilizando distintos referenciais teóricos, enfoques de análise e modelos de acompanhamento e avaliação 1 .
Desse modo, o estudo das políticas de saúde abarca a compreensão das respostas sociais enquanto ações políticas que geram a elaboração e execução de propostas traduzidas em ações de promoção da saúde, de prevenção de riscos, redução de danos e assistência a doentes. Abarca também os atores, isto é, sujeitos (individuais e coletivos) envolvidos no processo de formulação e implementação de políticas e, ainda, os instrumentos de políticas, ou seja, documentos institucionais que materializam decisões políticas como leis, normas, decretos, portarias, planos, programas, projetos, ordens de serviço, etc 2 .
Nas últimas décadas, percebe-se o uso crescente de ferramentas designadas observatórios enquanto instrumentos ou tecnologias utilizadas para realização de estudos, acompanhamento e monitoramento de sistemas e políticas de saúde. O impacto das tecnologias no processo de comunicação, disseminação de ideias, informações e compartilhamento, bem como as novas formas de relações na sociedade contemporânea, favorecem a compreensão do surgimento dos observatórios na área da saúde, como um fenômeno da sociedade em rede.
Para Castells 3 , a lógica da rede passa a forjar a estrutura social, determinando o paradigma informacional como diretriz para a conexão às redes globais de riqueza, poder e cultura, definindo assim os processos sociais dominantes.
Latour 4 compreende que o conceito de rede busca assimilar algo pulsante que se forma e deforma pela dinâmica das relações. Não é o que conecta, mas sim o que é gerado nas associações. Esse autor é um dos fundadores da TAR, uma abordagem sociológica cuja ideia central é que o social emerge das associações. Para conhecer o social, a partir da TAR, busca-se analisar como se dão as associações entre actantes (aquilo que produz uma ação), humanos e não humanos, e suas localizações 5 .
Dessa forma, tem-se como ponto de partida para a presente investigação as relações que se estabelecem no contexto das políticas de saúde, especificamente dentro de observatórios. Parte-se do pressuposto de que o processo de análise de sistemas de saúde se caracteriza como híbrido, uma vez que se configura a partir da associação de humanos e não humanos.
Nessa direção, a análise de sistemas de saúde é um processo híbrido que envolve instituições, organizações, gestores, profissionais, pesquisadores, cidadãos, instrumentos normativos, tecnologias, informações de saúde baseadas em evidências, entre outros que, de acordo com Lemos 6 , devem ser revelados nas controvérsias. Compreendem-se controvérsias como ocasiões de disputa, negociação, debates e conflitos em que os atores discordam entre si e concordam que estão em desacordo 7 .
Esse caráter híbrido possibilita entender que a realidade para a atuação de observatórios, na análise de políticas e sistemas de saúde, constitui-se a partir das práticas e interações dos diferentes atores, formando o que Latour 4 denomina de rede sociotécnica. Desse modo, os observatórios de saúde, que também são híbridos, configuram-se em redes sociotécnicas na medida em que articulam instituições; pesquisadores; gestores; profissionais de saúde; cidadãos; mídia; redes sociais; informações e indicadores de saúde; sistemas; ferramentas; publicações; multimídias; notícias; entre outros atores e instrumentos de políticas.
A despeito da incipiência da utilização da TAR como referencial teórico no contexto da saúde, e ainda mais especificamente na temática das políticas e sistemas de saúde, principalmente no idioma português, observou-se o surgimento de estudos que vêm optando por essa abordagem 8 , 9 .
Assim, este estudo tem como objetivo descrever e analisar as associações e controvérsias que compõem os observatórios de saúde enquanto redes sociotécnicas, em contextos de políticas e análises de sistemas de saúde.
