O artigo de autoria de Rafael Bica e George Kornis intitulado “Exames de licenciamento em Medicina: uma boa ideia para a formação médica no Brasil?” se propõe a analisar se os sistemas de avaliação da educação médica no Brasil – mais precisamente, o exame do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp) e a Avaliação Nacional Seriada dos Estudantes de Medicina (Anasem) – medem a qualidade da formação dos estudantes e conclui que essas avaliações, fundamentadas no modelo de competências, não cumprem esse objetivo.
Para uma análise fundamentada acerca dessa constatação, é preciso refletir sobre as diferenças estruturantes dessas avaliações. A Anasem, instituída pelo Programa Mais Médicos, destina-se a estudantes do 2º, 4º e 6º, ano de Medicina e tem o objetivo de determinar em que medida os objetivos do curso estão sendo alcançados e quais as mudanças provocadas no comportamento do estudante. Essa avaliação, embora tenha sido descontinuada após uma única aplicação em 2016, possuía cunho formativo e buscava aferir se o conhecimento adquirido pelo estudante era contínuo e progressivo, além de realizar o diagnóstico e promover alterações curriculares e avaliações específicas de disciplinas, mediante o uso dos resultados ao longo do processo de formação.
Já o exame do Cremesp, destinado aos alunos do 6º ano e aos recém-formados em Medicina, é facultativo e permite que os egressos testem seus conhecimentos e as escolas tenham parâmetros de desempenho por áreas. O propósito desse exame é fornecer subsídios para o aprimoramento dos cursos avaliados e da formação médica, visando à adequada assistência de saúde à sociedade. Contudo, é uma avaliação que não incide sobre os alunos avaliados, pois, diferentemente da Anasem, não é processual, mas sim realizada no fim da formação, o que faz com que não seja possível sanar possíveis fragilidades profissionais detectadas pelos resultados.
No artigo ora analisado, os autores destacam ainda os modelos de avaliação disseminados nacionalmente – Teste de Progresso – e internacionalmente – Exame Nacional de Revalidação de Diplomas obtidos em Instituições de Educação Superior Estrangeiras (Revalida). Ambas as experiências avaliativas têm impactado o debate da formação médica e dão sinais de que a aplicação dos Exames de Licenciamento Médico (ELM), isoladamente, não são capazes de garantir o exercício da Medicina de forma segura e competente pelos egressos do curso. Porém, se combinados, durante o processo de formação, com concepção formativa e emancipatória, podem garantir a qualidade do processo educacional.
A experiência do Teste de Progresso, desenvolvida pela Associação Brasileira de Educação Médica (Abem), espelhou a construção da proposta da Anasem, que seguiu os mesmos parâmetros de avaliação processual da formação. A principal vantagem desse tipo de avaliação é que o conhecimento de todos os componentes curriculares é continuadamente revisado, com uma metodologia de devolutivas consistentes à comunidade acadêmica com a finalidade de corrigir prováveis lacunas do processo de ensino e de aprendizagem.
Já o Revalida trouxe como principal contribuição a construção da Matriz de Correspondência Curricular, elaborada por especialistas, que detalhou, com base nas Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN), o perfil de habilidades e competências do médico recém-formado no Brasil e estabeleceu o grau de desempenho para essas competências, referencial antes inexistente no país. Acrescenta-se a esse exame o incremento da avaliação de habilidades clínicas com o objetivo de mensurar as capacidades práticas da atuação médica.
Segundo os autores, a escolha dos métodos de avaliação exige clareza de objetivos e as experiências têm demonstrado que os métodos se tornaram mais diversificados e precisos. Destacam o avanço das análises psicométricas das avaliações que permitem indicar a proficiência do estudante no domínio que está sendo avaliado. Do ponto de vista da aceitabilidade e da usabilidade do processo de avaliação, o que deve estar em evidência é o lugar que ocupa a avaliação externa no sistema de educação superior brasileiro.
Previsto na Constituição Federal de 19881 , o processo de avaliação tende a se configurar como política pública sob responsabilidade do Estado. Por isso, o Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior (Sinaes)2 ganha centralidade para assegurar a qualidade da educação, avaliando os acadêmicos, ordenando a formação de profissionais da saúde, apoiando a qualificação e promovendo, por meio do Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes (Enade), a adequação do perfil desses profissionais às necessidades sociais em saúde.
A avaliação é entendida, portanto, como uma atividade de acompanhamento interno e externo do processo de ensino e aprendizagem, com atividades institucionalizadas de observação, análise e reflexão sobre o que foi observado e registrado, comunicação dos resultados e tomada de decisão para atingir os objetivos que ainda não foram alcançados3 .
