A expansão da Psiquiatria nas últimas décadas, em conjunto com a ampla utilização de psicotrópicos para o tratamento de situações cotidianas e de comportamentos, vem sendo objeto de preocupação e de pesquisas de vários estudiosos em todo o mundo desde a década de 1960. Sandra Caponi, em seu último livro, intitulado “Uma sala tranquila: neurolépticos para uma biopolítica da indiferença”, soma-se a esses nomes, incorporando elementos epistemológicos atuais para o debate.
A obra já impressiona pelos nomes que assinam o prefácio (Robert Whitaker), a apresentação (Fernando Freitas) e a quarta capa (Paulo Amarante). Este último afirma que a obra de Sandra Caponi “se une, assim, a Marcia Angell, Peter Conrad, Joanna Montcrieff, Ian Hacking, dentre outros”, destacando a relevância do livro. Está organizado em: introdução, seis capítulos e considerações finais.
Ao traçar a história da clorpromazina, e a partir de um olhar foucaultiano, Sandra Caponi nos leva a refletir não só sobre o papel dos psicotrópicos na história da psiquiatria, mas também como eles são utilizados como uma estratégia para a garantia do exercício de um poder disciplinar e de um dispositivo de segurança, especialmente na infância e adolescência. Tudo isso se encaixa perfeitamente no neoliberalismo: a disciplina para conter os indivíduos desviantes e a segurança para que se antecipe quaisquer danos, acidentes ou riscos e para que haja justificativas de intervenção sempre que “necessário”.
No primeiro capítulo – “Um novo regime de verdade no campo da psiquiatria” –, o objetivo é mostrar como a ideia de que a descoberta da clorpromazina foi uma revolução para a psiquiatria – tornando-a, enfim, uma ciência médica – foi se moldando ao longo do tempo, configurando, dessa forma, um novo “regime de verdade” para os transtornos mentais1. A clorpromazina surgiu como um anti-histamínico, em seguida passou a ser utilizada como anestésico e, posteriormente, como tratamento de pacientes psicóticos. De acordo com Caponi2, sua descoberta foi comparada com a descoberta da penicilina, metáfora utilizada para equalizar a psiquiatria a outros ramos da medicina. Alguns dos efeitos adversos logo foram descritos na literatura, especialmente aqueles relacionados ao movimento, como a discinesia tardia. Um dos grandes destaques nos estudos com a clorpromazina na época é a descrição da “indiferença” dos pacientes tratados, que se tornou o efeito desejado do medicamento, passando a ser considerada um sinal de eficácia terapêutica: “os pacientes tratados continuarão tendo alucinações, mas se manterão indiferentes em relação a elas”2 (p. 51).
Caponi apresenta dois modelos de explicação para a ação dos psicofármacos3, que permeiam a discussão ao longo de todo o livro: o modelo centrado na droga e o modelo centrado na doença. Grande parte da literatura sobre a clorpromazina, desde sua descoberta até os dias atuais, utiliza o modelo centrado na doença ao afirmar que esse tipo de substância restitui um equilíbrio neuroquímico perdido. Caponi chama de regime de verdade:
[...] para entender a imposição que leva a aceitar esse modelo centrado na doença ainda que não exista nenhum conhecimento relacionado às redes causais que estariam na origem das patologias2. (p. 48)
O capítulo II – “Estratégias de legitimação: a clorpromazina e os estudos estatísticos” – preocupa-se com questões epistemológicas, de sustentação e criação de argumentos que levaram a considerar a clorpromazina um fármaco eficaz no tratamento de condições psiquiátricas. Caponi descreve os estudos sobre a substância como estratégias biopolíticas de organização da psiquiatria e a clorpromazina como estratégia de governo da loucura. Nos estudos contra placebo é evidente que o que é contabilizado como “melhora” é a calma e a tranquilidade dos pacientes, a volta para casa e a colaboração para a realização de certas atividades. O que se deseja são “sujeitos conformados com sua situação, indiferentes ao que ocorre com eles próprios, que perdem a vontade de resistir e de se opor à situação em que se encontram”2 (p. 58).