Material e métodos
A presente investigação toma por base três experiências distintas de observatórios de saúde focados na temática da análise de políticas e sistemas de saúde, sendo um observatório de Portugal, um da Itália e um do Brasil: o Observatório Português de Políticas e Sistemas de Saúde (OPSS), o Osservatorio Nazionale sulla Salute nelle Regioni Italiane – Observatório Nacional de Saúde nas Regiões Italianas (ONSRI) – e o Observatório de Análise Política em Saúde (OAPS), respectivamente.
Desse modo, o percurso metodológico para a construção desta pesquisa partiu da elaboração de um Quadro Teórico de Referência (QTR) fundamentado na TAR, chegando a um momento empírico, mediante abordagem qualitativa, tomando por base estudo de casos múltiplos, com técnicas de análise documental e entrevistas.
Na abordagem sociológica da TAR, a ideia central é que o social emerge das associações, de modo que, para conhecer o social, mediante essa teoria, é necessário analisar como se dão as associações e suas localizações 5 ; e reconhecer que a utilização, produção e disseminação do conhecimento científico é um processo social. Dessa perspectiva, a ciência e a tecnologia não evoluem do vácuo; ao contrário, participam ativamente do mundo social, são moldadas por ele e, simultaneamente, o moldam também 10 .
À luz da TAR, o presente referencial tornou possível pensar na pluralidade que conforma os observatórios de saúde por meio das mediações e simbioses de humanos e não humanos que compõem uma mesma rede sociotécnica, isto é, um conjunto de atores que se relacionam, tendo uma tecnologia como participante ativa das interações 4 . É preciso, portanto, levar em conta a relevância dos objetos técnicos na construção das relações sociais no âmbito desses observatórios, considerando o arcabouço de instrumentos normativos, relatórios, manuais, programas, planos, estudos, pesquisas, sistemas, softwares , websites, entre outros objetos/tecnologias que permeiam a realidade das políticas públicas e dos sistemas de saúde de seus países.
A análise e interpretação do material empírico recorreram à aplicação da Cartografia de Controvérsias, método próprio da TAR, para desprender a rede de actantes estabelecida em cada observatório. Venturini 7 explica que, ao utilizar essa metodologia, o pesquisador é questionado pelo o que vê na controvérsia e a descrição daquilo que está sendo visto, e não sobre a explicação do que está estudando. São, portanto, momentos que possibilitam observar a formação do social nos quais não existe estabilização ou, usando conceito próprio da TAR, “caixas pretas”.
A partir do referencial teórico-metodológico, procedeu-se à exploração do objeto por meio de técnicas da pesquisa qualitativa e recorrendo ao instrumental da análise documental, incluindo as páginas eletrônicas disponibilizadas pela rede e entrevistas realizadas com os informantes-chave. Portanto, esse momento empírico da pesquisa foi desenvolvido a partir de duas fontes de evidências:
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Análise documental do conteúdo dos sites dos três observatórios selecionados, documentos institucionais, publicações e materiais de divulgação.
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Entrevistas semiestruturadas com os informantes-chave. Foram sete interlocutores, que participaram diretamente do processo de fundação e/ou gestão dos referidos observatórios, sendo três de Portugal, dois da Itália e dois do Brasil. Para fins de organização e preservação do anonimato, os nomes dos participantes foram codificados com nomes de pedras preciosas.
Cabe ressaltar que, diante da multiplicidade de actantes que compõe cada rede investigada, fez-se necessário identificar possíveis porta-vozes. Essa tarefa coaduna com princípios da TAR na medida em que identificar aqueles que falam pela rede é um movimento necessário para o pesquisador-cartógrafo 11 .
Vale ressaltar que a Cartografia de Controvérsias favorece a combinação de diferentes métodos e técnicas para produção de dados. Cabe ainda destacar que, embora tenham sido escolhidos três observatórios com diferenças em diversos aspectos com a intenção de encontrar mais controvérsias, optou-se por uma pesquisa exploratório-descritiva em detrimento da utilização de métodos de natureza comparativa. Destarte, de acordo com a TAR, é por meio das controvérsias que os agregados sociais se formam, pois elas são situações polêmicas nas quais os actantes estão em busca de estabilização.