Nesse sentido, no processo de ensino e aprendizagem, saberes e conhecimentos científicos alinham-se aos processos de saber fazer e saber ser, elementos fundamentais para a inserção do profissional no contexto social no qual as práticas de cuidado são realizadas. Esse interesse pelo tema da avaliação tem motivado o estudo das teorias e dos significados da atividade de avaliação, implicando questões de ordem epistemológica, ética, política e cultural. Destacam-se os estudos de Villas Boas4 ; Dias Sobrinho5 , 6 ; Sordi e Ludke7 ; e Hoffmann8 .
No plano epistemológico, as práticas objetivas e subjetivas de avaliação coexistem. A primeira pode ser observada por meio de testes, questionários e provas, com mecanismos de controle de resultados que determinam uma prática pedagógica baseada na exposição de conteúdos e na formulação de tarefas acadêmicas. Já a segunda prática avaliativa concebe a avaliação da aprendizagem inserida no contexto real (complexo e dinâmico), tendo como referência os valores fundamentais da educação e, como perspectiva, a construção do futuro.
Sob essa perspectiva, as estratégias para avaliar os estudantes devem contribuir para a apropriação do conhecimento de forma articulada com as necessidades da formação profissional. Nesse sentido, interessa ao processo de avaliação todos os acontecimentos do percurso de ensino e aprendizagem e suas consequências para o aluno. Avaliar consiste, portanto, em apreciar uma realidade concreta à luz de critérios claros e estabelecidos previamente para subsidiar o processo de tomada de decisão. Como um processo permanente de busca da qualidade, a avaliação encontra aproximações para o desenvolvimento institucional, profissional e de relações pessoais.
Desse modo, o foco da avaliação está no perfil profissional que se deseja formar e na trajetória acadêmica da formação dos estudantes. Essa ênfase inclui “o desenvolvimento de competências necessárias ao aprofundamento da formação profissional e à compreensão, integrada, crítica e contextualizada, de temas diversos àqueles específicos da formação”9 (p. 86). Portanto, as matrizes dos instrumentos de avaliação contemplam os perfis profissionais esperados, com a intenção de deslocar o foco da avaliação do domínio dos conhecimentos técnicos para o desenvolvimento de perfis adequados às demandas de formação.
A partir dessa lógica, o uso dos resultados da avaliação reforça o compromisso da instituição e do docente com a formação de profissionais capazes de prestar serviço de qualidade à sociedade. Esse pensamento pode, de fato, concorrer para a mudança conceitual e prática no desenvolvimento da atividade avaliativa a partir da mudança de postura e concepção do professor em relação ao seu papel como agente de transformação social.
Assim, voltando à problematização do artigo, os ELM podem se caracterizar como uma boa ideia para a qualidade da formação desde que articulados a uma proposta de valorização e qualificação da formação médica. De modo geral, há, com muita frequência, questionamentos sobre a relação entre avaliação e qualidade da formação profissional intensificados pelos atores que acompanham as profissões (conselhos e associações profissionais, bem como instituições empregadoras), exibindo uma visão por vezes equivocada do papel da avaliação da aprendizagem com exclusiva finalidade de identificar conhecimentos básicos necessários ao exercício da profissão. Todavia, esse processo demanda tempo e exige compromisso da comunidade acadêmica, sobretudo porque ainda são muitas as divergências quanto aos objetivos da avaliação e seu papel na formação profissional.
Referências
- 1 Brasil. Senado Federal. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, Coordenação de Edições Técnicas; 2016.
- 2 Brasil. Presidência da República. Lei nº 10.861, de 14 de Abril de 2004. Institui o Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior – Sinaes e dá outras providências. Diário Oficial da União. 15 Abr 2004; n. 72, Sec. 1, p. 3-4.
- 3 Griboski CM. As diretrizes curriculares nacionais e a avaliação seriada para os cursos de medicina. Cad ABEM. 2015; 11:61-7.
- 4 Villas Boas BMF. Avaliação: políticas e práticas. Campinas: Papirus; 2002.
- 5 Dias Sobrinho J. Universidade e avaliação: entre a ética e o mercado. Florianópolis: Insular; 2002.
- 6 Dias Sobrinho J. Avaliação ética e política em função da educação como direito público ou como mercadoria? Educ Soc. 2004; 2(8):703-25.
- 7 Sordi MRL, Ludke M. Da avaliação da aprendizagem à avaliação institucional: aprendizagens necessárias. Aval Rev Aval Educ Super. 2009; 14(2):253-66.
- 8 Hoffmann J. Avaliação mediadora: uma prática em construção da pré-escola à universidade. 33a ed. Porto Alegre: Editora Mediação; 2014.
- 9 Rabelo M. Avaliação educacional: fundamentos, metodologia e aplicações no contexto brasileiro. Rio de Janeiro: SBM; 2013.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
09 Dez 2019 -
Data do Fascículo
2020
Histórico
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Recebido
12 Set 2019 -
Aceito
11 Out 2019