“A hipótese dopaminérgica e o modelo centrado na doença” é o título do terceiro capítulo, que problematiza as explicações dadas pela psiquiatria biológica para os transtornos mentais e a utilização do modelo centrado na doença como justificativa para a utilização de psicofármacos. O início do capítulo é dedicado à inflação diagnóstica em psiquiatria que vem ocorrendo desde a publicação do Manual Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais (DSM) III, em 1980. Para sustentar essa inflação diagnóstica, as hipóteses etiológicas biológicas ganharam força, em especial a dopaminérgica para a esquizofrenia, inaugurando um modelo explicativo para os transtornos mentais em geral. Essas hipóteses foram formuladas a partir da constatação dos mecanismos de ação dos medicamentos. No caso da clorpromazina, de forma simplificada, argumenta-se que, se ela bloqueia o receptor de dopamina na fenda sináptica e causa sedação e desinteresse em pessoas com esquizofrenia, portanto, a esquizofrenia deve ocorrer por um excesso na liberação de dopamina.
Esse tipo de explicação é a base para o modelo centrado na doença, que se baseia na existência de uma base biológica para os sofrimentos e transtornos mentais, que poderia ser revertida com o uso de medicamentos. Caponi cita Moncrieff, que se opõe a esse modelo, sugerindo uma abordagem chamada de “modelo centrado nas drogas”3. Nesse caso, os psicofármacos não restabelecem um desequilíbrio neuroquímico perdido, nem funções cerebrais, mas criam alterações cerebrais que podem ser benéficas para alguns indivíduos em determinadas situações, como para ajudar a relaxar, a se concentrar, a se sentir mais ativo, entre outras. Para Caponi2, “isso significa afirmar que os psicofármacos são mais próximos das drogas de consumo social ou lúdico, como o álcool, que de medicamentos como a insulina, a penicilina ou a Aspirina” (p. 89).
Em seguida, o capítulo IV – intitulado “Salas disciplinadas e discinesia tardia: o modelo centrado na droga” – esmiúça um pouco mais o que é o modelo centrado na droga e os efeitos sobre a função cerebral normal decorrentes do uso de psicofármacos. Esse modelo deixaria nas mãos do próprio paciente a decisão sobre a utilidade de um fármaco, de acordo com sua própria experiência subjetiva3. Dessa forma, “o poder psiquiátrico encontra no modelo centrado na doença um discurso capaz de dotá-lo de certo poder em relação aos pacientes”2 (p. 101). Ao refletir sobre o tema, Caponi aponta os efeitos políticos de controle e disciplina que aparecem nos discursos psiquiátricos, a partir de três argumentos principais: (1) o papel político dos neurolépticos, especialmente a clorpromazina, como dispositivo disciplinar para impor o silêncio e a tranquilidade nos hospitais psiquiátricos; (2) a possibilidade do tratamento contínuo fora dos hospitais, porém, com controle médico, ou seja, a gestão dos pacientes; e (3) a influência da indústria farmacêutica no surgimento dos psicofármacos e na manutenção do modelo centrado na doença para explicar seus “efeitos terapêuticos”.
O capítulo V – “Do dispositivo disciplinar ao dispositivo de segurança: antipsicóticos e atípicos 60 anos depois” – começa com a discussão sobre o dispositivo disciplinar no nascimento da psicofarmacologia, com a eficácia da clorpromazina em controlar e disciplinar os pacientes agitados. A partir do momento em que a psiquiatria tornou possível o controle dos pacientes psiquiátricos, ela deixou de ser considerada um ramo da medicina menor e menos eficaz. Caponi cita Deniker, Parada e Foucault para entender esse poder disciplinar4-6, tomando como referência as quatro mutações ocorridas na psiquiatria, a partir da introdução dos psicofármacos, formuladas por Deniker: (1) o efeito “terapêutico” da clorpromazina, tornando o paciente submisso; (2) a duração contínua do tratamento, criando um vínculo de sujeição por toda a vida desse paciente; (3) a observação, a análise e o registro de comportamentos, não sendo essencial que o paciente fale; e (4) a relação entre o psiquiatra e o paciente, na qual “cabe ao psiquiatra descobrir, a partir dos sintomas observados, qual será o tratamento adequado, sem necessidade de escutar o que o paciente tem para dizer”2 (p. 138).