Resultados e discussão
O OPSS enfoca a temática da política, gestão e sistemas de saúde. Assume, por finalidade, oportunizar uma análise periódica, independente e precisa da evolução do sistema de saúde português e dos fatores que a determinam àqueles capazes de influenciar a saúde em Portugal. Nessa perspectiva, propõe-se facilitar a formulação de políticas de saúde e é constituído por uma rede de pesquisadores e instituições acadêmicas dedicadas ao estudo dos sistemas de saúde. Atualmente, cinco instituições o compõem c .
No entanto, logo no início desta análise, a partir das entrevistas com fundadores, emergiu uma relevante controvérsia sobre o OPSS ser a referência de observatório de saúde em Portugal. Um dos entrevistados afirmou que não existe observatório português e que o OPSS corresponde apenas à junção de investigadores para produção de um relatório anual. Complementou afirmando que o que existe de fato é um grupo de investigadores que é interlocutor entre Portugal e o Observatório Europeu de Sistemas de Saúde, no caso, referindo-se a um outro grupo conformado em instituição acadêmica que não está entre as que compõem o OPSS.
Essa rede complexa de relações permite observar que o ator-rede OPSS não se tornou uma “caixa-preta”, pois não está tão consolidado a ponto de se tornar inquestionável. Trata-se, portanto, de uma contradição também demonstrada pelos documentos institucionais, publicações, sites, matérias jornalísticas, entre outras evidências que se referem ao OPSS, inclusive o seu próprio nome. O principal produto do OPSS é a elaboração anual de um documento-síntese da evolução do sistema de saúde português – o Relatório Primavera. Em todos os documentos analisados, o OPSS afirma não tomar posição em relação às agendas políticas da saúde. Coloca-se na posição de análise independente e se propõe a reunir evidências para avaliar objetivamente processos, resultados e ações realizadas no sistema de saúde.
Nessa direção, algumas entrevistas ressaltaram a opção por independência como principal motivo para buscar sustentabilidade por meio de recursos de manutenção oriundos das instituições que compõem o OPSS.
Só assim podemos fazer análise independente. Se eventualmente estivermos financiados por alguma entidade, o entendimento público será sempre o que nós estamos a ser pagos pela aquela entidade. Portanto, isso nós não queremos. Essa análise independente desenvolvida ao longo desses anos criou uma imagem de credibilidade que faz com que estudantes, profissionais e a comunicação social, sistematicamente, no início de cada ano, perguntem quando é que vai ser o acontecimento do Relatório de Primavera. (Esmeralda)
Como o Observatório queria manter independente, não convinha receber dinheiro do Estado, pois iria analisar os relatórios. (Safira)
Quanto à importância e contribuição do observatório para o sistema de saúde, entre os achados, podem ser destacados o trabalho contínuo de monitoramento do sistema, que possibilita ao público em geral conhecer anualmente as ações que foram feitas, as que ainda serão feitas, o que precisa ser melhorado, o que avançou e a realidade das políticas; e alerta para as desigualdades e iniquidades. A expectativa anual da sociedade para a divulgação do Relatório de Primavera também foi considerada um sinal de credibilidade de tal documento. Um entrevistado mencionou ainda o sentimento de orgulho pelo reconhecimento social do trabalho desenvolvido e relatou o momento em que a Troika d chegou em Portugal, com observadores e financiadores externos que estavam no país e convocaram o OPSS para participar das discussões como referência na saúde.
Quando a Troika chegou a Portugal, convocaram-nos para uma reunião e nós fomos. Interessante é que aqueles três senhores que ali estavam tinham ao seu lado todos os Relatórios de Primavera que tínhamos feito. (Esmeralda)
Assim como o observatório português, o ONSRI também possui em seu histórico os antecedentes do surgimento dos observatórios de saúde na Europa, do movimento da organização da União Europeia e da criação do Observatório Europeu de Sistemas de Saúde. Foi criado por iniciativa do Instituto de Saúde Pública/Seção de Higiene da Universidade Católica do Sagrado Coração (Universita Cattolica del Sacro Cuore) e se dedica à temática da política, gestão e sistemas de saúde. Assume a perspectiva de contribuir com formuladores de políticas, políticos e técnicos da saúde por meio da produção de estudos, com rigor científico e politicamente objetivos e neutros.
De acordo com documentos institucionais e entrevistas, tal observatório surgiu com o objetivo de monitorar as condições de saúde e a qualidade do atendimento nas regiões italianas, seguindo as reformas do serviço público de Saúde que introduziram a autonomia das regiões para a organização dos cuidados de saúde e federalismo fiscal. Segundo relatos, essas reformas visaram à eficiência e à racionalização das despesas; aplicaram o princípio da subsidiariedade previsto na Constituição; e atribuíram responsabilidade financeira às regiões. Vale ressaltar a singularidade do objetivo da sua criação remeter ao interesse em pesquisar a situação do sistema de saúde como resultado do movimento das reformas sanitárias realizadas nos anos 1990 na Itália:
Nos anos 1990, as reformas (a primeira em 1993 e a segunda em 1999) promoveram, progressivamente, a regionalização do Sistema Nacional de Saúde Italiano, introduzindo autonomia às regiões em termos de planejamento e organização dos serviços de saúde pública. Passou a ser um sistema de vinte serviços regionais de saúde com diferente capacidade de resposta para oferta e acessibilidade aos serviços de saúde. (Âmbar)
O principal produto do observatório italiano é o Rapporto Osservasalute – Stato di salute e qualitá dell’assistenza nelle Regioni Italiane” (Relatório Observa Saúde – Estado de saúde e qualidade da assistência de saúde nas regiões italianas). Publicado também no site, esse documento anual adota uma análise metodológica comparativa e indicadores validados a nível internacional, incluindo alguns indicadores de saúde pública da União Europeia presentes no projeto European Union Public Health Information Network (EUPHIN).
Cabe destacar que dois entrevistados atribuem a importância do ONSRI ao fato de promover o conceito de valor em saúde como um dos princípios fundadores de um moderno sistema de saúde, a ser perseguido com estratégias de intervenção adequadas baseadas em rigor e evidência científica.
Os trabalhos publicados ao longo dos anos destacaram-se no campo científico com o objetivo de apoiar as instituições do setor na elaboração de ações voltadas à melhoria das condições de saúde da população e ao monitoramento da adequação, equidade do sistema e cuidados de saúde prestados no território. (Âmbar)
Já o observatório brasileiro – OAPS – nasceu a partir de uma proposta de docentes e pesquisadores do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia (ISC-UFBA), em parceria com outros centros de pesquisa, ensino e cooperação técnica do país, e é voltado para a temática da política, gestão e sistemas de saúde. Tem também como missão proporcionar um espaço de reflexão e análise crítica das políticas de saúde no Brasil por meio da articulação de uma rede de pesquisadores envolvidos com a produção de conhecimento na área de Política, Planejamento, Gestão e Avaliação em Saúde (PPGS). É ordenado pelo seguinte conjunto de princípios: a) comprometimento com a defesa da saúde como direito das pessoas e da cidadania na relação dos indivíduos com o Estado; b) compromisso com a construção e fortalecimento de sistemas universais de saúde de natureza pública baseados nos princípios da solidariedade, equidade, universalidade e integralidade da atenção à saúde; c) produção de um pensamento crítico sobre a realidade, alicerçado em bases científicas e eticamente responsáveis; e d) autonomia de pensamento em relação a interesses de grupos ou instituições 12 .