Tudo isso só é possível pela existência de um modelo explicativo que defende a correção de um desequilíbrio neuroquímico por meio de medicamentos, ou seja, o modelo centrado na doença7. O uso massivo de psicofármacos, juntamente com a saída dos pacientes dos hospitais psiquiátricos e com a publicação da terceira edição DSM-III, em 1980, permitiu que comportamentos cotidianos e sofrimentos passassem a ser considerados transtornos mentais, tratáveis com medicamentos específicos. Segundo Caponi, de um dispositivo disciplinar, que possibilitou a gestão dos hospitais psiquiátricos, os psicofármacos permitiram a instituição de um “dispositivo de segurança”, cujos discursos se organizam a partir da ideia do risco populacional. Os estudos probabilísticos são destaque, medindo os riscos de não tratamento de pacientes psiquiátricos e o risco da não identificação precoce desses “doentes”, a partir de tabelas de sintomas e comportamentos, que se tornaram padrão na psiquiatria. O dispositivo de segurança é, para Foucault, “o modo de exercício de poder próprio do liberalismo”2 (p. 154). Caponi finaliza o capítulo relacionando os dispositivos da disciplina e da segurança com a publicidade da indústria farmacêutica de psicofármacos, especialmente nas décadas de 1950 e 1960, e o papel dessa publicidade no fortalecimento do modelo centrado na doença.
O sexto e último capítulo – “Uma sala de aula tranquila: dispositivos de segurança, TOD e psiquiatrização da infância” – discute as consequências da utilização do modelo centrado na doença na psiquiatria atual, em especial na infância, tomando como exemplo de análise o Transtorno de Oposição Desafiante (TOD). Caponi começa analisando os “dispositivos de segurança”, relacionados à infância, especialmente os transtornos disruptivos, de controle de impulsos e de conduta, que aparecem na quinta edição do DSM, a mais atual. A discussão gira em torno da detecção precoce, que tem como função a proteção social:
A tarefa de detectar os Transtornos Disruptivos na primeira infância se apresenta como solução para antecipar os problemas mais temidos das sociedades liberais e neoliberais: a delinquência, a criminalidade, os homicídios, o suicídio2. (p. 177)
Para tanto, o DSM-5 utiliza duas estratégias: contar sintomas e avaliar o histórico familiar, lembrando as ideias de Kraepelin entre os séculos XIX e XX. O principal tratamento do TOD atualmente é psicofarmacológico, com destaque para o antipsicótico risperidona, utilizado também para tratar crianças com outros diagnósticos, tal como o autismo. Caponi destaca sua preocupação com o fato de a psiquiatria ter a pretensão de agir antes de qualquer problema se instalar. Nesse caso:
[...] fala-se então de doenças mentais do desenvolvimento, isto é, de patologias que se apresentariam na infância com sintomas “subclínicos”, pequenos indícios de que um transtorno do comportamento ou da aprendizagem poderá vir a acontecer ou agravar-se no futuro2. (p. 189)
Todo o discurso em torno do risco e da prevenção, e a aceitação do uso de medicamentos, só é possível a partir da criação do modelo centrado na doença, que permite a existência dos dispositivos disciplinares e de segurança que vêm caracterizando grande parte do cuidado em saúde mental atualmente.
Nas considerações finais, cujo título é “Diagnósticos psiquiátricos, neurolépticos e modos de subjetivação”, Caponi retoma os principais argumentos e ideias discutidos ao longo da obra, citando as obras de Michel Foucault, para entender as:
[...] razões pelas quais o dispositivo disciplinar e o dispositivo de segurança, que percorrem o campo da psicofarmacologia ao longo de sua história, puderam ser aceitos a ponto de transformar-se em uma chave de inteligibilidade de nossa subjetividade2. (p. 209)
Para tal, precisamos observar quais os efeitos desejados dos neurolépticos – sentimento de indiferença do paciente e sensação de apatia. Em outras palavras, e citando Moncrieff, Caponi afirma, em uma das frases finais do livro, que “os fármacos são usados como medida geral de controle de comportamentos”2 (p. 211). A autora questiona ainda em que medida esses tipos de diagnósticos e de tratamentos podem levar à renúncia de si e à simplificação das histórias de vida, que podem ser resumidas a neuronarrativas.
Referências
- 1 Foucault M. Du gouvernement des vivants. Paris: Gallimard; 2012.
- 2 Caponi S. Uma sala tranquila: neurolépticos para uma biopolítica da indiferença. São Paulo: Liber Ars; 2019.
- 3 Moncrieff J. Hablando claro: uma introdución a los fármacos psiquiátricos. Barcelona: Herder; 2013.
- 4 Deniker P. Psychopharmacologie: les médicaments et drogues psychotropes. Paris: Ellipses; 1987.
- 5 Parada C. Toucher le cerveau, changer l’sprit. Paris: PUF; 2016.
- 6 Foucault M. Les anormaux. Paris: Gallimard; 1999.
- 7 Foucault M. Le pouvoir psiquiatrique. Paris: Gallimard; 2003.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
19 Jun 2020 -
Data do Fascículo
2020
Histórico
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Recebido
24 Mar 2020 -
Aceito
27 Maio 2020