A partir dos eixos de pesquisa, o OAPS vem produzindo relatórios anuais, disponíveis para download , com base no monitoramento de cada uma das políticas acompanhadas, livros, e-books , números temáticos de revistas científicas, artigos publicados em periódicos, dissertações de mestrado, teses de doutorado, uma série de quatro vídeos documentários, entre outros materiais. Além disso, seu site reúne, semanalmente, notícias e textos sobre temas relevantes da conjuntura relacionada à implantação e aos resultados das políticas de saúde no Brasil.
As entrevistas deram evidência a uma controvérsia interessante que permeia o OAPS desde a sua criação: o processo de produção de conhecimento no âmbito acadêmico. Em geral, essa produção possui longa duração, pois a prática da pesquisa, em geral, é lenta. O processo de produção de dados, de análise, de interpretação e de redação de artigos, até chegar ao momento da publicação, às vezes demora mais de um ano, considerando as etapas de aprovação em revistas, pareceres, entre outras.
A rede que mobilizou o OAPS desde o início caminha no sentido oposto: na busca por uma rápida difusão do conhecimento produzido e na tentativa de reduzir o tempo entre o processo de produção, difusão e utilização do conhecimento acadêmico, tornando-o acessível para a comunidade em geral, e não apenas para a acadêmica.
No momento da produção os pesquisadores se debruçam sobre as suas questões, elaboram projetos, produzem dados. Se não difundem conhecimento e esse conhecimento não encontra materialidade nas práticas, sejam elas políticas, institucionais, fica guardado nas estantes, nas gavetas, nas bibliotecas e o mundo contemporâneo, caracterizado pela rapidez com que a informação e a comunicação se difundem através das novas tecnologias de informação e comunicação. Então a gente precisava dar um passo além em relação ao modelo tradicional de produção científica. (Diamante)
As evidências apontaram um consenso no que tange à relevância da contribuição do OAPS para o Sistema Único de Saúde (SUS), tais como: importância da análise crítica e proposições para as políticas de saúde; produção de conhecimento por meio de informações, estudos e discussões sobre questões de saúde em pauta no país (epidemias de Zika , Chikungunya , dengue e febre amarela, proposições para Atenção Básica); promoção do debate político por meio de um posicionamento não neutro em defesa do SUS; constituição paulatina em um espaço crítico de divulgação, propostas e alternativas para as políticas de saúde; e capacidade de difundir conhecimento de qualidade com rigor científico.
Vejo uma imensa importância do OAPS na defesa de sistemas universais de saúde, integrais e equitativos. (Ametista)
Tenho discutido com os meus alunos o número especial da Revista Ciência e Saúde Coletiva que faz um balanço dos trinta anos do SUS. O OAPS faz parte disso, é um ganho, uma conquista do campo da Saúde Coletiva dos movimentos sanitários... esse esforço gigantesco que vem sendo feito nesse país nos últimos quarenta anos, que desde a criação do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (CEBES), e principalmente nos últimos trinta anos para construção do Sistema Único de Saúde, que se pretende universal, integral, equitativo, descentralizado, participativo e que tem alcançado sucessos impressionantes no controle de doenças transmissíveis, na expansão da vigilância sanitária e ambiental, avanços na reforma psiquiátrica, no combate à fome, na redução da mortalidade infantil, melhorou a saúde da mulher e do trabalhador. Tudo isso está colocado nessa revista organizada e publicada pelo OAPS. (Diamante)
Os resultados obtidos permitiram a descrição e a discussão das associações que compõem as três redes sociotécnicas investigadas, isto é, o mapeamento das associações entre os actantes. De acordo com Ferreira 13 , trata-se de descrever as diversas traduções produzidas por atores, evidenciando articulações e discordâncias a partir da observação e delineamento das relações que se estabelecem e que geram a composição das redes sociotécnicas.
É importante, ainda, registrar, em cada observatório investigado, as relações estabelecidas entre os actantes envolvidos, as formas de negociação, as características, as condições de espaço e tempo e, principalmente, as potencialidades desses agenciamentos para as políticas de saúde. Esses espaços políticos são, por natureza, híbridos e profícuos para situações de disputas, debates, conflitos e controvérsias.
De forma geral, pode-se afirmar que as associações que se conformam dentro de cada um deles resultam em especificidades que irão distinguir as suas atuações. A descrição do mapeamento foi guiada pela lógica dos conteúdos propostos no roteiro semiestruturado utilizado nas entrevistas, a saber: histórico, organização e gestão do observatório; e contexto e participação no processo político da saúde. Dessa forma, as informações apreendidas com a análise documental puderam permear a narrativa, contrapondo ou confirmando as falas dos entrevistados com o intuito de apoiar o rastreamento das associações e a identificação de controvérsias.
Cabe destacar que, como todos os elementos que participam da rede produzem efeito nesta, os sites e os documentos institucionais investigados são considerados agentes importantes, uma vez que integram a rede ao agirem nela.
Vale ainda ressaltar que, para além de misturar técnicas de observação, a TAR dá suporte para um olhar diferenciado para os dados da pesquisa, tendo-os como algo vivo e dinâmico. Essa teoria propiciou mapear a dinâmica das associações, controvérsias e traduções que se encontram em ação; portanto, não se trata de uma cartografia estática: é a rede “tal como ela se faz” 11 . Logo, cumpre registrar que são as formas de seguir os actantes, visualizar fluxos da mediação, agenciamentos e desenhar a distribuição das ações que constituem a Cartografia de Controvérsias 14 .
Cartografia de Controvérsias: o mapeamento das redes sociotécnicas
A partir da descrição das associações, traduções, controvérsias, eventos, informações sobre histórico, organização, gestão do observatório, contexto e participação no processo político da saúde – enfim, os rastros que apoiaram o mapeamento das três redes sociotécnicas investigadas –, foi possível distinguir os actantes, os papéis que exercem em cada rede, seus interesses e as formas de articulação.
É preciso destacar que a multiplicidade de atores que compõem cada uma das redes heterogêneas investigadas é inerente à natureza política que permeia esses três observatórios de saúde investigados, sob a perspectiva da atuação nas políticas e análises de sistemas. Essa pluralidade endossa os espaços híbridos para o surgimento de controvérsias, discordâncias, debates, conflitos, situações de disputas e relações com o poder.
Portanto, a diversidade de actantes ratifica a complexidade de toda análise alicerçada na TAR. Ainda que, para fins de interpretação e sistematização de resultados, os actantes tenham sido agrupados, a exemplo de pesquisadores, gestores, universidades, entre outros, é imprescindível apreender os pressupostos da TAR, lembrando sempre que, além de cada observatório se constituir ator-rede, outros atores que compõem a mesma rede também o são. Nessa perspectiva, deve-se atentar para os possíveis limites da leitura que personifica, quase tornando “entidades” alguns actantes ao agrupá-los como o “ente gestores”, o “ente pesquisadores” ou até mesmo o “ente observatório”.
Sugere-se, portanto, ancorar-se na TAR e olhar para esses agrupamentos com a consciência de que são conformados por vários indivíduos que também são atores, que, portanto, possuem “agência”, e que, para alcançar um objetivo comum, mobilizaram-se e mobilizaram outros atores, conformando, assim, cada “ator-rede” observatório.
Feita essa ressalva, propõem-se representações gráficas dessas redes com intuito de apresentar diagramas da cartografia dos actantes como sínteses do presente estudo sob a ótica da Cartografia de Controvérsias. Ratifica-se a opção pela pesquisa exploratório-descritiva em detrimento da utilização de métodos de natureza comparativa. Entretanto, buscou-se um fio condutor na dinâmica de associações que mobilizem os observatórios em torno de uma situação controversa comum aos três.
De acordo com seus objetivos, os observatórios de Portugal e da Itália se colocam no lugar de observação. Ambos comunicam sobre a finalidade de fazer diagnósticos dos sistemas de saúde, examinar, realizar estudos, pesquisas e análises independentes, declarando, ainda, o intuito de contribuir com a gestão e políticas de saúde por meio da elaboração de instrumentos cientificamente rigorosos, objetivos e “neutros”. Já o brasileiro se coloca em uma posição ativa de participação no contexto político da saúde fundamentado nos eixos de investigação, mas extrapolando o âmbito da pesquisa, por meio da promoção de debate crítico e veiculação de pontos de vistas plurais na esfera das políticas de saúde. Ressalta-se também que se declara “não neutro” diante dos valores explicitados e se propõe a proporcionar um espaço de reflexão e análise crítica das políticas de saúde do país.
É importante também pontuar que os dois primeiros observatórios nasceram com o objetivo claro de pesquisar. Já o OAPS originou-se do intuito de montar uma rede, ou seja, compor associações para a pesquisa. Nessa direção, cabe acrescentar que, à luz da TAR, enquanto agregado social e objeto central desta pesquisa, o papel de cada observatório ainda não está estabilizado, nem fechado em uma “caixa-preta”. O papel, isto é, a forma de atuação do observatório frente às políticas de saúde, portanto, constituiu-se a controvérsia escolhida para elaboração das figuras apresentadas a seguir.
Vale ainda sinalizar as convenções gráficas utilizadas nas figuras 1, 2 e 3: os traços representam associações; os círculos representam actantes; o contorno em linha tracejada representa intermediários; e os dois contornos em linha contínua, mediadores.
O Relatório Primavera aparece como grande mediador da rede, coadunando com a importância do seu papel como principal produto do OPSS. É ele que coloca em evidência o resultado do trabalho coletivo de vários atores para apresentar a análise sobre o sistema e as políticas de saúde de Portugal. Retrata os efeitos que produz na rede ao mobilizar actantes governamentais, sociedade e mídia, demonstrando relação de poder. Os actantes site, Facebook, pesquisa e indicadores de saúde não modificam: apenas reproduzem os significados na rede; portanto, estão retratados com a função de intermediários 15 .
Da mesma forma, o Relatório Observa Saúde é representado como principal mediador da rede ONSRI, pois é o maior responsável pelo estabelecimento de interações e conexões entre os actantes, produzindo também relações de poder na medida em que evidencia o resultado do trabalho realizado, colocando-o em evidência. Os actantes redes sociais (Facebook, Twitter e Youtube), pesquisa e site não produzem ação na rede; portanto, são delineados como intermediários.
Observa-se que, nesse observatório, o papel de mediador não se restringe ao actante “publicações”. Ele é exercido também pelos actantes site e Facebook, refletindo a dinâmica de trabalho do OAPS que se utiliza de instrumentos para favorecer a participação e o debate crítico-reflexivo acerca das políticas de saúde. Desse modo, a especificidade de atuação já apontada como característica desse ator-rede produz ação e efeitos na rede. A partir deles, o trabalho do OAPS mobiliza novos atores e modifica as associações. Já os actantes indicadores de saúde, pesquisa, organograma, boletins e documentário exercem a função de intermediários que transportam significado, mas não transformam 15 .
Retomando a TAR, é por meio das controvérsias que os agregados sociais se formam, pois elas são situações polêmicas nas quais os actantes estão em busca de estabilização. Destarte, enquanto agregados sociais, os observatórios se constituem em espaços frutíferos para associações em busca de estabilizações, inclusive no que diz respeito à sua essência.
Considerações finais
A importância da utilização do aporte téorico da TAR nessa investigação traduz-se no cerne da sua principal diretriz metodológica: seguir os rastros, seguir os atores e deixá-los falar por meio do mapeamento das dinâmicas das associações nas redes em ação. Desse modo, nos três observatórios estudados, foi possível observar que as relações dos atores humanos e não humanos produzem diferentes práticas, exemplificadas pelas conexões dos mediadores objetos. Nos observatórios português e italiano, o protagonismo dos relatórios mobiliza toda rede em torno do resultado do trabalho de pesquisa materializado por meio dos referidos documentos. Já no OAPS, não apenas o objeto publicação é um mediador: o site e as redes sociais também exercem esse papel, revelando a especificidade da sua dinâmica de trabalho. Assim, este último observatório possibilitou a apreensão da rede “tal como ela se faz” 11 .
Diante do exposto, é possível afirmar que o referencial teórico da TAR e sua Cartografia de Controvérsias favoreceram a compreensão da formação das redes sociotécnicas que compõem os observatórios de saúde de uma maneira ampla e plural. Nessa perspectiva, reforça a configuração híbrida das políticas públicas, da análise de sistemas de saúde e dos observatórios, uma vez que articulam, a todo tempo, instituições; pesquisadores; gestores; profissionais de saúde; cidadãos; mídia; redes sociais; informações e indicadores de saúde; sistemas; ferramentas; publicações; multimídias; notícias, entre outros atores e instrumentos de políticas. Portanto, é possível verificar a proliferação de híbridos nessas circunstâncias.
Assim, em consonância com as principais ideias defendidas pela TAR, os resultados apresentados nesta pesquisa ratificam a complexidade de relações e associações existentes em espaços de natureza política, como os observatórios de saúde. Confirma-se também que os não humanos possuem agência nessas associações, isto é, carregam intenção, agregando valor e importância nas redes que se conformam nos três observatórios. Nessa perspectiva, as práticas de todos os actantes geradas nas três redes sociotécnicas engendram a forma como as instituições, pesquisadores e gestores de cada observatório constroem a sua realidade para atuação em contextos dos processos políticos de saúde.
Em geral, os três observatórios investigados realizam o monitoramento das políticas de saúde por meio de análises rigorosas acerca da situação de saúde e seus determinantes. Além da esfera da produção e disseminação de conhecimentos, eles mobilizam pesquisadores, docentes, discentes, gestores, profissionais, mídia e cidadãos interessados em informações com credibilidade, demonstrando a capacidade de conectar um número expressivo de actantes, revelando potencialidade nas suas dinâmicas de associação, bem como em processos de tradução.
O presente estudo evidenciou também a configuração de uma nova forma de atuação frente às políticas sob a égide do modelo de observatório. O exemplo do OAPS ilustra um modelo que vai além do observar. Ele extrapola a posição de analista e coloca o observatório no lugar de participante ativo da política por meio das associações, mobilização dos mediadores e engendramentos da sua rede a partir de uma atuação crítico-reflexiva.
O estudo dos três casos aqui apresentados abre uma série de interrogações acerca da articulação entre produção de conhecimentos baseados em evidências e os processos de formulação, implementação, gestão e análise das políticas de saúde, bem como acerca da conformação das dinâmicas de associação e controvérsias que permeiam o processo híbrido da análise de sistemas de saúde.
Faz-se necessário ressaltar que a opção metodológica por uma forma de repensar o social permitiu também reconsiderar as redes e relações que se estabelecem em contexto das políticas de saúde e, consequentemente, as relações propiciadas pelo advento das mudanças tecnológicas por meio da difusão dos serviços de mobilidade informacional; dispositivos digitais; e interação mediada pelas tecnologias de informação e comunicação que vem forjando também as relações na área da saúde na contemporaneidade.
Referências
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c
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d
Troika: trinca composta pela Comissão Europeia, Banco Central Europeu (BCE) e Fundo Monetário Internacional (FMI).
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
23 Mar 2020 -
Data do Fascículo
2020
Histórico
-
Recebido
25 Set 2019 -
Aceito
20 Dez 2019